Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1116/10.0TAGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: INTERVENÇÕES E TRATAMENTOS MÉDICO-CIRÚRGICOS
Data do Acordão: 02/26/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 13º E 150º, Nº 2 DO C. PENAL
Sumário: 1.- São elementos constitutivos do crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos com violação das leges artis:[tipo objectivo].

- A realização de intervenção ou tratamento por médico ou outra pessoa legalmente autorizada, com propósito curativo, e com violação das leges artis;

- A criação de perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde, em consequência da inobservância das leges artis; [tipo subjectivo]

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto [que deverá abranger todos os elementos do tipo objectivo].

2.- Trata-se de um crime específico próprio, pois só pode ser praticado por agente qualificado isto é, por médico ou por outra pessoa legalmente autorizada a levar a cabo a intervenção ou o tratamento. É também um crime de perigo concreto na medida em que o perigo faz parte do tipo [perigo este que, no entanto, não tem por causa uma concreta ofensa corporal].

3.- É ainda um crime de execução vinculada [o tipo descreve o particular comportamento que a acção deve revestir] e um crime doloso, em que o dolo abrange a conduta típica – a realização de intervenção ou um tratamento com propósito terapêutico, mas com violação das leges artis – e o perigo para a vida ou o perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde.

4.- Daqui resulta que não estará preenchido o tipo, quer quando o dolo do agente abarca a ofensa grave à integridade física ou a morte [nestes casos, os tipos preenchidos serão o de ofensa á integridade física e o de homicídio, respectivamente], quer quando a conduta típica, a violação das leges artis tiver ocorrido por negligência.

Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra
 
I. RELATÓRIO


No 1º Juízo do Tribunal Judicial da comarca da Guarda o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal singular, do arguido A...., com os demais sinais nos autos, a quem imputou a prática, em autoria material, de um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p. pelo art. 150º, nº 2, do C. Penal, em concurso aparente com um crime de ofensa à integridade física grave por negligência, p. e p. pelos arts. 148º, nº 3 e 144º, a) e d), todos do C. Penal.

A assistente B.... aderiu à acusação pública e deduziu pedido de indemnização contra o arguido com vista à sua condenação no pagamento de € 62.967,68 por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, e juros legais desde a data da prática dos factos, e no pagamento das despesas suportadas pelas instituições de saúde que lhe prestaram assistência médica em consequência das lesões sofridas.

Por sentença de 22 de Março de 2013 foi o arguido absolvido da prática dos imputados crimes de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos e ofensa à integridade física grave por negligência, e condenado, pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148º, nº 1 do C. Penal, na pena de 80 dias de multa á taxa diária de € 13, perfazendo a multa global de € 1.040.
Foi ainda o arguido condenado a pagar à assistente a quantia de € 3.000, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa de 4%, desde 24 de Dezembro de 2012 até integral pagamento, e absolvido do demais peticionado.

*
            Inconformada com a decisão, recorreu a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
            “ (…).
            I. O arguido A.... foi absolvido da prática de um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, previsto e punido pelo artigo 150º/2, do Código Penal e da prática de um crime de ofensa à integridade física grave por negligência, previsto e punido pelos artigos 148º/s. 1 e 3 e artigo 144º/a) e d), todos do Código Penal.
II. Foi o arguido condenado pela prática, entre os dias 07 e 18 de Março de 2010, de um crime de ofensa à integridade física simples por negligência, previsto e punido pelo art. 148º, do Código Penal.
III. Na opinião do Ministério Público, face à prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, conjugada com as regras da experiência comum, impunha-se uma decisão diferente pelo Tribunal "a quo", dando-se como provado que o arguido, enquanto médico, estava em condições de saber que, violava as regras da sua profissão, não cuidando de efectuar prescrição de antibioterapia e de estabelecer uma vigilância mais apertada, cerca de 7 a 10 dias sobre a alta hospitalar, conforme lhe era exigido pelos conhecimentos médicos que possuía, e que tal consulta de vigilância com a prescrição de antibioterapia, teria evitado o perigo de vir a desenvolver-se uma necrose,
IV. Que o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, tendo representado como consequência possível do facto de não prescrever antibioterapia e de não diligenciar por uma consulta de vigilância cerca de 7 a 10 dias sobre a alta hospitalar, a criação de dores e mal estar à assistente, bem como a criação de uma lesão grave facto que representou como possível e com o qual se conformou e porquanto deveria ter sido condenado pelo crime de que vinha acusado – pela prática de um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, previsto e punido pelo artigo 150º/2, do Código Penal em concurso aparente com um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelos artigos 148º n.º l e 3 e 144º alíneas a) e d), todos do Código Penal.
V. O Ministério Público considera incorrectamente julgados os factos 17), 18), 19), 47) e 57) dados como provados e incorrectamente julgados como não provados as alíneas b), d), f), h), i), j) e k).
VI. Pela nossa parte, a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, conjugada com as regras da experiência comum, impunha que o Tribunal "a quo" desse como provada, nos seguintes termos, a matéria de facto aludida nos factos 17), 18), 19), 47), 57) e nas alíneas b), d), f), h), n, j) e k);
FACTO 17) A consulta de controlo e vigilância referida em 8) e a prescrição de antibioterapia teriam evitado o perigo de vir a desenvolver-se uma necrose.
FACTO 18) O arguido colocou a possibilidade da assistente vir a desenvolver a necrose indicada em 11).
FACTO 19) O arguido, enquanto médico, estava em condições de saber que, violava as regras da sua profissão, não cuidando de efectuar prescrição de antibioterapia e de estabelecer uma vigilância mais apertada, cerca de 7 a 10 dias sobre a alta hospitalar, a fim de evitar o perigo de vir a desenvolver-se uma necrose.
FACTO 47) Foi colocada no membro inferior esquerdo tala gessada, que consiste na aplicação de uma calha de gesso envolvida por ligaduras.
FACTO 57) A prescrição de antibiótico era prudente.
ALÍNEA b) As ligaduras da tala gessada, envolveram e taparam o local da ferida.
ALÍNEA d) O arguido devia ter receitado antibiótico para evitar a infecção da escoriação.
ALÍNEA f) A consulta de vigilância referida em 8) teria evitado, o perigo de vir a desenvolver-se a necrose descrita em 11).
ALÍNEA h) Caso a assistente apenas tivesse comparecido na data designada pelo arguido para a consulta de acompanhamento do seu estado clínico, a infecção da lesão no membro inferior esquerdo teria alastrado de forma irremediável e conduzido à sua amputação ou mesmo à morte da assistente.
ALÍNEA i) O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, tendo representado como consequência possível do facto de não prescrever antibioterapia e de não diligenciar por uma consulta de vigilância cerca de 7 a 10 dias sobre a alta hospitalar, a criação de dores e mal estar à assistente, bem como a criação de uma lesão grave facto que representou como possível e com o qual se conformou.
ALÍNEA j) O arguido representou a criação de perigo para a vida ou de grave ofensa para o corpo e saúde da assistente.
ALÍNEA k) O arguido agiu de forma consciente.
VII. Devia ainda ter sido considerado como provado o seguinte facto: A necrose teve origem na escoriação ao nível anterior do tornozelo observada em 2).
VIII. O parecer apresentado pelo INML é um meio de prova particularmente qualificado, que, nos termos do art. 163º/1 e 2, do CPP, se presume subtraído à livre apreciação do julgador.
IX. O seu relator o Prof. Doutor E...., ouvido na qualidade de perito em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, salientou que a idade da paciente, associada a possíveis complicações vasculares e a circunstância da lesão se ter verificado no terço distal da perna esquerda, zona particularmente vulnerável sobretudo para as mulheres, eram factores acrescidos de risco, que teriam exigido segundo a boa prática médica a consulta de vigilância.
X. De notar ainda que sobre a antibioterapia esclareceu ser um procedimento prudente.
XI. É o próprio relator da perícia que atesta que segundo a sua experiência a necrose terá tido a sua origem na escoriação, sublinhou haver uma relação de causa efeito entre uma coisa e outra, não indicando sequer, quando questionado pelo Mm.o Juiz, outra possibilidade, mesmo que remota, outra causa para a necrose. Reiterou ser tal facto uma evidência.
XII. Conclui-se que para que o resultado em que se materializa o ilícito típico possa fundamentar a responsabilidade não basta a sua existência fáctica, sendo necessário que possa imputar-se objectivamente à conduta e subjectivamente ao agente. É pois, tendo presente, todos os elementos probatórios, os princípios expostos e as normas por que se deve pautar a actividade médica, que entendemos verificado o nexo de causalidade.
XIII. Ora o dolo embora assente em factos, como fenómeno que é da vida psíquica, não é passível de apreensão directa, mas é ilação a tirar das circunstâncias da infracção.
XIV. Ao contrário do homem médio (abstrato), leva-se agora em consideração as qualidades e capacidades pessoais do agente enquanto homem concreto.
XV. O arguido, nas suas declarações finais, referiu que também marca consultas a uma semana, desde que o caso o justifique.
XVI. Simplesmente, em relação à assistente, entendeu e mal, que não se justificava. Face à sua experiência profissional e conhecimentos médicos o arguido tinha que representar como possível tal resultado.
XVII. Tal leva a inferir que, sendo o arguido médico e com bons conhecimentos técnico-científicos, teria, pelo menos, de representar como possível – até como necessário face à sua experiência profissional (14 anos) – que, dando alta à paciente sem diligenciar por uma consulta no espaço de uma semana, nem recorrer a uma terapêutica mais activa, designadamente antibioterapia, criavam perigo de grave ofensa para o seu corpo ou saúde.
Desta forma, ao entender-se como não provado que o arguido tenham tido a consciência que ao actuar como actuou criou perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde incorreu o julgador em erro notório na apreciação da prova – art. 410.º, n.º 2, alínea c), do C.P.P. – violando o disposto o disposto no artigo 14.º, n.º 2 e 3 do C. Penal.
Nestes termos e naqueles mais que V.ªs Ex.ªs, se dignarão suprir, deve o presente recurso ser julgado procedente.
Vossas Excelências, farão, como sempre, JUSTIÇA.
(…)”.
*

            Igualmente inconformado com a decisão, recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
            “ (…).
            1. Deve considerar-se provada a matéria da alínea rr) dos factos não provados e, nomeadamente, que foram as descargas que a assistente exerceu sobre a perna engessada, em desobediência às instruções que lhe foram dadas, à sua experiência e às regras da experiência comum, as causas das complicações por si sofridas – o que decorre do depoimento da própria assistente e das testemunhas G.... e S....;
2. Deve considerar-se provada a matéria da alínea pp) dos factos não provados e, nomeadamente, que foi entregue à assistente um impresso com recomendações habituais, consistindo estas na indicação do que devia fazer (elevar o membro a nível superior do corpo, movimentar os dedos, controlar a dor, a mobilidade, a sensibilidade, a temperatura, o edema), o que não devia fazer (sujeitar o aparelho a qualquer tipo de líquido, cortar ou retirar o aparelho, introduzir objectos entre o aparelho e o membro, fazer carga no membro inferior sem ter indicação): mencionava ainda tal impresso as seguintes indicações: "mantenha as partes livres e disponíveis do seu corpo em função, observar todas as outras indicações dadas pelos elementos da equipa que o trata, em caso de alguma dúvida ou alteração ao normal decurso do seu tratamento recorra ao local assistencial mais próximo". – o que decorre do depoimento de Q.... e das testemunhas, colegas do arguido.
3. Deve considerar-se não provada a matéria do ponto 19 dos factos provados e, nomeadamente, que o arguido, enquanto médico, estava em condições de saber que, violava os cuidados que ao caso eram exigíveis, bem como as regras da sua profissão, não cuidando de estabelecer uma vigilância mais apertada, cerca de 7 a 10 dias sobre a alta hospitalar, conforme lhe era exigido pelos conhecimentos médicos que possuía, e que tal consulta de vigilância podia diminuir o perigo de vir a desenvolver-se uma necrose, pelo menos, com a extensão que veio a assumir e teria evitado, pelo menos, que, caso surgisse, uma necrose a mesma viesse a ter a extensão que, no caso, veio a assumir – uma vez que não foi feita prova cabal sobre a fonte das legis artis em que esta matéria se baseou.
4. Para se considerar que o arguido violou as legis artis, deveria a própria acusação fundamentar a origem destas, até de modo a aferir-se um eventual grau de culpa do arguido, indicando a fonte, com referências bibliográficas concretas, de modo a permitir o cabal exercício do contraditório.
5. Não se pode imputar ao arguido qualquer culpa na ocorrência ou agravamento da necrose se a consulta que se entendeu que deveria ter marcado e não marcou não iria servir para a despistar mas sim para outros fins.
6. Por isso, não pode estabelecer-se qualquer relação de causalidade entre a falta de marcação da consulta e o dano – a não ser que o dano fosse um agravamento previsível da fractura, do edema ou da escoriação (o que não foi o caso).
7. Nada permite concluir que a necrose não pudesse surgir depois de 7/10 dias e até ao fim do período de consolidação da fractura, independentemente da consulta que se disse ser mandatória naquele prazo.
8. Atentos os erros técnicos e factuais do parecer do INML não deveria o mesmo ser atendido.
9. Não se pode também imputar qualquer culpa ao arguido no procedimento que seguiu se se limitou a seguir o protocolo do serviço, instituído pelo seu superior hierárquico, e se agiu como agiriam a esmagadora maioria dos seus colegas de profissão.
10. Haveria neste último caso, a considerar-se obrigatória a marcação da consulta cuja falta o tribunal entendeu ser criminosa, obediência indevida desculpante.
11. Seria de todo inviável, e com prejuízo para os utentes com patologias graves, atento o modo de organização do sistema nacional de saúde e os seus constrangimentos financeiros e de recursos humanos, conseguir garantir uma consulta extra aos portadores de aparelhos gessados, sobretudo quando tal consulta implicaria necessariamente a retirada do gesso (única forma de verificar o edema e eventuais escoriações) e nova radiografia.
12. A assistente teve culpa no agravar da sua condição ao apenas se ter dirigido ao hospital mais de dez dias após o surgimento dos primeiros sintomas.
13. Não tendo o arguido cometido o crime de que vem acusado, deverá ser absolvido do pedido cível.
14. Violou a douta sentença recorrida, para além do mais, os artigos 37º e 148º do Código Penal e o princípio in dubio pro reo.
Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente, sendo o arguido absolvido da acusação e do pedido cível.
(…)”.
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            O arguido respondeu ao recurso do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:
            “ (…).
            1. Para se poder falar em violação das legis artis há que referir a fonte de onde as mesmas emergem.
                2. Nada existe nos autos que demonstre a necessidade ou oportunidade de antibioterapia preventiva e muito menos que a mesma fosse adequada a prevenir as lesões sofridas pela assistente.
                3. Atendendo à sua fraca qualidade científica, aos erros técnicos e falta de fundamentação cabal, não podem ser tomados em consideração quer o parecer do INML, quer o depoimento da testemunha E.....
            (…)”.
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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, aderindo à argumentação da Digna Magistrada recorrente, e concluiu pela procedência do recurso do Ministério Público e pela improcedência do recurso do arguido.
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            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.
 
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO


            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
            Assim, atentas as conclusões formuladas pela Digna Magistrada recorrente e pelo arguido, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

            A) Recurso do Ministério Público:
            - O vício do erro notório na apreciação da prova;
- A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto;
- O preenchimento do tipo do crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p. pelo art. 150º, nº 2, do C. Penal e sua consequência ao nível da punição.

B) Recurso do arguido:
- A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto, a violação do princípio in dubio pro reo;
- A atipicidade da conduta e a obediência indevida desculpante;
- A improcedência do pedido de indemnização civil.
   
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            Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

            A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:
            “ (…).
            1) No dia 31.03.2010, pelas 23 horas e 08 minutos, a assistente B...., deu entrada no serviço de urgência do Hospital Sousa Martins, na Guarda (integrado na Unidade Local de Saúde da Guarda, EPE – ULS Guarda), com queixas de traumatismo do membro inferior esquerdo devido a queda no domicílio.
2) Observada clinicamente pelo arguido A...., que se encontrava de serviço, foi-lhe diagnosticada “uma fractura cooptada do maléolo externo”, apresentando ainda uma “pequena escoriação a nível anterior do tornozelo”, conforme o teor do resumo do episódio de urgência de fls. 22 dos autos.
3) Acto seguido, foi colocada, na assistente, tala gessada.
4) Sob ordens directas e supervisão do arguido, foi lavada e desinfectada a escoriação, com solução antisséptica, e colocada uma gaze esterilizada seca.
5) A assistente recebeu alta hospitalar, com marcação de consulta externa, na especialidade de Ortopedia para o dia 11.05.2010, ou seja, seis semanas depois.
6) O arguido entregou ainda à assistente, uma carta para se apresentar na aludida consulta e receitou-lhe medicação para as dores – aceclofenac/airtal (analgésicos), de doze em doze horas.
7) O arguido não receitou, como podia, antibiótico.
8) O arguido não agendou, como podia e devia, consulta para controlo e vigilância da fractura, do edema e da escoriação no espaço de 7 a 10 dias, tal como impunham os procedimentos médicos normais em idênticas situações.
9) Acontece que, passado um número de dias não concretamente apurado, mas seguramente antes do sétimo dia após a alta, a assistente começou a sentir dor na perna engessada, que foi aumentando exponencialmente, não obstante a toma da medicação que lhe foi prescrita.
10) No dia 18.04.2010, a assistente deslocou-se novamente ao Serviço de Urgência do H. S. Martins da Guarda, onde deu entrada pelas 15h08m, com queixas de dor no membro inferior esquerdo, apesar de “medicada com Airtal duas vezes ao dia”, conforme o teor do resumo do episódio de urgência de fls. 26 dos autos.
11) A assistente foi referenciada à especialidade de Ortopedia, tendo sido observada pelo Dr. G...., assistente graduado sénior, que constatou “ferida com necrose da pele na região anterior pré-tibial”, conforme o teor do resumo do episódio de urgência de fls. 26 dos autos.
12) Por indicação desse médico, um outro colega ortopedista, Dr. C...., procedeu à limpeza da zona necrosada e lavagem da mesma.
13) A assistente ficou internada para antibioterapia e vigilância.
14) A 04.05.2010, a assistente foi submetida a uma intervenção cirúrgica para excerto de pele livre, tendo recebido alta a 12.05.2010.
15) Devido à necrose, à limpeza referida em 12) e ao excerto de pele, a assistente ficou com uma cicatriz com 3cm de diâmetro na face anterior do 1/3 inferior da perna, o que desfigurou o membro inferior esquerdo da assistente nos termos reproduzidos nas fotografias de fls. 336 a 338.
16) Tais lesões determinaram um período de doença fixável em 43 dias para a cura, com afectação da capacidade para o trabalho geral e para o trabalho profissional.
17) A consulta de controlo e vigilância referida em 8) teria diminuído o perigo de vir a desenvolver-se uma necrose, pelo menos, com a extensão que veio a assumir e teria evitado, pelo menos, que a necrose descrita em 11) tivesse assumido a extensão que veio a ser constatada.
18) O arguido não colocou a possibilidade da assistente vir a desenvolver a necrose indicada em 11).
19) O arguido, enquanto médico, estava em condições de saber que, violava os cuidados que ao caso eram exigíveis, bem como as regras da sua profissão, não cuidando de estabelecer uma vigilância mais apertada, cerca de 7 a 10 dias sobre a alta hospitalar, conforme lhe era exigido pelos conhecimentos médicos que possuía, e que tal consulta de vigilância podia diminuir o perigo de vir a desenvolver-se uma necrose, pelo menos, com a extensão que veio a assumir e teria evitado, pelo menos, que, caso surgisse, uma necrose a mesma viesse a ter a extensão que, no caso, veio a assumir.
20) O arguido agiu de forma livre e voluntária.
21) O arguido sabia, na data indicada em 1), que a violação dos procedimentos médicos normais, em idênticas situações, passíveis de conduzirem à lesão descrita em 11), é proibida e punida por lei.
22) O arguido nasceu no dia 08.05.1954.
23) Não lhe são conhecidos antecedentes criminais e não mostrou arrependimento.
24) É casado e tem dois filhos maiores.
25) Aufere, em média, € 4.000,00 mensais.
26) A mulher não trabalha por razões de saúde.
27) Paga um empréstimo habitação no montante mensal de € 800,00.
28) À data dos factos descritos em 1), a assistente tinha 66 anos de idade e era a principal pessoa que cuidava do marido enfermo, que necessitava diariamente de acompanhamento, tratamentos e medicação.
29) Após a alta, durante um período de tempo não concretamente apurado, mas superior a uma semana, a assistente careceu de muletas para se movimentar, estando limitada de movimentos.
30) Durante o período de 43 dias de doença, a assistente não pode cuidar do seu marido.
31) Teve de recorrer a terceiros familiares para prestarem cuidados ao seu marido e aos quais nada pagou.
32) Deslocou-se ao escritório do seu advogado, pelo menos, duas vezes, a 8 km de distância de sua casa, e uma vez à Guarda, em sede de inquérito.
33) A assistente prestou declarações em audiência de julgamento, tendo-se deslocado à Guarda, e esteve presente em todas as quatro sessões da audiência de julgamento.
34) No dia em que a assistente ficou internada, como estava muito alterada, mandaram chamar o filho, L..., que aguardava pela mãe e quando este lá chegou, viu a mãe a chorar e referindo que não queria ficar internada.
35) Foi à cirurgia para fazer um enxerto que seria tirado da massa da perna para colocar na ferida, que foi feita com anestesia geral.
36) Devido aos factos descritos em 12) a 14), a assistente sentiu dores.
37) Devido aos factos descritos em 12) a 15), a assistente sentiu frustração e angústia.
38) A assistente sempre foi uma pessoa dinâmica, zelosa e trabalhadora.
39) Esta sucessão de factos deixou-a agastada, nervosa.
40) A assistente está afectada com esta situação.
41) Sente a perna dura na zona da cicatriz, que tem uma cor mais escura e uma superfície côncava.
42) Actualmente, devido, entre o mais, aos factos descritos em 12) a 15) tem o sistema nervoso alterado e irrita-se com mais facilidade.
43) Uma ferida consiste numa interrupção na continuidade do tecido cutâneo, atingindo as camadas mais profundas da derme e/ou hipoderme, necessitando, habitualmente de um desbridamento cirúrgico, antibioterapia sistémica e vigilância apertada.
44) A escoriação afecta a epiderme e/ou derme superficial, vulgarmente conhecida como arranhão.
45) A sua profilaxia, habitualmente, tem como base uma limpeza e desinfecção da pele com soluto antisséptico, sem utilização de antibióticos, evoluindo naturalmente para a cicatrização espontânea.
46) A opção pela tala gessada teve em conta a existência da escoriação.
47) A perna estava gessada apenas na face posterior e não na zona da escoriação.
48) A colocação da tala gessada é o tratamento adequado e o habitual segundo as práticas estabelecidas no serviço de ortopedia da ULS da Guarda e da generalidade dos estabelecimentos hospitalares nacionais.
49) O arguido, no ano de 2010, esteve presente em, pelo menos, 1033 episódios de urgência, e viu, pelo menos, 937 doentes na consulta externa.
50) O arguido tem um máximo de 225 dias de trabalho por ano.
51) Em 2009 e 2012, o arguido foi o ortopedista da ULS da Guarda com mais consultas externas realizadas.
52) Em 2010, foi o arguido o ortopedista com mais episódios de urgência.
53) O arguido encontra-se na ULSG em regime de exclusividade.
54) A ULSG foi classificada no ranking dos hospitais públicos em quinto lugar a nível nacional de doenças musculoesqueléticas e em quarto lugar em traumatismos e lesões acidentais.
55) A administração preventiva de antibióticos só deve ocorrer em casos justificados.
56) Aquando da observação da assistente, no episódio de urgência descrito em 1), não havia sintomas de infecção, como exsudação ou odor.
57) Só se a necrose tivesse resultado de um processo infeccioso é que poderia ter sido prevenida, de todo, com antibióticos.
58) A consulta externa de ortopedia marcada pelo arguido destinava-se a retirar o gesso e efectuar o controlo da fractura, sendo a dilação de seis semanas o tempo médio previsto para a consolidação deste tipo de fractura.
59) O arguido disse verbalmente à assistente que deveria evitar cargas sobre o membro gessado, deveria usar canadianas, favorecer o repouso e manter o membro esquerdo elevado.
60) A assistente tinha antecedentes de fractura anterior do terço distal da tíbia e do perónio.
61) A caixa de Airtal receitada à assistente tinha 20 comprimidos.
62) À data dos factos descritos em 1) a 14), o marido da assistente estava dependente do cuidado de terceiros.
63) O arguido tem transferida, pela apólice nº 0084.058.934590, a sua responsabilidade profissional para a AXA Portugal, Companhia de Seguros de Vida, S.A..
64) O arguido foi notificado do pedido de indemnização civil no dia 24.12.2012.
(…)”.

B) Nela foram considerados provados os seguintes factos:
“ (…).
a) A tala gessada foi colocada pelo pessoal de enfermagem por ordens directas do arguido.
b) A tala gessada foi aplicada sobre o local da ferida – antes se provou o que consta no ponto 47) dos factos provados.
c) Pelo arguido, não foi transmitido oralmente, à assistente, como podia e devia, orientações de vigilância, designadamente que, face a qualquer alteração sintomática, tais como odores e cheiros, deveria dirigir-se a um estabelecimento de saúde.
d) O arguido devia ter receitado antibiótico para evitar a infecção da escoriação.
e) A prescrição de antibióticos teria evitado a necrose.
f) A consulta de vigilância referida em 8) teria evitado, por completo, a necrose descrita em 11) – apenas se provou o que consta no ponto 17) dos factos provados.
g) As dores sentidas pela assistente, passado cerca de 3 dias, provinham do local da escoriação.
h) Caso a assistente apenas tivesse comparecido na data designada pelo arguido para a consulta de acompanhamento do seu estado clínico, a infecção da lesão no membro inferior esquerdo teria alastrado de forma irremediável e conduzido à sua amputação ou mesmo à morte da assistente.
i) O arguido sabia que provocava dores e mal-estar à assistente e uma lesão que determinou uma cicatriz que desfigurou grave e permanentemente o seu membro inferior esquerdo – apenas se provou o que consta nos pontos 18) e 19).
j) O arguido representou a criação de perigo para a vida ou de grave ofensa para o corpo e saúde da assistente – antes se provou o que consta no ponto 18).
k) O arguido agiu de forma consciente – antes se provou o que consta no ponto 18).
l) A assistente usou muletas durante dois meses após a alta – apenas se provou o que consta no ponto 29) dos factos provados.
m) Após a alta, a assistente tinha de estar acompanhada à noite obrigando o seu filho que residia à data na Guarda, todos os dias se deslocasse para passar a noite em Figueiró da Granja, percorrendo diariamente 102 km (ida e volta) para prestar cuidados aos seus pais, sendo que a assistente assumiu essa despesa com o seu filho, durante, pelo menos, 121 dias.
n) A assistente deslocou-se ao escritório do seu advogado mais do que duas vezes – apenas se provou o que consta no ponto 32) dos factos provados.
o) As lesões sofridas obrigam a assistente a esforços acrescidos.
p) A assistente, enquanto se encontrava internada, ainda tentou confrontar o arguido, mas este não lhe deu oportunidade, afastando-se imediatamente acompanhado de outros médicos.
q) A assistente ainda hoje tem gravada na memória as palavras que o enfermeiro expressamente proferiu: “A senhora teve muita sorte! Mais uns dias e ficava sem perna”.
r) As dores que sentiu durante o internamento foram constantes – apenas se provou o que consta no ponto 36) dos factos provados.
s) Hoje sente-se humilhada e constrangida, vivendo momentos de inutilidade.
t) A assistente ficou parcialmente afectada na marcha, deslocando-se com maior dificuldade.
u) Sofre no dia-a-dia por esta limitação nos cuidados que voltou a prestar ao seu marido.
v) A assistente sempre foi uma pessoa alegre.
w) Sente dificuldades acrescidas nas actividades do dia-a-dia.
x) O médico de família receitou-lhe comprimidos para o nervosismo.
y) Perdeu toda a qualidade de vida.
z) Anda com dificuldade pois cansa-se muito.
aa) Na última prova de esforço que realizou para controlar o coração, não conseguiu terminar e, em consequência, passou a tomar medicamentos para o coração.
bb) Sente a perna inchada e sensível ao toque em especial na área envolvente à cicatriz.
cc) Com a medicação em excesso que tomou enquanto esteve internada, desde que saiu do hospital tem tido problemas no estômago, sentindo uma azia frequente e ao fim das refeições vêm-lhe à boca os alimentos.
dd) Não consegue passar um dia sem sentir revolta pelo que lhe aconteceu, não lhe saindo da ideia de como uma simples entorse ia levando à amputação da perna.
ee) De andar de muletas durante três meses esforçou muito o corpo e a sua artrite inflamatória piorou, sentindo dores frequentes na coluna cervical, ombros, joelho direito, braços, em especial o esquerdo e pulsos.
ff) A opção pela colocação da tala gessada foi para facilitar a sua vigilância, tanto pela doente, como pela sua médica de família, por forma a que a doente se apercebesse com facilidade de alguma eventual complicação, permitindo, com a simples abertura das ligaduras de pano que circundavam a face anterior da perna, a inspecção da pele subjacente.
gg) O arguido também executa as seguintes tarefas: cirurgias no bloco operatório; e actividade assistencial aos doentes internados e operados.
hh) O arguido, no ano de 2010, esteve presente em mais episódios de urgência e consultas externas do que aquelas que se indicaram no ponto 49) dos factos provados – apenas se provou o que aí consta.
ii) As consultas externas são distribuídas no horário do arguido por sete horas semanais.
jj) As 1377 consultas externas com intervenção do arguido tiveram de ser realizadas nas 336 horas disponíveis para o efeito em 2010 no seu horário de trabalho.
kk) O arguido dispôs, em 2010, de pouco mais de 14 minutos por doente de consulta externa.
ll) Os factos descritos em 51) são devidos ao facto referido em 52).
mm) A ULSG dispunha em 2010 de apenas 6 ortopedistas para todo o distrito.
nn) A efectuar-se uma vigilância mais apertada 8/10 dias após a alta hospitalar num caso de pequena escoriação com fractura bem coaptada, os hospitais públicos e a ULSG entrariam rapidamente em colapso e os ortopedistas, em vez de serem obrigados a dedicar 14 minutos a cada doente em consulta externa, terão disponível menos tempo.
oo) Não se encontra na literatura científica a recomendação de, em caso de fractura com escoriação, ser de prescrever antibióticos.
pp) Foi entregue à assistente um impresso com recomendações habituais, consistindo estas na indicação do que devia fazer (elevar o membro a nível superior do corpo, movimentar os dedos, controlar a dor, a mobilidade, a sensibilidade, a temperatura, o edema), o que não devia fazer (sujeitar o aparelho a qualquer tipo de líquido, cortar ou retirar o aparelho, introduzir objectos entre o aparelho e o membro, fazer carga no membro inferior sem ter indicação): mencionava ainda tal impresso as seguintes indicações: “mantenha as partes livres e disponíveis do seu corpo em função, observar todas as outras indicações dadas pelos elementos da equipa que o trata, em caso de alguma dúvida ou alteração ao normal decurso do seu tratamento recorra ao local assistencial mais próximo”.
qq) A assistente tinha outros antecedentes para além dos descritos em 60), designadamente encurtamento e rotação aparente, com varo do foco de fractura e com consolidação viciosa – apenas se provou o que consta no ponto 60) dos factos provados.
rr) Foram as descargas que a assistente exerceu sobre a perna engessada, em desobediência às instruções que lhe foram dadas, à sua experiência e às regras da experiência comum, as causas das complicações por si sofridas.
ss) A escoriação do dia em que a assistente foi vista pelo arguido não é no mesmo sítio onde ela sofreu a necrose.
Tudo o mais que conste na acusação pública, no pedido de indemnização civil e na contestação e não se encontre reproduzido nos factos provados e não provados, é matéria de direito, de natureza conclusiva ou irrelevante.
            (…)”.

            C) Dela consta a seguinte motivação de facto:
            “ (…).
            O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica de toda a prova produzida, conjugada com as regras da experiência comum e critérios de normalidade e razoabilidade, segundo o princípio da livre apreciação da prova, nos termos do art. 127º do Código de Processo Penal (CPP), conforme se expõe, de seguida, em pormenor.
Ponto 1):
O primeiro episódio de urgência hospitalar descrito neste ponto está documentado no relatório de urgência de fls. 22 e 23, cujo teor mereceu, na íntegra, credibilidade, porquanto não foi infirmado pela demais prova produzida.
Ponto 2):
A observação da assistente pelo arguido e o diagnóstico efectuado estão igualmente documentados no referido relatório de urgência.
É certo que, nesse dia, o arguido exercia as suas funções juntamente com a testemunha D..., médico ortopedista, conforme consta na informação relativa às escalas de serviço de fls. 59, e foi confirmado por este, no seu depoimento.
Contudo, D.... afirmou que não assistiu B...., pelo que, pese embora o arguido, nas suas declarações finais, tenha aludido a uma decisão conjunta, a prova produzida, designadamente o relatório de urgência e o depoimento de D...., são concludentes no sentido de que foi efectivamente o arguido o responsável pelo diagnóstico e pelo tratamento.
Pontos 3) e alínea a):
A colocação da tala gessada, nos termos reproduzidos no ponto 3), é também confirmada pelo referido relatório.
No que respeita à pessoa que a colocou, designadamente se foi o próprio arguido ou o pessoal de enfermagem (conforme consta na alínea a) dos factos não provados), a prova produzida não permitiu formar uma convicção segura.
Efectivamente, pese embora a assistente tenha afirmado terem sido os enfermeiros a colocar a tala, a verdade é que também referiu que o arguido “aconchegou”. Por sua vez, o arguido afirmou o contrário, tendo dito ter sido o próprio a praticar este acto. É certo que o arguido também esclareceu não se recordar, de memória, do episódio. Contudo, a sua afirmação corresponde aos procedimentos habituais e a verdade é que a testemunha Q..., enfermeiro ao serviço do Hospital da Guarda, afirmou, de forma peremptória, que a colocação da tala é um acto médico e, na sua experiência profissional, sempre foi o ortopedista a executar este acto. A testemunha não assistiu ao acto, nem foram ouvidas mais testemunhas com percepção directa ou memória dos factos.
Face à ausência de mais prova directa e isenta sobre a matéria, não foi possível dar pleno crédito, nesta parte, à assistente.
Ponto 4):
A esterilização da escoriação e colocação de gaze foram factos afirmados pelo arguido, cujas declarações, nesta parte, mereceram credibilidade, porquanto não foram infirmadas pela demais prova produzida.
No relatório de urgência consta a colocação de “penso”, tendo o arguido esclarecido que este termo designa também o procedimento utilizado.
Ponto 5):
A alta e a marcação da consulta externa para o dia 11.05.2010 estão documentadas no relatório de urgência.
Ponto 6):
A entrega de uma carta para a consulta externa e a medicação prescrita foram factos confirmados pelo arguido e pela assistente, constando também no relatório de urgência a referência ao medicamento receitado e à posologia, de 12 em 12 horas.
Ponto 7):
A não prescrição de antibiótico foi um facto atestado pelo próprio arguido.
Ponto 8) e alínea nn):
O arguido confirmou, como aliás resulta do relatório de urgência já referido, que não agendou uma consulta para controlo e vigilância no espaço de uma semana ou 7 a 10 dias.
Contudo, afirmou que, em face da observação por si efectuada e do diagnóstico realizado, considerou que não era necessária. Ora, em relação a este ponto específico, a prova produzida permitiu formar uma convicção segura e consolidada em sentido contrário.
Vejamos porquê.
Sobre esta matéria, a prova produzida foi abundante.
Assim, durante o inquérito foi solicitado e emitido pelo Conselho Directivo do Instituto Nacional de Medicina Legal, I.P. um parecer, que teve como relator o Prof. Doutor E...., que consta a fls. 90 a 92, e que foi aprovado por unanimidade, no qual se concluiu o seguinte: “Atendendo a que esta doente apresentava uma fractura complicada de ferida, a vigilância e o controle no espaço de uma semana era em nosso entendimento mandatório”. Este parecer baseou-se, entre o mais, nos seguintes factos: “Como antecedentes com relevo, é referido no processo que a doente teria sofrido fractura dos ossos da perna esquerda há cerca de 18 anos tendo sido tratada conservadoramente. Apresentava agora pequena escoriação a nível da face anterior do tornozelo esquerdo que terá sido desinfectada e colocado penso, e fractura coaptada do maléolo externo que foi imobilizada com tala gessada posterior”.
Em audiência de julgamento, o relator do parecer prestou esclarecimentos tendo mantido a conclusão acima exarada, salientando ainda que a idade, associada a possíveis complicações vasculares e a circunstância da lesão se ter verificado no terço distal da perna esquerda, com menor protecção muscular, que é uma zona particularmente vulnerável sobretudo para as mulheres, eram factores acrescidos de risco, que também teriam justificado a consulta de vigilância, acrescentando que seria o procedimento que adoptaria.
Durante o processo disciplinar instaurado contra o arguido pela Inspecção-Geral de Actividades em Saúde foram pedidos dois pareceres, um, por iniciativa da própria entidade inspectora (cfr. fls. 762 a 764), ao Dr. F...., médico ortopedista (cfr. fls. 772) e outro, a pedido do arguido (cfr. fls. 846 e 868), ao Colégio da Especialidade de Ortopedia da Ordem dos Médicos (cfr. fls. 872).
O conteúdo do parecer emitido pelo Dr. F.... é o seguinte: “Se a doente em questão apresentava apenas “pequena escoriação a nível anterior do tornozelo” (como referido no Relatório do Resumo de Episódio de Urgência no dia 31 de Março de 2010, no E.O.) não é mandatório prescrever antibioterapia, sendo recomendado fazer uma boa desinfecção e vigilância. 3ª Questão – Como respondido na 2ª questão, existindo uma fractura com edema acompanhado de escoriação teria sido recomendável uma vigilância mais apertada, oito a dez dias após a alta”.
O Dr. F.... prestou esclarecimentos, em audiência de julgamento, tendo referido que o tempo de reavaliação depende daquilo que o médico observou. Contudo, confirmou que a marcação da consulta de vigilância dentro do prazo referido é o procedimento habitual que segue.
Por sua vez, o Colégio da Especialidade de Ortopedia da Ordem dos Médicos concluiu o seguinte: “1ª 1. O Tratamento a efectuar depende do osso atingido, localização da fractura, anatomia da mesma, idade do doente e muitos outros factores. Contudo, perante a presença de uma escoriação existe um padrão de terapêutica comum que implica uma desinfecção do local, eventual prescrição profilática de antibiótico e vigilância da evolução da ferida. 2ª 2. A orientação referida é na maior parte das vezes a utilizada quer como tratamento inicial, mas muitas vezes até como tratamento definitivo. 3ª 3. Como referido na resposta ao quesito 1, este tipo de lesões devem condicionar uma vigilância da escoriação até à sua cicatrização, independentemente do tipo e local da fractura.”. Pese embora o parecer faça apenas alusão a vigilância, sem esclarecer expressamente se se trata de vigilância do médico ou do paciente, considera-se inequívoco que o sentido do termo utilizado se reporta à vigilância do médico, pois este procedimento é indicado como um dos pontos que integram o padrão de terapêutica comum, ou seja, o padrão de terapêutica a adoptar pelo médico.
Em sua defesa, o arguido arrolou vários médicos ortopedistas e juntou pareceres subscritos pelos mesmos.
Assim, foi ouvido C..., que assistiu B.... no segundo episódio de urgência.
É colega do arguido no Hospital Sousa Martins e, no essencial, sobre esta matéria, reiterou as conclusões exaradas no parecer de fls. 485 a 489, salientando-se as seguintes: “Relativamente a fracturas com escoriações não encontrámos documentação científica que aponte no sentido da necessidade de uma vigilância clínica mais apertada quando comparado com uma fractura sem qualquer tipo de lesão cutânea associada nas quais as imobilizações são retiradas entre as 4 e as 6 semanas após a sua aplicação. 4 – A responsabilidade principal da vigilância de uma imobilização gessada é do doente ou do seu representante legal no caso de se tratar de um menor. (…) 6 – Não encontramos pelo atrás exposto nenhuma justificação para se poder considerar que existiu má prática do Dr. A.... na presente situação”.
Também prestou depoimento G...., médico ortopedista e colega do arguido, no Hospital Sousa Martins, que observou B.... no segundo episódio de urgência. Esta testemunha afirmou igualmente que, na sua perspectiva, não se impunha uma consulta de vigilância e controlo após uma semana. Fez ainda referência ao facto do arguido ter seguido o protocolo de procedimentos a observar no Hospital Sousa Martins, em situações deste género, implementado pela testemunha, enquanto director de serviço.
Foi igualmente ouvido H...., médico ortopedista, colega e amigo do arguido, que não assistiu B.... em nenhum dos episódios, tendo afirmado que a evolução de uma escoriação é sempre para a cura, durante os seus anos de prática nunca viu nenhuma escoriação ter originado uma necrose e que, em face das lesões apresentadas pela assistente, não se justificava uma consulta de vigilância e controlo ao fim de uma semana.
D...., já identificado, também afirmou que não se justificava a realização da referida consulta, não sendo esse o procedimento habitual seguido nos hospitais onde trabalhou.
Prestou igualmente depoimento I...., médico ortopedista, colega e amigo do arguido, que emitiu o parecer de fls. 859 e verso, no qual escreveu, entre o mais, o seguinte: “Após análise dos factos que constam neste relatório [relatório do primeiro episódio de urgência] concluímos com toda a certeza e sem quaisquer margens para dúvidas que a referida Doente foi tratada pelo Médico em causa conforme o estado da Arte para este tipo e grau de fracturas. (…) Da análise dos factos que constam na respectivos itens da folha de Urgência da lesão em causa descrita previamente pelo Médico (escoriação) não tem indicação para ser reavaliada no prazo de 8-10 dias segundo o protocolo estabelecido no nosso serviço de Ortopedia da ULS da Guarda”.
Foi ainda ouvido, sobre esta matéria, J...., médico ortopedista, que, a pedido do arguido, também emitiu o parecer junto a fls. 860, no qual exarou a seguinte conclusão, que, no essencial, coincide com o seu depoimento,: “Da análise dos factos, tendo por base os documentos fornecidos, a marcação da consulta externa para o dia 11.05.2010, está de acordo com o tempo médio que habitualmente a factura maleolar que a doente apresentava demoram para consolidar. A marcação da consulta para essa data, em nada impedia a doente de poder antecipa-la caso se verificasse alguma intercorrência, tal como veio a acontecer. Pelo exposto, somos de parecer que no caso em apreço, o Sr. Dr. A.... actuou segundo a “legis artis”, não havendo qualquer negligência médica”.
Também foi inquirido, sobre o ponto em análise, T..., médico ortopedista, que elaborou um parecer, a pedido do arguido, junto a fls. 858, cujas considerações são, no essencial, no mesmo sentido do seu depoimento, salientando-se as seguintes: “As escoriações evoluem normalmente para a cura sem complicações e sequelas, tendo sido dada à utente toda a informação escrita e oral, conforme consta no art. 5, que lhe permitiria recorrer a qualquer Serviço de Saúde (Médico de Família ou voltar ao próprio Hospital), se ocorresse qualquer alteração do seu estado clínico. A marcação da consulta externa de ortopedia para o dia 11/05/2010, está de acordo com o tempo previsto para a consolidação da referida fractura. Não está portando justificada a necessidade de vigilância mais apertada como consta no art. 14 da acusação, já que a utente não apresentava uma fractura complicada por ferida como refere no art. 15, mas sim uma escoriação, e isto faz toda a diferença. Concluímos pois que não houve qualquer negligência médica na abordagem e tratamento desta situação”.
No seu depoimento, a testemunha acrescentou que a realidade dos hospitais não permite a marcação destas consultas de vigilância, pese embora fosse o ideal.
Por fim, foi ouvido M...., médico ortopedista, que emitiu o parecer de fls. 490 a 494 dos autos, a pedido do arguido, cujo depoimento foi no mesmo sentido, ou seja, no sentido de que o arguido procedeu correctamente.
Expostos todos os meios de prova produzidos, verifica-se a oposição existente entre os pareceres emitidos pelo INML, pelo Dr. F.... e pelo Colégio de Especialidade de Ortopedia da Ordem dos Médicos e os depoimentos e pareceres dos médicos ortopedistas apresentados pelo arguido. Os primeiros são inequívocos no sentido de que se impunha, segundo as boas práticas médicas, a realização de uma consulta de vigilância e controlo. Os demais vão em sentido contrário.
Há uma diferença essencial entre os dois grupos de elementos probatórios indicados, designadamente a isenção. Efectivamente, o primeiro grupo de pareceres foi elaborado por especialistas de inequívoca e intocada independência e isenção, sem qualquer ligação ao arguido e à assistente. Já o segundo grupo foi elaborado por especialistas relacionados com o arguido, por serem ou terem sido colegas, por serem amigos ou por terem efectuado os pareceres a pedido deste. Ora, estes factores de conectividade afectam necessariamente a isenção das referidas testemunhas.
Para além disso, nada do que estas testemunhas disseram é susceptível de abalar a credibilidade, isenção e idoneidade dos pareceres emitidos pelo INML, pelo Dr. F.... e pelo Colégio de Especialidade.
Efectivamente, abordou-se e discutiu-se muito a diferença entre uma ferida e uma escoriação, porquanto no parecer subscrito pelo Prof. Doutor E.... este dizia, no final, “fractura complicada de ferida”. No entanto, a verdade é que, na descrição dos factos que este especialista e os demais membros do Conselho Directivo do Instituto Nacional de Medicina Legal tiveram em consideração, constava a referência a “pequena escoriação”.
Também dos esclarecimentos prestados pelo relator do parecer, em audiência de julgamento, se constatou, sem equívocos, que o mesmo tem noção, como não poderia deixar de ser, da diferença e que a conclusão exarada no parecer teve em consideração o facto de se tratar de uma escoriação, mesmo de pequena dimensão.
As testemunhas apresentadas pelo arguido também salientaram, com insistência, que a marcação da consulta de vigilância e controlo não é prática habitual. A testemunha C.... afirmou inclusive que o único especialista que conhecia a adoptar essa prática era o Prof. Doutor E..... Tal não facto também não corresponde à verdade, pois o parecer subscrito por E.... foi aprovado por unanimidade pelo Conselho Directivo do Instituto Nacional de Medicina Legal. Também o Colégio de Especialidade de Ortopedia da Ordem dos Médicos faz referência à vigilância e o Dr. F...., especialista, disse que era o seu procedimento habitual.
Discutiu-se também a questão do procedimento seguido pelo arguido corresponder ao protocolo definido no Hospital Sousa Martins e não ser suportável, pelo Serviço Nacional de Saúde, a marcação destas consultas de vigilância. Ora, o arguido, nas suas declarações finais, referiu que também marca consultas a uma semana e menos, desde que o caso o justifique. Simplesmente, em relação à assistente, entendeu que não se justificava. As afirmações do arguido abalam, por completo, este argumento.
Foi igualmente referido o facto dos tratados médicos sobre a matéria não estipularem este procedimento. Não é credível que duas entidades distintas, de reputada competência sobre a matéria, designadamente o INML e o Colégio de Especialidade da Ordem dos Médicos, indiquem uma determinada prática como sendo a mais adequada, sem que a mesma corresponda a um “métod[o] e procediment[o] já suficientemente comprovad[o] pela ciência médica” [Noção de legis artis de Paula Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 266, § 15].
.Assim, por falta de prova credível e consistente em sentido contrário, passível de abalar a isenção e idoneidade dos pareceres já referidos, é inexorável que se dê plena credibilidade aos mesmos, em detrimento da prova testemunhal e documental apresentada pelo arguido.
Aliás, foi também esta a conclusão alcançada no processo disciplinar, tendo-se escrito, de forma impressiva, a propósito do valor probatório dos pareceres apresentados pelo arguido por contraposição à prova pericial recolhida pela entidade inspectiva, o seguinte: “5.3.1.1. Ora, como é facilmente compreensível, estes últimos pareceres [pareceres apresentados pelo arguido] não têm o mesmo valor que os dois inicialmente trazidos à colação, pela simples razão de que o constante de fls. 169 [parecer elaborado pelo Dr. F....] respeita a uma perícia médica para a qual o respectivo autor se comprometeu, nos termos legais, a opinar cientificamente com total independência no presente processo. 5.3.1.2. Igual juízo se fará, com total propriedade, do parecer médico do Colégio de Especialidade de Ortopedia, de fls. 266, por razões que são óbvias” (cfr. fls. 932).
Reproduziu-se este trecho apenas para evidenciar que, efectivamente, face à prova produzida, objectivamente, não é possível concluir noutros termos, merecendo plena credibilidade os pareceres referidos, que concluem no sentido de que, segundo as boas práticas médicas, o arguido devia ter marcado uma consulta de vigilância dentro de 7 a 10 dias após a alta.
Acresce que o parecer apresentado pelo INML é um meio de prova particularmente qualificado, que, nos termos do art. 163º/1 e 2, do CPP, se presume subtraído à livre apreciação do julgador, a não ser que exista uma divergência fundamentada. No caso, pelas razões expostas, a prova produzida em sentido contrário ao do referido parecer, não sustenta a existência de uma dúvida fundamentada.
Cumpre, por último, salientar que se fixou o período de 7 a 10 dias, porque corresponde ao mínimo e máximo que resulta da conjugação do parecer elaborado pelo INML e pelo Dr. F.... e que, dos esclarecimentos prestados por este e pelo Prof. E...., foi possível concluir que a consulta de vigilância não se destinava apenas a avaliar a evolução da fractura, mas também o estado da escoriação (factor salientado em particular pelo Prof. Doutor E....) e o próprio edema (elemento evidenciado pelo Dr. F....). Ambos confirmaram que teriam cortado as ligaduras que cobriam a perna.
Ponto 9):
A existência de dores após a alta e até ao segundo episódio de urgência foram factos retirados das declarações da assistente e dos depoimentos do filho L.... e da vizinha P.... de O....
Também o episódio de urgência de 18.04.2010 refere que a assistente se queixou de dores no membro inferior esquerdo desde há alguns dias (cfr. fls. 26).
Para além disso, trata-se de factos inquestionáveis, atenta a circunstância de apresentar uma ferida com necrose da pele, que se desenvolveu durante esse período de tempo, o que implica necessariamente dores. Razão pela qual não se duvida da credibilidade da assistente e dos depoimentos das testemunhas indicadas quando referem que a assistente teve dores e se queixou.
Quanto ao dia exacto em que começaram as dores, não foi possível determinar com certeza. Efectivamente, a assistente referiu, a propósito da evolução das dores, que “na primeira semana era assim-assim”, já começou a sentir “qualquer coisita”, “na segunda semana ardia” e a partir do meio da segunda semana já não conseguia aguentar as dores, “parecia uma fogueira”. Devido às dores não dormiu nos últimos três dias antes do segundo episódio de urgência.
As suas declarações não foram infirmadas pela demais prova produzida.
Efectivamente, L.... referiu que a certa altura, talvez passada uma semana, quinze dias, a assistente começou a sentir dores “como o coração a bater” na zona atingida. A mãe manifestou-lhe o desejo de ir ao Hospital. A expressão utilizada pela testemunha “coração a bater” demonstra inequivocamente que se está a referir à fase aguda da lesão, nos dias que antecederam o segundo episódio de urgência, que, por ser insuportável, levou a assistente a querer ir novamente ao Hospital. A circunstância da testemunha não ter referido queixas antes do período indicado não abala a credibilidade da assistente, pois, por serem de intensidade inferior, esta poderia nada ter dito, por não lhe ter atribuído gravidade. Acresce que a assistente referiu que, no início, associou os sintomas à cura. Não é uma associação bizarra, pelo menos, no conhecimento popular, existindo, efectivamente, uma certa convicção comum de associar a dor ou o ardor à fase final de cura de certas lesões.
Por sua vez, P...., vizinha da assistente, referiu que esta, ao fim de alguns dias, começou a queixar-se muito. Ela dizia-lhe que não aguentava as dores. A testemunha não precisou o número dias que já haviam decorrido desde a alta quando ouviu tais queixas à assistente. Contudo, da conjugação das declarações da assistente e do depoimento de L...., é possível concluir que também P.... se referiu às dores agudas que a assistente sentiu na fase final. O que, pelas mesmas razões expostas a propósito do depoimento do filho da assistente, não abala as declarações desta.
Para além da inexistência de prova em sentido contrário, as declarações da assistente são lógicas, com algum detalhe, traçando uma evolução de sintomas, o que é consistente com o fenómeno clínico sucedido, pelo que, nesta parte, as declarações da assistente mereceram inteira credibilidade.
Ora, o que se pode extrair das mesmas é que, pese embora sem determinação do dia exacto em que tiveram início as dores, a assistente já sentia dores na primeira semana, que houve uma evolução nos sintomas e que as dores se agudizaram nos dias que antecederam a sua ida para o Hospital.
Do relatório do primeiro episódio de urgência, em conjugação com a informação de fls. 509, consta que a assistente foi medicada com 20 unidades de Airtal, um anti-inflamatório não esteróide, com propriedades anti-inflamatórias e analgésicas [In http://www.infarmed.pt/infomed/download_ficheiro.php?med_id=171&tipo_doc=fi], que, no caso, dava para dez dias, dois por dia. Assim, na primeira semana, quando a assistente já sentia “qualquer coisita”, e no princípio da segunda semana, quando a dor evoluiu, sentindo ardor, encontrava-se medicada com o referido fármaco.
Pontos 10) a 14):
O segundo episódio de urgência, o diagnóstico e tratamentos efectuados e o período de internamento estão documentados a fls. 50 a 53 e 159, documentos estes cujo conteúdo mereceu inteira credibilidade, porquanto não foi infirmado pela demais prova produzida.
Tais factos foram também, no essencial, confirmados pelos médicos que prestaram assistência a B...., designadamente C.... e G.....
Pontos 15) e 16):
A sequela das lesões sofridas pela assistente, o nexo de causalidade entre uma e outras e o período de doença foram factos retirados dos relatórios médicos de fls. 196 e 197 e 211 a 213, cujo conteúdo mereceu inteira credibilidade por não existir nenhuma divergência fundamentada quanto ao seu teor (cfr. art. 163º/2, do CPP).
Quanto às fotografias de fls. 336 a 338 não se duvida de que as mesmas retratem o membro inferior da assistente com a cicatriz referida nos aludidos relatórios médicos, uma vez que em audiência de julgamento a assistente mostrou a perna, constatando-se que é igual à figura reproduzida nas fotografias.
Ponto 17) e alíneas f), rr) e ss):
A prova produzida não permitiu formar uma convicção segura acerca da causa da necrose.
A necrose, conforme informação abundante, consiste na “morte da célula ou parte de um tecido que compõe o organismo vivo” e pode ter várias causas, designadamente: “Agentes físicos: como no caso de acção mecânica, temperatura, efeitos magnéticos, radiação, entre outros; Agentes químicos: dentro deste grupo estão inclusas substâncias tóxicas e não-tóxicas (álcool, drogas, detergentes entre outros); Agentes biológicos: em casos de infecções virais, bacterianas ou micóticas, parasitas, entre outros; e Insuficiência circulatória (necroses isquêmicas): são compreendidas no grupo as necroses dos infartos, das úlceras de decúbito e das vasoconstrições.” [In http://www.infoescola.com/citologia/necrose/].
No caso concreto, não há prova pericial cabal acerca da causa da necrose que a assistente desenvolveu.
Efectivamente, os relatórios médicos de fls. 196 e 197 e 211 a 213 apenas atestam o nexo de causalidade entre o “traumatismo e o dano”, incluindo, no traumatismo, “Queda por escadas da qual resultou traumatismo da tíbio-tarsica esquerda, dor + edema + equimose externa. Pequena escoriação a nível anterior do tornozelo. Rx fractura coaptada do maleolo externo; imobilização com tala gessada. Foi internada desde 18-04-2010 até 12-05-2010 por necrose da pele do tornozelo esquerdo, fez enxerto de pele no dia 04-05-2010. Fez penso no serviço de ortopedia em 13-05-2010, não tendo voltado aos serviços”. Destarte, são omissos quanto à causa específica da necrose.
O parecer apresentado pelo INML, já referido, não esclarece a causa da necrose. O mesmo se verifica em relação ao parecer elaborado pelo Dr. F.... e pelo Colégio de Especialidade de Ortopedia. Também as testemunhas, ortopedistas, apresentados pelo arguido, pese embora tendam a excluir a possibilidade da necrose ter tido origem na escoriação, inclinando-se mais para negligência da assistente, não atestam, com certeza, como não poderia deixar de ser, uma causa determinada.
É certo que o Prof. Doutor E...., nos esclarecimentos prestados em audiência de julgamento, afirmou que, na sua perspectiva, a escoriação deu origem à necrose. Esclareceu que era uma questão de “causa-efeito”. Por estas palavras, julga-se que aquilo que referido perito pretendia dizer era que, localizando-se a escoriação no mesmo local onde surgiu a necrose e não havendo outra possível causa concreta passível de a explicar, então, havendo uma causa conhecida ou evidência, o efeito verificado tem de derivar da mesma.
É uma conclusão lógica, que encontra algum apoio no facto da escoriação se localizar na mesma zona da perna onde se veio a verificar a necrose.
Efectivamente, no relatório de urgência, por si elaborado, o arguido situa a escoriação ao “nível anterior do tornozelo”. Por sua vez, no segundo relatório de urgência e no diário clínico do internamento, a necrose é localizada, respectivamente, na “região anterior prétibial” e na “face anterior do terço distal” (cfr. fls. 26 e 30). De acordo com o Prof. Doutor E.... e com o Dr. F.... estas expressões designam a mesma zona da perna, pese embora algumas das testemunhas apresentadas pelo arguido tenham referido não serem expressões coincidentes, admitindo, contudo, a existência de zonas limítrofes.
No entanto, a verdade é que a mesma zona da perna não significa exactamente o mesmo local. Com efeito, a escoriação e a necrose podiam situar-se na mesma zona ou região, conforme resulta dos meios de prova indicados, mas não serem sobreponíveis. Poder-se-á contra-argumentar no sentido de que é uma coincidência extrema e, por isso, não verosímil, o facto das duas lesões se localizarem na mesma zona da perna e não se situarem exactamente no mesmo local ou não estarem relacionadas. No entanto, esta conclusão não é inteiramente exacta, pois as zonas a que se reportam as expressões acima reproduzidas designam partes da perna.
Ora, a escoriação apresentada pela assistente era de “pequena” dimensão, conforme escreveu o arguido no episódio de urgência. A própria descrição efectuada pela assistente aponta no mesmo sentido. Efectivamente, B.... referiu que era “uma coisinha tão simples”, “só um bocadinho de pele levantada”, que até podia ter sido feita pela própria com a unha. A demais prova produzida não infirma o que resulta destes elementos de prova. Com efeito, L.... afirma que nunca viu a escoriação e foi ouvida ainda Ângela Pedraz Pingarron, a médica que assistiu B.... quando esta se deslocou ao Centro de Saúde de Fornos de Algodres e que a encaminhou para o Hospital Sousa Martins, tendo a mesma referido que não anotou, no registo clínico de observação, qualquer escoriação. Por conseguinte, podemos concluir que a escoriação não ocupava toda a zona da perna referida.
Pelas razões expostas na resposta ao ponto 47), para as quais se remete, também se pode concluir que a escoriação não foi coberta pelo gesso.
Por sua vez, a necrose também não ocupava toda a área abrangida pelas zonas referidas. Efectivamente, a testemunha C.... referiu que cortou mais células do que aquelas que estavam necrosadas por uma questão de cautela e a verdade é que a assistente apresenta apenas uma cicatriz com 3 cm, conforme se vê nas fotografias acima referidas.
É certo que a assistente refere que a necrose se situava no mesmo local da escoriação. Contudo, é perfeitamente possível que situando-se as duas lesões em zonas limítrofes, a assistente, sem estar a mentir conscientemente, se tivesse convencido da sua sobreposição. Acresce que o arguido afirmou que, caso a escoriação se localizasse no sítio onde se encontra actualmente a cicatriz, não teria utilizado a expressão “ao nível anterior do tornozelo”. Ambos têm o mesmo interesse em afirmar factos que lhes são favoráveis.
Ora, não há fotografias da escoriação, nem localizações precisas, que pudessem esclarecer com exactidão este ponto, pelo que se considera que a prova não permite afirmar este facto.
O que só por si abala, necessariamente, a conclusão expressa pelo Prof. Doutor E...., que partia deste pressuposto. É importante salientar que o facto de não se aceitar este parecer afirmado pelo referido perito em nada afasta a credibilidade que o seu parecer mereceu na resposta ao ponto 8), que assenta em premissas diversas.
Para além de todo o exposto, a verdade também é que, pese embora seja possível uma escoriação evoluir, só por si, para uma necrose, é uma possibilidade que não é habitual, conforme referiu o Dr. F.....
É também possível, neste género de situações, uma necrose desenvolver-se devido à compressão do gesso, conforme referiu o Prof. Doutor E.... e o Dr. F...., verificando-se que a cicatriz apresentada pela assistente se situa ligeiramente mais na parte lateral da perna do que na parte da frente, onde necessariamente não existiria gesso.
Foi discutida também a possibilidade da necrose ter resultado de sobrecarga efectuada pela assistente sobre o membro, que aumentou o edema, consequentemente, a compressão provocada pela tala gessada e a necrose. Em termos médicos, esta sequência é possível e inclusive mais fácil de acontecer do que a possibilidade anterior, conforme referiu o Dr. F.....
Contudo, esta possibilidade assenta igualmente numa premissa que não ficou demonstrada, por insuficiência de prova.
É certo que G...., médico que retirou a tala gessada à assistente, referiu, sem hesitações e com convicção, que B.... andou com o pé no chão, porque tinha o gesso sujo. Atentas as regras da experiência comum considera-se que a conclusão extraída pela testemunha – que a assistente andou com o pé no chão – a partir do facto de ter constatado que apresentava sujidade no gesso não é inteiramente exacta. Efectivamente, é perfeitamente possível que a sujidade tenha vindo do facto da assistente ter pousado o pé no chão, – o que a própria admitiu ter feito, mas quando estava sentada –, sem que isso signifique que tenha andado a realizar esforços que tenham desencadeado o processo causal acima descrito.
É certo também que a sua médica de família, S...., afirmou que, quando a consultou no dia 16.06.2010, ficou com a impressão de que ela “teve de manter toda a vida doméstica” e que lhe terá dito “mas com dois doentes em casa como é que podia parar”. Referiu ainda que o marido da assistente é obsessivo-compulsivo e desenvolveu um diagnóstico de demência e que o filho é esquizofrénico, sendo a assistente o pilar da família. Descreveu-a como uma pessoa muito sofrida e muito preocupada com a família, que coloca à frente de tudo. Acrescentou ainda que por aquilo que conhece da assistente não acredita que ela tivesse parado totalmente.
Este relato da testemunha, quanto ao facto da assistente ter mantido a vida doméstica, suscita reservas por cinco razões.
Em primeiro lugar, P... confirmou, conforme relatou a assistente, que a ajudou, durante aqueles, dias, deslocando-se a sua casa três vezes por dia. Também referiu, tal como o filho da assistente, que a comida era fornecida pelo Centro de Dia. Não há razões para duvidar, nesta parte, da credibilidade de P...., cujo depoimento não apresentou qualquer sinal de estar a faltar à verdade. Ora, as afirmações efectuadas por esta testemunha demonstram que a vida doméstica da assistente não estava apenas dependente de si e que, com o auxílio da vizinha, podia cumprir os cuidados necessários para aquela situação.
Em segundo lugar, P.... referiu também que, pese embora não possa atestar com certeza que a assistente esteve sempre em repouso, a verdade é que, quando se deslocou a casa dela sem avisar, não a viu a realizar esforços. Também L.... referiu que viu a mãe a repousar e que a mesma teve cuidado. Estes depoimentos contrariam a afirmação efectuada pela médica de família da assistente. É certo que têm uma relação mais próxima com esta, o que pode suscitar reservas quanto à sua isenção. Contudo, analisemos as demais razões que nos levam a não aceitar, sem reservas, a afirmação efectuada por S....no sentido de que a assistente “não podia parar”.
Em terceiro lugar, a assistente tinha 66 anos, à data, sendo pouco plausível que, atento o seu estado clínico e a sua experiência de vida (já tendo sofrido uma lesão semelhante anos atrás), tivesse desenvolvido a sua vida doméstica sem ter qualquer cuidado.
Em quarto lugar, não resulta da prova produzida que a assistente apresentasse algum problema específico associado à evolução da fractura. Ora, se a mesma tivesse desenvolvido esforços de forma reiterada, mantendo a sua vida doméstica normal ou quase, seria pouco provável que tal facto não se reflectisse também na referida lesão.
Por último, consta nos autos, que foi nomeado defensor oficioso à assistente no dia 08.07.2010, o que pressupõe que a mesma tivesse apresentado o pedido de apoio judiciário antes, possivelmente em data muito próxima da consulta com a sua médica de família. Ouvida a assistente, nas declarações prestadas em Tribunal, e o filho, quando descreveu aquilo que a mãe sentiu, fica-se com a impressão de que a mesma está plenamente convencida de ter sido vítima de negligência médica, certamente a mesma convicção que a levou a pedir apoio judiciário. Assim sendo, causa estranheza que, na mesma altura, a assistente admitisse, perante a sua médica de família, que tivesse efectuado esforços exagerados, como teria sucedido caso tivesse mantido a sua vida doméstica, sem ter noção de que essa podia ter sido a causa das lesões sofridas.
Todos estes elementos, o depoimento de S...., nesta parte, não foi convincente, sendo perfeitamente possível que a testemunha, devido à impressão pessoal que tem da assistente, tenha criado ela própria a convicção ou interpretado aquilo que B.... lhe disse no sentido de que “não podia parar” porque tinha de manter a sua actividade doméstica.
Ainda quanto às causas da necrose, importa, por último, referir que não foi produzido nenhum meio de prova passível de confirmar que a necrose teve origem em agentes biológicos, designadamente infecções virais, bacterianas ou micóticas, parasitas, entre outros.
Não foi assim possível determinar, de forma segura, a causa da necrose, nomeadamente se está relacionada ou teve origem na escoriação, em sobrecarga efectuada pela assistente ou simples compressão do gesso, devido à forma como foi colocado.
Em todo o caso, mesmo que tivesse sido possível, a verdade é que ainda assim não seria possível concluir, com certeza, que a consulta de controlo e vigilância a teria evitado por completo.
Efectivamente, a propósito desta questão, os esclarecimentos prestados pelo Prof. E.... foram elucidativos.
Interpelado no sentido de esclarecer se a vigilância teria evitado a necrose, não deu uma resposta peremptória, tendo referido que a consulta de controlo permitiria uma visualização do problema completamente diferente da primeira abordagem. Questionado também no sentido de esclarecer o tempo de evolução de uma necrose referiu que pode evoluir rapidamente, dentro de uma semana, e que, por vezes, têm todos os cuidados, almofadam e, no entanto, são surpreendidos com o aparecimento da necrose.
Contudo, apesar de não ser possível concluir nos termos exarados na alínea f) foi possível concluir nos moldes reproduzidos no ponto 17), pois o Prof. Doutor E...., quando questionado no sentido de esclarecer se a lesão, ao fim de 18 dias, estaria necessariamente pior do que ao fim do tempo de vigilância recomendado, foi peremptório em afirmar que sim. Conclusão da qual não se duvida, tendo em conta a existência de uma sintomatologia progressiva desde a primeira semana. Por tal razão também não se duvida de que a consulta de vigilância teria evitado o perigo de verificação desse mesmo resultado.
Ponto 18) e alíneas i) a k):
A prova produzida não é suficiente para formar uma convicção segura sobre aquilo que o arguido representou como possível, porquanto se reconduziu unicamente às suas declarações. Ora, este referiu que não marcou uma consulta de vigilância porque, face à observação clínica efectuada, entendeu que não era necessário. Nenhum meio de prova infirmou esta afirmação. Acresce que o arguido, antes do episódio em discussão, não tinha penas disciplinares (cfr. fls. 639). Destarte, nada permite concluir no sentido de que o arguido tenha sequer representado como possível a evolução que o caso veio a assumir.
Ponto 19):
O arguido, quando praticou os factos, era assistente graduado de ortopedia (cfr. fls. 639) e com experiência médica há vários anos. A consulta de vigilância, conforme resulta da fundamentação exposta na resposta ao ponto 8), era, à data, o procedimento terapêutico indicado e implicava a visualização da perna, pelo que teria tido, pelo menos, o efeito descrito no ponto 17) dos factos provados.
Da conjugação destes dois factores não é credível que o arguido não estivesse em condições e/ou não tivesse as capacidades e competências necessárias para saber que deveria ter marcado a consulta de vigilância e controlo e dos efeitos que a mesma poderia ter e dos perigos que poderia prevenir.
Ponto 20):
A actuação livre e voluntária do arguido, durante o primeiro episódio de urgência, é uma conclusão que se extrai da descrição dos factos realizada pelo próprio, sendo evidente, em face da mesma, a ausência de qualquer referência a uma causa externa ou interna que tivesse afectado, comprometido ou condicionado o seu comportamento e as opções terapêuticas tomadas.
Ponto 21):
O crime de ofensa à integridade física por negligência no âmbito da actividade médica é do conhecimento geral das pessoas e, em particular, dos médicos, não havendo razões para duvidar de que o arguido não tinha noção deste facto, solidamente sustentado nas regras da experiência comum.
Ponto 22):
A data de nascimento do arguido está documentada na ficha biográfica de fls. 639 e foi um facto afirmado pelo próprio no âmbito das declarações prestadas, sob juramento, em relação aos seus elementos de identificação pessoal.
Ponto 23):
A ausência de antecedentes criminais está documentada no certificado de registo criminal junto aos autos.
A ausência de arrependimento é uma conclusão que se extrai das declarações prestadas pelo arguido, que negou a prática dos factos, insistindo pela desnecessidade da marcação da consulta de vigilância e controlo.
Pontos 24) a 27):
Os elementos pessoais de vida do arguido foram retirados das suas declarações, em conjugação com a ficha biográfica já referida, que mereceram credibilidade, nesta parte, porquanto não foram infirmados pela demais prova produzida.
Ponto 28):
A idade da assistente resulta do relatório de urgência e a sua situação familiar, em relação ao marido, foi extraída dos depoimentos de L...., P.... e da sua médica de família. Meios de prova estes que, em relação a este ponto, mereceram credibilidade, pois são convergentes e não foram infirmados pela demais prova produzida.
Ponto 29) e alínea l):
A utilização de muletas após é alta é confirmada pela informação de enfermagem de fls. 159, sendo uma evidência lógica, assente nas regras da experiência comum, que a mesma limita os movimentos.
Quanto ao período de tempo exacto ou aproximado durante o qual a assistente utilizou as muletas a única prova produzida reconduziu-se ao depoimento de L...., que, apenas, pode confirmar que foi superior a uma semana. Não foi produzida prova que infirmasse o seu depoimento, tendo sido com base no mesmo que se apurou, pelo menos, o período temporal mínimo.
Ponto 30):
O período de 43 dias de doença foi fixado pelo exame de fls. 212 e 213, não havendo razões para duvidar da sua exactidão, pelo que necessariamente durante este período a assistente esteve impossibilitada de prestar auxílio ao seu marido.
Ponto 31):
Os factos expostos neste ponto foram confirmados pelas testemunhas L.... e P...., que aludiram a uma prima que veio de França, a pedido da assistente para ajudar o marido desta. Os seus depoimentos mereceram credibilidade, nesta parte, porquanto não foram infirmados pela demais prova produzida.
Ponto 32) e alínea n):
Este facto assenta nas regras da experiência comum, porquanto a queixa foi subscrita pelo ilustre Patrono da assistente, bem como o pedido de indemnização civil que é mais extenso, em termos de factos, pelo que, segundo padrões de normalidade e razoabilidade, que não foram infirmados pela prova produzida, a assistente teve de se deslocar ao escritório do mesmo para lhe prestar os elementos necessários para a elaboração das referidas peças processuais. Quanto à distância, o Tribunal socorreu-se das ferramentas disponíveis no sítio da internet www.viamichelin.pt.
No que respeita à deslocação durante o inquérito, está a mesma documentada a fls. 248.
Não se apurou, com certeza, mais nenhuma deslocação, pois sobre esta matéria apenas incidiu o depoimento de N.... que, pese embora tenha aludido a meia dúzia de vezes, fê-lo sem certeza e por referência a outras deslocações, que não apenas ao escritório do ilustre Patrono da assistente.
Ponto 33):
A presença da assistente durante todas as sessões da audiência de julgamento está documentada nas actas respectivas.
Ponto 34):
O facto em apreço foi extraído do depoimento de L...., que mereceu credibilidade, nesta parte, porquanto não foi infirmado pela demais prova produzida.
Ponto 35):
Os factos em apreço foram extraídos da documentação clínica de fls. 50 a 55.
Ponto 36) e alínea r):
A existência de dores durante todo o processo é uma evidência que se extrai das regras da experiência comum.
Contudo, não é possível concluir pela existência de dores constantes durante o internamento, porquanto não foi produzida prova sobre esta matéria e é do conhecimento comum que, normalmente, nesta situação e no âmbito de um internamento hospitalar, são receitados analgésicos.
Pontos 37), 39), 40) e 42) e alínea s):
A factualidade em apreço foi extraída do depoimento de L...., em particular da descrição que efectuou acerca do estado em que a assistente se encontrava quando lhe foi comunicado que tinha de ficar internada e após a alta. Tornou-se evidente em face do seu depoimento que toda a situação afectou emocionalmente a assistente, nos termos descritos nestes pontos. Esclareceu quanto ao nervosismo e irritação que a situação do pai também contribui para o nervosismo e irritação da mãe, mas como um factor adicional, não excluindo a contribuição dada por todo este episódio no estado emocional e nervoso da assistente.
Também P.... confirmou a angústia sentida pela assistente durante o internamento e notou uma mudança de comportamento após o episódio, porquanto, antes do mesmo, era mais calma.
Os seus depoimentos mereceram credibilidade, nesta parte, porque não foram infirmados pelos demais meios de prova produzidos e são compatíveis com as regras da experiência comum, tendo em conta a especial preocupação da assistente pelos cuidados prestados ao marido, que ficaram inviabilizados nessa altura. Efectivamente, é perfeitamente normal que uma pessoa preocupada com a família, como era e é a assistente, cujo marido estava essencialmente dependente de si, se sinta frustrada, angustiada, agastada, nervosa e irritada com uma situação que a impede de prestar os cuidados necessários ao marido e que a pendência dos presentes autos e a memória de tais factos continuem a ter repercussão no seu estado emocional e nervoso.
Já quanto a sentimentos de humilhação e constrangimento e à vivência actual de momentos de inutilidade, não resultam da prova produzida, nem se extraem, só por si, das regras da experiência comum em situações como a dos autos.
Ponto 38):
As características da personalidade da assistente, reproduzidas neste ponto, foram retiradas do depoimento de N... e, em particular, do depoimento da sua médica de família, que não utilizaram estas palavras exactas, mas das referências efectuadas à pessoa da assistente foi possível concluir nos termos aqui exarados. Os seus depoimento mereceram credibilidade, nesta matéria, porquanto não foram infirmados pela demais prova produzida.
Ponto 41) e alínea bb):
Não se duvida que a assistente sinta a perna dura, na zona da cicatriz, porque é uma evidência que resulta das regras da experiência comum, tendo em conta a nova morfologia da pele, resultante da lesão.
Quanto à sensibilidade, L.... fez expressa referência a este facto, mas durante um período de tempo transitório após a alta, não se extraindo do seu depoimento, com certeza, que esse facto se mantém, na actualidade.
Em relação à sensação de inchaço não foi produzida prova.
No que respeita à cor e profundidade da cicatriz, tais factos foram retirados das fotografias juntas aos autos.
Pontos 43) a 45):
Neste ponto, porque se reporta a considerações gerais e aos casos mais regulares e normais, sem contender com as particularidades da situação concreta, especificamente a zona da perna onde se localizava a escoriação e a idade da assistente (que segundo o Prof. Doutor E.... ofereciam mais risco, devido à menor protecção muscular e à maior probabilidade de complicações vasculares e circulatórias), foram tidos em consideração os pareceres escritos subscritos pelos Dr. C.... (cfr. fls. 485 a 489) e M.... (cfr. fls. 490 a 494), que, no essencial, não foram infirmados pela demais prova produzida.
Ponto 46) e alínea ff):
Conforme já se referiu, face à prova produzida pode-se concluir, com certeza, que a tala gessada foi a solução adequada.
Também se pode concluir que a opção por esta terapêutica teve em conta a escoriação, tendo sido elucidativo, a propósito deste facto, o reparo efectuado pelo Prof. E.... (ainda que partindo de um pressuposto errado, mas que para o caso não interessa) no sentido de que não poderia ter sido colocada uma bota gessada, em toda a perna, justamente quando fazia referência à escoriação, particularmente à zona onde estava localizada.
Contudo, os meios de prova disponíveis não permitem concluir, com segurança, no sentido de que a colocação se destinou a facilitar a vigilância pela doente e pela médica de família. Tal facto é afirmado pelo Dr. M...., no parecer escrito a fls. 432. No entanto, não foi convincente, porquanto, conforme resulta da resposta ao ponto 8) para cuja fundamentação se remete, impunha-se a vigilância médica ao fim de uma semana, inferindo-se do referido parecer escrito que tais considerações foram tecidas para corroborar a defesa do arguido, transferindo para a doente a responsabilidade total dessa vigilância.
Ponto 47) e alínea b):
A localização da tala gessada na face posterior da perna foi confirmada pelo arguido e pela assistente.
Quanto ao facto do gesso ter sido colocado ou não sobre a escoriação, a assistente referiu que lhe colocaram uma “língua” de gesso sobre a referida lesão, que ficou dura, tendo a mesma inclusive efectuada uma observação, na altura, perguntando se lhe iam “tapar a ferida”.
Pese embora estas declarações da assistente, a verdade é que Q.... esclareceu que, por vezes, colocam uma folha de gesso na parte anterior da perna, mas apenas para segurar, não chegando a endurecer.
A conjugação das declarações da assistente com o depoimento desta testemunha demonstram que aquela se estaria a referir a esta folha de gesso que é colocada para os efeitos indicados pela testemunha. Por conseguinte, a escoriação não foi coberta com gesso, conforme sustenta a assistente.
A colocação do gesso sobre a escoriação é um facto igualmente afastado pela circunstância da opção pela tala gessada ter sido tomada em função também da escoriação conforme já referido.
Ponto 48):
A adequação da tala gessada à situação concreta é um ponto comum e confirmado pela perícia do INML e por todos os demais meios de prova produzidos.
Ponto 49) e alínea hh):
Os dados aqui reproduzidos foram extraídos dos documentos de fls. 497 e 498, por referência à coluna “doentes”, desconhecendo-se os factores que foram tidos em consideração na coluna com a epígrafe “Total”, razão pela qual não se consideraram os números alegados pelo arguido.
O conteúdo dos referidos documentos mereceu credibilidade, porquanto não foi infirmado pelos demais meios de prova.
Ponto 50):
O número de dias de trabalho do arguido é uma evidência em face das regras da experiência comum.
Pontos 51) e 52):
Os dados expostos neste ponto estão documentados a fls. 496, 497 e 499, cujo conteúdo mereceu credibilidade por não ter sido contrariado pelos demais meios de prova.
Ponto 53):
Este facto está documentado na ficha biográfica de fls. 639, já referida.
Ponto 54):
Os factos em apreço estão documentados a fls. 502 e verso, cujo conteúdo mereceu credibilidade, por não ter sido infirmado pela demais prova produzida.
Ponto 55):
O uso justificado de antibióticos é uma evidência de conhecimento geral, tendo sido especialmente salientado pelo Dr. F.....
Ponto 56):
Conclui-se nestes termos com base no conteúdo do relatório do primeiro episódio de urgência, que, sendo omisso quanto a estes sintomas, conduz à conclusão necessária de que os mesmos não existiam, pois, caso contrário, teriam sido certamente anotados.
Ponto 57):
Na resposta ao ponto 17) esclareceram-se as principais causas das necroses, tendo-se inferido dos esclarecimentos prestados pelo Prof. Doutor E.... que a antibioterapia servia necessariamente para prevenir infecções.
Acrescentou-se neste ponto a expressão “de todo”, porquanto o referido perito esclareceu que o tecido necrosado é propício à acumulação de bactérias, pelo que, sem ser causa da necrose, podia ter-se desenvolvido uma infecção como consequência desta. Desconhecendo-se em que medida é que a infecção teria contribuído para a evolução da necrose, considerou-se necessário acrescentar a referida expressão.
Ponto 58):
As finalidades da consulta externa marcada pelo arguido foram retiradas das suas declarações, sendo certo também que toda a prova produzida não afasta, antes confirma, a adequação do período de tempo fixado para a consolidação da fractura, sem prejuízo, é claro, da necessidade de vigilância e controlo ao fim de 7 a 10 dias.
Ponto 59):
Este facto foi confirmado pela própria assistente, pelo que não há razões para duvidar do mesmo.
Ponto 60) e alínea qq):
Os factos em apreço estão documentados no relatório de urgência do primeiro episódio, que apenas alusão às lesões descritas no ponto 60). Quanto às demais, expostas na alínea qq), não há referência escrita às mesmas na documentação clínica junta aos autos.
Ponto 61):
O facto em questão está documentado na informação de fls. 509, já referida.
Ponto 62).
Este facto foi extraído dos meios de prova indicados no ponto 28), esclarecendo-se que, em relação à factualidade em análise, retirada da contestação apresentada pelo arguido, atendeu-se também às declarações da assistente, segundo as quais o seu marido, à data, ainda que com a mobilidade bastante reduzida, não estava acamado. Razão pela qual apenas se pôde concluir nos termos reproduzidos neste ponto.
Ponto 63):
A factualidade aqui reproduzida está documentada a fls. 391 a 393.
Ponto 64):
O facto em apreço foi aditado ao abrigo do disposto nos arts. 659º/3 e 264º/2 e do Código de Processo Civil, ex vi art. 4º do CPP, tendo em consideração a data da notificação de fls. 377 e a data da prova de depósito de fls. 396, em conjugação com o art. 113º/9 do CPP, na redacção anterior à Lei nº 20/2013, de 21.02.
Alíneas c) e pp):
A prova sobre estes factos foi insuficiente, porquanto se reconduziu às declarações do arguido, que, como já se esclareceu, não se recorda, de memória, do episódio, e da assistente, em sentido contrário.
É certo que Q.... e as testemunhas, colegas do arguido, confirmaram que é normal entregarem o impresso junto aos autos e fazerem recomendações relativas à possibilidade da lesão sofrer alterações.
Contudo, era um dia de greve dos enfermeiros, factor que pode ter perturbado os procedimentos habituais, e, para além disso, não tendo o próprio arguido equacionado a possibilidade de virem a ocorrer complicações, é normal que também não tivesse alertado a assistente para eventuais alterações que a lesão viesse a sofrer.
Estas circunstâncias específicas não permitem concluir que, apenas porque era o procedimento habitual, tal tenha sido observado no caso concreto.
Alíneas d) e oo):
A necessidade de prescrição de antibioterapia, no caso concreto, não ficou demonstrada, porquanto, pese embora a perícia elaborada pelo Prof. Doutor E.... e o próprio, nos seus esclarecimentos, concluam nesse sentido, a verdade é que não é uma posição pacífica entre a comunidade médica, conforme se extrai claramente do parecer e esclarecimentos prestados pelo Dr. F.....
Destarte, em relação a este ponto, há razões fundamentadas, nos termos e para os efeitos do art. 163º/2, do CPP, para não se aderir inteiramente à perícia.
Pese embora o parecer referido não tenha sido atendido em relação à alínea d), é demonstrativo da existência de divergências sobre esta matéria, pelo que não se pode concluir pela inexistência, de todo, de literatura médica nesse sentido, pelo menos, quando está associada a uma fractura.
Alínea e):
Conforme se expôs na resposta ao ponto 17), para cujos fundamentos se remete, não se conseguiu apurar a causa da necrose e não há, nos autos, nenhum elemento que aponte no sentido da mesma ter tido origem numa infecção, pelo que tal facto ficou claramente por demonstrar.
Alínea g):
Este facto foi afirmado pela assistente e pela testemunha L...., este, não devido às suas percepções directas, mas àquilo que a mãe lhe transmitiu.
Contudo, conforme se expôs na resposta ao ponto 17), para cujas considerações se remete, não se apurou a coincidência exacta entre a localização da escoriação e da necrose e a assistente, devido à proximidade das lesões (caso não coincidissem), pode ter efectuado, inconscientemente, uma sobreposição que não existia.
Alínea h):
Não foi produzida prova adequada, sólida e consistente sobre este facto, tendo apenas a assistente aludido a algo que lhe disseram, nesse sentido, no segundo episódio de urgência, por um dos enfermeiros, o que é claramente insuficiente.
Alínea m):
A prova produzida não foi concludente sobre estes factos.
Efectivamente, tornou-se difícil, sobretudo para o próprio filho da assistente, definir, com exactidão quais os períodos concretos em que efectuou deslocações diárias. Com certeza, L.... apenas referiu o internamento.
É certo que P.... fez referência ao facto de L...., nessa altura, se deslocar todos os dias a casa. Contudo, face à imprecisão do depoimento do próprio, não é possível concluir, com certeza e exactidão, se após a alta este manteve o mesmo procedimento.
Relativamente à comparticipação das despesas pela assistente, não foi produzida prova.
Alíneas o), t), u), w), z) e ee):
Tais factos reportam-se a possíveis sequelas da lesão sofrida pela assistente, passíveis de serem atestadas através de exame médico.
Sucede que as perícias médico-legais efectuadas nos autos referem apenas a cicatriz, excluindo a existência de outras consequências permanentes.
Tais factos também não foram confirmados pela demais prova produzida.
Alíneas p) e q):
Não foi produzida mais prova sobre estes factos para além das declarações da assistente, que, por se reportarem especificamente a factos exclusivos do pedido de indemnização civil, não podem ser admitidas, sob pena de se aceitar, nos presentes autos, um depoimento de parte, que não seria admissível em processo crime.
É certo que, em relação ao facto exposto no ponto q), L.... reproduziu aquilo que a mãe lhe contou. Contudo, a possibilidade da assistente ter ficado sem perna não encontra qualquer expressão na prova produzida, pelo que permaneceram dúvidas quanto à exactidão ou veracidade de tal relato reproduzido pela referida testemunha.
Alínea v):
Este facto não foi confirmado pela prova produzida.
Alíneas x) e aa):
Não foi produzida nenhuma prova sobre a prova de esforço. Quanto à medicação para o coração, tal facto foi afirmado por L..... Contudo, este meio de prova considera-se insuficiente, pois tal facto podia ter sido demonstrado, de forma mais consistente, através de documentação clínica pertinente, que não foi junta.
As mesmas considerações são válidas em relação aos medicamentos para o nervosismo, não existindo prova documental pertinente demonstrativa deste facto.
Alínea y):
Pese embora os transtornos ainda hoje sentidos pela assistente, a prova produzida não sustenta um facto tão dramático como este, sobretudo porque não ficaram demonstradas as demais sequelas alegadas pela assistente, para além da cicatriz.
Alínea cc):
L.... fez referência a problemas de estômago da mãe. Contudo, quanto à relação destes problemas com a medicação tomada durante o internamento e em relação aos efeitos, não foi produzida qualquer prova.
Alínea dd):
Como se já referiu, não se duvida de que a assistente continue a sentir perturbação emocional e nervosa associado ao episódio que lhe aconteceu. Contudo, a prova produzida é insuficiente para demonstrar um facto tão dramático, que também não é proporcional ao sucedido.
Alínea gg):
Não foi produzida prova sobre este facto.
Alíneas ii), jj), kk) e ll):
Não foi produzida prova sobre esta matéria.
Alínea mm):
Pese embora o arguido tenha referido que, na ULSG, existiam, à data, apenas 6 ortopedistas, a verdade é que nas informações de fls. 497 surge a referência a sete pessoas diferentes e na informação de fls. 699, junta ao processo disciplinar, constam 8 ortopedistas, pelo que as declarações do arguido não mereceram credibilidade.
(…)”.

                D) E dela consta a seguinte fundamentação de direito quanto ao enquadramento jurídico-penal:
            “ (…).
            O arguido vem acusado da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, previsto e punido pelo artigo 150º/2, do Código Penal (CP) em concurso aparente com um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelos artigos 148º/1 e 3 e artigo 144º/a) e d), todos do CP.
Analisemos, individualmente, cada um destes tipos legais de crime.
Nos termos do preceito indicado, pratica o crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos o médico ou outra pessoa legalmente autorizada que, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal ou perturbação mental, realize intervenções ou tratamentos violando as legis artis e criando, desse modo um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde.
Em termos conceituais, trata-se de um crime específico próprio e de um crime de perigo concreto.
No plano subjectivo, “só é punível o dolo, que tem de abarcar para além da intervenção com violação das leges artis, o perigo (para a vida, para o corpo ou para a saúde)” [Manuel da Costa Andrade, Comentário Conimbricense, Coimbra Editora, pág. 313, § 29].
O dolo pode ser eventual, necessário ou directo (cfr. art. 14º do CP).
Em relação ao crime em análise, haverá dolo directo quando o agente representa a violação das legis artis e o perigo, actuando com a intenção de criar este perigo (cfr. art. 14º/1, do CP). Haverá dolo necessário quando o agente representa a violação das legis artis e o perigo como uma consequência necessária da sua conduta (cfr. art. 14º/2, do CP). Haverá dolo eventual quando o agente representa como possível a violação das legis artis e a criação do perigo, conformando-se com a verificação de tais factos (cfr. art. 14º/3, do CP).
No caso concreto, pese embora se considerem verificados os elementos objectivos do tipo legal de crime em análise, não ficou demonstrado o dolo, pelo que não pode ser imputada ao arguido a prática deste crime.
No que respeita ao crime de ofensa à integridade física por negligência, a conclusão é diversa. Vejamos porquê.
O bem jurídico protegido por este ilícito é a integridade física da pessoa humana.
Pratica o mesmo quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa.
A negligência traduz-se, no essencial, na “violação de exigências de comportamento em geral obrigatórias cujo cumprimento o direito requer, na situação concreta respectiva, para evitar realizações não dolosas de um tipo objectivo de ilícito”[Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, 2007, pág. 870].
                Essas exigências de comportamento ou deveres de cuidado podem ter diversas fontes, designadamente: as “normas jurídicas de comportamento existentes – sejam elas gerais e abstractas, contidas em leis ou regulamentos, sejam individuais, contidas em ordens ou prescrições da autoridade competente, digam respeito a matéria jurídica de carácter penal ou
de qualquer outra natureza” [Idem, pág. 875]; as “normas escritas, profissionais e do tráfego, correntes em certos domínios de actividade” [Idem, pág. 876]; e, faltando por completo disposições escritas, “o cuidado imposto pelo concreto comportamento socialmente adequado ao tráfico” [Idem, pág. 876] ou “a figura-padrão cabida ao caso” [Idem, pág. 876].
No caso específico da actividade médica, as legis artis são a principal fonte dos deveres objectivos de cuidado a observar pelo médico. Neste conceito, integram-se os “métodos e procedimentos já suficientemente comprovados pela ciência médica” [Paula Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense, Tomo I, pág. 266].
Contudo, para a verificação do crime de ofensa à integridade física por negligência não basta a violação de um dever objectivo de cuidado.
Efectivamente, o tipo de ilícito em análise é um crime de resultado, ou seja, cujo preenchimento está dependente da verificação de um determinado resultado, que se consubstancia especificamente na ofensa ao corpo ou saúde de outra pessoa.
Essa ofensa ao corpo ou saúde de outra pessoa pode ser simples (art. 148º/1, do CP) ou
grave (art. 148º/3, do CP).
É grave quando, no que ao caso importa, desfigura a vítima de forma grave e permanente ou lhe provoca um perigo para a vida – art. 144º/als a) e d), ex vi art. 148º/3, do CP.
A desfiguração pressupõe uma “alteração substancial da aparência do lesado” [Idem., pág. 226]. A sua gravidade “terá que ser aferida em função da intensidade da lesão (esta deverá, …, assumir
uma importância pelo menos equivalente ao menor dos efeitos descritos ao nível deste tipo legal; tornam-se assim relevantes a quantidade da lesão, o local em que ocorreu, bem como a sua visibilidade), e das "relações naturais e sociais" do lesado” [Idem., pág. 226]. Por sua vez, a “permanência não vale aqui como exigência de perpetuidade, mas apenas pretende significar que os efeitos da lesão sofrida são duradouros, sendo previsível que perdurem por um período de tempo indeterminado. Existindo a possibilidade da deformação ser afastada através de uma intervenção médica, e sendo a execução dessa intervenção possível e exigível ao lesado, pode considerar-se que deixa de existir uma desfiguração permanente, ficando sem fundamento a agravação que corresponde a este elemento típico” [Idem., pág. 227].
Sendo um crime de resultado, nos termos gerais do art. 10º/1, do CP, tanto pode ser cometido por acção, como por omissão. Verificar-se-á uma omissão quando, nomeadamente, o agente não praticar a acção devida ou esperada, conforme à situação típica [Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 928]. Para além da ausência da acção devida ou esperada é necessário ainda, por força do art. 10º/2, do CP, que sobre o omitente recaia um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado, ou seja, que tenha, em termos conceituais, uma posição de garante. Assume esta posição de garante, entre o mais, todo aquele que assume “funções de guarda e assistência a bens jurídicos do carente de protecção ou de terceiro em favor do carente” [Idem., pág. 941]. É o caso do médico “relativamente à saúde e bem estar dos seus pacientes” [Idem., pág. 942].
Entre a acção ou omissão e o resultado tem de existir um nexo de imputação objectiva.
No caso específico da omissão, este nexo de imputação objectiva traduz-se especificamente numa conexão de risco entre a acção e a omissão.
Para se verificar esta conexão de risco é necessário, em primeiro lugar, que se possa concluir, num juízo ex ante, que a acção esperada ou devida seria idónea a diminuir o risco de verificação do resultado típico e, num juízo ex post, é necessário que se comprove que aquela diminuição se teria efectivamente verificado [Veja-se, neste sentido, Figueiredo Dias, ob. cit., págs. 929 a 932]. Isto significa que o “resultado [tem de ser] previsível e evitável para o homem prudente, dotado das capacidades que detém o “homem médio” pertencente à categoria intelectual e social e ao círculo de vida do agente” [Idem, pág. 864].
Em segundo lugar, é necessário também que “o perigo que se concretizou no resultado seja um daqueles em vista dos quais a acção foi proibida, quer dizer, seja um daqueles que corresponde ao fim de protecção da norma de cuidado” [Idem, pág. 339].
Não obstante a verificação dos requisitos enunciados, designadamente a omissão, a posição de garante, a verificação do resultado e a conexão de risco entre a omissão e o resultado, pode, ainda assim, não ser possível responsabilizar o agente.
Efectivamente, quando se verifica a intervenção de uma pluralidade de pessoas na realização do facto negligente, há que fazer aplicação do princípio da confiança ou autoresponsabilidade de terceiro, que funciona como “máxima definidora e delimitadora dos âmbitos de responsabilidade” [Idem, pág. 341]. Este princípio pode ser enunciado nos seguintes termos: “como regra geral não se responde pela falta de cuidado alheio, antes o direito autoriza que se confie em que os outros cumprirão os deveres de cuidado” [882]. Este princípio apenas é aplicável “no pressuposto de que a situação concreta não é uma tal que dê razoável e claramente a entender que o outro se não comportará de forma responsável” [Idem, pág. 883].
No plano da culpa, para além dos requisitos gerais de imputabilidade relativos à idade e à ausência de qualquer anomalia psíquica (cfr. arts. 19º e 20º do CP), é imperiosa a demonstração de que o agente se encontrava em condições, segundo os seus conhecimentos e as suas capacidades pessoais, de ter cumprido o dever de cuidado que integra o tipo negligente e de ter evitado o resultado verificado.
É irrelevante a consciência do ilícito e, para efeitos de preenchimento do tipo legal de crime (já não, no âmbito da escolha e determinação da medida da pena), é também indiferente que o agente tenha ou não representado como possível a realização do facto. Quer tenha representado, quer não tenha representado, desde que estivesse em condições de o fazer, é punido por negligência, que será consciente, na primeira hipótese (cfr. art. 15º/al a), do CP), e inconsciente, na segunda (cfr. art. 15º/al b), do CP).
Por último, a responsabilidade do agente está dependente da não verificação de qualquer causa de justificação da ilicitude ou de exclusão da culpa.
Transpondo os parâmetros expostos para o caso concreto, considera-se que estão verificados todos os elementos referidos.
Assim, em primeiro lugar, o arguido omitiu uma acção devida ou esperada, segundo as legis artis, designadamente não agendou uma consulta para controlo e vigilância da fractura, edema e escoriação no espaço de 7 a 10 dias após a alta, tal como impunham os procedimentos médicos normais em idênticas situações – ponto 8) dos factos provados.
Em segundo lugar, o arguido tinha uma função de assistência em relação a B...., porquanto se encontrava de serviço na ULSG, nas urgências, quando esta se dirigiu a este estabelecimento de saúde a fim de receber assistência médica, pelo que se encontrava, à data dos factos, numa posição de garante – cfr. pontos 1) e 2) dos factos provados.
Em terceiro lugar, B.... sofreu uma ofensa no corpo, designadamente uma ferida com necrose da pele, que teve de ser limpa, lavada e sujeita a um enxerto de pele, dando origem a uma cicatriz com 3 cm de diâmetro na face anterior do 1/3 inferior da perna – cfr. pontos 11) a 15) dos factos provados.
Esta ofensa é grave, não porque tenha provocado um perigo para a vida da assistente, facto que não ficou provado, mas porque desfigurou a sua perna de forma grave e permanente.
Com efeito, a cicatriz, originada pela lesão sofrida pela assistente (cfr. fotografias de fls. 336 a 338 e ponto 15) dos factos provados), não se reconduz a um simples traço, ligeiro, pouco perceptível, mas ocupa uma pequena área da face anterior do 1/3 inferior da perna, que se destaca do resto do membro, pela morfologia, pela profundidade e pela cor, sendo facilmente visível. Para além disso, está situada numa zona de fácil exposição, sobretudo para uma mulher, pois, de acordo com os padrões de comportamento normais, é regular uma mulher usar saias, que deixam a descoberto a cicatriz. A idade da assistente não afasta tais considerações, pois ainda é uma pessoa activa, sendo aceitável que tenha gosto e preocupação com a sua aparência.
É também uma ofensa permanente, pois é de duração indeterminada.
Em quarto lugar, no que respeita à conexão de risco, não ficou demonstrado o nexo de imputação objectivo entre a omissão e a totalidade do resultado verificado. Contudo, ficou demonstrada a conexão de risco entre a omissão do arguido e, pelo menos, parte da ofensa ao corpo sofrida por B...., pois a consulta de vigilância e controlo era idónea para diminuir o perigo de vir a desenvolver-se uma necrose, pelo menos, com a extensão que veio a assumir e teria, efectivamente, evitado que a necrose tivesse assumido a extensão que veio a ser constatada – cfr. ponto 17) dos factos provados. Uma vez que a consulta de vigilância e controlo era idónea a diminuir o perigo referido, então podemos concluir que era previsível e evitável para um homem médio, pertencente à categoria profissional do arguido, o resultado que se veio a verificar devido à omissão do referido dever de cuidado.
Por conseguinte, a omissão do arguido aumentou a ofensa ao corpo sofrida pela assistente ou, por outras palavras, uma parte dessa ofensa à imputável à omissão do arguido. O que é suficiente para se afirmar o nexo de imputação entre a omissão e a ofensa.
Contudo, desconhecendo-se em que medida concreta é que a omissão do arguido contribuiu para a extensão da ofensa sofrida pela assistente, ou seja, para a extensão da necrose e, consequentemente, para a extensão da cicatriz, não se pode julgar verificado o nexo de imputação objectivo necessário para se afirmar que a natureza grave e permanente da lesão é imputável à omissão do arguido.
Por conseguinte, não é possível imputar ao arguido a prática do crime de ofensa à integridade física negligente na modalidade mais grave, prevista no art. 148º/3, do CP, mas apenas o crime de ofensa à integridade física simples negligente, previsto e punido pelo art. 148º/1, do CP.
Ainda no plano do nexo de imputação objectiva, considera-se que o perigo de se vir a desenvolver uma necrose com a extensão que veio a assumir estava compreendido no fim de protecção do dever de cuidado omitido pelo arguido. Efectivamente, ainda que se desconheça a causa da necrose, a verdade é que a consulta de vigilância, ao fim de 7 a 10 dias, teria permitido a visualização do estado geral da perna, pois destinava-se a vigiar a fractura, o edema e a escoriação, o que implicava uma observação clínica directa. Por conseguinte, pode-se afirmar que todas as possíveis lesões que surgissem nessa zona do corpo, passíveis de ser constatadas através da referida observação, como é o caso, estavam necessariamente compreendidas nos fins e no âmbito de protecção do dever de cuidado omitido pelo arguido.
Em quinto lugar, a responsabilidade do arguido não é afastada pelo princípio da confiança ou da auto-responsabilidade de terceiro. Efectivamente, a circunstância da assistente apenas se ter deslocado novamente à ULSG decorridos 18 dias após a alta não é reveladora de uma tal falta de cuidado que afaste a responsabilidade do arguido, pois tinha indicações para comparecer mais tarde, no dia 11.05.2010. Acresce que o dever de cuidado omitido pelo arguido é claramente demonstrativo de que a vigilância do estado da perna não poderia ser efectuada apenas pela assistente. Por conseguinte, ainda que o arguido tivesse emitido recomendações à assistente no sentido de vigiar possíveis alterações, nomeadamente a persistência da dor, deslocando-se a um estabelecimento de saúde, a verdade é que ao diferir para o dia 11.05.2010 a observação clínica da lesão, omitindo uma vigilância e controlo mais próximos da data da alta, não poderia razoavelmente esperar que a assistente tivesse uma percepção mais atempada, anterior à data da segunda deslocação ao hospital, da extensão da lesão que sofreu.
Em sexto lugar, pese embora o arguido não tenha representado como possível o resultado que se veio a verificar (cfr. ponto 18) dos factos provados), estava em condições de o fazer – cfr. ponto 19) dos factos provados –, pelo que está comprovada a culpa, tendo agido com negligência inconsciente.
Por último, o arguido não actuou ao abrigo de qualquer causa de justificação da ilicitude, nem de qualquer causa de exclusão da culpa e é plenamente imputável (cfr. pontos 20) e 22) dos factos provados).
Por todas as razões expostas, não temos dúvidas em concluir que o arguido praticou um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo art. 148º/1, do CP.
(…)”.
*
*
A) Recurso do Ministério Público

            Do vício do erro notório na apreciação da prova
           
            1. Na conclusão XVII a Digna Magistrada recorrente alega que, ao considerar como não provado ter o arguido agido com consciência de que criava perigo para a vida ou perigo de ofensa grave para o corpo ou saúde, incorreu o tribunal recorrido em erro notório na apreciação da prova, previsto no art. 410º, nº 2, c) do C. Processo Penal. No corpo da motivação a Digna Magistrada recorrente teorizou sobre o conteúdo deste vício da decisão, sem depois o apontar na sentença em crise, passando de imediato à impugnação ampla da matéria de facto.
            De todo o modo, o conhecimento dos vícios do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal é oficioso [Acórdão nº 7/95, de 19 de Outubro, DR, I-A, de 28 de Dezembro de 1985] pelo que, ainda que o recorrente não o concretize, sempre cumprirá ao tribunal de recurso verificar a sua existência.

            Os vícios previstos no art. 410º, nº 2 do C. Processo Penal têm que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo admissível a sua demonstração através de elementos àquela alheios, ainda que constantes do processo.
Existe o vício do erro notório na apreciação da prova quando o tribunal a valoriza contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de o erro não passar despercebido ao cidadão comum, por ser uma falha grosseira, ostensiva, evidente (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª, Edição, pág. 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, ob. cit., pág. 74).

Lida a decisão recorrida, aferindo os factos provados e os factos não provados que dela constam, com a respectiva motivação de facto, não vemos que a Mma. Juíza recorrida tenha violado qualquer regra sobre o valor da prova vinculada [respeitou escrupulosamente o disposto no art. 163º, nº 1 do C. Processo Penal, no que respeitou ao juízo científico inerente] ou as leges artis na valoração probatória que efectuou, pois da decisão de facto não ressalta, aos olhos do homem médio, que se tenha decidido de forma ilógica, arbitrária, irracional ou impossível.
É claro que o tribunal recorrido pode ter incorrido em erro, mas não em erro notório. Se erros existem, e a Digna magistrada recorrente não deixou de os apontar, o mecanismo processual para os reparar é o da impugnação ampla da matéria de facto, de que cuidaremos de seguida.   

Em conclusão, a sentença recorrida não enferma do vicio de erro notório na apreciação da prova, e nela não se evidenciam também qualquer dos demais vícios previstos no nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal.
*
Da incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto.
            2. É sabido que o recurso não visa a realização de um novo julgamento, como se o feito na 1ª instância não tivesse existido, mas apenas corrigir os erros in judicando ou in procedendo, que neste tenham, eventualmente, sido cometidos.
Por isso, o recurso amplo da matéria de facto ou, para quem prefira, a impugnação ampla da matéria de facto – por contraposição à revista alargada dos vícios do art. 410º, nº 2, do C. Processo Penal – essencialmente regulado no art. 412º, nºs 3 e 4, do mesmo código, impõe ao recorrente o ónus de uma tripla especificação: a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; a especificação das provas que devem ser renovadas [esta, nos termos do art. 430º, nº 1 do C. Processo Penal, apenas quando se verificarem os vícios da sentença e existam razões para crer que a renovação permitirá evitar o reenvio]. E quando as provas tenham sido gravadas, as duas últimas especificações devem ser feitas por referência ao consignado na acta, com a concreta indicação das passagens em que se funda a impugnação.
Neste figurino, compete ao recorrente, ao interveniente processual afectado pela decisão, indicar com precisão onde, em seu entender, foi cometido o erro bem como, indicar os meios que inequivocamente o demonstram, pois a modificação da decisão de facto só pode dar-se se e quando as provas especificadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da recorrida e não, quando apenas permitam decisão diversa.

Pois bem. A Digna Magistrada do Ministério Público defende o entendimento – conclusões III a VII – de que na decisão de facto proferida, integrante da sentença recorrida, deveriam ter sido considerados provados os factos que constam das alíneas b), d), f), h), i), j) e k), e os mesmos devidamente harmonizados – alguns, através de nova redacção – com os pontos 17, 18, 19, 47 e 57 dos factos provados da sentença, e deveria ter sido ainda considerado provado um novo facto alusivo à origem da necrose que afectou a assistente. Para sustentar a sua dissensão, aponta – conclusões VIII a XI e XV – o parecer apresentado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, os esclarecimentos prestados em audiência de julgamento pelo respectivo autor, Prof. Dr. E...., e as declarações finais do arguido, com indicação das partes das declarações que entendeu relevantes [não da indicação das concretas passagens em que se a impugnação, a qual se encontra feita, no entanto, no corpo da motivação, pela transcrição dos segmentos das declarações tidas por pertinentes].    
Já no corpo da motivação, depois de afirmar o seu convencimento de que a prova produzida em audiência de julgamento, conjugada com as regras da experiência comum, impunha ao tribunal a quo outra decisão sobre a matéria de facto, e de indicar a redacção que propunha para os factos que sindicou – provados, não provados, e resultante da discussão da causa – a Digna Magistrada recorrente, socorre-se de outros meios de prova, para além dos supra indicados, para suportar aquele seu convencimento.
Assim, invoca também o parecer emitido pelo Dr. F...., perito indicado para o efeito, pela Direcção-Geral de Actividades em Saúde, no processo disciplinar movido ao arguido, e o parecer solicitado pelo arguido, no âmbito do mesmo processo disciplinar, ao Colégio da Especialidade de Ortopedia da Ordem dos Médicos.   
De todo o modo, os meios de prova especificados foram indicados em bloco isto é, sem indicação concreta de qual ou quais, e em que segmentos, relevam para cada facto impugnado, o que não é tecnicamente recomendável e em muito dificulta o conhecimento do recurso de facto por este tribunal na medida em que, como adiante melhor se verá, se relativamente à bondade da terapêutica utilizada é fácil perceber o relevo de cada um, já o mesmo não acontece relativamente aos pontos de facto sindicados para quem esta concreta questão é alheia.
Em conclusão, mostra-se cumprido, embora de forma não modelar, aquele ónus, pelo que não existe impedimento ao conhecimento da impugnação ampla da matéria de facto deduzida pela Digna Magistrada recorrente, nos exactos termos e com as limitações que por ela lhe foram impostos.  

A Digna Magistrada recorrente pretende que, com a procedência da sua pretensão, os pontos de facto provados por si sindicados passem a ter a seguinte redacção:
 - [17] A consulta de controlo e vigilância referida em 8) e a prescrição de antibioterapia teriam evitado o perigo de vir a desenvolver-se uma necrose;
- [18] O arguido colocou a possibilidade da assistente vir a desenvolver a necrose indicada em 11);
- [19] O arguido, enquanto médico, estava em condições de saber que, violava as regras da sua profissão, não cuidando de efectuar prescrição de antibioterapia e de estabelecer uma vigilância mais apertada, cerca de 7 a 10 dias sobre a alta hospitalar, a fim de evitar o perigo de vir a desenvolver-se uma necrose;
- [47] Foi colocada no membro inferior esquerdo tala gessada, que consiste na aplicação de uma calha de gesso envolvida por ligaduras;
- [57] A prescrição de antibiótico era prudente.
Pretende que as alíneas dos pontos de facto não provados por si sindicados passem a provados com a seguinte redacção:
- [b)] As ligaduras da tala gessada, envolveram e taparam o local da ferida;
- [d)] O arguido devia ter receitado antibiótico para evitar a infecção da escoriação;
- [f)] A consulta de vigilância referida em 8) teria evitado, o perigo de vir a desenvolver-se a necrose descrita em 11);
- [h)] Caso a assistente apenas tivesse comparecido na data designada pelo arguido para a consulta de acompanhamento do seu estado clínico, a infecção da lesão no membro inferior esquerdo teria alastrado de forma irremediável e conduzido à sua amputação ou mesmo à morte da assistente;
- [i)] O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, tendo representado como consequência possível do facto de não prescrever antibioterapia e de não diligenciar por uma consulta de vigilância cerca de 7 a 10 dias sobre a alta hospitalar, a criação de dores e mal estar à assistente, bem como a criação de uma lesão grave facto que representou como possível e com o qual se conformou;
- [j)] O arguido representou a criação de perigo para a vida ou de grave ofensa para o corpo e saúde da assistente;
- [k)] O arguido agiu de forma consciente.
E pretende que seja aditado um novo facto aos factos provados, com a seguinte redacção:
- A necrose teve origem na escoriação ao nível anterior do tornozelo observada em 2).

3. Passemos então à análise dos factos sindicados, que será conjunta sempre que se encontrem relacionados.

i) Os pontos 17 e 57 dos factos provados, as alíneas d) e f) dos factos não provados e o facto a aditar aos factos provados
O ponto 17 dos factos provados da sentença tem a seguinte redacção:
- A consulta de controlo e vigilância referida em 8) teria diminuído o perigo de vir a desenvolver-se uma necrose, pelo menos, com a extensão que veio a assumir e teria evitado, pelo menos, que a necrose descrita em 11) tivesse assumido a extensão que veio a ser constatada.
A Digna Magistrada recorrente pretende que este ponto de facto passe a ter a seguinte redacção:
- A consulta de controlo e vigilância referida em 8) e a prescrição de antibioterapia teriam evitado o perigo de vir a desenvolver-se uma necrose.
O que afasta o facto impugnado e a versão proposta é o efeito da omitida consulta para controlo e vigilância da fractura, do edema e da escoriação que devia ter sido marcada para sete a dez dias depois, e da omitida prescrição de antibiótico, no surgimento e evolução da necrose, o que convoca para a discussão, o ponto 57 dos factos provados e as alíneas d) e f) dos factos não provados e ainda o facto a aditar aos factos provados.
O ponto 57 dos factos provados tem a seguinte redacção:
- Só se a necrose tivesse resultado de um processo infeccioso é que poderia ter sido prevenida, de todo, com antibióticos.     
Para este ponto a Digna Magistrada recorrente pretende a seguinte redacção:
- A prescrição de antibiótico era prudente.

A alínea d) dos factos não provados tem a seguinte redacção:
- O arguido devia ter receitado antibiótico para evitar a infecção da escoriação;
Quanto a ela, pretende a Digna Magistrada recorrente que passe a facto provado.

A alínea f) dos factos não provados tem a seguinte redacção:
- A consulta de vigilância referida em 8) teria evitado, por completo, a necrose descrita em 11).
Para esta alínea a Digna Magistrada recorrente pretende a seguinte redacção:
- A consulta de vigilância referida em 8) teria evitado, o perigo de vir a desenvolver-se a necrose descrita em 11) [o que constitui uma repetição, dada a redacção proposta para o ponto 17 dos factos provados].

O facto cujo aditamento é pretendido tem a seguinte redacção:
- A necrose teve origem na escoriação ao nível anterior do tornozelo observada em 2).

Ao longo de seis páginas, a Mma. Juíza a quo motivou, pormenorizadamente, a decisão que proferiu relativamente ao ponto 17 dos factos provados, conjuntamente com as alíneas f), rr) e ss) dos factos não provados. A motivação de facto da sentença já foi transcrita pelo que, a sua repetição aqui, ainda que parcial, traduzir-se-ia num exercício inútil. Para este efeito, retenhamos apenas que a Mma. Juíza entendeu, perante a prova produzida, não ser possível formar uma convicção segura sobre a causa da necrose que afectou a perna esquerda da assistente isto porque, a) os relatórios médicos de fls. 196 a 197 e de fls. 211 a 213 apenas atestam o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano, os pareceres do INML, do Dr. F.... e do Colégio da Especialidade de Ortopedia da Ordem dos Médicos não esclarecem a causa da necrose, e os médicos ortopedistas arrolados pelo arguido como testemunhas, embora tendessem a excluir a possibilidade de a necrose ter origem na escoriação, não asseguraram, com certeza, uma causa determinada b) o Prof. Dr. E...., relator do parecer do INML, nos esclarecimentos prestados na audiência, afirmou que a escoriação deu origem à necrose numa relação de causa-efeito, que a Sra. Juíza interpretou como querendo aquele médico dizer que assim era porque a escoriação se situava na mesma zona onde surgiu a necrose e não existia outra possível causa, além da escoriação, que explique o seu surgimento, c) não existindo consenso quanto à localização da escoriação, situada no relatório da urgência, elaborado pelo arguido, ao nível anterior do tornozelo, situada a necrose, no segundo relatório de urgência, na região anterior pré-distal, situada a necrose, no diário de internamento, na face anterior do terço distal, sendo opinião do Prof. Dr. E.... e do Dr. F.... as expressões designam a mesma zona da perna, e sendo opinião de médicos ortopedistas apresentados pelo arguido como testemunhas as expressões não são coincidentes, embora admitindo zonas limítrofes, a Sra. Juíza, considerando que o arguido e a assistente caracterizaram a escoriação como pequena, que nem a escoriação nem a necrose ocupavam toda a área das zonas referidas, que a escoriação e a necrose podiam situar-se na mesma zona da perna sem serem sobreponíveis, que não existem fotografias da escoriação, concluiu não ser possível afirmar que a necrose se situava precisamente no local da escoriação, em prejuízo da relação causa-efeito afirmada pelo Prof. Dr. E.... d) depois, a Sra. Juíza, considerando ser possível mas pouco habitual, na opinião do Dr. F...., que uma escoriação evolua para necrose, considerando não ter ficado demonstrado, por insuficiência de prova – não obstante os depoimentos das testemunhas Dr. G.... [o estado de sujidade do gesso do pé da assistente implicava ter andado com ele no chão] e Dra. S....[a assistente teve que manter toda a vida doméstica, por ter dois doentes em casa], por oposição aos depoimentos da testemunha P.... [ajudou a assistente deslocando-se a casa dela diariamente, e nunca a viu realizar esforços] e da testemunha L.... [a mãe repousava e tinha cuidado], e a inexistência de qualquer problema na evolução da fractura – ter a necrose resultado de sobrecarga do membro efectuada pela assistente, considerando ainda que nenhum meio de prova foi produzido que confirmasse ter a necrose origem em agentes biológicos designadamente, vírus, bactérias, micoses ou parasitas, nem que tivesse tido origem pela simples compressão do gesso devido à forma de colocação, concluiu não ser possível afirmar a origem ou a causa da necrose e) nem ser possível concluir, com a necessária certeza, que a consulta de controlo e vigilância omitida, a ter-se verificado teria evitado absolutamente a necrose pois os esclarecimentos do Prof. Dr. E.... não foram peremptórios, tendo apenas referido que a consulta teria permitido uma outra visualização do problema, que uma necrose pode evoluir rapidamente, no período de uma semana, e que por vezes, apesar de tomados todos os cuidados, são surpreendidos com ela f) mas ser possível concluir que a consulta de vigilância omitida teria evitado o perigo de verificação da necrose, pois o Prof. Dr. E.... esclareceu que ao fim de dezoito dias, a necrose estaria necessariamente mais evoluída do que ao fim do período de vigilância recomendado, o que está conforme a existência da sintomatologia progressiva desde a primeira semana.
Por tudo isto, a Mma. Juíza a quo entendeu não poder concluir nos termos que constam da alínea f) dos factos não provados e poder concluir nos termos que constam do ponto 17 dos factos provados.

A Digna Magistrada recorrente, por sua vez, sustenta a redacção que propõe para o ponto 17 dos factos provados:
- No parecer emitido pelo Conselho Médico-Legal do Instituto Nacional de Medicina Legal que teve como relator o Prof. Dr. E...., onde consta: «Parece no entanto que a prescrição de antibioterapia devia ter sido efectuada e que o deferimento da consulta para seis semanas depois é claramente inadequado. Atendendo a que esta doente apresentava uma fractura complicada de ferida, a vigilância e controle no espaço de uma semana era em nosso entendimento mandatório.»;
- No parecer emitido pelo Dr. F.... a solicitação da IGAS, onde consta: «2ª Questão – A instituição de antibioterapia impõe-se numa situação de ferida, com solução de continuidade, complicando uma fractura, com risco de infecção óssea. Se a doente em questão, apresentava apenas “pequena escoriação a nível anterior do tornozelo” (como referido no Relatório do Resumo de Episódio de Urgência do dia 31 de Março de 2010, no E.O.), não é mandatório prescrever antibioterapia, sendo recomendado fazer uma boa desinfecção e vigilância. 3ª Questão – Como respondido na 2ª questão, existindo uma fractura com edema acompanhado de escoriação teria sido recomendável uma vigilância mais apertada, oito a dez dias após a alta.»;   
- No parecer do Colégio da Especialidade de Ortopedia da ordem dos Médicos, onde consta: «1ª 1. O tratamento a efectuar depende do osso atingido, localização da fractura, anatomia da mesma, idade do doente e muitos outros factores. Contudo, perante a presença de uma escoriação existe um padrão de terapêutica comum que implica uma desinfecção do local, eventual prescrição de antibiótico e vigilância da evolução da ferida. 2ª 2. A orientação referida é na maior parte das vezes a utilizada quer como tratamento inicial, mas muitas vezes até como tratamento definitivo. 3ª 3. Como referido na resposta ao quesito 1, este tipo de lesões devem condicionar uma vigilância da escoriação até à sua cicatrização, independentemente do tipo e local da fractura.»;
- Os esclarecimentos prestados na audiência de julgamento pelo Prof. Dr. E...., pronunciando-se sobre a designação da zona afectada, os antecedentes médicos da assistente, a antibioterapia, a vigilância de controlo, o procedimento habitual e o nexo de causalidade.

Ouvido o CD onde se encontra registada a prova por declarações produzida em audiência, resulta ter o Prof. Dr. E....prestado, em síntese, os seguintes esclarecimentos, quanto aos aspectos supra citados:
- [Instâncias da Mma. Juíza] Relatou o parecer do Conselho Directivo do INML tendo por suporte os elementos enviados, designadamente, os registos da 1ª e da 2ª urgência e o registo do internamento hospitalar; a região anterior do tornozelo, a região anterior pré-tibial e a face anterior do terço distal da perna, são expressões sinónimas; (após exibição de fotografia existente nos autos) designou a região exibida como terço distal da perna ou região anterior do tornozelo e referiu a existência de alguma deformidade provavelmente relacionada com a anterior fractura e natural a existência de calo ósseo na tíbia; afirmou que uma escoriação pode, por si só, evoluir para uma necrose, mas que existem factores de risco como a diabetes, problemas circulatórios, varizes, fragilidade vascular, se a anterior fractura causou deformidade pelo calo ósseo a pele ficou mais tensa no local a probabilidade de evolução para necrose aumenta; a evolução da escoriação para a necrose pode ser rápida, depende dos factores de risco, numa semana, com todos os cuidados observados, podemos ser surpreendidos com ela; o grau de probabilidade da evolução da escoriação para necrose é algum, depende do caso, pela fotografia a zona de necrose parece significativa mas não pode ser rigoroso pois também houve enxerto, este risco podia, eventualmente, ser minimizado mas não havendo escoriação sempre seria menor; o antibiótico não evitaria necessariamente a necrose, mas poderia minimizar o risco do seu aparecimento, o local, devido à pouca musculação, torna provável o contacto com o osso e pode mesmo originar exposição óssea, o que é grave pelo que, um segundo olhar do local era indispensável e a prescrição de antibiótico, prudente pois uma senhora com esta idade tem normalmente problemas de circulação, varicose, e por isso devia haver um outro nível de preocupação; a vigilância de uma semana era importante para ver a evolução da escoriação e da própria fractura e a ter sido feita teria, eventualmente, dado uma perspectiva do problema diferente da resultante da primeira abordagem, na urgência, a vigilância implicava ver a ferida e não apenas falar com a doente, e a visualização da ferida podia, designadamente, aferir da conveniência de tratamento com antibiótico por via venosa ou mesmo, da necessidade de internamento; não se pode julgar um determinado procedimento em função do maior ou menor volume de trabalho, o que seria normal fazer e é o que faz na sua actividade, era a vigilância em oito dias; pensa que a necrose está relacionada com a ferida, há uma relação de causa e efeito, há uma ferida, há uma necrose, claro que há a relação;
- [Instâncias da Digna Procuradora Adjunta] Tem todo o respeito por opinião diversa, mas o Conselho Directivo do INML é o órgão máximo da Medicina Legal emite os pareceres de acordo com o que pensa ser a boa prática médica, uma doente com esta idade, o local da fractura, a existência de escoriação e de antecedentes não davam tranquilidade para que não fosse vista para além de oito dias, o caso impunha uma vigilância célere;
- [Instâncias do Ilustre Mandatário do arguido] Se a doente tivesse desrespeitado as instruções recebidas e tivesse feito carga na perna, teria toda a influência na evolução da necrose, e se a doente tivesse dores, calor e comichão no local e só ao fim de dezoito dias foi ao hospital, concerteza que tem particular ênfase neste quadro; tem informação de que a necrose teve como provável causa infecção bacteriana, a necrose teve como causa a desvascularização cutânea nesta zona que provavelmente ficou pressionada pelo gesso, a compressão interfere com a irrigação sanguínea que cria condições mecânicas para a infecção, a simples compressão pode causar a necrose e esta precipita a infecção pois a morte das células permite que os micro organismos que vivem na pele acabam por se desenvolverem e causarem a infecção, a necrose pode ser causa e pode ser consequência da infecção bacteriana, tudo isto é uma dedução que faz pois não tem outros elementos; no caso, é muito importante a zona que é particularmente vulnerável, bem como a idade;
- [Instâncias da Mma. Juíza] – Todas as considerações que fez têm aplicação no caso de ser aplicada tala gessada, como foi o caso e a opção adequada; a vigilância de oito dias visava a escoriação e o alinhamento da fractura, pois a existência de anterior fractura criava um risco acrescido dela desreduzir, de desalinhar, e a eventual necessidade de intervenção cirúrgica, tudo acrescida com a idade e os inerentes problemas de circulação.

Alinhados os meios de prova em confronto, cumpre agora verificar se impõem ou não decisão diversa da recorrida.     
                        
Quanto ao ponto 17 dos factos provados, a pretendida absoluta evitação do perigo de desenvolvimento de necrose, por via da consulta de controlo e vigilância no espaço de sete a dez dias e da prescrição de antibioterapia, não resulta e, muito menos, é imposta, pelos meios de prova indicados. Com efeito, nenhum dos três relatórios citados atesta que as ditas, consulta e terapia, impediriam absolutamente o aparecimento da necrose. Por sua vez, o relator do primeiro, nos esclarecimentos supra extractados, afirmou de forma clara e concisa, primeiro, que a evolução de uma escoriação para necrose pode ser rápida, varia em função dos factores de risco – e a assistente tinha alguns, desde a idade a uma antiga fractura com calo – e pode surgir numa semana, apesar de terem sido tomados todos os cuidados, e depois, que a toma de antibiótico não evitaria necessariamente a necrose, apenas minimizaria o risco do seu aparecimento, sendo prudente a sua prescrição.
            Bem pelo contrário, o que estes meios de prova permitem plenamente sustentar é o conteúdo do facto sindicado nos termos que lhe foram fixados pela decisão em crise que, por isso, são de manter.

            Quanto ao ponto 57, cremos, em primeiro lugar, que o texto proposto pressupõe a também pretendida alteração ao ponto 17, muito embora sejam parcialmente contraditórios, pois se a prescrição de antibioterapia evitava a necrose se forma absoluta [ponto 17 proposto], a prescrição de antibiótico já não poderia ser prudente [ponto 57 proposto] mas devida ou imposta, em termos médicos.
            Embora na acusação pública não se diga que a prescrição do antibiótico era prudente [mas antes, que o arguido não receitou, como podia e devia, antibiótico, e se tenha dado apenas como provado, que o arguido não receitou, como podia, antibiótico], esta qualificação constitui um minus, relativamente ao imputado dever de prescrição de antibiótico. E que esta prescrição teria sido uma atitude prudente e não despropositada, resulta dos três pareceres e dos esclarecimentos do relator do primeiro.
            Devendo reflectir-se na factualidade provada a prudência desta prescrição, há que harmonizar a redacção do ponto sindicado que consta da sentença com este aditamento.
            Assim, o ponto 57 dos factos provados passa a ter a seguinte redacção:
- Só se a necrose tivesse resultado de um processo infeccioso é que poderia ter sido prevenida, de todo, com antibióticos, mas a prescrição de antibioterapia teria sido prudente.     
 
            Quanto à alínea d) dos factos não provados, o que resulta dos mesmos meios de prova é o que se referiu quanto ao ponto 57 ou seja, que a prescrição de antibiótico, face à existência de uma escoriação associada à fractura, embora não fosse mandatória, teria revelado prudência.
            Este facto – a prescrição de antibiótico era prudente – exclui o dever de prescrição e já foi incluído no ponto 57.
Deve pois manter-se como não provada a matéria que consta da alínea sindicada.

            Quanto à alínea f) dos factos não provados, o que resulta dos esclarecimentos prestados pelo relator do parecer Conselho Médico-Legal do INML é que a consulta de vigilância omitida, a ter-se realizado, apenas teria permitido uma mais precoce detecção da necrose. Com efeito, o Prof. Dr. E.... foi muito claro quando disse que a evolução de uma escoriação para uma necrose pode ser rápido, às vezes, numa semana, apesar de terem sido observados todos os cuidados.
Deve pois manter-se como não provada a matéria que consta da alínea sindicada.
 
            Quanto ao facto a aditar, depois de ouvidos os esclarecimentos do Prof. Dr. E...., que neste aspecto, foram demasiado sintéticos e lineares, também comungamos das reservas colocadas pela Mma. Juíza a quo. Com efeito, não estando exactamente apurado o local da escoriação – isso mesmo faz notar aquele médico, quando lhe foi exibida uma fotografia dos autos – cremos que a linear afirmação de causa e efeito não é incontestável, atentos os, também referidos, factores de risco, vulnerabilidade da zona afectada, antecedentes de fractura e eventual compressão pelo gesso da tala. 
            Deve pois, nesta parte, ser indeferida a pretensão da Digna Magistrada recorrente.
ii) O ponto 47 dos factos provados e a  alínea b) dos factos não provados
Quanto a este ponto e a esta alínea a Mma. Juíza a quo fundou a sua convicção com base nas declarações da assistente, que terá dito que lhe colocaram uma língua de gesso sobre a ferida, que ficou dura, e no depoimento da testemunha Q.... [identificado na acta da audiência de julgamento de fls. 536 a 540 como enfermeiro], que terá esclarecido que por vezes, na colocação da tala gessada, é posta uma folha de gesso na parte anterior da perna apenas para fixação, e que não chega a endurecer, conjugados com a constatação de que a opção pela tala gessada ter sido tomada em função da escoriação, assim chegando à conclusão de que a escoriação não foi coberta com gesso.

O ponto 47 dos factos provados da sentença tem a seguinte redacção:
- A perna estava gessada apenas na face posterior e não na zona da escoriação.
A alínea b) dos factos não provados tem a seguinte redacção:
- A tala gessada foi aplicada sobre o local da ferida [tal como constava da acusação].
A redacção pretendida para esta alínea é:
- As ligaduras da tala gessada envolveram e taparam o local da ferida.

Verdadeiramente, a Digna Magistrada recorrente não discorda de na alínea b) dos factos não provados constar como não provado que a tala gessada foi aplicada sobre a ferida pois se assim fosse, pura e simplesmente, pretenderia que a alínea b), sem mais, passasse a facto provado. E que a tala gessada não foi colocada sobre a escoriação resulta do parecer Conselho Médico-Legal do INML onde se lê «Como está referido que a fractura era cooptada o tratamento conservador com tala gessada posterior e não gesso fechado parece ter sido o mais adequado. A existência de uma ferida que foi desinfectada e protegida não inviabiliza a imobilização com tala gessada.» e do parecer emitido pelo Dr. F.... a solicitação da IGAS onde se lê «1ª Questão – O tratamento com tala gessada posterior e não com gesso fechado foi o tratamento correcto, uma vez que tratando-se de uma lesão traumática, permitia um melhor controlo de eventuais compromissos vasculares ou nervosos provocados por edema ou hematoma frequentes nestas situações agudas.».
Assim, o terem as ligaduras de fixação da tala gessada envolvido o local da escoriação ou da ferida, é um facto novo e irrelevante, pois não só a escoriação havia já sido pensada, como a opção de tratamento com a tala foi a medicamente adequada.
Deve pois, nesta parte, ser indeferida a pretensão da Digna Magistrada recorrente.

iii) A alínea h) dos factos não provados
Quanto a esta alínea a Mma. Juíza a quo fundou a sua convicção com base na inexistência de prova adequada, sólida e consistente pois que a ao facto sindicado só a assistente se referiu, dizendo o que ouvir ser afirmado por um enfermeiro, no segundo episódio de urgência.
A Digna Magistrada recorrente pretende que a matéria da alínea em, questão passe para os factos não provados.
A alínea h) dos factos não provados tem o seguinte teor:
- Caso a assistente apenas tivesse comparecido na data designada pelo arguido para a consulta de acompanhamento do seu estado clínico, a infecção da lesão no membro inferior esquerdo teria alastrado de forma irremediável e conduzido à sua amputação ou mesmo à morte da assistente.
Nos meios de prova especificados pela Digna Magistrada recorrente não encontramos qualquer referência a esta concreta factualidade pelo que são aqueles insusceptíveis de imporem diferente decisão.
Deve pois, nesta parte, ser indeferida a pretensão da Digna Magistrada recorrente.

iv) O ponto 19 dos factos provados
Quanto a este ponto e a esta alínea a Mma. Juíza a quo fundou a sua convicção com base na categoria profissional do arguido, atestada pelo documento de fls. 639 e na sua experiência médica, conjugadas com a circunstância de a consulta de vigilância ser o procedimento terapêutico indicado e implicaria a visualização da perna, o que teria diminuído o perigo de desenvolvimento de necrose e teria evitado que tivesse assumido a dimensão verificada, para concluir não ser credível que o arguido não estivesse em condições ou não fosse capaz e competente para saber que deveria ter marcado aquela consulta, os efeitos que ela poderia ter e os perigos que poderia prevenir.
O ponto 19 dos factos provados da sentença tem a seguinte redacção:
- O arguido, enquanto médico, estava em condições de saber que, violava os cuidados que ao caso eram exigíveis, bem como as regras da sua profissão, não cuidando de estabelecer uma vigilância mais apertada, cerca de 7 a 10 dias sobre a alta hospitalar, conforme lhe era exigido pelos conhecimentos médicos que possuía, e que tal consulta de vigilância podia diminuir o perigo de vir a desenvolver-se uma necrose, pelo menos, com a extensão que veio a assumir e teria evitado, pelo menos, que, caso surgisse, uma necrose a mesma viesse a ter a extensão que, no caso, veio a assumir.
A redacção pretendida para este facto é:
- O arguido, enquanto médico, estava em condições de saber que, violava as regras da sua profissão, não cuidando de efectuar a prescrição de antibioterapia e de estabelecer uma vigilância mais apertada, cerca de 7 a 10 dias sobre a alta hospitalar, a fim de evitar o perigo de vir a desenvolver-se uma necrose.

O que afasta o facto provado sindicado da redacção proposta pela Digna Magistrada recorrente é a inclusão da omissão antibioterapia na violação das regras da medicina, e a evitação do perigo da necrose pela consulta de vigilância, que não tiveram acolhimento no conteúdo do primeiro [onde a omissão antibioterapia não foi considerada e onde apenas foi considerado que a consulta de vigilância podia diminuir o perigo de desenvolvimento de necrose].
Estes dois concretos aspectos já foram analisados e debatidos na alínea i) que antecede, nada mais havendo aqui a acrescentar quanto ao que ali ficou dito, relembrando-se apenas que a prescrição de antibiótico não era mandatória mas apenas prudente, sendo certo que só a existência de um dever de prescrição seria regra de medicina.
Assim, porque sustentada na prova produzida e valorada, deve manter-se a redacção do ponto sindicado tal como foi fixada pela 1ª instância pelo que, improcede nesta parte a pretensão da Digna Magistrada recorrente.

v) O ponto 18 dos factos provados e as alíneas i) a k) dos factos não provados
Quanto a este ponto e as estas alíneas a Mma. Juíza a quo, partindo da afirmação do arguido de que não havia marcado a consulta de vigilância porque a entendeu desnecessária face à observação clínica que fez, conjugada com a circunstância de o mesmo, conforme fls. 639, não ter registo disciplinar, concluiu não ser possível formar uma convicção segura quanto ao que o arguido representou como possível designadamente, a possibilidade de evolução que efectivamente veio a ocorrer.
Já a Digna Magistrada recorrente sustenta a redacção que propõe, depois de discorrer sobre as figuras do dolo e da negligência, nas declarações prestadas pelo arguido na audiência de julgamento, relativamente à necessidade de vigilância requerida pela escoriação, à verificação pelos doentes das alterações ocorridas em membros com gesso, e ao protocolo hospitalar fixado pelo director de serviço.

O ponto 18 dos factos provados da sentença tem a seguinte redacção:
- O arguido não colocou a possibilidade de a assistente vir a desenvolver a necrose indicada em 11).
A redacção pretendida para este facto é:
- O arguido colocou a possibilidade da assistente vir a desenvolver a necrose indicada em 11)
As alíneas i), j) e k) têm a seguinte redacção, respectivamente:
- O arguido sabia que provocava dores e mal-estar à assistente e uma lesão que determinou uma cicatriz que desfigurou grave e permanentemente o seu membro inferior esquerdo – apenas se provou o que consta nos pontos 18) e 19);
- O arguido representou a criação de perigo para a vida ou de grave ofensa para o corpo e saúde da assistente – antes se provou o que consta no ponto 18);
- O arguido agiu de forma consciente – antes se provou o que consta no ponto 18).
A redacção para proposta é, respectivamente:
- O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, tendo representado como consequência possível do facto de não prescrever antibioterapia e de não diligenciar por uma consulta de vigilância cerca de 7 a 10 dias sobre a alta hospitalar, a criação de dores e mal estar à assistente, bem como a criação de uma lesão grave facto que representou como possível e com o qual se conformou;
- O arguido representou a criação de perigo para a vida ou de grave ofensa para o corpo e saúde da assistente;
- O arguido agiu de forma consciente
A factualidade que agora se discute contende, efectivamente, com o dolo do arguido. O dolo (art. 13º do C. Penal) comporta um elemento intelectual e um elemento volitivo. O elemento intelectual consiste na representação pelo agente de todos os elementos que integram o facto ilícito – o tipo objectivo de ilícito – e na consciência de que esse facto é ilícito e a sua prática censurável. O elemento volitivo consiste na especial direcção da vontade do agente na realização do facto ilícito, sendo em função da diversidade de atitude que dolo será directo, necessário ou eventual, conforme o facto surja como meio necessário, consequência necessária ou como consequência possível da satisfação do móbil do agente, respectivamente.
O dolo, como realçou a Digna Magistrada recorrente, é um facto da vida interior do agente, um facto subjectivo que, por isso, não é directamente apreensível por terceiro, o que significa que a sua evidenciação probatória não pode ser feita directamente, através de prova testemunhal. Assim, sobretudo quando não exista confissão do agente, a prova do dolo é feita, por inferência, através da prova de factos materiais, muito particularmente, os que integram o tipo objectivo de ilícito, conjugada com as regras de normalidade e da experiência.
As disposições conjugadas dos arts. 13º e 150º, nº 2 do C. Penal impõem a conclusão de o crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos é um crime doloso, em que o respectivo tipo só se preenche quando dolo do agente abrange a violação das leges artis [dolo relativamente à acção] e o perigo para a vida ou o perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde [dolo relativamente ao resultado]. Trata-se portanto, de um crime de perigo concreto doloso. 

O arguido, de acordo com os segmentos das suas declarações prestadas na audiência de julgamento, invocados pela Digna Magistrada recorrente e cuja exactidão nem questionamos, não admitiu como imposto pela literatura médica o dever de marcar uma consulta de vigilância mais cedo, não aceitou que a escoriação devesse ser vigiada por um ortopedista, afirmou que o doente devia vigiar a evolução dos sintomas, afirmou a existência de um protocolo definido pelo director de serviço que não permitia a particularização de situações e afirmou ter actuado perante o quadro clínico que a fase inicial apresentava, dependendo a dilação da marcação das consultas da situação clínica. Em suma, o arguido não admitiu saber que provocava dores, mal-estar e lesão que desfigurou grave e permanente a perna esquerda da assistente, como não admitiu que tenha representado a criação de perigo para a vida ou de grave ofensa para o corpo e saúde da assistente e portanto, não confessou.
Se o arguido não confessou, é seguro que as suas especificadas declarações, enquanto meio de prova, são insusceptíveis de imporem decisão diversa da recorrida. Resta assim, a conjugação dos factos materiais provados com as regras da normalidade e da experiência.

Temos provado que a assistente deu entrada na de urgência do Hospital Sousa Martins, na Guarda, no dia 31 de Março de 2010, com queixas de traumatismo na perna esquerda, onde se encontrava de serviço o arguido, médico ortopedista, que a observou e constatou a existência de fractura cooptada do maléolo externo e pequena escoriação a nível anterior do tornozelo [pontos 1e 2 dos factos provados], por ordem e supervisão do arguido foi desinfectada a escoriação e colocada gaze seca, após o que foi colocada tala gessada na assistente, opção que teve em conta a existência da escoriação e é o tratamento adequado e habitual na generalidade dos estabelecimentos hospitalares [pontos 3, 4, 46 e 48 dos factos provados], depois, a assistente recebeu de alta hospitalar com marcação de consulta externa de Ortopedia para 11 de Maio de 2010, para retirada do gesso e controlo da fractura [pontos 5 e 58 dos factos provados], ainda antes de 7 de Abril de 2010 a assistente começou a sentir dores na perna esquerda que foram aumentando, apesar de para elas estar medicada e no dia 18 de Abril de 2010 deu novamente entrada na urgência do Hospital Sousa Martins, onde foi constatada a existência de uma ferida com necrose da pele na região anterior pré-tibial da perna esquerda, que foi limpa e lavada, determinou o internamento da assistente e a sujeitou a uma intervenção cirúrgica para enxerto de pele, tendo tido alta em 12 de Maio de 2010 e ficado com uma cicatriz com 3 cm de diâmetro, que lhe desfigurou a perna [pontos 9 a 15 dos factos provados], finalmente, a consulta de controlo e vigilância da fractura, do edema e da escoriação, a agendar no período de sete a dez dias, se o tivesse sido, teria diminuído o perigo de vir a desenvolver-se a necrose, pelo menos, com a extensão que assumiu, e teria evitado que tivesse assumido a dimensão que assumiu [ponto 17 dos factos provados].       
Desta factualidade concluímos que o arguido, na execução do tratamento medicamente indicado que praticou, ao não marcar para data mais próxima a consulta da assistente, como as circunstâncias do caso concreto impunham [não só a lesão e a escoriação, mas estas associadas à idade e aos antecedentes da assistente] violou as leges artis, entendidas como o conjunto de regras recomendadas pela ciência, pela técnica e pelos cuidados gerais aplicáveis à classe profissional respectiva, resultantes da experiência – regulamentadas ou não – indicadora do modo tecnicamente mais adequado e diligente para a prestação dos cuidados devidos no desenvolvimento da assistência médica, o que engloba desde as informações, os tratamentos e as intervenções praticadas até os cuidados pós-operatórios (Fernanda Galhego Martins, A Responsabilidade Penal do Cirurgião Plástico e a Conduta do Paciente, Centro de Direito Biomédico, 19, pág. 81), ou, de forma mais sintética, como os métodos e procedimentos de actuação já comprovados que exprimem o estádio actual da ciência médica (Prof. Costa Andrade, Consentimento e Acordo, pág. 67).
Mas daqui não pode inferir-se, sem mais, que o arguido agiu dolosamente, que sabia e quis violar as leges artis e que sabia e quis [mesmo que, como mera possibilidade que aceitou] criar um perigo para a vida [perigo este, aliás, não provado, cfr. al. h) dos factos não provados] ou um perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde.
Em primeiro lugar, porque os factos provados não indicam nem sugerem a existência de um qualquer atrito entre arguido e assistente que desse causa a uma conduta dolosa do primeiro.
Depois, também nada nos factos provados indica ou sugere que o arguido seja um profissional de saúde descuidado e alheado das regras da profissão. Bem pelo contrário, o que os factos provados desenham é um perfil do arguido como médico empenhado e produtivo [pontos 49 a 53 dos factos provados].
Por último, porque, por via de regra, a actuação de um médico, no exercício da sua profissão, não é dolosa.
A afirmação do dolo, resultando de forma presuntiva, terá que estribar-se em sólidos e inequívocos elementos objectivos, dos quais seja razoável, de acordo com as regras da experiência, da normalidade e da lógica, inferi-lo. Nos autos não detectamos elementos objectivos com as apontadas características e que permitam, através daquelas regras, concluir que o arguido actuou dolosamente, quanto à violação das leges artis e quanto à criação do perigo. É claro que o arguido entendeu, e mal, como diz a Digna Magistrada recorrente, que no caso concreto, não se justificava a marcação de uma consulta de vigilância e controlo a sete a dez dias de dilação. Mas pretender extrair daqui, só porque o arguido é médico e tem experiência profissional, sem mais, que tinha que representar como possível o resultado [de facto, teria ainda que se conformar com a sua realização] e portanto, que agiu dolosamente, afigura-se-nos não conforme com as regras da normalidade ou, pelo menos, menos conforme do que admitir que não previu como possível o resultado.
Não merece pois, censura, a decisão de facto proferida pela Mma. Juíza a quo relativamente aos pontos em análise que por isso, devem ser mantidos nos exactos termos em que foram fixados.
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Do preenchimento do tipo do crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos e sua consequência ao nível da punição

            4. Alega a Digna Magistrada recorrente – conclusão IV – que, na sequência da alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto e provado o dolo eventual de perigo, deve o arguido ser condenado pela prática de um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p. pelo art. 152º, nº 2 do C. Penal, em concurso aparente com um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelos arts. 148º, nº 1 e 3 e 144º, a) e d), do mesmo código. Vejamos.

Dispõe o art. 150º do C. Penal, com a epígrafe, «Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos»:  
            1 – As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física.
            2 – As pessoas indicadas no número anterior que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos violando as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde são punidas com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhes não couber por força de outra disposição legal.

            No Direito Penal vigente, a intervenção e o tratamento médico-cirúrgicos, medicamente indicados, realizados por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com fins terapêuticos e com observância das leges artis são atípicos, relativamente ao crime de ofensa à integridade física. Mais, verificados este quatro elementos – qualidade do agente, intenção terapêutica, indicação médica e execução com observância das leges artis – as intervenções e os tratamentos são atípicos, mesmo que agravem as lesões ou a doença e no limite, mesmo que provoquem a morte do doente.  
           
Já o nº 2 do art. 150º do C. Penal configura o que designaremos por crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos com violação das leges artis.
São elementos constitutivos do tipo deste crime, que tutela a vida e a integridade física, da seguinte forma:
[tipo objectivo] 
            - A realização de intervenção ou tratamento por médico ou outra pessoa legalmente autorizada, com propósito curativo, e com violação das leges artis;  
            - A criação de perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde, em consequência da inobservância das leges artis;
            [tipo subjectivo]
            - O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto [que deverá abranger todos os elementos do tipo objectivo].
           
Trata-se de um crime específico próprio, pois só pode ser praticado por agente qualificado isto é, por médico ou por outra pessoa legalmente autorizada a levar a cabo a intervenção ou o tratamento. É também um crime de perigo concreto na medida em que o perigo faz parte do tipo [perigo este que, no entanto, não tem por causa uma concreta ofensa corporal].
É ainda um crime de execução vinculada [o tipo descreve o particular comportamento que a acção deve revestir] e um crime doloso, em que o dolo abrange a conduta típica – a realização de intervenção ou um tratamento com propósito terapêutico, mas com violação das leges artis – e o perigo para a vida ou o perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde. Daqui resulta que não estará preenchido o tipo, quer quando o dolo do agente abarca a ofensa grave à integridade física ou a morte [nestes casos, os tipos preenchidos serão o de ofensa á integridade física e o de homicídio, respectivamente], quer quando a conduta típica, a violação das leges artis tiver ocorrido por negligência.
Já vimos – cfr. ponto 3, v), que antecede – que o arguido, médico ortopedista, na execução de um tratamento medicamente indicado que praticou na pessoa da assistente [tala gessada em fractura cooptada do maléolo externo esquerdo e desinfecção e penso em pequena escoriação a nível anterior do tornozelo esquerdo] numa urgência hospitalar, marcou consulta externa de Ortopedia com dilação de um mês e dez dias [para 11 de Maio de 2010], para retirada do gesso e controlo da fractura, quando as circunstâncias conhecidas do caso impunham a marcação da consulta de controlo e vigilância da fractura, do edema e da escoriação com dilação de sete a dez dias. Vimos também que dezoito dias depois de tratada pelo arguido [em 18 de Abril de 2010], a assistente deu de novo entrada na urgência, agora com uma ferida com necrose da pele na região anterior pré-tibial da perna esquerda, que a obrigou a submeter-se a uma intervenção cirúrgica para enxerto de pele [teve alta em 12 de Maio de 2010] e ficou com uma cicatriz com 3 cm de diâmetro, que lhe desfigurou a perna esquerda.
Vale isto dizer que o arguido na execução do tratamento medicamente indicado que praticou, violou as leges artis da medicina, não reduzindo o perigo de desenvolvimento da necrose. 

Mas o que nos parece incontornável é a ausência de prova de uma conduta dolosa, quer relativamente à violação das leges artis, quer relativamente à criação do perigo de ofensa grave à integridade física, o que necessariamente afasta o preenchimento do tipo subjectivo, tal como se decidiu na sentença recorrida.

Em conclusão, não se mostra preenchido o tipo do crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos com violação das leges artis, p. e p. pelo art. 150º, nº 2 do C. Penal.

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B) Recurso do arguido

            Da incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto, da violação do princípio in dubio pro reo

            5. O arguido dissente da decisão proferida sobre a matéria de facto – conclusões 1, 2, 3 e 4 – relativamente às alíneas rr) e pp) dos factos não provados e ao ponto 19 dos factos provados. Sustenta a divergência, quanto à primeira alínea, nas declarações da assistentes e nos depoimentos das testemunhas G.... e S...., cujas concretas passagens só fez constar do corpo da motivação, local onde acrescentou ainda o depoimento da testemunha L..... Sustenta a divergência, quanto à segunda alínea, no depoimento da testemunha Q.... e das testemunhas, colegas do arguido, mas nem no corpo da motivação indica as concretas passagens do depoimento da testemunha identificada, nem identifica nem indica as concretas passagens dos depoimentos dos colegas do arguido, limitando-se a discordar criticamente da motivação de facto da sentença quanto ao ponto sindicado. Sustenta a divergência quanto ao ponto 19 dos factos provados, na imperatividade da indicação da fonte das leges artis para credibilização do parecer do INML, na falta de fundamentação e de remissão para bibliografia verificável do parecer do INML e nos erros técnicos do INML, mas no corpo da motivação faz apelo também ao depoimento da testemunha G...., na parte relativa ao estabelecimento do protocolo de serviço para fractura com escoriação.        
            Porém, no corpo da motivação, o arguido impugna também, segundo cremos, o ponto 8 dos factos provados, ao escrever «Haverá pelo exposto que considerar-se como não provada a matéria do ponto 8 da fundamentação de facto.», sustentando a divergência, ao que parece, nos factores alinhados relativamente ao ponto 19 dos factos provados e ainda no depoimento da testemunha F....com indicação do segmento do depoimento respectivo.
 
            Sendo aqui integralmente aplicáveis as considerações iniciais tecidas no ponto 2 que antecede, relativamente à impugnação ampla da matéria de facto e ao ónus de especificação, é evidente que este ónus se mostra deficientemente cumprido pelo recorrente.
            E se é uma deficiência menor a falta de indicação nas conclusões do recurso, das concretas passagens da prova por declarações em que se funda a impugnação, pois que elas podem ser deduzidas, com a necessária segurança, do corpo da motivação, onde constam, já o mesmo não sucede quando as testemunhas não estão identificadas e/ou, quando em lado algum é feita a indicação das concretas passagens em que se funda a impugnação, sendo certo que, neste caso, não há lugar ao convite previsto no art. 417º, nº 3 do C. Processo Penal.
Nestes termos, a impugnação ampla da matéria de facto deduzida pelo arguido será conhecida com as limitações decorrentes das deficiências apontadas.  
O arguido pretende que, com a procedência da sua pretensão, as alíneas rr) e pp) dos factos não provados, passem a factos provados, e que o ponto 19 dos factos provados passa a facto não provado. Passemos à análise de cada um deles.

i) A alínea rr) dos factos não provados  
A alínea sindicada tem a seguinte redacção:
- Foram as [des]cargas que a assistente exerceu sobre a perna engessada, em desobediência às instruções que lhe foram dadas, à sua experiência e às regras da experiência comum, as causas das complicações por si sofridas.

A Mma. Juíza a quo fundou a sua convicção quanto a esta alínea, conjuntamente com o ponto 17 dos factos provados e as alíneas f) e ss) dos factos não provados. No que especificamente respeita à alínea sindicada, a Mma. Juíza desconsiderou a afirmação produzida pela testemunha Dr. G.... no sentido de que, porque o gesso da assistente estava sujo esta andou com o pé no chão, por entender que a sujidade apenas indicia pousar o pé no chão, o que a assistente terá admitido, e não fazer esforços com ele, e desconsiderou o depoimento da testemunha Dra. S....na parte em que esta disse ter ficado com a impressão de que a assistente, por ter dois doentes em casa e ser o pilar da família, teve que manter toda a vida doméstica, quer porque a testemunha P.... afirmou ter ajudado a assistente deslocando-se a casa desta três vezes ao dia, nunca a ter visto realizar esforços, e serem as refeições fornecidas pelo Centro de Dia, quer porque a testemunha L.... afirmou que a mãe descansava e tinha cuidado, quer porque, atenta a idade da assistente e a circunstância de ter sofrido fractura semelhante anos antes, não seria natural que continuasse a desenvolver a sua vida doméstica sem qualquer cuidado, quer porque não apresentou qualquer problema relacionado com a evolução da fractura, o que seria pouco provável de acontecer se tivesse desenvolvido reiteradamente esforços.

Ouvido o registo das declarações da testemunha Dr. G.... disse, em síntese, quanto a este concreto aspecto que:
- [Instâncias da Digna Procuradora Adjunta] Abriu o gesso à assistente porque ela se queixava com dores, a tala estava suja por baixo; [Instâncias do Ilustre Patrono da assistente] a senhora andou com o pé no chão porque o gesso estava sujo, não sei quanto tempo; [A instâncias do Ilustre Mandatário do arguido] tinha o pé sujo de o por no chão.  

Ouvido o registo das declarações da testemunha Dra. S....disse, em síntese, quanto a este concreto aspecto que:
- [Instâncias do Ilustre Mandatário do arguido] Pensa que a assistente teve que manter a actividade doméstica, ela dizia como é que podia parar com dois doentes em casa, até porque não tinha grande ajuda na aldeia; [Instâncias da Digna Procuradora Adjunta] não sabe se a assistente fazia tudo ou se fazia metade, se fazia camas, se levantava e dava banho ao marido, quando ela disse que não podia parar entendeu que continuava a fazer o que fazia antes pois nem tinha apoio judiciário, não sabia que o Centro de Dia fornecia as refeições para a família da assistente e não sabia da ajuda de uma vizinha e de uma prima; [Instâncias do Ilustre Patrono da assistente] em Junho de 2010, quando a assistente falou pela primeira vez consigo já estava recuperada, embora andasse com uma canadiana para aliviar a força na perna e por isso é provável que, nesta altura, já tivesse retomado a sua actividade. 

Ouvido o registo das declarações da testemunha P.... disse, em síntese, quanto a este concreto aspecto que:
- [Instâncias do Ilustre Patrono da assistente] Quando a B.... veio do hospital ajudou-a, já antes tratava do marido dela e continua a tratar, quando ela precisa de ir ao médico, ela andava sempre com as muletas, ia lá de manhã, ao almoço e à tarde, fazia-lhe as camas, lava a loiça pois eles comiam do Centro de Dia, na altura ainda o marido dela tomava banho sozinho, quando estava em casa dela, e às vezes ia lá sem ela dar conta, ela estava sentada, depois ela telefonou a uma prima que veio de França, mas depois de ela ter estado internada, e também ajudou; [Instâncias da Digna Procuradora Adjunta] quando lá ia a casa ela estava sentada; [Instâncias do Ilustre Mandatário do arguido] a B.... estava sentada no sofá, na sala, quando a depoente estava lá em casa, chegou a ir ao quintal com as muletas.  

Ouvido o registo das declarações da testemunha L.... disse, em síntese, quanto a este concreto aspecto que:
- [Instâncias da Digna Procuradora Adjunta] Só ao fim-de-semana é que estava em Figueiró, durante a semana estava na Guarda a estudar, quem tratava era a Sra. P...., a vizinha, lembra-se de lhe dizer para ela descansar, acha que foi o que ela fez mas não estava lá, lembra-se de a ver sentada com a perna esticada, a mãe fazia o indispensável, as necessidades normais, orientava as pessoas e às vezes também ajudava; [Instâncias do Ilustre Patrono da assistente] também a prima R... foi chamada e veio ajudar, a comida vem do lar, não tem a certeza se nesta altura o pai ainda tomava banho sozinho; [Instâncias do Ilustre Mandatário do arguido] o pai estava acamado e com incontinência, a Sra. P.... tratava dele e limpava-o.   

Começaremos por notar que só pode dever-se a lapso a referência feita na alínea sindicada às regras da experiência comum na medida em que estas não são matéria de facto, sendo certo que, com tal referência, a alínea se torna incompreensível.
Considerando, por isso, apenas o seu sentido útil – Foram as cargas que a assistente exerceu sobre a perna engessada, em desobediência às instruções que lhe foram dadas, as causas das complicações por si sofridas – diremos que a decisão de não provado não merece censura. 
Com efeito, o Dr. G.... concluiu que a assistente andou com o pé esquerdo no chão porque a tala estava suja, mas também esclareceu que não sabia o tempo em que o pé esteve no chão. A conclusão tirada pela testemunha é lógica, o esclarecimento é prudente, mas nem aquela, nem este, nem a conjugação de ambos, permite inferir que a assistente efectuou cargas excessivas sobre o membro lesionado e que foram essas cargas a causa da necrose. Aliás, ninguém esperará que um doente com uma perna gessada, a quem é recomendada a utilização de muletas, não efectue deslocações, naturalmente, adequadas ao seu estado, e nessas deslocações, evidentemente que o pé terá que estar colocado no chão.
Por outro lado, a Dra. S....afirmou uma convicção pessoal, decorrente de uma conversa que teve com a assistente já em Junho de 2010 portanto, depois de já realizado o enxerto e esta recuperada em grande parte, mas sem ter conhecimento de elementos relevantes, como o auxílio diário prestado, e que se mantém, pela testemunha P...., o apoio em refeições dado pelo Centro de Dia. Acresce que, contrariando aquela convicção pessoal, a testemunha P.... afirmou o auxílio diário que prestava, com idas a casa da assistente, de manhã, ao almoço e à tarde, fazendo camas, lavando a loiça e cuidando do marido daquela, como também afirmou, quer que a assistente descansava a perna, sentando-se, quer que chegou a deslocar-se ao quintal de muletas. E sem ser tão relevante, também a testemunha L.... afirmou que a Sra. P.... ajudava, designadamente, a tratar do pai, que a mãe fazia o indispensável, orientava e por vezes, ajudava, e que sempre lhe disse para descansar, o que pensa que ela fez. Esta pois justificada a desconsideração feita pela 1ª instância relativamente ao depoimento da testemunha Dra. S....     

Em conclusão, os meios de prova especificados pelo arguido são insusceptíveis de imporem decisão diversa, quanto à alínea sindicada.

ii) A alínea pp) dos factos não provados  
A alínea sindicada tem a seguinte redacção:
- Foi entregue à assistente um impresso com recomendações habituais, consistindo estas na indicação do que devia fazer (elevar o membro a nível superior do corpo, movimentar os dedos, controlar a dor, a mobilidade, a sensibilidade, a temperatura, o edema), o que não devia fazer (sujeitar o aparelho a qualquer tipo de líquido, cortar ou retirar o aparelho, introduzir objectos entre o aparelho e o membro, fazer carga no membro inferior sem ter indicação): mencionava ainda tal impresso as seguintes indicações: “mantenha as partes livres e disponíveis do seu corpo em função, observar todas as outras indicações dadas pelos elementos da equipa que o trata, em caso de alguma dúvida ou alteração ao normal decurso do seu tratamento recorra ao local assistencial mais próximo”.

A Mma. Juíza a quo fundou a sua convicção quanto a esta alínea, conjuntamente com a alínea c) e concluiu pela insuficiência de prova, porque o arguido afirmou não se recordar do episódio, porque a assistente afirmou o contrário do facto, porque a testemunha Q.... e os colegas do arguido afirmaram que é normal a entrega do impresso e as recomendações ao paciente, e porque, tendo sido dia de greve dos enfermeiros, o que poderia perturbar os procedimentos habituais, e não tendo o arguido equacionado a possibilidade de ocorrerem complicações, seria normal que não tivesse alertado a assistente.

Como já referimos, quanto a este aspecto, o arguido não indicou as concretas passagens do depoimento da testemunha Q....em que se funda a impugnação, como não identificou as testemunhas, seus colegas, nem indicou as concretas passagens dos seus depoimentos, limitando-se, ao que parece, a usar a própria motivação de facto da sentença.  
Ainda assim, o tribunal ad quem ouviu o registo das declarações da testemunha Q.... que, em síntese e quanto a este concreto aspecto, disse:
- [Instâncias da Digna Procuradora Adjunta] Estava na urgência, em greve, faziam os serviços mínimos, fez a triagem da assistente na urgência; [Instâncias da Mma. Juíza] fazem sempre recomendação ao doente, elevar o membro, marcha com canadianas, não molhar o gesso, havendo complicações, dores, alteração de cor, ir ao centro de saúde, é tudo explicado pelos médicos, pelo Dr. Lemos, e depois, também pela enfermagem, é normal entregar uma folha que existe no serviço com essas indicações.    

Finalmente, ouvido o registo das declarações da assistente disse, em síntese, quanto a este concreto aspecto que:
- [Instâncias da Mma. Juíza] O Dr. Lemos não lhe entregou qualquer papel com recomendações, apenas a carta para a consulta, o Dr. Lemos disse-lhe para usar canadianas, para trazer a perna no ar, para não fazer esforços e cargas e foi isso o que fez, mas não lhe disse para estar atenta às alterações. 

Não se entende a afirmação do arguido de que deveria ter ficado provado, e não ficou, que no dia 31 de Março de 2010 havia greve dos enfermeiros no Hospital Sousa Martins. É que o facto, em si mesmo, não relevou para o objecto do processo, mas apenas para formular uma possibilidade, a de a greve ter afectado os procedimentos normais. Por outro lado, independente de ser normal, como afirmou a testemunha Q...., a entrega, pela enfermagem, do documento explicativo aos doentes, a testemunha não afirmou que, in casu, tal tenha sucedido, sendo certo que a assistente negou ter recebido tal documento mas não teve qualquer reserva em afirmar que o arguido lhe disse o que devia e não devia fazer com a perna esquerda.

Em conclusão, também aqui, os meios de prova especificados pelo arguido são insusceptíveis de imporem decisão diversa, quanto à alínea sindicada.

iii) Os pontos 8 e 19 dos factos provados
Os pontos sindicados têm o seguinte teor, respectivamente:
- O arguido não agendou, como podia e devia, consulta para controlo e vigilância da fractura, do edema e da escoriação no espaço de 7 a 10 dias, tal como impunham os procedimentos médicos normais em idênticas situações;
- O arguido, enquanto médico, estava em condições de saber que, violava os cuidados que ao caso eram exigíveis, bem como as regras da sua profissão, não cuidando de estabelecer uma vigilância mais apertada, cerca de 7 a 10 dias sobre a alta hospitalar, conforme lhe era exigido pelos conhecimentos médicos que possuía, e que tal consulta de vigilância podia diminuir o perigo de vir a desenvolver-se uma necrose, pelo menos, com a extensão que veio a assumir e teria evitado, pelo menos, que, caso surgisse, uma necrose a mesma viesse a ter a extensão que, no caso, veio a assumir.

A Mma. Juíza a quo fundamentou demoradamente a sua convicção relativamente ao ponto 8 dos factos provados [conjuntamente com a alínea nn) dos factos não provados], começando por notar a afirmação do arguido de que não marcou consulta para controlo e vigilância em sete a dez dias por a entender desnecessária, face à observação e diagnóstico que realizou, para depois apontar os elementos que, em seu entender, conduziram a uma segura convicção contrária. São tais elementos, o parecer do Conselho Médico-Legal do INML, os esclarecimentos prestados pelo seu relator, Prof. Dr. E...., o parecer do Dr. F....emitido no âmbito do processo disciplinar movido pela IGAS ao arguido, os esclarecimentos prestados pelo Dr. F...., o parecer emitido pelo Colégio da Especialidade de Ortopedia da Ordem dos Médicos, a solicitação do arguido, no âmbito do referido processo disciplinar, por contraposição aos depoimentos e pareceres dos médicos ortopedistas, Dr. C...., Dr. G...., Dr. H...., DR. D...., Dr. I...., Dr. J...., Dr. T.... e Dr. M..... Constatando a oposição entre aqueles e estes, a Mma. Juíza seguiu o entendimento dos primeiros, pelo facto de o primeiro grupo de pareceres ter sido elaborado por especialistas sem qualquer ligação aos intervenientes processuais, enquanto o segundo grupo de pareceres foi elaborado por especialistas amigos do arguido, pelo facto de os depoimentos destes não abalarem a credibilidade daqueles pareceres, pelo facto de o parecer do INML ser um meio de prova particularmente qualificado, e pelo facto de o arguido ter afirmado que também marca consultas de controlo a sete dias e menos, desde que o caso, em seu entender, o justifique.
Relativamente ao ponto 19 dos factos provados, a convicção da Mma. Juíza a quo resultou da conjugação da experiência profissional do arguido, com a indicação da consulta de controlo a sete dias como procedimento indicado e que teria permitido, pelo menos, reduzir as consequências verificadas, para concluir que não crível que o arguido não tivesse as capacidades necessárias para saber que devia marcar a consulta e conhecer os perigos que prevenia.
Por seu turno, o arguido começa por sustentar a dissensão em reservas e objecções que colocou a alguns dos meios de prova que suportaram a convicção do tribunal recorrido. Assim:

No que respeita ao parecer do Conselho Médico-Legal do INML, este órgão entendeu que, porque a doente apresentava uma fractura complicada de ferida, a vigilância e controle no espaço de uma semana era em nosso entendimento mandatório. Assim, somos de opinião que houve violação das leges artis em relação ao tratamento desta doente. Entende o arguido que a credibilidade deste parecer depende da precisa indicação da fonte das leges artis tidas por violadas, indicação que não se mostra feita, parecer que, em qualquer caso, padece de erros técnicos. Vejamos.
 
No ponto 3, v), que antecede deixámos referidas duas definições de leges artis e algumas mais poderíamos adiantar, sem que com isso resolvêssemos definitivamente a questão de saber o que são os deveres de cuidado que àquelas se reconduzem. Com efeito, a evolução da medicina, a liberdade de método que caracteriza o seu exercício e as características de cada doente dificultam a determinação da actuação adequada em cada caso pelo que, é precisamente em função de cada caso concreto que a questão da violação das leges artis deve ser colocada (cfr. Sónia Fidalgo, Responsabilidade Penal por Negligência no Exercício da Medicina em Equipa, Centro de Direito Biomédico, 13, pág. 48 e ss.).    
É sabido não existirem compilações ou códigos das leges artis, seja da medicina, seja de qualquer outra actividade profissional. As fontes cuja identificação pretende o arguido mais não são do que a cristalização dos conhecimentos da ciência médica em manuais e artigos médicos. O próprio arguido admitiu que o perito Prof. Dr. E.... indicou um tratado de fracturas em adultos onde a vigilância e controlo das lesões seria objectivamente indicada para o fim curativo pretendido, e assim sucedeu efectivamente, a instância feita, aliás, pelo Ilustre Mandatário do arguido, mas com a precisão, se bem entendemos a gravação, de que foram indicados dois autores [admitindo-se que, um , Rockwood, seja o mencionado pelo arguido, com a designação, Rockwood and Green´s Fractures in Adults].
Mas certamente não se esperará que nestes ou em qualquer outro manual se afirme, especificamente, e como regra absoluta, que uma fractura cooptada do maléolo externo e pequena escoriação a nível anterior do tornozelo deve ter consulta de controlo e vigilância a dois, a oito, a 30 ou a quarenta dias. O que as regras generalizadamente reconhecidas da ciência médica dizem é que o terço distal da perna é uma zona anatómica particularmente sensível e vulnerável. Por isso, o Conselho Médico-Legal do INML realça, no parecer emitido, que a fractura e a pequena escoriação/ferida deveriam ter tido vigilância e controlo numa semana. O mesmo afirmou o Dr. F....no parecer que emitiu para o processo disciplinar movido pela IGAS [«existindo uma fractura com edema acompanhado de escoriação teria sido recomendável uma vigilância mais apertada, oito a dez dias após a alta»]. E de forma idêntica se pronunciou o Colégio da Especialidade de Ortopedia da Ordem dos Médicos, no parecer que emitiu no mesmo processo disciplinar, a solicitação do arguido [«O tratamento a efectuar depende do osso atingido, localização da fractura, anatomia da mesma, idade do doente e muitos outros factores. (…) este tipo de lesões devem condicionar uma vigilância da escoriação até à sua cicatrização, independentemente do tipo e local da fractura.»].  
Como se vê, os três pareceres – que se acredita terem sido subscritos por médicos ortopedistas que continuam a exercer a respectiva especialidade – apontam unanimemente, no sentido de que as lesões sofridas pela assistente exigiam uma vigilância mais apertada portanto, com um prazo de observação menor, de forma a despistar qualquer possível complicação, tendo em conta, designadamente, a idade da paciente e a circunstância de ter anterior fractura no mesmo terço do membro. Não assiste pois razão ao arguido, quando afirma que decorre do parecer do INML a necessidade geral e abstracta de proceder a uma consulta que deveria ser de rotina e que serviria para resolver este caso concreto. Bem pelo contrário, a necessidade é privativa do caso concreto, em função das suas condicionantes, conhecidas do perito.
Diz o arguido que todos os médicos ortopedistas ouvidos afirmaram que procederiam da mesma maneira, dando particular ênfase ao depoimento do Dr. G.... que, enquanto chefe de serviço, seria o responsável pelo protocolo do serviço para este tipo de casos. Ora, como acabou de ver-se, nem todos os médicos ortopedistas ouvidos afirmaram a correcção do procedimento do arguido. Depois, é verdade que o Dr. G.... afirmou ter feito o protocolo de serviço, não concordar com o parecer do Conselho Médico-Legal do INML e que faria tudo o que o arguido fez, mas também afirmou que as lesões ou são importantes e o médico dá-lhes valor, ou são arranhões, as escoriações são escoriações, tem é que as ver. Ou seja, tudo depende da avaliação concreta que o médico faça da lesão, em função de todos os factores que deveriam ser ponderados, e isso mesmo reconhece o arguido, como se fez constar da motivação de facto, ao admitir que também marcava consultas de controlo e vigilância a sete dias e a menos ainda. Quando a avaliação do médico, seja porque não ponderou um dos factores, seja por qualquer outra razão, falhou, fica potenciado o erro da arte.      
Diz também o arguido que é artificial a imputação de responsabilidade pela omissão de mais madrugadora consulta de vigilância e controlo porque a necrose, de acordo com todos os depoimentos médicos prestados em audiência é um fenómeno raro e o seu surgimento de uma degeneração de uma escoriação é ainda mais raro, pelo que, desconhecendo-se a sua concreta origem, a consulta marcada nos primeiros oito a dez dias não garante que influencie a probabilidade de ela ocorrer.
Podendo admitir-se que o surgimento de uma necrose não é um fenómeno recorrente, a sua raridade será sempre relativa. Da mesma forma, também a probabilidade de uma escoriação evoluir para necrose é relativa isto é, não sendo frequente, ela dependerá sempre do caso concreto, como afirmou o perito, Prof. Dr. E..... O que temos por seguro é que quer uma, quer outra, não são acontecimentos impossíveis, sem prejuízo de, no caso dos autos, não ter resultado provada a causa da necrose designadamente, que se tenha ficado a dever a degeneração da escoriação.
No entanto, o que efectivamente releva para esta matéria é que, contrariamente ao que parece ser o entendimento do arguido, a omitida consulta de vigilância e controlo a sete a dez dias não se destinava a detectar a necrose ou a influenciar a probabilidade, maior ou menor, de ela ocorrer mas sim, a vigiar e controlar a evolução da factura, do edema e da escoriação. Sendo a necrose uma das complicações possíveis, ainda que não a mais frequente, de tal evolução, é evidente que a vigilância apertada com consultas de controlo em prazos mais curtos, teria detectado mais cedo a evolução desfavorável ocorrida. E aqui, não se trata de uma questão de mero acaso, como pretende o arguido, carecendo de sentido a por si afirmada falta de nexo de causalidade entre a omissão da marcação da consulta e o dano.
Para terminar este ponto, diremos ainda que sempre que sejam objectivamente indicadas para o fim curativo em vista, pressupondo que este tenha sido o juízo feito em concreto pelo médico, não vemos que a difícil conjuntura económica que país vem atravessando nos últimos anos, constitua um obstáculo intransponível, seja por razões financeiras, seja por escassez de recursos humanos, à marcação de consultas de vigilância e controlo de membros engessados em intervalos de tempo muito próximos.
Finalmente, e ressalvado sempre o devido respeito, não vemos que o parecer do Conselho Médico-Legal do INML padeça dos erros técnicos que lhe são assacados. Em primeiro lugar porque não confundiu escoriação com ferida. As duas expressões constam do respectivo texto e, ainda que a consulta de qualquer dicionário de termos médicos as defina, a distinção estabelecida é sempre em função da menor ou maior profundidade das camadas tecidos atingidas. Depois, porque não é crível que um doutorado em medicina, enquanto relator, e vários doutorados em medicina, enquanto membros do Conselho Médico-Legal, não saibam distinguir estas duas realidades.
É também injusta a afirmação de que no dito parecer se recomenda uma totalmente ultrapassada e injustificada profilaxia com antibióticos. Que foi de parecer que a prescrição de antibioterapia deveria ter sido efectuada, é um facto. Mas também o parecer do Colégio da Especialidade de Ortopedia da Ordem dos Médicas opinou no sentido de eventual prescrição profilática de antibiótico, e o mesmo admitiu o Dr. G...., a instâncias do Ilustre Advogado do arguido.

Não existe assim, qualquer razão para desconsideração probatória, como pretende o arguido, do parecer do Conselho Médico-Legal do INML e consequente alteração da decisão quanto ao ponto 8 dos factos provados.
Com efeito, o recorrente não pode ignorar que o parecer do Conselho Médico-Legal do INML constitui um meio de prova particularmente sólido e decisivo para a questão técnica que lhe subjaz, não apenas por se tratar prova pericial, mas também porque a sua autoria provém do órgão máximo em sede de consultas técnicas e científicas no âmbito da medicina legal. Na verdade, o art. 6º, nº 4 do Dec. Lei nº 131/2007, de 24 de Abril, dispunha que os pareceres do conselho não eram susceptíveis de revisão entendimento definitivo sobre a questão concreta de que tratavam e, apesar de o Dec. Lei nº 166/2012, de 31 de Julho não conter norma idêntica, deve continuar a seguir-se o mesmo entendimento.
Acresce, como o recorrente não ignora, que aquele parecer foi secundado pelo parecer emitido pelo Colégio da Especialidade de Ortopedia da ordem dos Médicos pelo que, não restava ao tribunal a quo, como não resta ao tribunal ad quem, outro caminho que não o de acatar o juízo cientifico ali emitido qual seja, o de que uma fractura do maléolo exterior com escoriação, ainda que cooptada, em doente do sexo feminino, com mais de sessenta anos de idade e anterior fractura viciosa do terço distal do mesmo membro inferior, exige, na ponderação de todos estes factores, uma vigilância mais apertada [nunca as seis semanas fixadas pelo arguido], até à cura da equimose e da fractura, como forma de prevenir eventuais complicações, sendo uma complicação possível, embora não frequente, a necrose.

Por maioria de razão e porque o arguido é, como se provou, um médico ortopedista experiente, também não descortinamos qualquer razão para a pretendida alteração da decisão quanto ao ponto 19 dos factos provados.

6. Alega o arguido – conclusão 14 – que a sentença recorrida violou o princípio in dubio pro reo, sem concretizar os termos desta violação. Por isso, a discussão da questão suscitada terá, necessariamente, que ser efectuada em termos generalistas.

O princípio in dubio pro reo decorre do princípio da presunção de inocência do arguido (art. 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa), dá resposta ao problema processual da dúvida sobre o facto, impondo ao julgador que o non liquet da prova seja sempre resolvido a favor do arguido.  
A dúvida pressupõe que, produzida a prova, subsista no espírito do julgador – e apenas nele – a incerteza quanto à verificação ou não, de factos relevantes para a decisão. Quando tal sucede, quando, produzidas as provas, na tarefa de alcançar a verdade material de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, o julgador tenha ficado na dúvida, objectiva, razoável e intransponível, sobre a verificação, ou não, de determinado facto ou complexo factual, impõe-se uma decisão favorável ao arguido. Quando a incerteza não existe no espírito do julgador, quando a sua convicção foi alcançada para além de toda a dúvida razoável, não há lugar à aplicação do princípio.
Em sede de recurso, a detecção da violação do pro reo passa pela sua notoriedade em função dos termos da decisão isto é, tem que resultar do texto da decisão, dela devendo extrair-se que o juiz, tendo ficado ou, devendo ter ficado, na dúvida sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao agente, o deu como provado, ou na dúvida sobre a verificação de determinado facto favorável ao agente, o deu como não provado.

Percorrida a sentença recorrida, nela não resulta que a Mma. Juíza a quo tenha permanecido na dúvida quanto a qualquer dos factos integradores da decisão de facto que proferiu. Por outro lado, também não vemos que nesse estado de incerteza devesse ter ficado quanto a qualquer daqueles factos.

Não se mostra pois violado o pro reo.
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Da atipicidade da conduta e a obediência indevida desculpante

            7. Alega o arguido – conclusões 5, 6 e 13 – que não lhe pode ser imputada qualquer culpa, na ocorrência ou agravamento da necrose, que não existe nexo de causalidade entre a omissão de marcação de consulta e o dano verificado, não tendo cometido o crime de que vem acusado, pressupondo-se que se refere ao crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148º, nº 1 do C. Penal, pelo qual foi condenado.
            A pretensão do recorrente tem subentendida a modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto que, como vimos, não procedeu.
            Não obstante, diremos o que segue.

            São elementos constitutivos do tipo do crime de ofensa à integridade física por negligência:
            - Que o agente ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa;
            - Que a ofensa tenha sido praticada por negligência.

             A negligência é, nos termos do art. 15º do C. Penal, a inobservância do dever objectivo de cuidado pelo agente, que conduziu à produção do resultado típico que seria previsível e evitável pelo homem médio. No âmbito da actividade médica, o médico que violar este dever objectivo de cuidado e, como consequência dessa violação, causar uma ofensa no corpo ou na saúde do doente, pratica o crime em análise.

            Resulta dos pontos 1 a 6 e 58 dos factos provados que a assistente em 31 de Março de 2010, no seguimento de uma queda, foi observada no serviço de urgência do Hospital Sousa Martins, na Guarda, pelo médico ortopedista de serviço, o aqui arguido, que diagnosticou uma fractura cooptada do maléolo externo da perna esquerda e pequena escoriação ao nível do tornozelo da mesma perna, ordenou a desinfecção e realização de penso na escoriação e colocação de tala gessada, após o que, com medicação para as dores, deu alta com marcação de consulta externa de Ortopedia para 11 de Maio de 2010, seis semanas depois, para retirada do gesso e controlo da fractura, pois aquele é o tempo médio previsto para a consolidação deste tipo de fractura. Resulta dos pontos 9 a 16 dos factos provados que ainda antes do sétimo dia após a alta a assistente começou a sentir dor na perna gessada, dor que foi aumentando e que a levou ao mesmo serviço de urgência em 18 de Abril de 2010 onde, depois de retirado o gesso pelos médicos ortopedistas que se encontravam na urgência, foi constatada a existência de uma ferida com necrose da pele na região anterior pré-tibial, que determinou a limpeza e lavagem da zona necrosada, e a sujeição da assistente, em 4 de Maio de 2010, a uma intervenção cirúrgica para enxerto de pele, tendo tido alta em 12 de Maio de 2010 e ficado com uma cicatriz com 3 cm de diâmetro na face anterior do terço inferior da perna que ficou desfigurada. Resulta dos pontos 8 e 17 dos factos provados que o arguido não agendou, como podia e devia, de acordo com os procedimentos médicos normais, uma consulta para controlo e vigilância da fractura, do edema e da escoriação, sete a dez dias depois de 31 de Março de 2010, consulta esta que teria diminuído o perigo de desenvolvimento da necrose e teria evitado que a necrose que veio a desenvolver-se assumisse a extensão que assumiu pelo menos, com a extensão que veio a ter.
            O Prof. Faria Costa entende que as leges artis médicas «visam não só a manutenção ou a não diminuição dos bens jurídicos, como prosseguem a finalidade de aumentarem esses mesmos bens jurídicos» (O Perigo em Direito Penal, pág. 530). O surgimento da necrose não é, evidentemente, causada pela omissão da consulta de controlo e vigilância em sete a dez dias mas, o comportamento imposto ao arguido e deste esperado – marcação e realização da consulta omitida – evitaria que a necrose tivesse a dimensão que veio a ter e, consequentemente, teria aumentado o bem jurídico. Dito de outra forma, a omissão da acção devida e esperada pelo arguido, aumentou a dimensão e intensidade da ofensa ao corpo da assistente.

            Dos pontos 18 a 20 dos factos provados resulta ter o arguido agido com negligência inconsciente.

            8. Pretende o arguido – conclusão 12 – que a assistente teve culpa no agravamento da sua lesão, pois apenas se dirigiu ao hospital mais de dez dias depois do surgimento dos primeiros sintomas, sendo por isso manifestamente injusto imputar-lhe o agravamento dos danos.
            Trata-se de um mero argumento, na medida em que dos factos provados não resulta que a assistente tenha tido culpa no agravamento da lesão. Com efeito, apenas se provou – e o arguido, apesar de, a este propósito, transcrever segmentos das declarações da assistente, não formulou a redacção de qualquer facto novo, que pretendesse ver incluído no elenco dos factos provados – o que consta dos pontos 5, 6, 9, 10 e 58 dos factos provados isto é, que à assistente foi dada alta em 31 de Março de 2010 e entregue uma carta para comparecer na consulta de ortopedia de 11 de Maio de 2010, para retirada do gesso e controlo da fractura, que ainda antes do dia 7 de Abril de 2010 começou a ter dor na perna gessada que foi aumentando, até que em 18 de Abril de 2010 foi ás urgências do hospital. Não sendo a assistente profissional de saúde, não estando provado que tenha recebido específicas recomendações quanto à dor, sendo esta gradual e a sua intensidade sempre subjectiva, e tendo instruções para se apresentar na consulta apenas em 11 de Maio de 2010, a sua comparência no hospital em 18 de Abril de 2010 deve ter-se por diligente.
            Na verdade, a primeira linha do dever de vigilância da evolução das lesões competia, enquanto médico especialista responsável, ao arguido.

            9. Pretende o arguido – conclusão 9 – ter actuado sem culpa no procedimento que adoptou, por se ter limitado a seguir o protocolo de serviço, instituído pelo superior hierárquico, havendo obediência indevida desculpante.

            Determina o art. 37º do C. Penal que, age sem culpa o funcionário que cumpre uma ordem sem conhecer que ela conduz à prática de um crime, não sendo isso evidente no quadro das circunstâncias por ele representadas.
Embora a letra da lei e a inserção sistemática do preceito apontem para a sua qualificação como causa de exclusão da culpa, não é pacífico este entendimento, havendo quem considere que antes se trata de uma regulamentação especial da falta de consciência da ilicitude (cfr. neste sentido, Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, pág. 597).            

Em qualquer caso, não consta dos factos provados a existência de qualquer protocolo do serviço de ortopedia do Hospital Sousa Martins. Também nos autos não descortinamos qualquer documento que o formalize. E o arguido, na impugnação ampla da matéria de facto, também não pretendeu o aditamento aos factos provados de qualquer facto referente ao dito protocolo. 
Por outro lado, se é verdade que a testemunha Dr. G.... referiu a existência do protocolo, pelo qual também seria responsável, na qualidade de, então, director de serviço, não vemos que desse protocolo pudessem constar ordens, dirigidas a médicos, susceptíveis de afectarem a sua autonomia profissional e limitarem a respectiva capacidade de avaliação de situações clínicas.
Queremos com isto significar, retomando uma ideia já afirmada, que nenhum protocolo pode definir a periodicidade da marcação de consultas de controlo e vigilância de lesões ortopédicas, considerando apenas a lesão em termos objectivos e desconsiderando a avaliação feita pelo médico que a observou e as demais circunstâncias relevantes.         

10. Em conclusão do que antecede, mostra-se preenchido o tipo do crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148º, nº 1 do C. Penal, pelo qual foi o arguido condenado.
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            Da improcedência do pedido de indemnização civil

            11. Como corolário da pretendida falta de tipicidade da sua conduta, pretende o arguido – conclusão 13 – a sua absolvição quanto ao pedido de indemnização civil.

            Tendo-se considerado típica a conduta do arguido, estão verificados os pressupostos de que a lei faz depender a responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito (arts. 129º do C. Penal, 483º, nº 1, 496º, nº 1 e 562 e ss. do C. Civil e 8º, nº 1 do Regime da Responsabilidade Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, aprovado pela lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro), pelo que se tornou devedor da obrigação de indemnizar.

            Improcede pois esta pretensão do recorrente.
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            III DECISÃO

           
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em:

A) Conceder parcial provimento ao recurso do Ministério Público e, em consequência, decidem:

1. Modificar a decisão sobre a matéria de facto, alterando a redacção do ponto 57 dos factos provados, que passa a ser a seguinte:
- Só se a necrose tivesse resultado de um processo infeccioso é que poderia ter sido prevenida, de todo, com antibióticos, mas a prescrição de antibioterapia teria sido prudente

2. Confirmar, quanto ao mais, a sentença recorrida.
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            B) Negar provimento ao recurso do arguido.
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            Recurso do Ministério Público sem tributação.

            Custas do respectivo recurso pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs. (arts. art. 513º, nº 1 do C. Processo Penal, 8º, nº 9 do R. das Custas Processuais e sua tabela III).
 
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Coimbra, 26 de Fevereiro de 2014

 (Heitor Vasques Osório - Relator)

 (Fernando Chaves)