Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2343/18.8T8ACB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PROVA DOCUMENTAL
DECLARAÇÃO NELE CONTIDA
RECIBO DE PAGAMENTO
Data do Acordão: 02/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUIZO DE EXECUÇÃO DE ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 652º, Nº 1, AL. D) E 662º, NºS 1 E 2 DO NCPC; 341º E 362º C. CIVIL.
Sumário: 1. A Relação poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).

2. Todas as espécies de prova têm como finalidade única formar a convicção do juiz a respeito dos factos que interessam à solução do litígio; a prova documental é uma prova real que põe o juiz em presença dum objeto material que lhe representa o facto a averiguar, é a prova mediante um objeto material destinado a dar ao juiz a representação dum facto.

3. A distinção entre o documento e a declaração (que o documento representa) serve para esclarecer a eficácia probatória do documento narrativo, que constitui sempre prova indireta do facto narrado - assim, por exemplo, o recibo (documento) que o credor passa ao devedor não prova diretamente o pagamento, só prova que o credor escreveu ou mandou escrever a declaração; esta é que, por sua vez, prova o pagamento.

4. Importando indagar se e quando a exequente pagou à entidade bancária os valores inscritos nos cheques, tratando-se de um facto essencial e que poderá ser esclarecido mediante a realização de diligência probatória suplementar, poderá/deverá a Relação, ao abrigo do disposto nos art.ºs 652º, n.º 1, alínea d) e 662, n.º 2, alínea b), do CPC, solicitar àquela entidade que informe em conformidade.

Decisão Texto Integral:   

           

Apelação 2343/18.8T8ACB-A.C1

Relator: Fonte Ramos

Adjuntos: Alberto Ruço

                  Vítor Amaral

               Sumário do acórdão:

 1. A Relação poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).

2. Todas as espécies de prova têm como finalidade única formar a convicção do juiz a respeito dos factos que interessam à solução do litígio; a prova documental é uma prova real que põe o juiz em presença dum objecto material que lhe representa o facto a averiguar, é a prova mediante um objecto material destinado a dar ao juiz a representação dum facto.

3. A distinção entre o documento e a declaração (que o documento representa) serve para esclarecer a eficácia probatória do documento narrativo, que constitui sempre prova indirecta do facto narrado - assim, por exemplo, o recibo (documento) que o credor passa ao devedor não prova directamente o pagamento, só prova que o credor escreveu ou mandou escrever a declaração; esta é que, por sua vez, prova o pagamento.

4. Importando indagar se e quando a exequente pagou à entidade bancária os valores inscritos nos cheques, tratando-se de um facto essencial e que poderá ser esclarecido mediante a realização de diligência probatória suplementar, poderá/deverá a Relação, ao abrigo do disposto nos art.ºs 652º, n.º 1, alínea d) e 662, n.º 2, alínea b), do CPC, solicitar àquela entidade que informe em conformidade.


  

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. V... e M... deduziram oposição mediante embargos à execução que lhes é movida por G..., S. A., pedindo a procedência dos embargos, “com as legais consequências”.

Alegaram, em resumo, que o preenchimento da livrança foi efectuado em violação do pacto de preenchimento da mesma e que o valor nela aposto não é devido, por caducidade (parcial) em razão do não cumprimento dos prazos fixados na cláusula 7ª do contrato de garantia autónoma e inexigibilidade da obrigação de pagamento.

A exequente contestou, afastando a referida matéria de excepção e impugnando alguns dos factos, concluindo pelo prosseguimento do processo executivo.

Foi proferido despacho saneador que firmou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal a quo, por sentença de 06.01.2020, julgou os embargos de executado totalmente procedentes e determinou a extinção da execução.

Inconformada, a exequente apelou formulando as seguintes conclusões:

...

            Rematou pedindo a revogação da sentença por incumprimento do referido ónus de provar o preenchimento abusivo, prosseguindo a instância executiva, ou, se for outro o entendimento, que se considerem provados os pagamentos feitos ao Banco através dos documentos juntos com a contestação ou que se dê a oportunidade à Recorrente de demonstrar que foram, de facto, realizados.

Os executados/embargantes não responderam.

Por despacho do relator de 11.9.2020 foi determinada a realização de diligência complementar junto do Banco ... indagando do montante efectivamente pago pela exequente no âmbito da garantia autónoma prestada.

Aquela entidade bancária respondeu (prestando a informação[1]) em 02.12.2020, na sequência de (novo) despacho do relator de 23.11.2020[2].

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir: a) impugnação da decisão sobre a matéria de facto (erro na apreciação da prova); b) decisão de mérito, cuja modificação depende da eventual alteração da decisão de facto (importando verificar se existiu violação do pacto de preenchimento da livrança dada à execução).  


*

II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

a) Nos autos principais, a exequente pede a cobrança coerciva da quantia de € 34.483,39, a título de capital em dívida, acrescida dos juros de mora vencidos, que perfazem, em 25.10.2018, €3.925,72 e de juros vincendos.

b) A execução referida em a) foi intentada com base numa livrança, datada de 03.3.2016, subscrita por V..., Lda. e vencida em 14.3.2016, no montante de €34483,39, em cujo verso encontra-se escrito o dizer “bom para aval ao subscritor”, seguido da assinatura dos executados (cf. doc. de fls. 6 dos autos de execução).

c) Por escrito datado de 29.02.2008, subscrito por Banco ..., S. A. e por V..., Lda., aquela declarou emprestar a esta o montante de €250.000,00, a reembolsar em sessenta prestações mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira em 29.3.2008 e a última em 28.02.2013, mais tendo acordado que as obrigações assumidas ou a assumir por via do acordo em apreço ficavam também garantidas por garantia autónoma à primeira solicitação prestada pela exequente a favor do Banco ..., garantindo o cumprimento da obrigação de reembolso do capital mutuado assumida, até ao montante máximo de €187.500,00, equivalente a 75 % do capital em dívida (cf. doc. de fls. 14).

d) Por escrito datado de 29.02.2008, subscrito pela exequente, por V..., Lda. e pelos executados, estes acordaram, nomeadamente, o seguinte:

Primeira – 1. A pedido do segundo contraente, a primeira vai prestar ao Beneficiário uma garantia autónoma n.º ... nos termos do Anexo I ao presente contrato, que garante o cumprimento da obrigação de pagamento de 75 % do capital, assumida pelo segundo contraente para com o Beneficiário em virtude do contrato de empréstimo, celebrado nesta data e do qual a garantia acima identificada é materialmente acessória (…). 2. Pela garantia a prestar, a primeira contraente obriga-se a pagar ao Beneficiário, à primeira solicitação deste, os montantes do débito de 75 % do capital que este declare estarem vencidos e não lhe terem sido pagos pelo segundo contraente.

Segunda – 1. Por este contrato, o segundo contraente obriga-se a pagar à primeira todos os montantes que ela venha a pagar ao Beneficiário em cumprimento da garantia e nos termos nela estabelecidos. (…)

Quarta – 1. O segundo contraente entrega, nesta data, ao primeiro, uma livrança em branco por si subscrita e avalizada pelos terceiros contraentes, que ficará em poder do primeiro contraente, ficando este, desde já, expressamente autorizado, por todos os intervenientes, a completar o preenchimento da livrança quando o entender conveniente, fixando-lhe a data de emissão e de vencimento, local de emissão e de pagamento e indicando como montante tudo quanto constitua o seu crédito sobre o segundo contraente. (…)

ANEXO I

MINUTA DA GARANTIA N.º... prestada pela G..., S. A., ao Banco ..., S. A., em nome de V..., LDA. (…)

1. A G... presta, por este documento, garantia autónoma n.º..., à primeira solicitação, que assegura o bom e atempado cumprimento da obrigação de reembolso quanto a 75 % do capital mutuado em dívida em cada momento do tempo, nos termos do contrato de mútuo, a celebrar nesta data entre o Beneficiária e a Garantida.

2. O montante máximo garantido é pois de €187.500 (cento e oitenta e sete mil e quinhentos euros), correspondente a 75 % do capital mutuado. (…)

7. A garantia caduca e fica sem efeito, em relação a cada um dos montantes garantidos, se o Beneficiário não solicitar o seu pagamento à G..., nos noventa dias imediatamente posteriores ao respectivo vencimento, acima indicado, ou no caso de vencimento antecipado à comunicação deste.” (cf. doc. de fls. 9).

e) V..., Lda., não pagou ao Banco ... as prestações vencidas em 31.7.2012, 31.8.2012, 30.9.2012, 31.10.2012, 30.11.2012, 31.12.2012, 31.01.2013 e 28.02.2013.

f) Em 31.7.2012, o valor de capital[3] e juros em dívida ascendia a €37.104,60.

g) Em 25.01.2013 e 04.02.2013, a exequente remeteu cartas a V..., Lda., dando conhecimento de que havia pago ao Banco ... as importâncias relativas às prestações vencidas em junho, julho, agosto e setembro de 2012, no valor de €3.125,00 cada, perfazendo o total de €12.500, e o valor total de €15.624,86, em virtude do vencimento antecipado, e solicitando o pagamento de tais quantias (cf. docs. de fls. 83 a 85).

h) Em 03.3.2016, a exequente remeteu cartas registadas com aviso de receção à V..., Lda. (para a morada constante do acordo referido em d) e aos executados (que estes receberam) a solicitar o pagamento do montante de €34.483,39 e a informar dos termos de preenchimento da livrança, com a advertência de que em caso de não pagamento até à data de vencimento - 14.3.2016 - procederia à competente ação judicial (cf. docs. de fls. 89 a 94 e 98 a 102).

2. E deu como não provado:

a) V..., Lda. não pagou ao Banco ... a prestação vencida em 29.6.2012.

b) O Banco ... acionou a garantia autónoma descrita em II. 1. d) nas seguintes datas: - no dia 24.9.2012 solicitou à exequente o pagamento do valor total de €3.371,01, relativamente à prestação vencida a 29.6.2019; - no dia 02.10.2012 solicitou à exequente o pagamento dos valores de €3.583,62 e €3.583,62, relativos às prestações vencidas a 29.7 e 29.8.2012. 

c) No dia 04.10.2012, a exequente remeteu carta ao Banco ... a solicitar que as comunicações de acionamento da garantia fossem rectificadas e reenviadas.

d) No dia 15.10.2012, o Banco ... remeteu à exequente declaração de solicitação de pagamento da prestação vencida a 29.6.2012, pedindo o pagamento do valor de €3.125, bem como outra declaração de solicitação de pagamento, no montante de €25.000.

e) No dia 29.10.2012, a exequente remeteu ao Banco ... duas cartas, relativas às declarações de solicitação de pagamento referidas em b), em que informou quais os requisitos necessários que deveriam constar das solicitações de pagamento, nos termos estipulados no acordo descrito em II. 1. d), mais constando das mesmas que “mais informamos que, preenchendo a V. solicitação de pagamento requisitos formais previstos no termo de Garantia, é nosso entendimento habitual, nestes processos, suspender o prazo de caducidade previsto na Garantia, face aos valores reclamados, pelo período de 10 dias, após o qual esse prazo continuará a correr. Informamos, ainda, que o prazo de pagamento de 10 dias, previsto na Garantia, será contado a partir da data de receção da nova carta de pedido de pagamento, registada com aviso de receção, enviada para a sede da G..., S. A.”.

f) Em 22.11.2012, o Banco ... remeteu novas declarações de solicitação de reembolso e respetivos recibos de quitação, solicitando à exequente o pagamento do valor de €3.125,00 e €25.000,00 e entregando-lhe cópia da carta remetida pelo Banco ... a V..., Lda..

g) Em 06.12.2012, a exequente remeteu ao Banco ...: - uma carta reiterando que o pedido de pagamento de €3.125,00 devia obedecer à minuta constante do Anexo I do acordo referido em II. 1. d); - outra carta informando que a carta referida em II. 2. f) (remetida pelo Banco ... a V..., Lda.) não configurava uma resolução contratual, não sendo considerada bastante a mera comunicações de incumprimento.

h) No dia 14.12.2012, o Banco ... remeteu à exequente novas declarações de solicitação de pagamento relativamente às prestações vencidas em junho, julho, agosto e setembro de 2012, no valor de €3.125,00 cada, perfazendo o total de €12.500.

 i) Em 22.01.2013, o Banco ... solicitou à exequente o pagamento do valor total de €15.624,86.

j) Em 25.01.2013, a exequente pagou ao Banco ... as importâncias solicitadas em II. 2. h).

k) Em 04.02.2013, a exequente pagou ao Banco ... as importâncias solicitadas em II. 2. i). 

3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

a) Tendo presente o teor da “1ª conclusão” da alegação de recurso, dita em I., supra, e bem assim que o objecto do litígio ficou delimitado pela questão de saber “se a exequente violou o pacto de preenchimento da livrança apresentada como título executivo firmado com os executados” e foram/são temas da prova o “1 - Montante das prestações que a sociedade V..., Lda. não liquidou ao Banco ...”, “2 - Montante que a exequente pagou ao Banco ...” e “3 - Datas em que o Banco ... exigiu à exequente o pagamento das prestações vencidas em julho, agosto e setembro de 2012” (cf. despacho de 23.10.2019), é irrecusável que a factualidade impugnada envolve toda a matéria dada como não provada em 1ª instância, o que, de resto, vemos melhor explicitado/concretizado na fundamentação da alegação de recurso, onde, depois de reproduzida a matéria dada como não provada, se concluiu, perante a prova documental junta aos autos,  deverem “ser dados como provados os factos ´supra` indicados que foram dados como ´não provados` na sentença recorrida” - cf. fls. 140 verso a 142.

A Mm.ª Juíza a quo considerou que “relativamente aos factos não provados, quanto aos mesmos nenhuma prova foi produzida”, pois, em seu entender, “os executados impugnaram os documentos juntos pela exequente suscetíveis de sustentar tal factualidade pelo que, não tendo sido produzida qualquer outra prova por parte desta, tais factos necessariamente resultaram não provados”, além de que “em alguns casos, tais documentos, por si só, sempre seriam insuscetíveis de demonstrar o pretendido pela exequente - (…) por exemplo, nos documentos de fls. 78 a 82, os quais são cartas endereçadas pela exequente ao Banco ..., contendo cheques à ordem deste, mas que não se fazem acompanhar de qualquer elemento (carimbo dos correios, registo, aviso de receção ou extrato bancário) do qual resulte que tais cartas foram efetivamente enviadas, que os cheques em apreço foram entregues ao Banco ... ou que obtiveram pagamento”.

b) Sem quebra do respeito sempre devido por entendimento contrário, afigura-se que os documentos juntos aos autos (complementados com a informação do Banco ... de fls. 163), conjugados entre si e visto o que deles resulta e foi considerado provado, permite, com suficiente segurança e no respeito pelas regras probatórias, dar como provada toda a matéria em causa, objecto da presente impugnação, como se explicitará de seguida.

4. As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos (art.º 341º do CC).

Prova documental é a que resulta de documento; diz-se documento qualquer objecto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto (art.º 362º do CC).

Essencial à noção de documento é a função representativa ou reconstitutiva do objecto.[4]

Todas as espécies de prova têm como finalidade única formar a convicção do juiz a respeito de determinados factos (os que interessam à solução do litígio); a prova documental é uma prova real que põe o juiz em presença dum objecto material que lhe representa o facto a averiguar, é a prova mediante um objecto material destinado a dar ao juiz a representação dum facto.[5]

A distinção entre o documento e a declaração (que o documento representa) serve para esclarecer a eficácia probatória do documento narrativo, que constitui sempre prova indirecta do facto narrado - assim, por exemplo, o recibo (documento) que o credor passa ao devedor não prova directamente o pagamento, só prova que o credor escreveu ou mandou escrever a declaração; esta é que, por sua vez, prova o pagamento.[6]

O devedor (ou o terceiro) que cumpre tem sempre direito de exigir quitação ou recibo, documento particular no qual o credor declara ter recebido a prestação (art.º 787º do CC) - supõe, portanto, a indicação do crédito, a menção da pessoa que cumpre, a data do cumprimento e a assinatura do credor.[7]

5. Como bem se refere na fundamentação da alegação de recurso, os documentos juntos aos autos demonstram os diversos accionamentos da garantia por parte do Banco, a correspondência entre o Banco e a Recorrente a esse respeito e os pagamentos (ao Banco) em cumprimento da garantia emitida a favor deste.

Ao contrário do apontado na decisão sob censura (cf. II. 3. a), supra), antolha-se evidente que os executados/embargantes não impugnaram a prova documental em apreço, junta com a contestação, nos termos do disposto nos art.ºs 444º (impugnação da genuinidade de documento)[8] e 446º (ilisão da autenticidade ou da força probatória de documento)[9], pois limitaram-se a afirmar que “não tiveram qualquer intervenção na elaboração” da generalidade dos documentos apresentados pela parte contrária,  (…) nem nunca dos mesmos tiveram qualquer conhecimento, por qualquer forma ou meio, razão pela qual impugnam a autenticidade e veracidade dos aludidos documentos” (cf. requerimento de 01.7.2019), pelo que a dita “impugnação”  não era apta a produzir ou sequer a potenciar as consequências extraídas na decisão recorrida, pelo menos, quanto à matéria de facto descrita em II. 2. alíneas a) a i), supra.[10]

Daí, perante o conteúdo e a natureza dos documentos em análise (documentos particulares), o tribunal sempre poderia/poderá julgar provados ou não provados os factos deles constantes, conforme a convicção que adquirir através da livre apreciação desses factos e da sua coordenação com os outros factos da causa.[11]

 6. Assim, e porque a Relação poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1, do CPC), considera-se ainda provada toda a factualidade descrita em II. 2., alíneas a) a k), supra [cujo teor se dá aqui por reproduzido, sendo que a quantia aludida em j) foi paga em 11.02.2013, e não em 25.01.2013, e a quantia aludida em k) foi paga em 14.02.2013, e não em 04.02.2013, nessa parte se alterando, pois, a redacção das referidas alíneas], com o consequente atendimento da pretensão da exequente/apelante de ver modificada a decisão de facto.

Além do que se deixou exposto, em geral, quanto à relevância e atendibilidade da dita prova documental, concretiza-se ou explicita-se que, para dar como provada a descrita factualidade foram especialmente considerados os documentos que reproduzem, nomeadamente, os “recibos de quitação” (emitidos e subscritos pela entidade bancária credora e relativos aos diversos pagamentos realizados pela exequente[12]), as cartas (de interpelação e outras, v. g., que a exequente dirigiu ao Banco ...) e a prova complementar (do pagamento) solicitada ao Banco ... (cf. fls. 163), destacando-se os documentos de fls. 54, 54 verso, 58, 58 verso, 60, 65 verso, 66, 70 e 70 verso (facto a)), aqueles documentos e os de fls. 56 e 57 (facto b)), o documento de fls. 115 (facto c)) e os documentos de fls. 58 a 61 (facto d)), fls. 62 e 63 (facto e)), fls. 64 e seguintes (facto f)), fls. 68, 69 e fls. 75 verso a 77 (facto g)), fls. 69 verso a 73 (facto h)), fls. 74 e 75 (facto i)), fls. 70 verso, 71 verso, 72 verso, 73 verso, 78 a 81 e 163 verso (facto j)) e fls. 75, 82 e 163 verso (facto k)).

Atende-se, pois, a impugnação deduzida pela apelante contra a decisão da matéria de facto.

7. O montante mencionado em II. 1. b), supra, traduz a soma das parcelas de capital, juros de mora (e imposto de selo) e demais importâncias referidas nas interpelações para pagamento que a exequente dirigiu aos devedores embargantes e à sociedade referida em II. 1. b), supra (missivas ditas em II. 1. h), supra), sendo que a correspondente factualidade resultou provada e/ou não foi afastada pelos embargantes de forma específica e concreta.

O prazo de caducidade foi sempre respeitado nos vários accionamentos da garantia feitos pelo Banco [cf., sobretudo, II. 1. e) e II. 6., supra - factos a), b), c), e) e h)]; a exequente procedeu aos respectivos pagamentos ao Banco, conforme ficou demonstrado, e é inequívoco que, ao realizá-los, enviou cartas à Empresa dando conhecimento do sucedido e solicitando o pagamento das quantias em causa; ao preencher a livrança (em branco), enviou cartas de interpelação à Empresa e aos Avalistas, com os termos do preenchimento da livrança, que as receberam (cf. II. 1. alíneas g) e h), supra).[13]

A exigibilidade da obrigação coincide com o seu vencimento; a obrigação de pagamento da livrança venceu-se no dia 14.3.2016 e, como decorre do exposto, era exigível [cf., nomeadamente, II. 1. b) e h) e II. 6. - factos das alíneas h), i), j) e k) -, supra].

Apenas se poderá concluir que a exequente respeitou o pacto de preenchimento da livrança apresentada como título executivo firmado com os executados.[14]

Improcedendo os embargos, a execução prosseguirá os seus termos.

8. Procedem, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.

III. Pelo exposto, na procedência da apelação, modifica-se a decisão sobre a matéria de facto como se indica em II. 6., supra, e revoga-se a decisão recorrida, com o consequente prosseguimento da acção executiva.

Custas, nas instâncias, pelos executados/embargantes.


23.02.2021      

         

***



[1] Observado o contraditório, as partes nada disseram (fls. 165 e seguintes).

[2] Que se reproduz: “Consignou-se no despacho do relator, de 11.9.2020, que, «atendendo às posições expressas, v. g., nos articulados e nas alegações de recurso, e importando pôr cobro/termo ao litígio respeitando a verdade material», interessava «esclarecer, nos autos, se e quando a exequente pagou ao Banco ... os valores inscritos nos cheques reproduzidos a fls. 78 a 82.»/ Trata-se - como também aí se referiu - «de um facto essencial e que poderá ser esclarecido mediante a realização de diligência probatória suplementar.»/ Assim, determinou-se, ao abrigo do disposto nos art.ºs 652º, n.º 1, alínea d) e 662, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil (CPC), que, com os necessários elementos documentais, se solicitasse ao Banco ..., S. A. informação (e certificação) sobre aquela matéria («se e quando a exequente pagou ao Banco ... as importâncias mencionadas nos referidos documentos»)./ Para o efeito, foram remetidos os ofícios registados de 11.9.2020 e 13.10.2020 (insistência)./ Volvidos mais de dois meses, não se obteve qualquer resposta (ou esclarecimento sobre eventuais diligências em curso)./ Por conseguinte, dada a manifesta falta de colaboração e tendo ainda presente o preceituado nos art.ºs 417º, n.ºs 1 e 2, 1ª parte, do CPC1 e 27º do Regulamento das Custas Processuais, condeno Banco ..., S. A. na multa de 5 (cinco) UC./ Notifique, sendo a faltosa/recusante com a advertência de que deverá cumprir de imediato, sob pena de condenação na multa de 10 UC e demais meios coercitivos que foram possíveis.”
[3] No montante de € 28 124,86 (cf. o ponto II. 6., alíneas h) e i), infra).
[4] Vide Pires de Lima e A. Varela, CC Anotado, Vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, 1982, pág. 319.
[5] Vide Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. III, 4ª edição (reimpressão), Coimbra Editora, 1985, págs. 352 e seguinte.
[6] Ibidem (considerando a lição de Carnelutti), págs. 355 e seguinte.
[7] Vide Pires de Lima e A. Varela, CC Anotado, Vol. II, 4ª edição, Coimbra Editora, 1997, págs. 38 e seguinte.  

[8] Preceituando o seu n.º 1: «A impugnação da letra ou assinatura do documento particular ou da exatidão da reprodução mecânica, a negação das instruções a que se refere o n.º 1 do artigo 381º do Código Civil e a declaração de que não se sabe se a letra ou a assinatura do documento particular é verdadeira devem ser feitas no prazo de 10 dias contados da apresentação do documento, se a parte a ela estiver presente, ou da notificação da junção, no caso contrário

   Sobre esta forma de impugnação de documentos particulares, C. Lopes do Rego, Comentários ao CPC, Vol. I, 2ª edição, 2004, Almedina, pág. 477 e seguinte.

[9] Estabelecendo-se no n.º 1: «No prazo estabelecido no art.º 444º, devem também ser arguidas a falta de autenticidade de documento presumido por lei como autêntico, a falsidade do documento, a subscrição de documento particular por pessoa que não sabia ou não podia ler sem a intervenção notarial a que se refere o artigo 373º do Código Civil, a subtração de documento particular assinado em branco e a inserção nele de declarações divergentes do ajustado com o signatário
[10] Sobre a matéria, à luz das idênticas disposições do CPC de 1961, vide, ainda, J. Lebre de Freitas, CPC Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, págs. 447 e seguintes.
[11] Vide Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. III, cit., pág. 442.
[12] Diga-se, no entanto, que os “recibos de quitação” juntos aos autos, conforme decorre da sua parte final, eram insuficientes para comprovar o pagamento, que sempre dependeria da efectiva cobrança dos valores devidos, realidade impossível de comprovar com as meras fotocópias de fls. 78 a 82, sendo inteiramente correcto o juízo expresso a esse propósito pela Mm.ª Juíza a quo na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto - daí, o despacho do relator de 11.9.2020 (cf. ponto I., supra).

[13] A livrança em branco destina-se, normalmente, a ser preenchida pelo seu adquirente imediato ou posterior sendo a sua aquisição/entrega acompanhada de atribuição de poderes para o seu preenchimento, o denominado “acordo ou pacto de preenchimento”.

   O contrato - ou pacto - de preenchimento é o acto pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a sede do pagamento, a estipulação de juros, etc. - vide Abel Pereira Delgado, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, Anotada, 5ª edição, pág. 82 [e, de entre vários, os acórdãos do STJ de 03.5.2005-processo 05A1086 e 13.3.2007-processo 07A202, publicados no “site” da dgsi (e, o 2º, na CJ-STJ, XV, 1, 116), onde se reproduz aquele entendimento].
[14] É corrente o entendimento de que no domínio das relações imediatas o executado/avalista pode opor ao exequente/portador da livrança a excepção de incumprimento do contrato de preenchimento que os vincula, geradora de preenchimento abusivo - cabendo-lhe o respectivo ónus da prova -, alegação que desempenha a função de excepção no confronto com o direito que o exequente pretende fazer valer na execução/oposição de mérito à execução - vide, nomeadamente, A. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, vol. III, Coimbra 1975, pág. 137 e, entre outros, os acórdãos do STJ de 28.5.1996, 24.5.2005-processo 05A1347, 14.12.2006-processo 06A2589, 12.02.2009-processo 07B4616 e 22.02.2011-processo 31/054TBVVD-B.G1.S1, publicados, o primeiro, no BMJ, 457º, 401 e, os restantes, no “site” da dgsi).
   No caso em análise, a livrança dada à execução insere-se no âmbito de uma garantia autónoma, em que a exequente se comprometeu a pagar ao Banco o montante das prestações que não fossem pagas pela sociedade, pelo que apenas se a exequente suportasse o pagamento de qualquer montante nas condições definidas no contrato de garantia poderia depois reclamar o reembolso do mesmo aos executados, e, daí, o ter-se defendido em 1ª instância que cabia à exequente demonstrar tais pagamentos.

   Porém, a eventual dificuldade no domínio probatório sempre deveria levar à produção de prova suplementar/complementar pela parte ou por indagação do tribunal (cf. ponto I. e “nota 2”, supra).