Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
29/18.2GCCNT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: DECLARAÇÃO DE PERDA DE BENS A FAVOR DO ESTADO
RESTITUIÇÃO DE BENS E OBJECTOS APREENDIDOS
TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA
Data do Acordão: 10/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CANTANHEDE)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 186.º E 374.º, N.º 3, AL. C), DO CPP
Sumário: Transitada em julgado a sentença, e sendo a mesma omissa quanto ao destino dos bens apreendidos, deve ser dado cumprimento ao art. 186.º, n.º 2, do CPP, desde que a detenção dos bens por particulares seja lícita, não podendo o tribunal determinar em despacho posteriormente proferido o perdimento de tais objetos.
Decisão Texto Integral:






Acórdão deliberado em conferência na 5ª seção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

1. Relatório
A. interpôs recurso do despacho proferido no processo n.º 29/18.2GCCNT, do Juízo Local Criminal de Cantanhede, Comarca de Coimbra, que declarou perdidas a favor do Estado as armas, livretes e licença apreendidas nos autos.

1.1.  Decisão recorrida (que se transcreve integralmente):

“Nos presentes autos encontram-se apreendidas as armas, livretes e licença melhor descritas no auto de apreensão de fls. 66.

Atento o teor dos factos dados como provados na sentença de fls. 260, considera-se que existe fundado perigo de que, caso tais armas sejam devolvidas ao arguido, possam ser utilizadas para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.

Pelo exposto, e em conformidade com o art. 109º, n.º 1, do Cód. Penal, se declaram tais objetos perdidos a favor do Estado.

No que se reporta ao destino a dar aos mencionados objetos, proceda-se conforme promovido.”

1.2. Recurso do arguido (conclusões que se transcrevem na parte relevante):

“1. O Arguido foi condenado por Sentença proferida pelo Tribunal a quo no dia 06 de junho de 2019, como autor material, na forma consumada de um crime de violência doméstica, punido e previsto pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código Penal (doravante designado CP) na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão suspensa na sua execução por igual período com sujeição aos seguintes deveres/regras de conduta: fica o arguido proibido de contactar, por qualquer meio, a ofendida S... e de se aproximar desta.

2. O Arguido recorreu desta decisão no dia 11 de julho de 2019 para este Tribunal da Relação de Coimbra.

3. No dia 16 de outubro de 2019, foi proferido Acórdão por este Tribunal da Relação de Coimbra, que negou provimento a recurso interposto pelo Arguido e manteve a decisão constante da Sentença proferida pelo Tribunal a quo. Assim a Sentença transitou em julgado no dia 20 de novembro de 2019.

4. No âmbito dos presentes Autos foram apreendidas, no dia 28 de maio de 2018, as armas, livretes e licenças, referida no artigo 5.º da Motivação do presente.

5. Contudo, a Sentença do Tribunal a quo é completamente omissa quanto ao destino a dar aos bens apreendidos.

6. Ora no passado dia 06 de fevereiro de 2020, meses após o trânsito em julgado da Sentença, veio o Tribunal a quo proferir a seguinte decisão (…)

7. Ora, esgotado o poder jurisdicional do Tribunal a quo, veio o mesmo decretar a perda das armas, livretes e licença supra identificadas no artigo 5.º da Motivação do presente, apreendidas nestes autos.

8. Nos termos do disposto no artigo 374.º, n.º 3, alínea c) do Código de Processo Penal (doravante designado CPP) “A sentença termina pelo dispositivo que contém: c) A indicação do destino a dar a coisas ou objetos relacionados com o crime, com expressa menção das disposições legais aplicadas;”.

9. Acresce que, dispõe o artigo 186.º, n.º 2 do CPP que “Logo que transitar em julgado a sentença, os objetos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado.”

10. Ora, uma vez que a Sentença do Tribunal a quo não se pronunciou quanto ao destino a dar aos bens apreendidos, não tendo declarado os mesmos perdidos a favor do Estado, deveriam os bens apreendidos nos presentes Autos ser entregues ao Recorrente logo que a referida Sentença transitou em julgado.

11. Ao emitir um despacho a determinar a perda dos bens apreendidos, após o trânsito em julgado da Sentença, o Tribunal a quo está a violar o caso julgado.

12. No momento em que o referido despacho foi proferido pelo Tribunal a quo, estava esgotado o poder jurisdicional deste Tribunal, pelo que não podia o mesmo vir decretar nesta fase a perda dos bens apreendidos a favor do Estado. Ao fazê-lo, esta decisão violou também o princípio da extinção do poder jurisdicional.

13. (…)

14. Ora sublinha-se que os bens apreendidos nos presentes Autos são de natureza lícita, ou seja, a sua detenção é permitida por particulares, no caso, pelo Recorrente porquanto o mesmo pratica a atividade da caça e tem licença de uso e porte de arma para o efeito.

15. Diga-se também o Tribunal a quo fundamenta esta sua decisão considerando que “…existe fundado perigo de que, caso tais armas sejam devolvidas ao arguido, possam ser utilizadas para o

cometimento de novos factos ilícitos típicos.

Pelo exposto, e em conformidade com o artº 109º, nº 1 do Cód. Penal, se declaram tais objetos perdidos a favor do Estado.”

16. Contudo, para além do Tribunal a quo não o poder fazer em momento posterior ao trânsito em julgado da Sentença por tudo o que se invocou supra, acresce que não resulta dos factos provados na douta sentença que as armas, livretes e licenças serviram para a prática do crime a que foi condenado, nem serviram para a prática de qualquer outro crime. Nem o Recorrente foi condenado em qualquer pena acessória de proibição de uso e porte de armas.

17. Ao que acresce que ao concluir e decidir agora, meses após o trânsito em julgado da Sentença, esgotado o seu poder jurisdicional, o Tribunal a quo pretende vir colmatar a falta de menção quanto ao destino a dar aos bens apreendidos, pronunciando-se sobre factos que não foram considerados na Sentença, factos esses que implicam a subsunção ao artigo 109.º do CP.

18. (…)

19. Face ao exposto, ao proferir o despacho identificado e do qual de recorre, foram violados os artigos 186.º, n.º 2 e 374.º, n.º 3, alínea c) do Código de Processo Penal.

20. Em consequência do exposto, e em cumprimento do disposto nos artigos 186.º, n.º 2 e 374.º, n.º 3, alínea c) do Código de Processo Penal, deverá ser revogado o Despacho de que se recorre, devendo o mesmo ser substituído por outro que determine a restituição dos bens apreendidos nos Autos ao Recorrente!”


1.3. Na resposta ao recurso apresentada, o Ministério Público pugnou pela manutenção da decisão recorrida.


1.4.  O Ministério Público nesta Relação acompanhou a resposta dada em 1ª instância.

2. Conhecimento do recurso:
Encontra-se o objeto do recurso limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente. São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso, pelo que se ficam aquém, a parte da motivação que não consta das conclusões não é considerada, e se forem além também não são consideradas, porque a motivação das mesmas é inexistente (v. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, 2015, págs. 335-336).

O objeto do presente recurso resume-se a saber se, em caso de omissão de pronúncia na sentença quanto ao destino dos bens apreendidos, é possível declarar a sua perda por despacho judicial posterior.

Conhecendo,

Defende o recorrente que após o trânsito em julgado da sentença proferida se esgotou o poder jurisdicional do tribunal, pelo que não podia o mesmo ter determinado a perda dos bens apreendidos.

Dispõe o art. 109º, n.º 1, do Código de Processo Penal: “São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática”.

Relativamente ao momento em que deve ser proferida decisão sobre a perda de instrumentos, o art. 374º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal estabelece, nos requisitos da sentença, que esta termina com um dispositivo que contém, além do mais, “A indicação do destino a dar a coisas ou objetos relacionados com o crime, com expressa menção das disposições legais aplicáveis”.

No caso, a sentença não se pronunciou sobre o destino dos objetos apreendidos, a saber, 3 armas de caça e respetivos livretes de manifesto, e a licença de uso de porte de arma de que é titular o condenado, ora recorrente. A questão que importa decidir é se pode em momento posterior o juiz proferir despacho em que declara perdidos a favor do Estado, nos termos do art. 109º, n.º 1, transcrito, objetos apreendidos nos autos.

Ora, o art. 186º, n.º 2, do Código de Processo Penal, inserto no capítulo que regula as apreensões, estatui que “Logo que transitar em julgado a sentença, os objetos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado”. Decorre com clareza desta norma que se a sentença não declarar os objetos apreendidos perdidos a favor do Estado, após o seu trânsito em julgado tais bens são restituídos a quem de direito.

Pelo que não subsistem dúvidas de que o momento próprio para conhecer do destino a dar aos objetos apreendidos é o da sentença, altura em que se decide a qualificação jurídica dos factos, se pondera a personalidade do condenado, e se tomam todas as decisões quanto às consequências do crime – entre as quais figura a perda de coisas e direitos relacionados com o crime. Proferida que esta esteja, esgota-se o poder jurisdicional do tribunal, conforme estabelecido no art. 613º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Assim, e no caso de a sentença ser omissa quanto ao destino dos bens apreendidos, os sujeitos processuais têm uma de duas alternativas: ou invocam a nulidade da sentença em recurso, por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art. 379º, n.º 1, al. c), e n.º 2, do Código de Processo Penal, ou aguardam o trânsito em julgado da decisão, altura em que os bens serão restituídos, nos termos do citado art. 186º, n.º 2, do mesmo Código.

E a jurisprudência tem-se pronunciado maioritariamente no sentido de os bens apreendidos deverem ser restituídos a quem de direito, na ausência de decisão sobre o seu destino na sentença salvo quando se trate de bens ou objetos cuja detenção por particulares é ilícita, caso em que devem ser declarados perdidos a favor do Estado, incluindo esta Relação de Coimbra (Ac. de 6.11.2019, proc. 78/17.(JACBR.C1, relatado pelo Juiz Desembargador Vasques Osório; no mesmo sentido, cf., entre outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 29.1.2014, proc. 549/11.0JAPRT-A, de 2.7.2017, proc. 803/14.9JABRG-A, da Relação de Lisboa de 2.7.2020, proc. 4/17.4VLSB-B.L1, de 22.5.2018, proc. 174/11.5GDGDM-I, da relação de Évora de 12.4.2016, proc. 1072/11.8GTABF-B, de 16.4.2013, proc. 28/11.5GBORQ, e da Relação de Guimarães de 21.10.2013, proc. 316/09.0JABRG-F, todos em www.dgsi.pt).

É certo que existe uma jurisprudência, minoritária, que adere ao entendimento que a sentença que omite a decisão sobre o destino dos bens não forma caso julgado sobre a omissão (vejam-se os Acs. da Relação do Porto de 13.9.2017, proc. 837/15.6GBAGD-B, e de 11.1.2012, proc. 323/09.3GACNF, entre outros, em www.dgsi.pt), mas que não acolhemos, atendendo ao cotejo das várias disposições legais referidas.

Na verdade, ao colmatar a omissão da pronúncia sobre o destino dos objetos, que tem lugar na sentença [art. 374º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal], com um despacho posterior, estar-se-ia a modificar uma sentença já transitada, aplicando-se ex novo o art. 109º do Código Penal, com a consequente violação do caso julgado.

Em suma, transitada em julgado a sentença, e sendo a mesma omissa quanto ao destino dos bens apreendidos, deve ser dado cumprimento ao art. 186º, n.º 2, do Código de Processo Penal, desde que a detenção dos bens por particulares seja lícita, não podendo o tribunal determinar em despacho posteriormente proferido o perdimento de tais objetos.

No caso, as armas de caça apreendidas são legais, encontram-se devidamente licenciadas, e o arguido/recorrente é titular de licença de uso e porte de arma – que se encontra igualmente apreendida.

Pelas razões expostas, o recurso interposto merece provimento.


*

3. Decisão

Nos termos expostos, concede-se provimento ao recurso interposto, e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que dê cumprimento ao disposto no art. 186º, n.º 2, do Código de Processo Penal, caso não se verifiquem outras razões que o impeçam.

Sem tributação.

Coimbra, 14 de outubro de 2020

Ana Carolina Veloso Gomes Cardoso - relatora

João Bernardo Peral Novais - adjunto