Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
379/13.4TACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: ILICITUDE NA COMPARTICIPAÇÃO
AUTOR EXTRANEUS
MEDIDA DA PENA
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
Data do Acordão: 10/26/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (SECÇÃO CRIMINAL DA INSTÂNCIA LOCAL DE COIMBRA - J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 28.º, N.ºS 1 E 2, E 72.º, DO CP
Sumário: I - A aplicação, não obrigatória, da norma inscrita no n.º 2 do artigo 28.º do CP depende de dois pressupostos legais: o primeiro, de cariz mais acentuadamente subjectivo, traduz-se na apreciação pelo julgador das circunstâncias concretas do caso num sentido favorável à substituição da pena mais grave; o segundo, de natureza objectiva, conduz à asserção de que, na ausência do n.º 1 do referido artigo 28.º, sempre seria aplicável ao agente uma pena menos grave.

II - De qualquer modo, em situações inviabilizadoras da aplicação da regra contida no n.º 2 do artigo 28.º, por via do seu requisito objectivo, pode o tribunal socorrer-se, justificadamente, do artigo 72.º do CP, relativo à atenuação especial da pena.

Decisão Texto Integral:



Acordam em audiência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo comum singular (artigo 16.º, n.º 3 do CPP) n.º 379/13.4TACBR, da Comarca de Coimbra, Coimbra – Inst. Local – Secção Criminal – J2, mediante acusação pública, foram os arguidos A... e B... , melhor identificados nos autos, submetidos a julgamento, sendo-lhes, então, imputada a prática, em coautoria material e em concurso real, de um crime de peculato, p. e p. pelo artigo 375.º, n.º 1 do Código Penal, e de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º do C. Penal, com referência ao artigo 386.º, n.ºs 1, alínea d) e 2, do mesmo Código.

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, por sentença de 27.11.2015, o tribunal decidiu [transcrição parcial do dispositivo]:

Pelo exposto, julgo parcialmente procedente a acusação e, consequentemente:

1. Absolvo os arguidos A... (…) e B... (…) da prática, em coautoria material, do crime de abuso de poder, previsto e punido pelo art.º 382.º do Código Penal, com referência aos art.ºs 386.º, n.ºs 1, al. d), e 2, e 28.º, n.º 1, do Código Penal.

2. Condeno os arguidos A... (…) e B... (…) pela prática, em coautoria material, de um crime de peculato, previsto e punido pelo art.º 375.º, n.º 1, do Código Penal, com referência ao art.º 386.º, n.ºs 1, al. d), e 2, e 28.º, n.º 1, do Código Penal, respetivamente nas penas de:

a) Arguido A... : 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;

b) Arguido B... : 2 (dois) anos de prisão.

3. Vistas as circunstâncias acima mencionadas e relativas aos arguidos, nos termos dos art.ºs 50.º, n.ºs 1, 2, 3, 4 e 5, e 51.º, n.ºs 1, al. c), e 2, do Código Penal, o Tribunal suspende a execução das penas de prisão aplicadas aos arguidos, pelos períodos, respetivamente, de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses e de 2 (dois) anos, subordinada ao cumprimento do dever de cada um dos arguidos entregar, no prazo de 1 (um) ano, aos Serviços Municipalizados (...) (SM ....), de contribuição monetária no valor individual de € 2.000,00 (dois mil euros).

(…)»

3. Inconformados com a decisão recorreram os arguidos, formulando as seguintes conclusões:

A... :

1.º Dando cumprimento ao estatuído no artigo 412.º, n.º 3, al. a), do CP Penal, consideram-se incorretamente julgados os factos constantes dos pontos 3., 41., 44., 46., 47. E 48 daqueles factos dados como provados e o facto 6 daqueles tidos por indemonstrados.

2º. No que tange ao “facto 3” o Mmo. Juiz a quo usa, para fundamentar a respetiva prova, a naturalidade do recorrente e de seu coarguido, a mesma militância política, e o facto de, em conversas telefónicas, se tutearem.

3.º Salvo o devido respeito, é manifestamente pouco para tão assertiva conclusão.

4.º Desde logo, no que tange à naturalidade, os mesmos só partilham o Concelho, dado que são de freguesias distintas, cujas sedes distam cerca de 10 Kms, uma da outra …

5.º Por outra banda, os arguidos são de gerações diferentes, sendo certo que nasceram com cerca de dezasseis de diferença – o que desde logo impede qualquer espécie de juízo de afinidade etária potenciada pela contiguidade geográfica.

6.º Quanto à militância política idêntica, deve dizer-se que ela ocorre no seio de um dos maiores partidos nacionais (o mais votado, que não o “vencedor” das últimas legislativas) o que torna de algum modo irrelevante tal circunstância …

7.º E o tratamento familiar por tu, também não suportará, só por si, a magnitude da ilação tirada.

8.º De resto, examinada a integralidade das escutas de que o recorrente foi alvo, constatar-se-á que as conversas tidas com o coarguido são só as relacionadas com esta questão e bastante curtas.

9.º O que deixa transparecer que o relacionamento entre ambos, não se alcandorava à dimensão constante do facto cujo julgamento se reponta de erróneo.

10.º No que tange aos factos 41 e 6 dos não provados, deve, antes, de mais, referir que o seu tratamento conjunto resulta da circunstância de ambos versarem sobre o mesmo pedaço da realidade, motivando respostas simétricas.

11.º Na verdade, esta factualidade atine ao valor dos objetos que foram entregues com a viatura, no interior desta.

12.º Ora, desde logo, não se vislumbra onde se baseou o tribunal para concluir pelos avantajados montantes descritos no ponto 41.

13.º Por outro lado, tal assunção fáctica colide, fragorosamente, com o depoimento da testemunha H... , prestado na audiência de discussão e julgamento, em 05 de Novembro de 2015 (gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, sob o ficheiro 20151105114507_2565300_2870728), com início às 11h 45 m e 08s e fim às 12h 41 m e 24 s.

14.º Designadamente do trecho constante do minuto 26` 51s ao minuto 34`08s.

15.º De facto, aí se afirma que os valores enumerados no facto 41 se apresentam empolados.

16.º Com efeito, pela sua vestuta idade das peças em questão e pela inexistência, no país inteiro, de viaturas onde pudessem ser aplicadas, o valor delas era nulo.

17.º Sendo provável que a sua conservação redundasse prejudicial, dado que para serem destruídas implicariam custos.

18.º Ou seja, a consideração do aludido depoimento levará a que a factualidade em causa no facto 41, mereça resposta de não provada e, consequentemente, que a resposta ao facto 6 dos não provados seja diferente: isto é, que tal facto seja tido como demonstrado.

19.º No que respeita ao facto 41 este é verdadeiramente o nó górdio do presente processo.

20.º Na verdade, aqui se afirma que os arguidos (e, evidentemente, também o recorrente) sabiam que, em 20/12/2013, não era reconhecido qualquer direito ao arguido B... sobre o veículo X [...], nem às peças de substituição que foram colocadas no interior deste.

21º Ora, dos autos ressumarão elementos que põem em causa a presente resposta.

22.º Com efeito do depoimento da testemunha C... resulta evidente que o coarguido B... havia adquirido uma viatura aos SM .... (e por três mil euros) em 2002.

23.º Também ressuma, apoditicamente, que tal viatura nunca lhe foi entregue.

24.º E, identicamente, emerge que em 2013 foi entregue outra viatura ao coarguido do recorrente, havendo a consciência que tal ato serviu para saldar “dívida” anterior – cf. depoimento prestado na audiência de discussão e julgamento, em 05. De Novembro de 2015 (gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, sob o ficheiro 20151105110847_2565300_2870728), com início às 11 h 08 m e 47s e fim às 11h 36 m 37s, designadamente do minuto 07`15 s ao minuto 07`28s.

25.º Tal circunstancialismo é amplamente corroborado pela testemunha Eng. H... (depoimento gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, sob o ficheiro 20151105114507_2565300_2870728), com início às 11 h 45 m e fim às 12h 41 m e 24 s, designadamente do minuto 05`07`ao minuto 06`27s).

26.º Que resulta confirmado na sessão de 05 de Novembro de 2015 da audiência de discussão e julgamento (gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, sob o ficheiro 20151105114507_2565300_2870728), com início às 11 h 45 m e 08 s e fim às 12 h 41 m e 24 s, designadamente do minuto 09`26 s ao minuto 10`05s.

27.º Esta testemunha narra, ainda, que a viatura não entregue foi vendida, de novo, pelos SM .... – cf. depoimento, designadamente do minuto 14`04s ao minuto 16`47s.

28.º Assim emerge um entendimento que foi perfeitamente entendido e aceite pela depoente C... – cf. minuto 09`28s ao minuto 09`38s do depoimento prestado no dia 5 de Novembro de 2015 (gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, sob o ficheiro 20151105110847_2565300_2870728), com início às 11 h 08 m e 47 s e fim às 11 h 36 m e 37 s e corroborado e aceite pela Testemunha H... (minuto 17`21 s ao minuto 18`46 s do depoimento prestado na sessão de 05 de Novembro de 2015 da audiência de discussão e julgamento (gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, sob o ficheiro 20151105114507_2565300_2870728).

29.º De resto, à testemunha C... tal espécie de atuação não causou qualquer espécie de perplexidade, dado que o destino das viaturas dadas para abate não era univocamente a venda, dado que havia alguma discricionariedade da administração que poderia dar-lhes outros destinos, não estranhando, pois, que uma viatura servisse como uma espécie de datio pro solvendo de uma responsabilidade dos Serviços – cf. depoimento do minuto 14`55s ao minuto 15`18s.

30.º Por outro lado, a testemunha, não obstante a sua longa experiência profissional ligada à empresa municipal em questão também referiu não ser do seu conhecimento alguma vez ter ocorrido uma situação de aplicação estrita do caderno de encargos de um concurso, gerando o irremediável prejuízo do vencedor do mesmo – cf. minuto 18`19s ao minuto 18`53s do já identificado depoimento.

31.º Talvez por isso, os pagamentos feitos fora das condições fechadas documentadas nesses sobreditos cadernos de encargos não eram rigorosamente controlados, aceitando-se pagamentos efetuados após os prazos neles estipulados – cf. declarações prestadas do minuto 19`12s ao minuto 20`27s do supra identificado depoimento.

32.º E, perante a não oposição a essa ideia que havia diversas vezes verbalizado é evidente que pensava que tal entendimento era partilhado, designadamente pela administração, pelo que conclui inexistir qualquer ilegalidade no procedimento – cf. do minuto 22`16 s ao minuto 23`14 s do depoimento prestado pela testemunha.

33.º Ora, como evidente se torna, a assunção factual que se contesta emerge, inevitavelmente, contra estes dois depoimentos analisados – prestados por quem foi chefe de divisão dos serviços Administrativos da entidade em causa e Técnico superior dessa mesma entidade.

34.º Na verdade, ao contrário do que no facto controvertido se afirma, nos Serviços existia a convicção que o Arq. B... tinha sido prejudicado pelas vicissitudes de um negócio não consumado, em que havia pago um bem que não lhe havia sido entregue (e que já não seria possível entregar, dado que os Serviços o haviam vendido).

35.º Assim teria direito a uma compensação que se havia densificado na entrega da viatura X [...], a que teria direito.

36.º Em consequência, a consideração deste facto como provado irrompeu ao arrepio do conteúdo destes depoimentos, máxime nos segmentos que se elencaram.

37.º No que tange aos factos 46 e 47 é evidente que estes contêm a factualidade que consubstancia a dimensão subjetiva do tipo de ilícito em apreço.

38.º Que o Mmo Juiz entende demonstrado uma vez que “a subjetividade presente nos arguidos decorre do circunstancialismo dos eventos e da normalidade da vida social, não sendo plausível que os mesmos, pessoas com larga experiência de vida e relevante atividade política, pudessem desconhecer quer as normas procedimentais em causa, quer a pertença do veículo X [...] aos SM .... (…) sendo certo que a censurabilidade penal dos demonstrados comportamentos é do geral conhecimento dos cidadãos portanto, necessariamente, também, dos arguidos”.

39.º Ou seja, tudo resulta sustentado em inferências e deduções decorrentes de juízos de “normalidade”.

40.º No entanto, resposta distinta ao facto 44 não deixará de ter relevância e repercussão neste específico domínio.

41.º Na verdade, demonstrado que existia a convicção de que o coarguido do recorrente tinha direito a uma compensação em consequência da frustração do primeiro negócio tal não deixará de adquirir consequência na dimensão subjetiva do tipo.

42.º É que a atuação do recorrente deixará de emergir coberta pela intenção de subtrair os bens do domínio dos SM .... e, bem assim, de almejar um qualquer locupletamento com este que não seria proporcionado a um terceiro.

43.º Assim sendo, os enunciados segmentos das declarações das testemunhas H... e C... , a que se aludiu, ao demonstrarem que existia o entendimento de que o coarguido do recorrente que existia o entendimento de que o coarguido do recorrente tinha direito a uma compensação retiram palco à conclusão de que existiu um conluio e uma vontade concertada de prejudicar o erário público para beneficiar tal coarguido.

44.º Na verdade, o que sobejará é a vontade, exclusiva, dos SM .... honrarem os seus compromissos e a do coarguido de ser inteirado dos seus direitos.

45.º Por outro lado, a assunção factual propugnada na douta sentença emerge ao arrepio do princípio in dúbio pro reo decorrente da presunção de inocência constitucionalmente consagrado no n.º 2 do artigo 32º da CRP.

46.º Com efeito, o referido matricial princípio impunha que as lacunas probatórias fosse valoradas a favor da posição processual do arguido.

47.º Ora, fixada a matéria de facto como supra se preconiza, é evidente que se impõe outra solução jurídica para a situação sub judice.

48.º Na verdade, o tipo de crime p. e p. no artigo 375.º do CP é um crime unicamente punível a título de dolo.

49.º O que, como é consabido, exige que o comitente detenha no seu horizonte cognitivo a factualidade significativamente relevante,

50.º E, bem assim, desenvolva a vontade de a perpetrar, ou a encare como consequência necessária da sua conduta, ou, finalmente, representando-a, atue conformando-se com a sua realização.

51.º Como já dito, a diferente resposta às factualidades por que se pugna, eliminará essa dimensão subjetiva,

52.º E implicará, necessariamente, a absolvição do arguido/recorrente.

Sem prescindir

53.º Finalmente, independentemente do destino das anteriores conclusões, quer o recorrente dar nota do seu dissídio relativamente à pena que lhe foi aplicada.

54.º Com efeito, a medida concreta da pena surge claramente desfasada dos preceitos normativos reitores deste segmento da juridicidade.

55.º Designadamente, mostram-se violados os artigos 71.º, n.º 1 e 40º, n.º 2 do CP.

56.º Os sobreditos incisos plasmam os critérios determinantes da fixação da medida da pena, elegendo uma teleologia essencialmente preventiva, todavia, temperada pelo princípio da culpa.

57.º Nomeadamente, o n.º 2 do citado artigo quadragésimo estabelece que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

58.º Assim, a pena aplicada emerge como draconiana e em distonia com os preceitos invocados.

59.º Até porque as razões preventivas de natureza especial não se alcandoram a níveis de especial exigências, dado o grau de inserção familiar e social do recorrente que é delinquente primário,

60.º Sendo certo que não poderá ser a prevenção geral, dada a sua conformação positiva caracterizada por uma ideia de reiteração da confiança da comunidade nas normas jurídicas violadas, a legitimar a aplicação de sanção tão exagerada.

Termos em que julgando o presente recurso, deverão V. Exas. revogarem a decisão proferida, de acordo com a materialidade fluente das conclusões supra elaboradas.

B... :

a. Para fundamentar factualmente a condenação do arguido e ora recorrente a sentença recorrida deu como provados factos que, em face da prova produzida, não deveriam nem poderiam ter sido dados como provados e deixou de dar como provados factos que, em face da prova produzida, deveriam ter sido dados como provados, incorrendo assim e desde logo a sentença recorrida em erro no julgamento da matéria de facto e em violação do princípio in dúbio pro reo, corolário do princípio da presunção de inocência previsto no art. 32.º, n.º 2, da Constituição, ao nível do princípio da livre apreciação da prova previsto no art. 127.º do Código de Processo Penal, e que o enforma e limita.

b. Efetivamente, não se fez prova bastante – beyond any reasonable doubt – dos factos 3, 25, 26, 27 «destinado a alcançar o referido propósito», 35 «para que os mesmos procedessem a uma limpeza geral da viatura e à reparação de uma anomalia então detetada a partir da presença de água no seu interior, bem como à reparação do exterior», 36, 37, 38, 39 «em ação de campanha política», 41, 44, 45, 46, 47 e 48; e fez-se prova bastante – emergindo, pelo menos, a dúvida sobre a sua verificação, o que, à luz do aludido princípio in dúbio pro reo, impõe que se deem tais factos como verificados – dos factos 5 e 6 dos factos não provados e dos factos de que «A pintura do autocarro X [...] iria ser sempre e de qualquer modo feita para descaracterização do autocarro da simbologia dos SM ....» e «Querendo o adjudicatário arguido B... colocar outra cor, foi-lhe solicitado que ainda custeasse e fornecesse a tinta, como fez, tendo os SM .... ainda economizado o custo da tinta» e que «o arguido B... devolveu aos SM .... os componentes discriminados no auto de apreensão de fls. 140».

c. Quanto ao facto 3, a decisão condenatória recorrida, para dar como provado o facto 3 funda-se na naturalidade dos coarguidos, na militância política no mesmo partido e no facto de se tratarem por tu ao telefone, mas, quanto à naturalidade, a verdade é que o coarguido A... é natural da freguesia de (...) e o coarguido B... , distando tais freguesias entre si mais de 10 Kms. Quanto à militância política, a verdade é que os arguidos são militantes de um partido – sendo o partido mais votado nas últimas eleições legislativas, que é o que maior número de militantes tem – tal como centenas de milhares de portugueses, quanto ao facto de os coarguidos se tratarem por tu ao telefone, tal como a militância política no mesmo partido e a naturalidade de freguesias que distam entre si mais de 10 Kms, tal é manifestamente insuficiente para fundar a asserção plasmada no facto provado 3.

d. Tenha-se ainda em conta, no sentido de tal insuficiência fundamentante da prova do facto 3, que o coarguido A... nasceu em 1937 e o coarguido B... em 1953, existindo uma diferença de 16 anos entre ambos e sendo pois de gerações diferentes.

e. Logo a asserção plasmada no facto 3 exorbita claramente as provas produzidas e invocadas na Sentença recorrida que são insuficientes para que seja dada como assente, pelo que, em obediência aos referidos princípios e norma constitucional, e em remédio do erro de julgamento da matéria de facto em que o Meritíssimo Tribunal a quo incorreu, deve extirpar-se da matéria de facto o facto provado 3.

f. Quanto aos factos provado 41 e não provado 6, dizendo respeito ao mesmo recorte histórico-factual atinente ao valor das peças entregues com a viatura, e sendo um o reverso do outro, deverão se tratados conjuntamente.

g. Ora, efetivamente, não se vislumbra nos autos prova alguma de que o valor dos objetos fosse o descrito no facto 41, bem ao contrário, assoma da prova produzida em julgamento, que tais peças não tinham valor mesmo enquanto sucata, que ainda os SM .... teriam que pagar para se verem livres delas, tendo por isso valor negativo, e que foram postas dentro do autocarro entregue para os SM .... se verem livres delas, tal resultando do depoimento da testemunha H... , prestado na sessão da audiência de julgamento em 05/11/2015 e gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, com início às 11.45.08 e fim às 12.41:24, designadamente do minuto 26`51 ao minuto 34`08 do ficheiro áudio, do

h. Pela sua vetustez e pela inexistência no país de viaturas onde pudessem ser aplicadas, essas peças não tinham valor nem como sucata, e os SM .... ainda teriam que pagar para se verem livres delas, tendo valor negativo, pelo que, se foram postas dentro do autocarro entregue foi para os SM .... se verem livres delas.

i. Por conseguinte, em obediência aos referidos princípios e norma constitucional de apreciação da prova e que entretece e limita o princípio da livre apreciação da prova, devia, como deve agora julgar-se, dar como não provado o facto provado 41 e como provado o facto não provado 6.

j. Já quanto aos factos provados 35 «para que os mesmos procedessem a uma limpeza geral da viatura e à reparação de uma anomalia detetada a partir da presença de água no seu interior, bem como à reparação do exterior», 36, 37, 38, 39 «em ação de campanha política» e aos factos de que «A pintura do autocarro X [...] iria ser sempre e de qualquer modo feita para descaracterização do autocarro da simbologia dos SM ....» e «Querendo o adjudicatário arguido B... colocar outra cor, foi-lhe solicitado que ainda custeasse e fornecesse a tinta, como fez, tendo os SM ....» ainda economizado o custo da tinta», não se vislumbra onde o Meritíssimo tribunal a quo recolheu provas para dar como provados os factos que deu como provados.

k. De facto, de todos os depoimentos das testemunhas de acusação, designadamente, E... , F... , G... , C... , H... , I... , prestados na sessão da audiência de julgamento de 05.11.2015, gravados no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, respetivamente, das 10:06:11 às 10:24:19, das 10:24:21 às 10:52:45, das 10:52:46 às 11:08:46, das 11:08:47 às 11:36:37, das 11:45:09 às 12:41:24 e das 12:42:25 às 13:01:17, ou do depoimento das testemunhas J... e D... , prestados na sessão da audiência de julgamento de 11.11.2015, gravados no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, respetivamente, das 09:49:09 às 10:05:39 e das 10:06:08 às 10:31:40, nada resultou, com conhecimento direto das testemunhas, no sentido de se poder dar como provados os factos 35 «para que os mesmos procedessem a uma limpeza geral da viatura e à reparação de uma anomalia então detetada a partir da presença de água no seu interior, bem como à reparação do exterior», 36, 37, 38, 39 «em ação de campanha política».

l. Efetivamente, nada se apurou relativamente a uma limpeza geral da viatura ordenada pelo coarguido A... e efetuada pelos SM .... ou que o coarguido B... a tivesse pedido ou tenha acedido a receber a limpeza geral da viatura.

m. E também nada se apurou relativamente à natureza da entrada e origem de entrada de água no autocarro, qual fosse a anomalia com tal efeito ou se algum vidro aberto ou uma borracha vedante fora do lugar e que tivesse apenas que ser colocada no sítio, nem que tal demandasse qualquer reparação digna desse nome, ou que o coarguido A... a tivesse ordenado ou que o coarguido B... a tivesse solicitado ou acedido a recebê-la.

n. E também nada se apurou quanto à natureza do evento referido no facto provado 39, fosse de campanha política, fosse recreativa ou de sessão fotográfica por um percurso em (...), ou consequentemente à conotação e intenção política da colocação da faixa de cor no autocarro referida no facto provado 38.

o. Pelo contrário, resultou dos depoimentos das testemunhas J... e D... , prestados na sessão da audiência de julgamento de 11.11.2015, gravados no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, respetivamente, das 09:49:09 às 10:05:39 e das 10:06:08 às 10:31:40, que o autocarro sempre teria de ser descaracterizado da sua simbologia dos SM .... incluindo a faixa de cor distintiva que possuía e que, querendo o adjudicatário arguido B... colocar outra cor, que não a que seria posta no autocarro, foi-lhe solicitado que ainda custeasse e fornecesse a tinta, como fez, tendo os SM .... ainda economizado o custo da tinta.

p. Como assim, à luz dos princípios e norma constitucional referidos em a) que enformam e entretecem o princípio da livre apreciação da prova, e por forma a remediar o erro de julgamento em que o Meritíssimo Tribunal a quo incorreu, sempre terá que se eliminar da matéria de facto os factos provados 35 «para que os mesmos procedessem a uma limpeza geral da viatura e à reparação de uma anomalia então detetada a partir da presença de água no seu interior, bem como à reparação exterior», 36, 37, 38, 39 «em ação de campanha política» e dar antes como provados os factos de que «A pintura do autocarro X [...] iria ser sempre e de qualquer modo feita para descaracterização do autocarro da simbologia dos SM ....» e «Querendo o adjudicatário arguido B... colocar outra cor, foi-lhe solicitado que ainda custeasse e fornecesse a tinta, como fez, tendo os SM .... ainda economizado o custo da tinta».

q. Quanto aos factos provados em 25, 26, 27 «destinado a alcançar o referido propósito», 44, 45, 46, 47 e 48 e ao facto não provado 5, os factos dados como provados foram-no sem qualquer prova que os sustente, de que resulta que o arguido A... , sem qualquer móbil egoístico mas com espírito altruístico, sabia que estava a beneficiar e queria beneficiar o coarguido ora recorrente B... , conduzindo o processo de abate do autocarro para o entregar ao coarguido B... , bem como os elementos correspondentes ao tipo subjetivo de ilícito recobridora factualidade típica objetiva do crime em apreço.

r. Bem se sabe que tais factualidades atinentes aos elementos intelectuais e volitivos e às intenções psicológicas se pode extrair e extraem as mais das vezes por inferência da factualidade objetiva com apelo ao normal decurso dos acontecimentos e às regras da experiência comum, mas, neste concreto caso é a factualidade objetiva, o normal decurso dos acontecimentos e as regras da experiência comum que se opõem a dar como comprovados tais factualidades dadas como provadas nos factos 25, 26 e 27 e 44, 45, 46, 47 e 48.

s. Efetivamente nos Serviços dos SM ...., em todos os seus funcionários e agentes perpassava e sempre perpassou a ideia e a prática de que os cadernos de encargos dos procedimentos de adjudicação de veículos em fim de vida não eram para cumprir em todo o seu rigor e que a cláusula que impunha o levantamento em certo prazo sob pena de perda do veículo adjudicado a favor dos SM ...., mais que letra morta, era desconhecida.

t. Bem como a ideia e convicção de que o arguido e ora recorrente B... tinha um crédito de 3.000,00 € a haver dos SM .... ou a que lhe fosse entregue um autocarro decorrente de ter pago tal quantia no anterior procedimento concursal a que concorreu e de nunca lhe ter sido entregue um autocarro.

u. O que decorre do depoimento da testemunha C... , prestado na sessão da audiência de julgamento de 05.11.2015, gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, das 11:08:48 às 11:36:37, do depoimento da testemunha H... , prestado na sessão da audiência de julgamento de 05.11.2015, gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, das 11:45:09 às 12:41:24, e do depoimento da testemunha J... , prestado na sessão da audiência de julgamento de 11.11.2015, gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, das 09:49:09 às 10:05:39.

v. Efetivamente, neste circunstancialismo resultante, tal qual referido em s9 e t), é muito normal e natural, que também os arguidos, tinham a ideia de que os cadernos de encargos e as suas normas, mais que letra morta, eram desconhecidos, e a ideia e convicção de que o arguido e ora recorrente B... tinha um crédito de 3.000,00€ a haver dos SM .... ou a que lhe fosse entregue um autocarro decorrente de ter pago tal quantia no anterior procedimento concursal a que concorreu e de que nunca lhe ter sido entregue um autocarro.

w. Sendo que ressalta a dúvida, provável, resultante de o caderno de encargos não ser enviado aos proponentes e por maioria de razão não ser comunicado e explicado aos proponentes, de que o arguido ora recorrente B... não conhecesse o caderno de encargos e suas normas, não lhe tendo sido comunicada ou explicada a cláusula do artigo 8.º do caderno de encargos nem o seu conteúdo.

x. Como tal, à luz dos princípios e norma constitucional referidos em a) que enformam e entretecem o princípio da livre apreciação da prova, e por foram a remediar o erro de julgamento em que o Meritíssimo Tribunal a quo incorreu, sempre terá que se extirpar da matéria de facto os factos provados 25, 26, 27 «destinado a alcançar o referido propósito», 44, 45, 46, 47 e 48 e dar como provado o facto não provado 5.

y. Quanto ao facto de que «o arguido B... devolveu aos SM .... os componentes discriminados no auto de apreensão de fls. 140», sem conceder quanto à absolvição do arguido e ora recorrente, tal facto sempre se afigurará relevante para efeitos de determinação concreta da medida da pena, já que faz baixar as exigências de prevenção geral (positiva), e, de facto, é o que resulta provado do depoimento da testemunha J... , prestado na sessão da audiência de julgamento de 11.11.2015, gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, das 09:49:09 às 10:05:39, que refere expressamente que as peças foram devolvidas pelo arguido aos SM .....

z. De direito, sempre se dirá que o tipo de crime de peculato p. e p. pelo art. 375.º, n.º 1, do Código Penal é punido unicamente a título doloso, e, por conseguinte, em face da impetrada alteração da matéria de facto que se preconiza, sempre terá o arguido e ora recorrente que ser absolvido, por inexistir dolo em qualquer das suas modalidades.

aa. E, mesmo independentemente da alteração da matéria de facto que se impetra, a verdade é que nenhures na matéria de facto, vem provado que o coarguido e ora recorrente B... conhecia a qualidade de administrador delegado do coarguido A... , sendo que, à luz das normas dos arts. 375.º, n.º 1, 386.º, n.ºs 1, al. d) e 2 e 28.º, n.º 1, e 13.º do Código Penal, também se exige o dolo relativamente ao elemento do tipo de ilícito objetivo da qualidade de funcionário do coautor.

bb. Sendo assim que a sentença recorrida condenatória do arguido e ora recorrente apresenta, neste específico ponto, mais que violação das referidas normas incriminadoras dos arts. 375.º, n.º 1, al. d) e 2 e 28.º, n.º 1, e 13.º do Código Penal, vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, pois, na sequência do que se vem de dizer, inexistindo facto provado respeitante ao dolo relativo à qualidade do agente intraneus, o extraneus age sem dolo sobre tal elemento da ilicitude, e sendo o crime punível apenas a título de dolo, sempre terá o aqui arguido e ora recorrente que ser absolvido.

cc. E, mesmo por não se verificarem os elementos objetivos da factualidade típica do crime de peculato p. e p. pelo art. 375.º, n.º 1, do Código Penal, apropriação ilegítima, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel ou imóvel, pública ou privada, relativamente às peças colocadas no autocarro entregue, à reparação e pintura deste e à pintura do mesmo. Sem prescindir nem conceder,

dd. A verificarem-se os elementos da factualidade típica, a verdade é que o arguido e ora recorrente, enquanto agente extraneus, tinha que ter visto a sua pena especialmente atenuada, por força do disposto nos arts. 28.º, n.ºs 1 e 2 e 72.º e 73.º, n.º 1, a) e b) do Código Penal – cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, anotação ao artigo 28.º, pp. 129.º e ss. -, pelo que, assim, a decisão condenatória recorrida, enferma, neste aspeto, mais do que violação das apontadas normas dos arts. 28.º, n.ºs 1 e 2 e 72.º e 73.º, n.º 1, a) e b) do Código Penal, de vício de omissão de pronúncia sobre questão que devia ter apreciado sancionado de nulidade, nos termos do art. 379.º, n.º 1, c), do Código de processo Penal.

ee. Devendo tal nulidade ser suprida pelo Meritíssimo Tribunal a quo e, se assim não suceder, determinar-se a baixa dos autos ao Meritíssimo Tribunal a quo, para prolação de nova decisão que supra tal nulidade.

ff. Em consequência do apontado regime legal implicador da atenuação especial da pena do aqui arguido e ora recorrente, a pena abstrata aplicável de 1 a 8 anos tem que ser atenuada para um mínimo de 1 mês e um máximo de 5 anos e 3 meses e 10 dias, ex vi arts. 73.º, n.º 1, a) e b) e 41.º, n.º 1, do Código Penal.

gg. Quanto à medida concreta da pena, à luz dos princípios contidos nas normas dos arts. 40.º e 71.º do Código Penal, as exigências de prevenção geral (positiva), que fornecem o ponto abaixo do qual é comunitariamente insuportável a manutenção da confiança na norma violada e abaixo do qual a pena não pode descer, são reduzidas dado o reduzido valor de prejuízo causado e o facto de o arguido ter procedido à entrega aos SM .... das peças colocadas no autocarro, tal como reduzidas são as exigências de prevenção geral positiva, que fornecem o ponto concreto de medida da pena, dados os factos de o arguido e ora recorrente ser primário, se encontrar socialmente inserido e ser um benemérito para a comunidade (v.g. os factos provados 53 a 56 e 58 a 60).

hh. Sendo assim que a pena a aplicar concretamente se deverá aproximar do mínimo, ou seja de um mês de prisão.

ii. Caso em que deverá a mesma ser substituída por multa, nos termos do art. 43.º, n.º 1, á razão, os 30 dias de multa, de 5 euros por dia, perfazendo 150,00 €, dado o facto 57 dos factos provados de que não se extrai rendimento superior ao salário mínimo nacional e o disposto no art. 47.º, n.º 2, ex vi art. 43.º, n.º 1, do Código Penal.

Termos em que

Deve o presente recurso ser julgado procedente e provido, revogando-se a decisão condenatória recorrida, designadamente absolvendo-se o arguido do crime por que em 1.ª instância foi condenado.

4. Por despacho exarado a fls. 884 dos autos foram os recursos admitidos, com efeito suspensivo.

5. O Ministério Público reagiu aos recursos, concluindo:

Pelas razões expendidas, deverá ser negado provimento ao recurso e mantida nos seus precisos termos a douta decisão recorrida.

A sentença encontra-se devidamente fundamentada.

Mostra que foi feita uma rigorosa e precisa apreciação da prova.

Não foi violado o princípio «in dúbio pro reo».

Não enferma de qualquer vício, designadamente o previsto no art. 379.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal.

O tribunal conheceu e pronunciou-se sobre todas as questões que devia apreciar.

Efetuou uma correta subsunção jurídico - penal dos factos.

As penas aplicadas aos arguidos traduzem uma equilibrada e adequada aplicação dos critérios estabelecidos nos arts. 40.º, 41.º, 70.º e 71.º do Código Penal.

Não foram violadas quaisquer normas legais, nomeadamente dos arts. 127.º e 379.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal, 28.º, 40.º, 41.º, 70.º, 71.º, 72.º, 73.º e 375.º do Código Penal e 32.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.

Vossas Excelências, Senhores Desembargadores, negando provimento aos recursos, farão Justiça.

6. Remetido o processo à Relação o Exmo. Procurador-Geral Ajunto emitiu parecer, pronunciando-se sobre o recurso interposto pelo arguido B... , no qual, sufragando a resposta apresentada em 1.ª instância pelo Ministério Público, conclui por não merecer o mesmo provimento.

7. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP, não houve reação.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vitos, teve lugar a audiência, requerida que foi pelo recorrente A... .

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto dos recursos:

Sendo o teor das conclusões que ditam a matéria a apreciar, isto, claro está, sem prejuízo das questões que oficiosamente importe conhecer, no caso em apreço importa decidir se:

Recurso de A... :

- Ocorre «erro de julgamento»;

- Foi violado o princípio in dubio pro reo;

- Falece o elemento subjetivo do crime de peculato;

- Revela-se desadequada, por excessiva, a pena aplicada

Recurso de B... :

- Ocorre «erro de julgamento»;

- Enferma a sentença do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

- Foi violado o princípio in dúbio pro reo;

- Mostra-se errada a qualificação jurídico-penal;

- É nula a sentença enquanto não ponderou a atenuação especial da pena;

- Deveria ter sido a pena objeto de atenuação especial;

- Revela-se desadequada, por excessiva, a pena aplicada.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da sentença recorrida [transcrição parcial]:

A) DOS FACTOS PROVADOS:

 Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:

1. O arguido A... integrou o Conselho de Administração dos Serviços Municipalizados (...) (SM ....):

a. Como vogal, de 01/01/1985 a 09/01/1986;

b. Como presidente, de 10/01/1986 a 31/01/1990;

c. Como vogal e, simultaneamente, administrador-delegado, entre 28/01/2002 e 28/02/2013;

2. Os arguidos conhecem-se entre si;

3. Mantendo relacionamento pessoal desde há muito tempo, decorrente de serem oriundos da mesma zona do país e por desenvolverem atividade política no mesmo partido político;

4. Por deliberação do Conselho de Administração dos Serviços Municipalizados (...) (SM ....) de 18/09/2002 foi iniciado procedimento por consulta prévia para venda de diversos autocarros usados, considerados em fim de vida, mas em condições de circulação, a abater ao imobilizado, tendo sido convidados a apresentar proposta diversas pessoas coletivas e o arguido B... ;

5. Na proposta que esteve na origem do procedimento era indicado que, caso o procedimento ficasse deserto, deveriam as viaturas ser vendidas como sucata, mas retirando-se-lhes previamente peças que servissem a outras da mesma marca que permanecessem em circulação;

6.Nos termos do artigo 5.º do Caderno de Encargos aprovado para o procedimento, as viaturas deveriam “ser levantadas e retiradas das instalações dos Serviços Municipalizados (...) no prazo máximo de 15 (quinze) dias (seguidos) contados da data de adjudicação, interferindo o pessoal dos serviços municipalizados apenas nas operações de conferência”;

7. Dispondo-se, no seu artigo 8.º, que o incumprimento desse prazo tinha como consequência que as viaturas adjudicadas ficariam “propriedade dos Serviços Municipalizados (...) , revertendo também integralmente para estes Serviços Municipalizados todos os pagamentos efetuados”;

8. O arguido B... apresentou a única proposta para aquisição de 3 (três) das viaturas, correspondentes às n.ºs 61, 62 e 64 da lista constante do anúncio do procedimento;

9. Pelo valor unitário de € 3.000,00;

10. A pagar faseadamente, à razão de uma por mês a partir de 15/11/2002;

11. Esta proposta veio a ser aceite;

12. Sendo-lhe adjudicada a venda nessas condições, por deliberação do Conselho de Administração dos Serviços Municipalizados (...) (SM ....) de 23/10/2002, posteriormente homologada pelo executivo autárquico e comunicada por via postal a 28/10/2002;

13. O arguido B... , em 15/01/2003, veio a proceder ao pagamento de € 3.000,00, referente a uma das viaturas;

14. Sendo-lhe consignada aquela com a matrícula W [...];

15.O arguido B... não se apresentou no local de aparcamento próprio dos Serviços Municipalizados (...) (SM ....) para o efeito de aquele autocarro lhe ser entregue no prazo indicado no caderno de encargos;

16. O arguido B... pretendia usar as viaturas que se havia proposto adquirir na atividade comercial que então desenvolvia;

17. A qual veio a sofrer decréscimo acentuado;

18. Razão do seu ulterior desinteresse;

19. No ano de 2011, os Serviços Municipalizados (...) (SM ....) iniciaram novo procedimento para abate de diversas viaturas em fim de vida, entre as quais aquela com a matrícula X [...];

20. Nos termos da proposta constante de fls. 331, cujo teor aqui se dá como integralmente reproduzido, tratava-se de autocarro que apresentava problemas mecânicos e de carroçaria, o que, aliado à sua idade – 20 anos – tornava economicamente inviável a sua reparação, devendo, por isso, ser abatida ao efetivo;

21.Tal proposta veio a ser aprovada pelo Conselho de Administração dos Serviços Municipalizados (...) (SM ....), em reunião de 29/12/2011, e por este mandada enviar para homologação pelo órgão autárquico competente;

22. O que veio a suceder por deliberação tomada por unanimidade de 09/01/2012;

23. O veículo com a matrícula X [...] havia recebido, entre 15/11/2011 e 15/12/2011, intervenções de manutenção e reparações;

24. As quais permitiram que transitasse ao serviço regular de transporte público de passageiros até ao dia 30/12/2011;

25. O arguido A... , consciente dessas intervenções e do estado regular de funcionamento da viatura em causa, apesar de outras anomalias afetarem o seu funcionamento dada a sua idade, viu nela a possibilidade de, depois de formalmente aprovado seu abate e retirada ao imobilizado, beneficiar o arguido B... ;

26. Ciente de nenhum direito lhe dever ser reconhecido perante os Serviços Municipalizados (...) (SM ....) decorrente do anterior procedimento;

27. Dadas as funções executivas que lhe estavam adstritas e a confiança que os outros membros do Conselho de Administração dos Serviços Municipalizados (...) (SM ....) nele depositavam, o arguido A... assumiu a condução do processo destinado a alcançar o referido propósito;

28. Não submetendo o mencionado veículo ao procedimento concursal normal de destinação, como o então seguido para adjudicação de outras três viaturas consideradas também em fim de vida, a que estavam atribuídos os n.ºs 171, 172 e 174;

29. Diligenciando pela atribuição direta do veículo com a matrícula X [...] ao arguido B... ;

30. O arguido A... determinou que o veículo com a matrícula X [...] fosse sujeito a inspeção periódica obrigatória, o que sucedeu em 14/12/2012;

31. Do que foi cobrado aos Serviços Municipalizados (...) (SM ....) a quantia de € 34,29;

32. E fez incluir, colocando previamente no seu interior, os componentes discriminados no auto de apreensão de fls. 140, que aqui se dá como integralmente reproduzido;

33. Que haviam sido retirados de outros veículos antes pertencentes aos Serviços Municipalizados (...) (SM ....) e aos quais por estes fora dado destino através dos procedimentos documentados a fls. 271 a 298, que aqui se dão como integralmente reproduzidas, com as respetivas matrículas canceladas;

34. O arguido A... tratou das diligências destinadas a formalizar a transferência de propriedade, solicitando a um administrativo que colhesse a assinatura da diretora-delegada C... e, depois, lhe entregasse o impresso para o efeito de o fazer chegar ao arguido B... , o que veio a suceder;

35. O arguido B... , deslocou-se às instalações dos Serviços Municipalizados (...) (SM ....) em 17 de Janeiro de 2013, acompanhado de um motorista, para que os mesmos procedessem a uma limpeza geral da viatura e à reparação de uma anomalia então detetada a partir da presença de água no seu interior, bem como à reparação do exterior;

36. O arguido A... determinou que, previamente à sua entrega ao arguido B... , as oficinas dos Serviços Municipalizados (...) (SM ....) procedessem a uma limpeza geral da viatura;

37. E à reparação de uma anomalia então detetada a partir da presença de água no seu interior;

38. Bem como à reparação do exterior, nomeadamente, em matéria de pintura, com a colocação de uma faixa em cor adequada para sua utilização em ações de campanha política;

39.O autocarro com a matrícula X [...] veio a ser utilizado, por determinação do arguido B... , no dia 10 de Janeiro de 2013, em (...), em ação de campanha política;

40. O autocarro com a matrícula X [...] tinha, então, o valor que, calculado segundo os parâmetros utilizados pelos Serviços Municipalizados (...) (SM ....) para os procedimentos de abate, podia ascender a € 1.500,09;

41. As peças supra identificadas tinham os valores de:

a. Pára-brisas da viatura n.º 171 – € 726,00 (c/ IVA a 21%);

b. Pára-brisas da viatura n.º 172 – € 871,20 (c/ IVA a 21%);

c.2 Pára-choques traseiros para autocarro – € 492,00 (c/ IVA a 23%);

d.1 Pára-choques da frente para autocarro – € 307,50 (c/ IVA a 23%);

e.1 Borracha vedante de pára-brisas para autocarro – € 98,40 (c/ IVA a 23%);

f.1 Porta traseira com vidro para autocarro – € 430,50 (c/ IVA a 23%);

g. 2 Portas traseiras sem vidro para autocarro – € 738,00 (c/ IVA a 23%); e

h. 1 Porta da frente sem vidro para autocarro – € 369,00 (c/ IVA a 23%);

42. Em procedimento realizado pelos Serviços Municipalizados (...) (SM ....) para venda de um veículo abatido ao efetivo, de características semelhantes, que tomou o n.º 1262/2012, concretizado em período localizado temporalmente perto da atribuição do veículo de matrícula X [...] ao arguido B... , foi adjudicada a venda da viatura n.º 176, com a matrícula Z [...], por € 2.290,00;

43. Em Janeiro de 2012, no âmbito do procedimento n.º AD/1234/2011, foi adjudicada a venda de outras viaturas de características semelhantes, por € 2.250,00 (n.º 171, de matrícula Y [...], e n.º 172, de matrícula K [...]) e € 2.100,00 (n.º 174, de matrícula X [...]);

44. Os arguidos A... e B... sabiam que, em 2012/2013, a este último não era reconhecido qualquer direito ao veículo com a matrícula X [...], nem às peças de substituição que no seu interior foram colocadas;

45. Os arguidos A... e B... sabiam que tais bens pertenciam aos Serviços Municipalizados (...) (SM ....);

46. Os arguidos agiram em comunhão de esforços e intenções, visando subtrair aqueles bens ao domínio do município de (...), a quem pertenciam;

47. Agiram ainda, conjunta e concertadamente, no sentido de entregar ao arguido B... um veículo em condições de circulação que não seriam proporcionadas a terceiros;

48 Os arguidos atuaram livre e conscientemente, sabendo que cometiam atos qualificados como crime pela lei penal;

49. O arguido A... não tem inscrita no seu registo criminal qualquer condenação;

50. Encontra-se aposentado da profissão de industrial;

51. É casado;

52. Exerce o cargo de presidente da Junta de Freguesia de (...) , em (...);

53. O arguido B... não tem inscrita no seu registo criminal qualquer condenação;

54. É divorciado;

55.Tem a profissão de arquiteto, que exerce em uma sociedade da qual é sócio;

56.Tem três filhas maiores de idade;

57. Obtém, na sua atividade profissional, rendimento não concretamente determinado, superior ao salário mínimo nacional;

58.É reputado, no seu círculo de convívio e de relações pessoais, como pessoa séria, honesta e entregue à participação cívica;

59. Integra os corpos diretivos dos Bombeiros Voluntários de (...);

60. Participa na Casa do Povo e na Santa Casa da Misericórdia de (...). 


*

B. DOS FACTOS NÃO PROVADOS:

Não se provaram os seguintes factos:

1. Em 2002, os arguidos acordaram entre si que as viaturas seriam entregues em condições de circulação integral, reacondicionadas nas oficinas dos SM .... e após sujeição a inspeção periódica obrigatória;

2. Para além disso, trataria o arguido A... de providenciar pela atribuição de peças de substituição retiradas de outros veículos semelhantes, propriedade dos serviços municipalizados;

3. O arguido B... passou a, perante os Serviços Municipalizados (...) (SM ....), na pessoa do arguido A... , manifestar a pretensão de lhe ser devolvido o valor entregue, quer diretamente, quer por via da venda a terceiros, por aqueles serviços, do autocarro atribuído na sequência do pagamento efetuado;

4. O arguido A... insistiu junto do arguido B... para ser ultrapassada a dificuldade criada pela posição assumida por este; 

5. A cláusula do artigo 8.º do caderno de encargos não foi comunicada ou explicada no seu conteúdo ao arguido B... ;

6. As peças foram postas dentro do autocarro entregue para os SM .... se desfazerem delas, tratando-se de peças sem valor mesmo enquanto sucata;

7. Foi solicitado ao arguido B... que custeasse e fornecesse a tinta, como fez;

Não se provaram outros factos com relevo para a decisão da causa.


*

C. DA MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:

(….)

3. Apreciação

[Recurso de A... e de B... ]

a. Da impugnação da matéria de facto

Insurgem-se os recorrentes contra o acervo factual que vem dado por assente, invocando «erro de julgamento», o primeiro ( A... ) quanto aos itens 3., 41., 44., 46., 47., 48. (factos provados) e 6. (não provados), identificando o segundo ( B... ) como incorretamente julgados os factos vertidos em 3., 25., 26., 27., 35., 36., 37., 38., 39., 41., 44., 45., 46., 47. e 48. (factos provados) 5. e 6. (não provados), defendendo, por outro lado, deverem passar a integrar os factos provados: (i) «A pintura do autocarro X [...] iria ser sempre de que qualquer modo feita para descaracterização do autocarro da simbologia dos SM ....»; (ii) «Querendo o adjudicatário arguido B... colocar outra cor, foi-lhe solicitado que ainda custeasse e fornecesse a tinta, como fez, tendo os SM .... ainda economizado o custo da tinta»; (iii) «O arguido B... devolveu aos SM .... os componentes discriminados no auto de apreensão de fls. 140».

Coincidindo os recorrentes em vários itens, iremos encarar num primeiro momento os que, respeitando à materialidade objetiva, são impugnados por ambos, incidindo após sobre aqueles que, versando sobre a mesma, mereceram apenas a reação de um deles, relegando para o final os factos que pertinam ao tipo subjetivo, contra os quais os dois se insurgem.

Tendo sido documentadas, através de gravação, as declarações prestadas oralmente na audiência de discussão e julgamento pode, efetivamente, este tribunal conhecer de facto [cf. artigos 363.º e 428.º do CPP], na vertente alargada, isto é para além do que resulta do texto da decisão recorrida, por si, ou conjugada com as regras da experiência comum, posto que se mostrem cumpridos os ónus previstos no artigo 412.º do CPP.

E porque assim é, com vista a evitar, a cada passo, o retorno às linhas mestras – que não temos dúvida – ditam os parâmetros e limites da sindicância/conhecimento da matéria de facto, impõe-se deixar expressas algumas considerações de âmbito geral.

Assim:

1.De harmonia com o n.º 3 do citado preceito, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente especificar:

a. Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b. As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e, eventualmente

c. As provas que devem ser renovadas [destaques nossos], prescrevendo, por seu turno, o n.º 4 [artigo 412.º do CPP] que «Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação».

2. O nível de exigência do recurso em sede de matéria de facto, reforçado com a Reforma de 2007, tem de ser encarado à luz do entendimento, sistematicamente afirmado pelos tribunais superiores, de que os recursos constituem remédios jurídicos destinados a corrigir erros de julgamento, não configurando, como tal, o recurso da matéria de facto para a Relação um novo julgamento em que este tribunal aprecia toda a prova produzida na 1.ª instância como se o julgamento ali realizado não existisse – [cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 15.12.2005, 09.03.2006, 04.01.2007, proferidos respetivamente nos procs. n.º 05P2951, n.º 06P461, n.º 4093/06 – 3.ª];

3. «A especificação dos “concretos pontos de facto” só se mostra cumprida com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida … que considera incorretamente julgado, sendo insuficiente a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença», sendo que «A exigência legal de especificação das “concretas provas” só se queda satisfeita com a indicação do conteúdo específico do meio de prova» - [cf. acórdão do TRC de 22.10.2008, proferido no proc. n.º 1121/03.3TACBR.C1].

Significa, pois, que « … o labor do tribunal de 2.ª Instância num recurso da matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (…), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (…) nos pontos incorretamente julgados, segundo o recorrente, e a partir das provas que, no seu entender, impõem decisão diversa da recorrida» [cf. acórdão do STJ de 24.10.2002, proc. n.º 2124/2] – (destaque nosso), aspeto que não se confunde com a eventualidade de uma outra aproximação à prova, pois caso a mesma consinta duas ou mais decisões de facto e o julgador, fundamentadamente, optar por uma delas em detrimento das outras, a decisão que proferir sobre a matéria de facto é, em princípio, inatacável.

4. A não observância nem nas conclusões nem na correspondente motivação, em toda a sua extensão, dos ónus de impugnação inviabiliza o convite ao aperfeiçoamento. Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça tem-se vindo a pronunciar no sentido de que o seu não cumprimento não justifica o convite em referência uma vez que só se pode corrigir o que está mal cumprido e não o que se tem por incumprido – [cf., entre outros, os acórdãos de 17.02.2005 (proc. n.º 05P058), 09.03.2006 (proc. n.º 06P461), 28.06.2006 (proc. n.º 06P1940), 04.10.2006 (proc. n.º 812/06 – 3.ª), 04.01.2007 (proc. n.º 4093/06 – 3.ª e de 10.01.2007 (proc. n.º 3518/06. – 3.ª)], solução que o Tribunal Constitucional já considerou não violar o direito ao recurso, como decidiu no acórdão n.º 259/02, de 18.06.2002 [DR II Série, de 13.12.2002], posição retomada no acórdão n.º 140/04 [DR II Série, de 17.04.2004].

Isto dito, vejamos a impugnação.

No que concerne ao ponto:

(i) 3. dos factos provados, diz o recorrente A... : «O Mmo. Juiz a quo usa, para fundamentar a respetiva prova, a naturalidade do recorrente e do seu coarguido, a mesma militância política, e o facto de, em conversas telefónicas se tutearem», aspetos que – aduz – seriam insuficientes para «tão assertiva conclusão». E isto porque: os mesmos só partilhariam o Concelho, sendo de freguesias distintas, cujas sedes distam cerca de 10 Kms uma da outra; integrariam diferentes gerações; a militância no mesmo partido político ocorreria num dos maiores partidos nacionais (acarretando, assim, a irrelevância da circunstância); o “tratamento por tu” não encerraria a magnitude da ilação retirada; as escutas telefónicas seriam bem elucidativas de que as conversas entre ambos se teriam quedado pela questão objeto dos autos.

Donde, conclui: «O que deixa transparecer que o relacionamento entre ambos, não se alcandorava à dimensão constante do facto cujo julgamento se reponta de erróneo».

Idêntica argumentação sustenta a pretensão de B... no sentido de ver extirpada da matéria de facto o dito ponto 3.

Eximindo-se, assim, os recorrentes de indicar a concreta prova que impõe decisão diversa da recorrida, antes evidenciando a inconsistência da convicção do tribunal para, embora, com recurso a aspetos objetivos que não contestam [tais como o relacionamento pessoal entre ambos; a circunstância de serem oriundos da mesma zona do país; o facto de desenvolverem atividade política no mesmo partido e o tratamento resultante do teor da transcrição das interceções telefónicas] dar por assentes os factos.

É quanto basta para manter inalterado o dito ponto, relativamente ao qual sempre se dirá revelar-se a fundamentação suficientemente esclarecedora, sobretudo se encarada à luz das regras da experiência comum, não se detetando qualquer violação ao princípio da presunção de inocência, designadamente na vertente do pro reo, desde logo por não transparecer, da parte do julgador, qualquer dúvida quanto ao acervo factual em questão, dúvida, essa, que este tribunal de recurso, tendo procedido à audição integral dos registos correspondentes à prova produzida em julgamento e analisando a prova documental a propósito convocada, também não partilha.

(ii) 41. (fatos provados); 6. (não provados).

Em causa está o valor dos objetos descritos no ponto 41., o qual teria sido contrariado pelo depoimento da testemunha H... , na parte em que referiu não possuírem as ditas peças valor, nem mesmo enquanto sucata, o que implicava que os SM .... ainda tivessem de pagar para se verem livres delas, assim se justificando o facto de terem sido colocadas dentro do autocarro entregue.

Deveria, pois, decidir-se pela ausência de valor das peças em questão, o que implicaria que a matéria constante do ponto 6. (não provado) se convertesse em provada.

Argumentação, esta, que, sustentada pelo recorrente A... , é transversal ao recurso de B... , enquanto, igualmente, prossegue o objetivo de, no mesmo sentido, ver alterados os itens em referência.

A semelhante desiderato poder-se-ia, tão só, contrapor o documento de fls. 501/502 (reportando o valor das ditas peças) subscrito pela Presidente do Conselho de Administração dos Serviços Municipalizados (...) , o qual serviu para fundamentar a convicção do julgador, elemento que, desde logo, conduz à afirmação de que a prova agora invocada não impõe decisão diversa da recorrida.

Porém, sempre se dirá que do depoimento de H... apenas se extrai que o por si declarado, no sentido de não atribuir valor aos referidos objetos/peças, decorre do facto destes apenas revestirem utilidade em veículos de idêntica natureza, sendo que – acrescentou - para além do autocarro em questão nos autos, só haveria uma outra viatura com as mesmas características.

Também a testemunha E... , mecânico que desempenhou funções de encarregado geral nas oficinas dos SM ...., se referiu à existência de dois ou três veículos idênticos, então, em circulação.

Significa, portanto, que as ditas peças sempre se revestiam de valor de utilização, mais que não fosse por poderem ser utilizadas no autocarro em questão (matrícula X [...]), pertencente aos SM ...., facto não contrariado pela prova convocada pelos recorrentes.

Resultando, ainda nesta parte, destituído de fundamento o apelo ao in dúbio pro reo, porque dúvida não se colocou ao julgador, nem se vê que assim devesse ter sido, são de manter inalterados os pontos (enquanto verso e reverso de uma mesma realidade) em referência.

(iii) 25., 26. e 27., destaca o recorrente B... o segmento «destinado a alcançar o referido propósito», contrapondo «os factos dados como provados foram-no sem qualquer prova que os sustente, de que resulta que o arguido A... , sem qualquer móbil egoístico mas com espírito altruístico, sabia que estava a beneficiar e queria beneficiar o coarguido ora recorrente B... , conduzindo o processo de abate do autocarro para o entregar ao coarguido B... » [cf. ponto q. das conclusões], para concluir: «Bem se sabe que tais factualidades atinentes aos elementos intelectuais e volitivos e às intenções psicológicas se podem extrair e extraem as mais das vezes por inferência da factualidade objetiva com apelo ao normal decurso dos acontecimentos e às regras da experiência comum, mas, neste concreto caso é a factualidade objetiva, o normal decurso dos acontecimentos e as regras da experiência comum que se opõem a dar como comprovadas tias factualidades dadas como provadas nos factos 25, 26 e 27 …».

Convoca, para o efeito, segmentos dos depoimentos das testemunhas C... , H... e J... , dos quais decorreria que (i) Nos Serviços dos SM ...., em todos os seus funcionários e agentes perpassava e sempre perpassou a ideia e a prática de que os cadernos de encargos dos procedimentos de adjudicação de veículos em fim de vida não eram para cumprir em todo o seu rigor e que a cláusula que impunha o levantamento em certo prazo sob pena de perda do veículo adjudicado a favor dos SM ...., mais que letra morta, era desconhecida; (ii) O recorrente « B... tinha um crédito de 3.000,00€ a haver dos SM .... ou a que lhe fosse entregue um autocarro decorrente de ter pago tal quantia no anterior procedimento concursal a que concorreu e de nunca lhe ter sido entregue um autocarro».

Ora, tendo este tribunal procedido à audição integral do depoimento das referidas testemunhas em momento algum transparecem semelhantes ideias e práticas.

Com efeito, relativamente aos cadernos de encargos a testemunha H... limitou-se a referir que adotam, por regra, o mesmo modelo, sem, contudo, serem todos iguais e, como tal, revelou não se conseguir, no caso concreto, recordar do prazo para o levantamento do veículo em questão.

Já a testemunha C... demonstrou não desconhecer a inclusão nos cadernos de encargos de cláusulas sobre as consequências do incumprimento do prazo de levantamento das viaturas – o qual nem sempre coincidia -adiantando que casos haviam em que, de acordo com as mesmas, os veículos «revertiam a favor dos serviços».

Finalmente a testemunha J... sobre os cadernos de encargos, concretamente no que tange a constituírem letra morta no seio dos serviços, nada nesse sentido declarou, revelando, tão só, ter conhecimento da respetiva existência e de se mostrarem sempre disponíveis para consulta.

Por outro lado, também a propósito da ideia generalizada nos SM .... da existência de um crédito no valor de € 3.000,00 por parte do recorrente B... sobre os serviços, destacam-se as seguintes passagens do depoimento de H... : Não sei se tinha um crédito ou não; mas pagou e não recebeu; A compensação veio através de uma decisão do administrador delegado [arguido A... ] que entendeu, por decisão própria, que havia um crédito a favor do arguido B... e entendeu compensá-lo.

Do depoimento de J... não resulta qualquer convencimento seu ou dos serviços no sentido do alegado crédito do arguido B... .

Com outra proximidade à tese do recorrente surgiram alguns segmentos do depoimento de C... : A viatura não foi incluída para venda. Foi atribuída ao arguido B... para compensação (tinha um crédito) por ordem do presidente; Entendi essa entrega como a entrega que nunca tinha sido feita de uma viatura paga; Eu entendi que havia uma dívida para com o arguido que pagou e não recebeu a viatura.

Porém, a propósito deste último depoimento, não se deixa de realçar a seguinte passagem (fiel ao que resulta do registo de prova) da fundamentação de facto: « C... , que à data desempenhava as funções de chefe de divisão dos serviços financeiros, em depoimento que se mostrou assertivo e coerente, não obstante a relação de amizade com o coarguido A... por si mencionada, revelou conhecimento direto do primitivo procedimento de adjudicação e da ulterior entrega do veículo ao coarguido B... , afirmando que a ordem dessa entrega proveio do outro arguido, embora, procurando justifica-la com a circunstância de ele não ter levantado o veículo que havia pago anos antes, contudo, acrescentando que, para alienar o veículo não foi feito qualquer procedimento de consultas para propostas, como teria de suceder, sequer procedimento de “agente direto”.

E, ao invés do que afirma o recorrente, está muito longe de ser normal e natural que os arguidos tivessem a ideia de que os cadernos de encargos, com as respetivas normas, mais do que letra morta, eram ignorados, bem como a convicção de que o arguido e ora recorrente B... tinha um crédito de 3.000,00 € a haver dos SM .... ou a que lhe fosse entregue um autocarro decorrente de ter pago tal quantia em anterior procedimento concursal a que foi opositor sem que nunca lhe tenha sido entregue um autocarro (cf. ponto v. das conclusões).

Com efeito, a natureza das funções exercidas – entre as quais de presidente e administrador delegado - ao longo de muitos anos pelo arguido A... nos SM ...., com as inerentes responsabilidades, não são de modo algum consentâneas com o desconhecimento do caderno de encargos respeitante ao procedimento concursal a que se reportam os factos – cuja cláusula em questão, frequentemente, assumia idêntico teor – menos, ainda, com a ideia (reportada à cláusula) de que estando lá, era como se não estivesse. O mesmo se diga relativamente ao coarguido B... , não sendo de admitir que enquanto concorrente desconhece-se o respetivo caderno de encargos e logo a dita cláusula 8.ª, cujo conteúdo (cf. ponto 7. dos factos provados), pela clareza que encerra, não consente a mínima reserva de interpretação, menos ainda se se atentar na formação do recorrente (arquiteto e empresário), sendo certo que não se suscitou no espirito do julgador qualquer dúvida séria sobre o conhecimento da cláusula em questão pelo ora recorrente, pois que repassa do depoimento das testemunhas C... , enquanto referiu: Os cadernos de encargos eram enviados a todas as entidades proponentes, por mail, por carta e estavam disponíveis para consulta e D... quando disse: Os cadernos de encargos eram feitos pela parte técnica e ficavam no processo. Toda a gente ia consultar. Quando era feita a consulta eram enviados os cadernos de encargos, ser o caderno de encargos (em procedimentos concursais) levado ao conhecimento dos concorrentes, como, aliás, não poderia deixar de ser.

Impõe-se, pois, concluir não impor, sequer consentir, a prova convocada pelo recorrente qualquer alteração aos pontos em análise.

(iv) 5. (não provado) do que se vem de dizer, tanto mais que o recorrente B... não indica outra prova, para além da que já foi objeto de análise no ponto que antecede relativamente à comunicação e à desnecessidade de explicação (pela singeleza que a cláusula encerrava), que imponha decisão diversa da recorrida, conserva-se inalterado o ponto em referência.

(v) 35., 36., 37., 38. 39. (factos provados) relativamente aos quais, segundo o recorrente B... , em crise estariam os segmentos: «para que os mesmos procedessem a uma limpeza geral da viatura e à reparação de uma anomalia então detetada a partir da presença de água no seu interior, bem como à reparação do exterior» (ponto 35); «em ação de campanha política» (ponto 39).

No que concerne aos factos inscritos sob os n.ºs 36., 37. e 38. não vindo individualizados os «concretos factos» que pretende impugnar – omissão comum à motivação – inviabilizada se mostra, por inobservância na dimensão legalmente exigível, dos ónus correspondentes, a respetiva sindicância.

Vejamos, pois, quais as concertas provas que impõem quanto aos segmentos acima identificados decisão diversa da recorrida.

A tal propósito satisfaz-se o recorrente com a remissão para os vários depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, fazendo para o efeito referência ao registo integral de cada um, para concluir nada se haver apurado por nenhuma das testemunhas o ter referido (cf. as alíneas j., k, l., m., n.).

Numa situação em que inexiste prova, quer porque as testemunhas não depuseram sobre os factos, quer porque outra, designadamente de natureza documental, não foi produzida, em boa verdade, não pode a impugnação ir mais além.

Contudo, por certo não por acaso, ignora o recorrente a prova documental traduzida no auto de transcrição das escutas telefónicas junto a fls. 1 a 6 que confere toda a sustentação ao impugnado segmento do ponto 35., sendo, por demais elucidativo quanto às anomalias, limpeza e reparação da viatura ( X [...]) nas instalações/serviços dos SM .....

Consertos, esses, a que também se reportaram as testemunhas E... , mecânico, por ocasião dos factos encarregado geral da oficina dos SM ...., quando deu conta das alterações produzidas no autocarro e H... enquanto referiu ter tido, mais tarde, conhecimento de algumas reparações (na oficina dos serviços) realizadas no veículo.

Também quanto à utilização do autocarro ( X [...]), nas circunstâncias de tempo e lugar descritas no ponto 39. (factos provados) sustentou o tribunal a sua convicção no depoimento da testemunha F... , discernindo a propósito «O uso subsequentemente dado pelo arguido B... ao veículo X [...] demonstrou-se com base no depoimento um tanto ou quanto evasivo da testemunha F... , todavia descrevendo a atividade desenvolvida – um passeio pelas freguesias de (...), com tomada de fotografias, de permeio com almoço – admitindo que quem lhe solicitou que conduzisse o autocarro fora a sua irmã, candidata a uma junta de freguesia em lista do PSD, partido político também da militância daquele arguido, o qual entregou à testemunha a quantia de € 20,00, para pagamento do serviço prestado, sendo, também, as ordens transmitidas pelo mesmo.

Independentemente de não se tratar de época oficial de campanha eleitoral, não deixa de se tratar, efetivamente, de ação de campanha política, como salta à vista da própria atividade em causa e o denúncia a cor característica do referido partido político empregue na pintura do autocarro e a qualidade dos intervenientes».

Juízo, este, que partindo efetivamente do depoimento da testemunha F... não deixou – e bem – de se socorrer das presunções naturais, que mais não são do que as ilações que, com base nas regras da experiência comum, se retiram de factos conhecidos e que permitem, à margem da dúvida razoável, assentar no facto desconhecido.

Em suma, mantém-se inalterados os pontos em referência.

(vi) Pugna o recorrente B... pela consideração no acervo factual provado dos seguintes factos: (i) A pintura do autocarro X [...] iria ser sempre de que qualquer modo feita para descaracterização do autocarro da simbologia dos SM ....; (ii) Querendo o adjudicatário arguido B... colocar outra cor, foi-lhe solicitado que ainda custeasse e fornecesse a tinta, como fez, tendo os SM .... ainda economizado o custo da tinta; (iii) O arguido B... devolveu aos SM .... os componentes discriminados no auto de apreensão de fls. 140.

Como impondo a inscrição como provados dos factos identificados em (i) e (ii) indica o depoimento das testemunhas J... e D... enquanto teriam referido que o autocarro sempre necessitaria de ser descaracterizado da sua simbologia dos SM ...., incluindo a faixa de cor distintiva que possuía e que, querendo o adjudicatário arguido B... colocar outra cor, que não a que seria posta no autocarro foi-lhe solicitado que ainda custeasse e fornecesse a tinta, como fez, tendo os SM .... ainda economizado o custo da tinta.

Constituindo a factualidade descrita em (ii) o reverso do facto não provado inscrito no ponto 7. (factos não provados) que não se mostra impugnado, não pode aquela ser sindicada.

No que respeita à sempre necessária pintura do autocarro com vista à descaracterização do veículo o que decorre do depoimento de J... , a trabalhar na secção de aprovisionamento dos SM ...., é precisamente o contrário do afirmado pelo recorrente. Na verdade, tendo referido que por regra é feita uma descaracterização dos veículos removendo o que os possa identificar, esclareceu que, normalmente, a dita descaracterização não passa pela pintura da viatura, não tendo conhecimento de nenhuma situação em que assim tenha sido.

E o mesmo se diga relativamente ao depoimento de D... , o qual quanto à descaracterização das viaturas transmitiu ao tribunal: Tiravam para descaracterizar os autocarros os logotipos; relativamente à pintura, que me lembre, não havia alteração.

Neste contexto, naturalmente que não merece acolhimento a pretendida inclusão da factualidade em questão nos factos provados.

Já quanto à devolução, por parte do arguido B... , aos SM .... dos componentes discriminados no auto de apreensão de fls. 140., o que resulta deste é a sua apreensão por parte da Polícia Judiciária, aspeto corroborado pela testemunha I... (inspetora da PJ) enquanto esclareceu que, quando no decurso da investigação, localizaram a viatura numa antiga serração de (...) encontraram peças soltas dentro do armazém, as quais apuraram ser provenientes de veículos abatidos e pertencerem aos SM ...., e por isso as apreenderam.

Não ocorreu assim a entrega, agora preconizada pelo recorrente, sendo certo que da apreensão já faz eco o ponto 32. (factos provados).

Concluindo nenhum dos pontos acima identificados passa a integrar a matéria de facto provada.

(vii) 44., 45., 46., 47. e 48. (factos provados) em crise, portanto, no essencial, os elementos subjetivos da infração, contra os quais ambos os recorrentes se insurgem.

Na prossecução do fim que visam alcançar retomam, uma vez mais, os depoimentos das testemunhas H... e C... nos segmentos já destacados a propósito da alegada convicção de que o arguido B... era credor dos SM .... por via da quantia paga (de € 3.000,00) por uma viatura ( W [...]) que lhe havia sido adjudicada no âmbito do procedimento concursal, ocorrido cerca de dez anos antes dos factos em análise nos presentes autos (cf. pontos 4., 8., 9., 11., 12., 13., 14. dos factos provados).

Sucede, porém, que ao longo da análise dos factos impugnados, e já conhecidos, tivemos oportunidade, mesmo com apelo aos ditos depoimentos, de exprimir a nossa convicção, a qual convergindo com a do julgador, naturalmente se situa nos antípodas da dos recorrentes.

Com efeito, o convencimento propalado pelos recorrentes não é compatível, desde logo com as funções de presidente e de administrador delegado já, então, exercidas, há vários anos, pelo arguido A... , tão pouco o sendo com a formação do arguido B... , afinal o verdadeiro interessado no concurso, e por conseguinte, nas suas regras!

Tanto mais que quer um, quer outro não podiam ignorar o caderno de encargos respeitante ao primeiro procedimento concursal, mormente as suas cláusulas 5.ª e 8.ª, não passando de sofisma a tese de que aquele não era para levar a sério, mais não constituindo estas do que letra morta.

E se não ignoravam sabiam perfeitamente que nenhum direito ao veículo assistia ao arguido B... , muito menos com base num crédito inexistente.

Circunstância que bem justifica, à margem das regras dos procedimentos concursais, a avocação do processo de atribuição do autocarro a este último por parte do arguido A... . Porquê? A resposta parece óbvia!

Como, a acrescer, não deixa de ser evidente o tratamento de favor no que respeita à disponibilização das peças (com valor de utilização nos termos já supra expostos) e bem assim às reparações introduzidas no veículo, pelos e nos serviços dos SM ...., circunstâncias que encontram toda a justificação na relação de franca proximidade – sobre a qual o Auto de transcrição das interceções telefónicas não deixa margem para dúvida – entre os coarguidos.

Mas, mesmo o depoimento de H... quando diz: Não sei se tinha um crédito ou não; mas pagou e não recebeu; A compensação veio através de uma decisão do administrador delegado [arguido A... ] que entendeu, por decisão própria, que havia um crédito a favor do arguido B... e entendeu compensá-lo, não induz a existência de uma ideia generalizada nos serviços no sentido de ser efetivamente devida uma compensação ao arguido B... . O mesmo se diga relativamente ao depoimento de C... , a saber: A viatura não foi incluída para venda. Foi atribuída ao arguido B... para compensação (tinha um crédito) por ordem do presidente; Entendi essa entrega como a entrega que nunca tinha sido feita de uma viatura paga; Eu entendi que havia uma dívida para com o arguido que pagou e não recebeu a viatura, donde apenas resulta o seu convencimento.

Seja como for, nunca a «convicção» dos arguidos, um pela natureza das funções (de chefia) que há anos vinha exercendo nos SM ...., outro por ter sido opositor no procedimento concursal, realizado cerca de 10 anos, e por via disso haver tomado conhecimento do respetivo caderno de encargos, podia ser outra que não a que vem dada por assente.

É que convicções de semelhante natureza são, por regra, compatíveis com pessoas cujo percurso de vida e formação lhes dificulta um mais aprofundado esclarecimento, o que manifestamente não é o caso dos arguidos.

Partilhamos, por isso, do pensamento do julgador, refletido nas seguintes passagens: A subjetividade presente nos arguidos decorre do próprio circunstancialismo dos eventos e da normalidade da vida social, não sendo plausível que os mesmos, pessoas com larga experiência de vida e relevante atividade política, pudessem desconhecer, quer as normas procedimentais em causa, quer a pertença do veículo X [...] aos SM ...., mais desempenhando o coarguido A... as assinaladas funções, e sendo certo que a censurabilidade penal dos demonstrados comportamentos é do geral conhecimento dos cidadãos, portanto, necessariamente, também, dos arguidos.

Mais uma vez, saliente-se que não é minimamente merecedor de crédito que o arguido B... ignorasse as normas do caderno de encargos respeitantes ao concurso e que uma década mais tarde se achasse, ainda, com direito a haver do estado a restituição do que havia pago, que, aliás, desse montante divergiu em cerca de metade, para menos, tomando apenas o valor do autocarro, ou em cerca de € 2.500,00, para mais, se atendermos à soma deste com aqueloutro das peças, assim pecando ou por defeito ou por excesso a tese do coarguido B... expendida na sua douta contestação».

Permanecem, assim, nos seus precisos termos os pontos de facto em referência.

 [Recurso de B... ]

b .Do vício da alínea a), do n.º 2 do artigo 410.º do CPP

Ainda em sede de sindicância da matéria de facto releva o vício da alínea a), do n.º 2, do artigo 410.º do CPP, invocado pelo recorrente.

Vem o mesmo ancorado na circunstância de não constar do acervo factual menção ao conhecimento da sua parte da qualidade de «funcionário» do coarguido A... .

Surgindo o artigo 28.º do C. Penal como meio de superar os problemas originados «entre a articulação do critério comum de autoria previsto no artigo 26.º e os tipos legais, previstos na Parte Especial do CP, que exigem a verificação de determinadas qualidades ou a titularidade de relações especiais na pessoa do autor para o preenchimento do tipo de ilícito» [cf. Susana Aires de Sousa, “A Autoria nos Crimes Específicos. Algumas Considerações, in RPCC, Ano 15, n.º 3, págs. 355 e ss.], bastando, assim, para que todos sejam puníveis que qualquer dos agentes comparticipantes seja intraneus, naturalmente que tal não dispensa que todos disso tomem consciência [cf. Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Parte Geral, I, Editorial Verbo, 1992, pág. 461; Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, pág. 131; Conceição Ferreira da Cunha, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, pág. 701 e ss].

Pese embora em sede de decisão de facto não lhe venha feita expressa referência, o certo é que a consciência da dita qualidade resulta, inequivocamente, implícita do texto da decisão recorrida, já por via do nível de relacionamento pessoal que os mesmos vinham mantendo; já em função de logo em 2002, aquando do procedimento por consulta prévia para venda de autocarros em fim de vida, no âmbito do qual o ora recorrente foi convidado a apresentar propostas, o coarguido A... exercer, simultaneamente, as funções de vogal e administrador-delegado dos Serviços Municipalizados (...) (SM ....); já em consequência de lhe ter sido comunicada a deliberação do Conselho de Administração dos Serviços Municipalizados (...) da adjudicação da viatura com a matrícula W [...]; já por via de ter sido o coarguido A... , no exercício das funções executivas que lhe estavam adstritas, a conduzir o processo que culminou com a atribuição direta do veículo com a matrícula X [...] ao recorrente; já em função das diligências tendentes a formalizar a transferência de propriedade a seu favor haverem sido desenvolvidas pelo coarguido, o qual lhe fez chegar o impresso próprio; já em consequência do recorrente se ter deslocado às instalações dos SM .... para que os serviços respetivos procedessem conforme descrito sob o ponto 35; já por via de ter sido o coarguido a determinar que previamente à entrega do veículo ao recorrente as oficinas dos SM .... procedessem de acordo o que consignado vem nos pontos 36. e 37 dos factos provados; já, finalmente, em função, de sempre terem agido «em comunhão de esforços e intenções, visando subtrair aqueles bens ao domínio do município de (...), a quem pertenciam», no que atuaram conjunta e concertadamente.

Em suma, são tudo aspetos que, conjugados entre si, não consentem qualquer reserva quanto ao conhecimento efetivo da qualidade de funcionário do intraneus por parte do extraneus, ora recorrente, sendo, portanto, de assentar em que à luz do acervo factual vindo de descrever não ocorria qualquer hipótese (alternativa) do primeiro não revestir a dita qualidade e, bem assim, do segundo a ignorar.

Não enferma, pois, a sentença do invocado vício.

[Recurso de A... e B... ]

c. Da violação da presunção de inocência, na vertente do in dúbio pro reo

Ao longo do respetivo recurso dizem os recorrentes haver o tribunal a quo violado o in dúbio pro reo.

Já aquando da resposta que foi sendo dada a propósito dos factos impugnados se teve oportunidade de contrariar a alegação.

 Com efeito, a violação do pro reo, princípio que respeita à matéria de facto, relevando na apreciação e valoração da prova, só pode ser afirmado quando seguindo o processo decisório evidenciado na motivação da convicção for de concluir que o tribunal tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, « … ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja de forma suficiente quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção … Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual fica afastado o princípio do in dubio pro reo, sendo que tal juízo factual não tem por fundamento uma inversão da prova, ou ónus da prova a cargo do arguido, mas resulta do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, como impõe o art. 355.º n.º 1 do CPP, subordinadas ao princípio do contraditório, conforme art. 32.º n.º 1 da CRP» - [cf. Acórdão do STJ de 14.10.2009, Proc. n.º 101/08.7PAABT.E1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.]

No caso em apreço, seguindo o processo decisório refletido na sentença não se deteta ter sido o julgador invadido por um pingo de dúvida no que respeita ao acervo factual concernente aos recorrentes, dúvida, essa, que este tribunal de recurso, debruçando-se sobre a prova produzida e analisada em sede de audiência de discussão e julgamento, também não tem, cabendo aqui relembrar que «A dúvida é a dúvida que o tribunal teve, não a dúvida que o recorrente acha que, se o tribunal não teve, deveria ter tido» - [cf. Acórdão do STJ de 14.04.2011, Proc. n.º 117/08.3PEFUN.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.]

Dito de modo mais incisivo, da análise e ponderação das provas perante a matéria que vem posta em crise, ficou este tribunal seguro do juízo de convicção, o qual se sufraga, inexistindo margem para qualquer dúvida razoável e, consequentemente, para acionar o princípio do in dubio pro reo que entronca na consagração constitucional do princípio da presunção de inocência [artigo 32.º, n.º 2 da CRP].

Na verdade, sem sofisma, pode dizer-se que perante a evidência da prova, mormente documental, os recursos surgem, no essencial, direcionados ao elemento subjetivo do crime, o qual, sem qualquer realismo - conforme resulta da análise evidenciada em (vii) supra (impugnação da matéria de facto) – quiseram os recorrentes, sem sucesso, questionar.

Em suma, a sentença transparece devidamente sustentada, refletindo a dimensão correta do princípio da livre convicção, procedendo a uma interpretação ajustada das regras da experiência comum, em harmonia, portanto, com o artigo 127.º do CPP, sem que se detete violação do princípio em referência, ademais compatível com juízos de inferência, fundados em presunções naturais.

É, pois, de considerar, na ausência de vício que o impeça, definitivamente fixado, tal como decorre da decisão em crise, o acervo factual.

 [Recurso de A... e B... ]

d. Da qualificação jurídico-penal

Embora ambos os recorrentes questionem a subsunção dos factos ao direito, fazem-no, fundamentalmente, no pressuposto da procedência da impugnação da matéria de facto, concretamente quanto ao afastamento do dolo.

Porém, confirmada que resultou, também nesta vertente, a decisão, não merece censura a qualificação-jurídico penal dos factos, sendo de realçar neste domínio a estranheza, à luz dos factos assentes (cf. os pontos 32. e 33 dos factos provados), do ponto cc) das conclusões de recurso do arguido B... , enquanto pretende colocar em crise a apropriação, como elemento objetivo do ilícito típico, dos bens colocados no interior do veículo.

Argumentação que, sem o mínimo de sustentação, embora, sempre resultaria infrutífera no contexto global da decisão, como há-de convir o recorrente.

[Recurso de B... ]

e. Da omissão de pronúncia/atenuação especial da pena.

Em consequência de uma alegada falta de ponderação (em violação dos n.ºs 1e 2 do artigo 28.º do C. Penal) por parte do julgador da atenuação especial da pena, vem o recorrente arguir a nulidade da sentença (por omissão de pronúncia), pugnando, embora, pela respetiva aplicação por este tribunal – (cf. pontos dd., ee. e ff. das conclusões).

Significa, pois, que caso a omissão de pronúncia se verificasse sempre poderia a mesma ser objeto de sanação na decisão que nos compete proferir.

Vejamos.

Nos termos do artigo 28.º do C. Penal:

1 - Se a ilicitude ou o grau de ilicitude do facto dependerem de certas qualidades ou relações especiais do agente, basta, para tornar aplicável a todos os comparticipantes a pena respetiva, que essas qualidades ou relações se verifiquem em qualquer deles, exceto se outra for a intenção da norma incriminadora.

2 – Sempre que, por efeito da regra prevista no número anterior, resultar para algum dos comparticipantes a aplicação de pena mais grave, pode esta, consideradas as circunstâncias do caso, ser substituída por aquela que teria lugar se tal regra não interviesse.

Enquanto a ressalva do n.º 1 sempre foi conjugada com as características dos crimes de mão própria [cf. Faria Costa, 1983, pág. 171; Figueiredo Dias, 2007, pág. 853…], o n.º 2 confere ao aplicador do direito a faculdade de substituir a pena que resulta para qualquer dos comparticipantes (por força do n.º 1) pela pena mais favorável que lhe seria aplicável se esta norma não interviesse.

A propósito desta válvula de segurança, escreve Pinto de Albuquerque «Havendo autor extraneus e autor intraneus em crime específico impróprio, deve ser aplicada ao autor extraneus, em regra, a moldura penal do crime qualificado que lhe é imputado por se verificar a comunicação da qualidade especial» e mais adiante «Havendo autor extraneus e cúmplice intraneus em crime específico impróprio, deve ser aplicada, em regra, ao autor extraneus a moldura penal do crime não qualificado que lhe seria imputado se não se verificasse a comunicação da qualidade especial (também assim, CAVALEIRO DE FERREIRA, 1992: 467)» e por fim «Havendo autor intraneus e cúmplice extraneus em crime específico impróprio, deve ser aplicada, em regra, ao cúmplice extraneus a moldura penal do crime do crime qualificado, especialmente atenuada».

Estando em causa o crime de peculato, cuja caracterização - em função de se tratar de um crime de abuso de confiança qualificado pela qualidade do agente (cf. n.º 1 do artigo 375.º do C. Penal) - como crime específico impróprio (aquele que, tão só, faz variar a ilicitude do facto, agravando-a ou atenuando-a) não suscita dúvida, impõe-se reconhecer que nem à luz dos ensinamentos do citado Autor (a que o recorrente faz apelo) lhe assiste razão.

Deixando de parte a ressalva da parte final do n.º 1 do artigo 28.º, a qual, manifestamente, não colhe aplicação no caso, a válvula de segurança do n.º 2 não tem o alcance que nela quer ver o recorrente.

Desde logo porque estamos perante um extraneus que decidiu e executou conjuntamente com o intraneus o ilícito típico, sendo que ambos, enquanto detentores do domínio funcional do facto, devem efetivamente ser punidos, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 26.º e 28.º do C. Penal, como coautores, matéria que, aliás, não suscitou a sua reação.

Efetivamente numa situação com semelhante configuração não decorre da lei (sequer se vê que, fora do quadro do artigo 72.º, n.º 1 do C. Penal, possa ser afirmado) um dever de atenuação especial da pena.

E se assim é, não se tratando de um caso de atenuação ope legis, não tinha o tribunal, tal como nas demais situações em que não conclua pela verificação dos pressupostos capazes de conduzir à dita atenuação especial, de o exprimir tanto que nem sequer foi assunto objeto da contestação.

Coisa diferente (embora não diretamente suscitada pelo recorrente) reside em saber se deveria o julgador ter decidido pelo funcionamento da válvula de segurança do n.º 2 do artigo 28.º.

Como escreve Susana Aires de Sousa, “A Autoria nos Crimes Específicos. Algumas Considerações”, in RPCC, Ano 15, n.º 3, pág. 363 e segs., «Na tentativa de evitar soluções injustas como resultado da aplicação do n.º 1 do artigo 28.º, o legislador consagrou um limite a este regime no n.º 2 do mesmo artigo. Este preceito confere ao legislador a possibilidade de substituir a pena que resulta para qualquer dos comparticipantes por via do n.º 1 do artigo 28.º, pela pena mais favorável que lhe seria aplicável se esta norma não interviesse, introduzindo-se deste modo, uma nota de flexibilização do artigo 28.º.

Das atas da Comissão Revisora conclui-se que através do então § 1 do artigo 28º (semelhante ao atual n.º 2) se consagrava uma “válvula de segurança” que permitia ao juiz moderar os efeitos que resultariam da aplicação do artigo 28.º em casos mais chocantes, tendo-se sobretudo discutido casos em que a qualidade agravadora do ilícito se verificava no cúmplice mas não no autor extraneus (…)

Contudo, a propósito do âmbito de aplicação da norma, aduz a Autora «A sua aplicação pelo juiz não é obrigatória e depende de dois pressupostos legais: o primeiro, de cariz mais acentuadamente subjetivo, traduz-se na apreciação pelo julgador das circunstâncias concretas do caso num sentido favorável à substituição; o segundo, de natureza objetiva, estabelece que na ausência do n.º 1 do artigo 28.º, sempre seria aplicável uma pena ao agente mas menos grave. A análise deste último requisito tem revelado uma maior complexidade na doutrina. É assim porque do sentido literal da norma parece resultar que só perante duas penas de gravidade diferente – a substituta e a substituída – e não perante uma pena e uma ausência de pena poderá o juiz travar o funcionamento do n.º 1 do artigo 28.º …

(…)

De qualquer forma, em casos em que não seja possível aplicar a regra do n.º 2 do artigo 28.º por via do seu requisito objetivo, pode o julgador valer-se, na realização da justiça, do artigo 72.º do CP relativo à atenuação especial da pena, caso estejam verificados os seus requisitos, ou ainda ponderar, na determinação concreta da pena, o grau de ilicitude do facto enquanto fator de medida da pena, nos termos do artigo 71.º, n.º 2, alínea a), do CP».

Concordando no essencial com a perspetiva vinda de expor, e porque o recorrente, embora indiretamente, não o deixa de suscitar é chegada a altura de questionar: (i) Deveria, no caso, o tribunal ter feito funcionar a válvula de segurança do n.º 2 do artigo 28.º do C. Penal? (ii) Em qualquer caso justificar-se-ia enveredar pela atenuação especial da pena?

Relativamente à primeira questão se não oferece dúvida a verificação do respetivo pressuposto de natureza objetiva – evidente à luz da mais benéfica moldura penal correspondente ao crime comum (aplicável não fora o disposto no n.º 1 do artigo 28.º do C. Penal), no caso de abuso de confiança –, já quanto ao pressuposto de cariz subjetivo as circunstâncias envolventes são de modo a afastar tal possibilidade.

Na verdade, trata-se de um caso em que, em função de uma atuação que em tudo transparece pensada, concertada, traduzida numa sucessão de atos dos quais o arguido, ora recorrente seria – como foi – o beneficiário, sendo inegável, da sua parte, o domínio funcional do facto, a punição (do extraneus) com a pena prevista para o crime específico não se revela chocante, não beliscando, assim, o sentido de justiça.

O mesmo se diga no que concerne à atenuação especial da pena, cuja aplicação é de excluir pois não se vêm «circunstâncias anteriores, ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena» (artigo 72.º, n.º 1 do C. Penal), sequer – diga-se – cuidou o recorrente de (realisticamente) as identificar.

[Recurso de A... e B... ]

f. Da medida da pena

Na apreciação das penas aplicadas, o ponto de partida e enquadramento geral da tarefa a realizar prende-se com o disposto no art. 40.º do CP, segundo o qual toda a pena tem como finalidade «a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade», não podendo em caso algum a pena ultrapassar a medida da culpa.

Vem a jurisprudência reiteradamente afirmando, seguindo a doutrina de Figueiredo Dias [Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2005, pág. 227 e ss], que, se as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos, e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, então, o processo de determinação da pena concreta a aplicar refletirá, de um modo geral, a seguinte lógica: a partir da moldura penal abstrata procurar-se-á encontrar uma submoldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar”; será dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva que deverão atuar os pontos de vista da reinserção social; quanto à culpa, para além do suporte axiológico-normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar - [cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 24.04.2008 e de 16.10.2008, ambos sumariados in www.stj.pt.].

Isto dito, centremo-nos no caso concreto.

Ao crime corresponde a moldura penal abstrata de prisão de 1 a 8 anos, embora, por força do artigo 16.º, n.ºs 3 e 4 do CPP, com o limite processual de 5 anos.

A propósito, depois de expor os princípios norteadores que regem em matéria de determinação da medida da pena, discerniu o tribunal:

Quanto à prevenção geral positiva ou de integração, importa referir a necessidade crescente de reafirmação do Direito, ponderando, designadamente, a erosão da imagem de isenção e probidade que as entidades estaduais devem ter, bem como o sentimento de impunidade que, frequentes vezes, perpassa, quanto à criminalidade denominada de colarinho branco.

No que respeita à prevenção especial positiva ou de ressocialização (vale por dizer, de reintegração do agente na sociedade), importa ponderar que os arguidos são pessoas socialmente integradas, com um relevante percurso social afastado da criminalidade.

A culpa dos arguidos situa-se em patamar elevado, considerados os comportamentos exigíveis ao cidadão medianamente cumpridor das normas jurídicas, máxime, no que às funções estaduais e património do Estado respeita, para o que todos os cidadãos são chamados a contribuir, sendo o coarguido A... merecedor de acrescida censura, por comparação com o coarguido B... , pela especial função exercida e violação dos deveres à mesma inerentes.

Depõem contra os arguidos as seguintes circunstâncias não integradoras do tipo legal de crime:

- A elevada intensidade do dolo (direto);

Depõem, por outro lado, a favor dos arguidos:

- Mostrarem-se integrados na sociedade;

- Não possuírem antecedentes criminais;

- A moderada gravidade das consequências dos factos, na vertente patrimonial do Estado (sem perder de vista, porém, que o valor patrimonial em causa – o somatório dos valores do autocarro e das peças, € 5.532,69, dá para pagar cerca de 11 (onze) salários mínimos nacionais, ao valor atual – e que os cargos públicos existem para o cidadão servir o Estado, naturalmente, merecendo as devidas honras e retribuições, mas não para o cidadão se servir do Estado)».

Conclui, assim, o tribunal pela adequação das penas de prisão de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses e 2 (dois) anos em relação aos arguidos A... e B... , respetivamente.

Exercício, este, que, ponderando as circunstâncias que havia a ponderar, sopesando-as na sua justa medida, não suscita reparo, desde logo por respeitar o princípio da culpa, revelando-se as penas – no seio da moldura penal correspondente - proporcionais à ilicitude dos factos, constituindo resposta adequada às significativas exigências de prevenção geral cada vez mais visíveis em semelhante tipo de criminalidade, sem desconsiderar, contudo, as reduzidas exigências de prevenção geral positiva relativamente a qualquer dos arguidos.

Sempre se diga, porém, que, diferentemente do que o recorrente B... refere, não ocorreu da sua parte nenhum ato voluntário de reparação do prejuízo, antes a apreensão por parte dos investigadores do veículo e peças em referência, circunstância que, naturalmente, trava a relevância que lhe pretendia ver atribuída.

Em suma, não resultam violadas as normas convocadas por qualquer um dos recorrentes, designadamente os artigos 40.º e 71.º, n.ºs 1 e 2 do C. Penal.

III. Decisão

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente o recurso interposto por cada um dos arguidos, A... e B... .

Condenam-se os arguidos nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UCs.

Coimbra, 26 de Outubro de 2016      

[Processado e revisto pela relatora]

(Maria José Nogueira - relatora)

(Isabel Valongo - adjunta)

(Alberto Mira - presidente da secção)