Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
232/06.8TBMIR-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: TAXA DE JUSTIÇA
REMANESCENTE
DISPENSA
Data do Acordão: 01/29/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JC CÍVEL - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 6 Nº7 RCP, 530 Nº7 CPC
Sumário: A norma constante do nº7 do art. 6º do Regulamento das Custas Processuais deve ser interpretada em termos de ao juiz ser lícito dispensar o pagamento, quer da totalidade, quer de uma fracção ou percentagem do remanescente da taxa de justiça devida a final, pelo facto de o valor da causa exceder o patamar de €275.000, consoante o resultado da ponderação das especificidades da situação concreta (utilidade económica da causa, complexidade do processado e comportamento das partes), iluminada pelos princípios da proporcionalidade e da igualdade.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Está em causa a seguinte decisão:

“Na ação - proposta em 13/09/2006 - foram apresentados quatro articulados – petição inicial (com 76 artigos), contestação (com 82 artigos e pedido de intervenção acessória), réplica (com 93 artigos) e tréplica – e ainda um articulado superveniente, através do qual a autora se limitou a dar conta nos autos do resultado de determinada ação interposta pelo aqui réu contra a aqui autora.

Na contestação a Ré defendeu-se invocando a caducidade da invocação do defeito. Não foi deduzido pedido reconvencional.

Admitido o chamamento a interveniente apresentou o seu articulado ao qual a autora veio responder.

Foi proferido despacho saneador, que relegou para final a apreciação da exceção de caducidade (nesse segmento decisório a ré recorreu e a autora contra alegou, tendo o recurso sido admitido com subida diferida), fixados os factos assentes e elaborada a base instrutória.

Foi produzida prova pericial e apresentado relatório pericial quer a autora quer a ré apresentaram reclamação.

Procedeu-se a audiência final, no decurso da qual foram ouvidas seis testemunhas arroladas pela autora e foram ouvidas sete testemunhas a indicação da ré e duas a requerimento da interveniente, tendo a autora sido ouvida em declarações de parte.

Por sentença proferida neste autos em 27/8/2014 foi julgada improcedente a exceção de caducidade e a Ré “Q (…) S.A.” foi condenada a pagar à A. “M (…) S.A. –” a quantia de € 544,50 (quinhentos e quarenta e quatro euros e cinquenta cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal para os créditos de cariz comercial, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento; a ré “Q (…)S.A.” foi ainda condenada a pagar à demandante “M (…), S.A. ” o montante que vier a ser liquidado em sede de execução de sentença como indemnização pelos prejuízos pela mesma demandante sofridos em consequência dos factos referidos nos pontos 20, 21, 22, 23, 24 e 25 (sendo este último prejuízo entendido como a diferença entre o preço que a demandante pagou pela azeitona inutilizada devido ao ácido acético e o preço que a mesma A. suportou para a reposição de tal azeitona deteriorada, através da aquisição de um novo stock) dos factos assentes da presente sentença.

Em tal sentença foi afirmada a inexistência de má-fé por parte da Ré.

A ré recorreu formulando 113 conclusões e a autora contra alegou.

O Venerando Tribunal da Relação confirmou a decisão recorrida e novamente inconformada recorreu a ré para o STJ, tendo a autora apresentado contra alegações e a revista sido julgada improcedente.

Mais uma vez inconformada com o acórdão proferido pelo STJ veio a ré interpor recurso para fixação de jurisprudência, recurso esse que não foi admitido por decisão sumária do relator que foi objeto de reclamação para a conferência por banda da ré que viu negada a reclamação por acórdão de 05/04/2016.

Nas causas de valor superior a € 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento – artº 6/7 RCP.

Depois da Lei nº 7/2012, o valor da ação deixou de ser o único elemento a considerar para efeitos de fixação da taxa de justiça.

Os critérios de cálculo da taxa de justiça devem pressupor e garantir um mínimo de proporcionalidade entre o valor cobrado ao cidadão que recorre ao sistema público de administração da justiça e o custo/utilidade do serviço que efetivamente lhe foi prestado, motivo por que a lei permite que se dispense a parte do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

No caso, não se indicia que tenha havido mau uso do processo nem má-fé processual, o que denota uma atitude relativamente positiva das partes de cooperação quanto ao processo e sua resolução.

À luz do disposto no art. 530º, nº 7 do CPC afigura-se que a ação revestiu evidente complexidade, o que surge desde logo evidenciado pela circunstância de a ação ter sido proposta em 2006, a audiência final prolongou-se por várias sessões, a matéria de facto é relativamente complexa e as partes não deixaram de defender as respetivas posições até ao STJ, implicando considerável atividade processual.

Por outro lado, dado o valor atribuído à presente ação, o valor remanescente da taxa de justiça assumirá valores muito elevados.

Para além do acórdão nº 421/2013 do Tribunal Constitucional de 15-07-2013 (processo nº 907/2012), também o STJ, no Acórdão de 12-12-2003, proferido no processo nº 1319/12.3TVLSB-B.L1.S1, decidiu que: “A norma constante do nº 7 do art. 6º do RCP deve ser interpretada em termos de ao juiz ser lícito dispensar o pagamento,

quer da totalidade, quer de uma fracção ou percentagem do remanescente da taxa de justiça devida a final, pelo facto de o valor da causa exceder o patamar de € 275.000, consoante o resultado da ponderação das especificidades da situação concreta (utilidade económica da causa, complexidade do processado e comportamento das partes), iluminada pelos princípios da proporcionalidade e da igualdade.” (disponível em www.dgsi.pt).

Não pode esquecer-se que a ação foi favorável à autora em grande medida e foi a ré a desenvolver atividade processual que de alguma forma contribuiu para entorpecer o seu desfecho, o que resulta por demais evidenciado do recurso para uniformização de jurisprudência o qual nem sequer foi admitido apesar da sua insistência.

Desta forma afigura-se que, atento o resultado da ação, estão verificados os pressupostos para que ao abrigo do disposto no art. 6º, nº 7 do RCP, a autora seja dispensada do pagamento do remanescente e possa ser dispensado mas apenas parcialmente o pagamento do remanescente da taxa de justiça no que respeita à ré.

Assim, ao abrigo do disposto no artº 6º, nº 7 do RCP:

Dispenso a autora do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

Dispenso a ré do pagamento de 75% do remanescente da taxa de justiça.”

(Fim da citação.)


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            Inconformada, a Ré recorreu e concluiu em síntese:

Face às actuais disposições legais em vigor relativamente à possibilidade de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça devida a final não deve a Ré beneficiar de isenção inferior em relação à Autora;

O Tribunal a quo não atribuiu especialmente à Ré a “evidente complexidade” com que caracterizou o processo, fundamentando essa complexidade na grande quantidade de actos processuais praticados, sendo certo que a intenção do legislador tem mais em conta a medida qualitativa do que quantitativa dessa complexidade, pelo que se deveria ter decidido em função do comportamento das partes e da complexidade jurídica

do processo;

A questão jurídica discutida nos presentes autos era extremamente simples, pelo que, nesse aspecto, a complexidade dos autos não foi grande;

Os recursos subsequentes à sentença de primeira instância justificaram-se plenamente e foram legítimos, não se traduzindo em qualquer manobra dilatória, pelo que esse facto não pode ser considerado um factor de penalização para a parte que o praticou;

Penalizar a Ré em relação à Autora viola o art. 4º do C.P.C. e os princípios constitucionais vertidos nos arts. 13º, nº 1, 18º, nº 2 e 20º, nº 1, ambos da C.R.P.;

Foi por a Autora não ter feito na fase declarativa a prova da determinação e quantificação dos danos e prejuízos por si sofridos que a audiência de discussão e julgamento se prolongou por inúmeras sessões, tendo sido também a Autora quem deu causa ao incidente de liquidação no âmbito do qual o seu pedido inicial de € 468.451,35 veio a ser reduzido para € 19.262,93, pelo que decaíu em € 450.000,00;

A Ré não pode ser penalizada por legitimamente ter usado de prerrogativas processuais que o legislador coloca à sua disposição, nunca tendo litigado de má-fé ou fazendo mau uso do processo;

A Ré deve ser também isentada da totalidade do remanescente das custas ao abrigo do disposto no nº 7 do art. 6º do RCP.


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            O Ministério Público contra-alegou, defendendo que a Recorrente tem razão, pelo que deve ser também isentada do referido remanescente.

            Não foram apresentadas outras contra-alegações.


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A questão a decidir é a de saber se se justifica a diferenciação de isenção decidida, devendo a Ré pagar 25% do remanescente da taxa de justiça, ao contrário da Autora, que daquele nada paga.

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            Os factos a considerar são os que resultam do relatório antecedente e dos infra considerados.

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O artigo 6º, nº 7 do Regulamento das Custas Processuais (doravante RCP) estatui que “nas causas de valor superior a € 250.000,00 o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento”.

Conforme o Preâmbulo do RCP, “a taxa de justiça é o valor que cada interveniente deve prestar, por cada processo, como contrapartida pela prestação de um

serviço. De um modo geral, procurou adequar-se o valor da taxa de justiça ao tipo de processo em causa e aos custos que, em concreto, cada processo acarreta para o sistema judicial, numa filosofia de justiça distributiva, à qual não deve ser imune o sistema de custas processuais (…). Estabelece-se agora um sistema misto que assenta no valor da acção, até um certo limite, e na possibilidade de correcção da taxa de justiça quando se trate de processos especialmente complexos, independentemente do valor económico atribuído à causa”.

            De acordo com a jurisprudência acessível (v.g acórdão da Relação de Lisboa, de

22.11.2016, proc. 3258/05), “os critérios de cálculo da taxa de justiça, constituem zona

constitucionalmente sensível; apela a critérios de proporcionalidade, entre o valor cobrado ao cidadão que recorre ao sistema público de administração da justiça e o custo/utilidade do serviço que efectivamente lhe foi prestado, tendo presente evitar uma justiça de tal modo onerosa que impeçam o recurso à mesma.”

A norma impõe a consideração da especificidade da situação, da complexidade da causa e da conduta processual das partes.

            A sua ponderação faz-se também à luz dos princípios constitucionais da garantia de acesso aos tribunais, da igualdade e da proibição do excesso.

            A decisão recorrida concluiu existirem razões para a dispensa do remanescente mas diferenciou a posição das partes. (A isenção concedida à Autora já é definitiva.)

            Vejamos o caso.

No processo foram praticados todos os atos e as partes fizeram uso das prerrogativas legais que têm à sua disposição.

Não nos parece que a ação tenha assumido uma especial complexidade, o que resulta também da isenção concedida (total à Autora).

O art. 530º, nº 7, do Código de Processo Civil (doravante CPC) diz-nos que se consideram de especial complexidade as ações que: a) contenham articulados ou alegações prolixas; b) digam respeito a questões de elevada especialização jurídica, especificidade técnica ou importem a análise combinada de questões jurídicas de âmbito muito diverso; c) impliquem a audição de um elevado número de testemunhas, a análise de meios de prova complexos ou a realização de várias diligências de produção de prova morosas.

Ora, com referência a este preceito legal, o Tribunal recorrido não invoca qualquer ato concreto que integre um dos seus critérios. Mais, e não invoca que eles sejam especialmente imputáveis à Ré.

Não nos parece que o processo tenha envolvido articulados e alegações prolixos, questões de elevada especialização jurídica ou especificidade técnica, nem uma análise combinada de questões jurídicas de âmbito muito diverso, tendo a produção de prova sido feita dentro do que se pode entender como normal neste tipo de processos.

Mais, não existe diferenciação da conduta das partes a esse respeito.

A matéria de facto incidiu sobre o apuramento dos danos resultante da compra de nova azeitona para substituir a estragada, por maior preço, com novo processo de oxidação, com implicação de novos custos.

Noutro plano da decisão, a conduta processual de ambas as partes foi tida por alheia a expedientes de natureza meramente dilatória, não se registando qualquer situação de uso indevido ou reprovável do processo, com o propósito de o atrasar.

A decisão recorrida considerou a atitude positiva das partes, de cooperação para a resolução do diferendo.

Considerando o valor atribuído à ação, o valor remanescente da taxa de justiça assume valores muito elevados.

Mas aquele valor não corresponde ao que foi efetivamente concedido na liquidação, sendo certo que à Autora é imputável a falta de liquidação inicial.

Na decisão recorrida o que justifica a diferenciação das partes são os recursos interpostos pela Ré, especialmente o último.

Porém, os recursos são formas legalmente admissíveis de defender posições, não podendo ser, sem mais e necessariamente, uma forma de entorpecer a ação da Justiça.

A decisão recorrida não diz qual seja o “entorpecimento” evidenciado pelos recursos, sendo certo que estes, por norma (art.647º, nº1, do CPC), não impedirão a execução do decidido.

Tendo sido considerado que se encontram verificados os pressupostos para que, ao abrigo do disposto nos arts. 6º, nº 7 do RCP e 530º, nº 7 do CPC, possa ser dispensado o pagamento do remanescente da taxa de justiça, não encontramos razão segura para que a isenção concedida à Autora não se alargue de igual modo à Ré. Não encontramos razão para que a isenção da Ré seja diminuída.


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Decisão.

            Julga-se o recurso procedente, revoga-se parcialmente a decisão recorrida, alargando a isenção total do remanescente da taxa de justiça também à Ré.

            Sem custas. Taxa de justiça já liquidada.

            Coimbra, 2019-01-29


Fernando de Jesus Fonseca Monteiro ( Relator )

António Carvalho Martins

Carlos Moreira