Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2440/13.6TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS
MÚTUO
CRÉDITO À HABITAÇÃO
PATRIMÓNIO COMUM
INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
Data do Acordão: 05/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 5
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.473, 479, 946, 1722, 1724, 1730, 1756 CC
Sumário: 1. - No contrato de mútuo as coisas emprestadas passam a ser propriedade do mutuário a partir da entrega e pelo facto desta, cabendo-lhe depois restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.

2. - Na comunhão de adquiridos, o regime em vigor sustenta-se na ideia de só tornar comum aquilo que exprima a colaboração dos cônjuges no esforço patrimonial do casamento.

3. - No regime da comunhão de adquiridos, os salários auferidos pelos cônjuges na constância do matrimónio integram a comunhão conjugal, donde que os pagamentos prestacionais pelos cônjuges no âmbito de crédito à habitação por ambos celebrado se considerem, salvo demonstração em contrário, realizados a expensas do seu património comum, independentemente de resultarem dos salários de ambos ou só de algum deles.

4. - A ação por enriquecimento sem causa depende da verificação de um enriquecimento à custa de outrem, que careça de causa justificativa, por nunca a ter tido ou por a ter perdido, tornando-se, assim, injusto e inaceitável para o direito.

5. - Compreende-se no instituto do enriquecimento sem causa situação em que, depois de contraírem conjuntamente, ainda em solteiros, um crédito à habitação para construção, em terreno pertença de um deles, da casa de morada da família, com aplicação do montante mutuado nessa construção, ambos os cônjuges, casados no regime da comunhão de adquiridos, procederam ao pagamento de prestações de reembolso do empréstimo, vindo depois a divorciar-se, após o que o (ex-)cônjuge proprietário procedeu à venda do imóvel, pagando o remanescente ao credor e embolsando o lucro obtido.

6. - Nesse caso, vendido o imóvel, cabe ao (ex-)cônjuge não proprietário, com fundamento em enriquecimento sem causa, o direito à restituição pelo vendedor do correspondente a metade dos reembolsos efetuados pelos cônjuges ao mutuante na constância do casamento.

7. - Ao relegar-se para ulterior incidente de liquidação o quantum da obrigação de restituir por enriquecimento sem causa não se prejudica a igualdade de armas entre as partes e o contraditório, que continuarão a vigorar na fase incidental de liquidação, antes se visando, ao conceder nova oportunidade de prova (do montante a restituir), a obtenção da justiça material, fim último do processo.

Decisão Texto Integral:







Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

M (…), com os sinais dos autos,

intentou (em 18/05/2013) ação declarativa, ao tempo sob a forma de processo ordinário, contra

T (…) também com os sinais dos autos,

pedindo a condenação do R. a pagar-lhe a quantia de € 50.912,50, por enriquecimento ilícito, acrescida de juros de mora legais desde a citação e até integral pagamento.

Para tanto, alegou, em síntese, que:

- tendo sido casada com o R., do qual se encontra divorciada (desde 19/10/2004), juntos construíram, na pendência do casamento, a casa de morada de família, em terreno doado a ambos, mesmo que registado apenas em nome daquele;

- apesar de esse imóvel ser bem comum de ambos, foi vendido pelo R., em 30/07/2010, na pendência de processo de inventário, à revelia da A., pelo preço declarado de € 162.500,00, mas que terá sido superior, tendo o demandado lucrado com a venda, após liquidação do empréstimo bancário contraído, no quantitativo de € 101.825,00, assistindo à A. o direito a metade, à luz das regras do enriquecimento sem causa.

Contestou o R., defendendo-se por impugnação, bem como afirmando que a doação referida não foi aceite pela A., sendo que teria que ser realizada por convenção antenupcial, o que não ocorreu, determinando a sua invalidade, mais alegando que a moradia foi construída pelo R. em solteiro, encontrando-se concluída na data do casamento, pelo que é bem próprio deste, que pagou todas as prestações do empréstimo, sendo que, se o prédio, vendido pelo valor escriturado, fosse bem comum, então o R. seria credor da A. pelo valor da parcela de implantação, e concluindo pela improcedência da ação e pela condenação da A., como litigante de má-fé, em multa e indemnização, em montante a fixar pelo Tribunal.

Com dispensa da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, fixando-se o objeto do litígio e os temas de prova, sem reclamações.

Foi realizada a audiência final, seguida da prolação de sentença (datada de 03/08/2016), que decidiu de facto e de direito, julgando improcedente a ação, com consequente total absolvição do R..

Inconformada com o assim decidido, veio a A. interpor recurso, apresentando alegação, culminada com as seguintes

Conclusões ([1]):

(…)

Foi apresentada contra-alegação, concluindo o Recorrido pelo bem fundado da decisão em crise e consequente improcedência total do recurso.

Este foi admitido como apelação, com efeito meramente devolutivo e subida imediata, tendo sido ordenada a remessa do processo a este Tribunal ad quem, onde foi mantido tal regime recursivo.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito do Recurso

Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo delimitado em sede de articulados – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil atualmente em vigor e aqui aplicável (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 ([2]) –, está em causa na presente apelação saber ([3]):

a) Se deve ter-se por verificada a invocada causa de nulidade da sentença (contradição/obscuridade);

b) Se ocorre erro de julgamento em matéria de facto, devendo alterar-se as respostas negativas às al.ªs d) e e) do quadro fáctico julgado não provado;

c) Se, por força dessa alteração fáctica, ou por razões de ordem jurídica, deve alterar-se a decisão de direito, em termos de procedência da ação (restituição de quantia recebida a título de preço da venda de bem comum, por força do instituto do enriquecimento sem causa ou por benfeitorias realizadas).

III – Fundamentação

         A) Nulidade da sentença

Como visto, refere a A./Apelante que os fundamentos da sentença estão em oposição com a decisão, por o raciocínio do julgador (fundamentação) apontar para uma certa conclusão, mas a decisão (dispositivo) acabar por seguir noutro sentido, ocorrendo obscuridade (não é percetível o sentido da decisão) e até ambiguidade (a decisão admite mais de um sentido).

Cabia-lhe, por isso, argumentando sobre o tema, mostrar onde se encontram consubstanciados na sentença apelada aqueles vícios geradores de nulidade da mesma, o que devia ser feito mas conclusões da apelação, já que estas, como dito, definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso.

Na verdade, como se retira do disposto no art.º 639.º, n.º 1, do NCPCiv., cabe à parte recorrente, nas suas conclusões, indicar os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.

Concluindo a Apelante pela nulidade da sentença por violação do disposto na al.ª c) do n.º 1 do art.º 615.º do NCPCiv., dispõe este preceito legal, desde logo, que é nula a sentença quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão”. Trata-se, por isso, de contradição resultante de a fundamentação da sentença apontar num sentido e a decisão seguir caminho oposto ou direção diferente ([4]), inserindo-se no quadro dos vícios formais da sentença, tal como elencados nos art.ºs 667.º e 668.º do anterior CPCiv. ([5]) – hoje art.ºs 614.º e seg. do NCPCiv. –, sem contender, pois, com questões de substância, que, como tais, já se prendem com o mérito, e não com o âmbito formal.

Cabia, pois, a tal Apelante sinalizar/sintetizar, nas suas conclusões, onde se encontra tal oposição/contradição, por forma a evidenciar o vício invocado.

Ora, a Apelante, no meio do seu acervo conclusivo de impugnação da decisão de facto, limita-se, na sede conclusiva, a invocar notória oposição/contradição – por, como dito, o raciocínio do julgador apontar para uma certa conclusão e a decisão seguir noutro sentido –, sem a especificar ou concretizar, de molde a apontar onde se encontra e em que se traduz.

E nem o antecedente corpo da alegação recursória esclarece onde se mostra consubstanciado esse eventual vício da sentença, já que, nesta parte, a alegação não diz mais do que a conclusão (cfr. fls. 192 v.º e 193 dos autos em suporte de papel), antes parecendo que a Apelante se situa, quanto a tal vício, no âmbito da impugnação da decisão de facto.

Tal postura da Recorrente, se dificilmente se compaginaria com a exigência de identificação nas conclusões das questões recursórias suscitadas (indicação concisa dos fundamentos do pedido recursivo, nos moldes previstos no art.º 639.º, n.º 1, do NCPCiv.), logo deixa a nu a falta de fundamentação recursória, posto que se invoca um vício da sentença mas não se mostra onde o mesmo se localiza nem em que se consubstancia em concreto, o que traduz não mais que um inconsequente inconformismo.

Acresce que a discordância perante o sentido da decisão, no concernente ao julgamento da matéria de facto, deve ser guardada para o quadro da impugnação da decisão de facto, sede onde deve ser apreciada, e não suscitada como invocação de qualquer contradição, ambiguidade ou obscuridade da sentença (cfr. conclusão 5.ª).

A ocorrer aquilo a que parece aludir a Apelante – se bem a interpretamos –, estaremos perante erro de julgamento, a apurar em sede de impugnação da decisão de facto, e não perante qualquer nulidade da sentença.

Donde que não se demonstre qualquer contradição/oposição, ambiguidade ou obscuridade com relevo em sede de nulidade da sentença.

Improcedem, pois, as conclusões da apelação em contrário.

B) Impugnação da decisão de facto

(…)

C) Quadro fáctico da causa

Após a alteração efetuada pela Relação, é a seguinte a factualidade julgada provada:

«1- A autora e o réu casaram sem convenção antenupcial no dia 16 de Setembro de 2000.

2- No dia 19 de Outubro de 2004 a autora e o réu divorciaram-se por mútuo consentimento na Conservatória do Registo Civil de Leiria.

3- Na relação de bens apresentada na Conservatória do Registo Civil de Leiria para os efeitos referidos em 2, entre o mais, a autora e o réu fizeram constar o seguinte bem imóvel:

Casa para habitação de rés do chão com 2 assoalhadas, cozinha, 1 casa de banho, despensa, águas furtadas com 2 assoalhadas e 1 casa de banho e logradouro, sita na Travessa (...) , lugar e freguesia de (...) , concelho de Leiria, com a área coberta de 149 m2 e descoberta de 1951 m2 inscrita na matriz predial urbana daquela freguesia sob o artigo 2006 e descrita na 2ª Conservatória do Registo Predial de Leiria sob a descrição 780/19900403/ (...) , com o valor de 26.208,00 euros.

4- A autora e o réu instalaram no imóvel referido em 3 a casa de morada de família e aquando do divórcio a mesma foi atribuída ao réu até à separação de meações.

5- Por escritura de doação, outorgada no Primeiro Cartório Notarial de Leiria, no dia sete de Outubro de 1999 V (…) e mulher C (…) declararam doar ao seu neto, o aqui réu, que declarou aceitar, uma terra de cultura sita em (...) , freguesia de (...) , concelho de Leiria, inscrita na matriz predial rústica da respectiva freguesia sob o artigo 979, com o valor patrimonial de 2.420$00, descrita na Segunda Conservatória do Registo Predial de Leiria sob o número 780/ (...) .

6- Na escritura referida em 5 mais declararam que esta doação se destina a entrar na futura comunhão conjugal do donatário quando casar com M (…) solteira, maior, residente na Rua Principal, (...) , Leiria, sendo que esta cláusula só produz efeitos reais com a efectivação desse casamento.

7- O imóvel descrito em 3 foi implantado no terreno rústico referido em 5, encontrando-se construído à data do casamento celebrado entre a autora e o réu.

8- O imóvel descrito em 3 encontrou-se descrito a favor do réu na Conservatória do Registo Predial de Leiria desde 14.10.1999 até 30.07.2010, data a partir da qual se encontra descrito a favor de A (…9 e M (…)

9- Por escritura pública outorgada no dia 30.07.2010 o réu declarou vender a A (…) e M (…) que declararam comprar, pelo preço de € 162.500,00 já recebido, o imóvel descrito em 3.

10- Na data referida em 9 encontravam-se registadas sobre o imóvel mencionado em 3 duas hipotecas voluntárias registadas pelas apresentações 34 de 07.04.2000 e de 27.09.2000 constituídas a favor do Banco (…) SA e cujas autorizações para cancelamento foram apresentadas na mesma data.

11- Em 14.04.2000, o Banco (…) SA, ao abrigo das normas do crédito à habitação e para construção de uma habitação sobre o terreno descrito em 5, concedeu à autora e ao réu um empréstimo no valor de 24.000.000$00 para garantia do pagamento do qual o réu constitui as hipotecas referidas em 10.

12- D (…) e O (…) constituíram-se fiadores e principais pagadores, com expressa renúncia ao benefício da excussão prévia, por tudo o que viesse a ser devido ao Banco (…)SA em consequência do empréstimo referido em 11.

13- Ao empréstimo referido em 11 encontrava-se associada a conta de depósitos à ordem com o nº 2392 5276 0008, da qual autora e réu eram os titulares.

14- Na data da escritura referida em 9 foi depositada na conta mencionada em 13 a quantia de € € 140.000,00 e na mesma data o réu levantou a quantia de € 7.500,00.

15- No dia 03.08.2010 o réu transferiu da conta referida em 13 a quantia de € 94.325,00 para a conta com o NIB (…)

16- No âmbito do processo com o número 6657/07.4 TBLRA foi penhorado a favor do Banco (…) SA, o imóvel descrito em 3, penhora essa registada em 03.10.2008, no valor de € 117.818,13.

17- Em 02.07.2010 o Banco (…) SA aceitou que o réu procedesse à amortização parcial do capital vincendo respeitante ao empréstimo descrito em 11, no montante de € 60.000,00, sendo que à data o capital em dívida ascendia ao montante de € 96.373,17.

18- Após o pagamento, por parte do réu, da quantia referida em 17 e de custas no montante de € 1.520,35, o Banco (…) SA comunicou tal facto ao processo identificado em 16 e autorizou o levantamento da penhora.

19- Em 30.07.2010 o réu procedeu à amortização total do capital em dívida respeitante ao empréstimo descrito em 11, pagando o remanescente no valor de € 36.373,17.

20- Após a data do divórcio, o réu pagou todas as prestações respeitantes ao empréstimo referido em 11, não tendo a autora liquidado qualquer prestação dessa natureza.

21- O réu, no âmbito do processo que correu termos sob o nº 763/2001 pagou em Abril de 2009, a (…), construtor do prédio referido em 3, a quantia de € 13.000,00.

22- A casa de habitação referida em 3- foi construída com o esforço económico de A. e R., tendo ambos contraído, conjuntamente, empréstimo bancário para o efeito, constituindo-se devedores da quantia mutuada.».

E resultou não provado:

«a) A autora apenas teve conhecimento do facto referido em 9 em Novembro de 2010;

b) A conta a que corresponde o NIB referido em 15 tenha como titular C (…) companheira do réu;

c) A casa de habitação referida em 3 tenha sido construída após o casamento da autora e do réu;

d) suprimido;

e) suprimido;

f) O imóvel descrito em 3 tenha a área de 2100 m2;

g) O preço do metro quadrado na circunscrição onde se situa o imóvel referido em 2 tenha o valor de € 25,00;

h) O réu após o divórcio pagou a quantia de € 25.000,00 decorrente de penalizações pelo incumprimento do pagamento do crédito hipotecário referido em 11, IMIS, seguro do imóvel e outras despesas;

i) O réu aquando da escritura mencionada em 9 recebeu dos compradores um preço superior ao declarado na mesma.».

D) Substância jurídica do recurso

1. - Da natureza de bem comum do imóvel

No regime da comunhão de adquiridos, diversamente do que ocorre no regime da comunhão geral – em que, por regra, são comuns todos os bens dos cônjuges, presentes e futuros –, “… nem os bens levados para o casal nem os adquiridos a título gratuito se comunicam”, apenas se comunicando “… os bens adquiridos depois do casamento a título oneroso”, já que o regime consagrado corresponde “… à ideia de só tornar comum aquilo que exprime a colaboração de ambos os cônjuges no esforço patrimonial do casamento” ([6]).

Daí a regra consagrada no preceito do art.º 1724.º do CCiv. (al.ªs a) e b) respetivas), segundo a qual fazem parte da comunhão, não só o produto do trabalho dos cônjuges, mas ainda os bens adquiridos por eles na constância do casamento, regra essa que, todavia, comporta exceções, entre elas as previstas no art.º 1722.º do CCiv..

Quanto à natureza jurídica da comunhão conjugal, esclarece a doutrina que se trata de uma massa patrimonial (os bens comuns), com certo grau de autonomia, que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco”, sendo tais cônjuges, ambos eles, “titulares de um único direito sobre ela” ([7]).

Nesta matéria, estabeleceu o legislador, quanto à participação dos cônjuges no património comum, a regra da metade, segundo a qual os cônjuges participam por metade no ativo e no passivo da comunhão, tendo, por isso, cada um deles, em condições de igualdade, a sua meação nos bens comuns (cfr. art.º 1730.º, n.ºs 1 e 2, do CCiv.).

Quer dizer, o princípio é o de que bens que resultam do esforço conjunto dos cônjuges são comuns, pertencendo a ambos eles, não o sendo os que resultam do esforço apenas de um desses cônjuges.

Na sentença considerou-se – e bem, a nosso ver – que o terreno onde foi implantada a moradia era bem próprio do R..

Na verdade, este foi doado apenas ao R., embora da escritura de doação constasse efetivamente, como declarado pelos doadores, que se destinava a entrar na futura comunhão conjugal de R. (donatário) e A. (quando entre si contraíssem casamento).

E, se é certo que aqueles se vieram a casar um com o outro, também é claro, como invocado pelo R., que a doação, celebrada mediante escritura pública (em que intervieram apenas os doadores e o R./donatário, que declarou aceitar a doação), não foi feita em convenção antenupcial, aliás, o casamento foi celebrado sem convenção antenupcial.

Ora, o art.º 1756.º, n.º 1, do CCiv. obrigava a que uma tal doação – para casamento – fosse feita na convenção antenupcial.

A inobservância de tal forma legal qualificada “importa, quanto às doações por morte, a sua nulidade” (sem prejuízo do disposto no art.º 946.º, n.º 2, do mesmo Cód.), “e, quanto às doações em vida, a inaplicabilidade do regime especial desta secção” (n.º 2 do mesmo art.º 1756.º).

Assim, se tiverem sido observados os requisitos de forma para as doações em geral – como ocorre no caso de celebração mediante escritura pública para a doação de imóveis (cfr. art.º 947.º, n.º 1, do CCiv.) –, apenas fica comprometido o regime especial das doações para casamento, caso em que a doação por morte será sempre nula e à doação entre vivos para casamento, que não conste da convenção antenupcial, aplicar-se-á o regime geral das doações ([8]).

E prossegue a decisão em crise:

«De acordo com este regime, a doação de bens imóveis só é válida se for celebrada por escritura pública, o que sucedeu in casu. Porém, tal doação não foi aceite pela autora como determina o artº 945º, nem a autora teve qualquer tipo de intervenção na referida escritura. Ora, como nos referem os mesmos autores, tratando-se de doações de terceiros a esposados, não pode deixar de se considerar necessária a intervenção de ambos os nubentes na escritura (mesmo que a doação seja feita a um só, porque a convenção antenupcial supõe obrigatoriamente dos dois) e ainda a expressa referência ao casamento, como causa da doação.

Na escritura em causa, apesar desta última referência, como dissemos, a autora não teve na mesma qualquer intervenção, não produzindo a doação em causa, relativamente a ela qualquer efeito.

Assim sendo, e no que se refere ao terreno onde foi implantada a moradia, o mesmo tem de considerar-se bem próprio do réu.».

Concorda-se com esta perspetiva do Tribunal a quo, aliás, na senda, como visto, de Pires de Lima e Antunes Varela ([9]), sendo que ao R. assiste a presunção de propriedade derivada da inscrição registal a seu favor, que a A. não logrou ilidir nesta parte (cfr. art.º 7.º do CRPredial).

Resta, então a construção edificada nesse terreno (casa de habitação/moradia).

Nesta parte, haverá de aceitar-se que a construção ocorreu antes do casamento (facto 7-), em terreno pertença do R. (bem próprio deste, adquirido antes do matrimónio) e registado a favor dele, o que leva ao afastamento desse bem da comunhão conjugal (al.ª b) do art.º 1724.º do CCiv.).

Na sentença questiona-se se, apesar disso, a A. não poderá ser vista como comproprietária, por via de contribuição económica para a construção.

Nesta senda, e como ali referido, a aquisição do domínio (designadamente, a compropriedade) teria de resultar de um dos modos legais de aquisição – originária (por usucapião ou acessão) ou derivada (por negócio translativo do domínio/propriedade ou sucessão) – do direito real.

E também é certo que a A. nem sequer direciona a ação no sentido de ter adquirido um direito de compropriedade, pois que apenas alegou, na sede própria, ser o terreno bem comum, por ter sido doado a A. e R. – o que já se viu não proceder –, e ter a construção sido levada a cabo por ambos.

Donde a conclusão da sentença de não resultar ilidida a presunção de propriedade, derivada do registo, a favor, em exclusivo, do R..

Conclusão que a A. não logra pôr em causa, pois que a sua argumentação assenta, mesmo na via recursória, na doação para casamento e consequente entrada na comunhão conjugal, argumentação essa que, como visto, não pode ser acolhida.

2. - Da obrigação de restituição por enriquecimento sem causa e seu montante

Afastado o argumento dominial da A./Apelante, vejamos se, apesar disso, lhe assiste razão em sede de ação por enriquecimento, assentando a obrigação de restituição em locupletamento injustificado do R. à custa do património daquela.

Na decisão em crise, depois de se considerar nada impedir que, existindo prova de ter o cônjuge não proprietário de uma moradia contribuído, diretamente e com essa finalidade expressa, para a sua construção, ele reclame a titularidade de um crédito segundo as regras do enriquecimento sem causa, concluiu-se que, por a A. ter fracassado na prova necessária da sua comparticipação na construção, nada poderia exigir ao R..

Conclusão com que não se conforma a A., que logrou, como visto, obter alteração em sede de decisão da matéria de facto.

Vejamos, porém, antes de mais, alguns contornos jurídicos relevantes da figura do enriquecimento sem causa.

No âmbito deste instituto, trata-se da verificação quanto a um injusto locupletamento, por destituído de causa justificativa, de uma parte à custa do património da outra, com o decorrente dever de restituição daquilo com que injustamente se enriqueceu – compreendendo tudo quanto se obteve à custa do empobrecido ou, não sendo possível a restituição em espécie, o valor correspondente (cfr. art.ºs 473.º e 479.º, ambos do CCiv.) –, independentemente da prática de um qualquer facto culposo ([10]).

Assim, o enriquecimento sem causa depende (cumulativamente) da verificação da existência de (i) um enriquecimento, (ii) que seja obtido à custa de outrem, (iii) faltando uma causa justificativa.

Em sede de enriquecimento sem causa, é pacífico que a vantagem em que o enriquecimento ([11]) se manifesta pode traduzir-se no evitar de uma despesa – por exemplo, evitar pagar certo montante de renda de casa por se utilizar uma casa de que se não paga renda ou de que se paga uma renda abaixo do valor locativo –, mas também na aquisição de um novo direito ou no acréscimo de valor de um direito já existente – a propriedade de um bem ou “a mais-valia trazida a um prédio por trabalhos nele efectuados” ([12]).

Essa vantagem, auferida por um sujeito, por repercutida no seu património, tem sempre de ocorrer para que haja enriquecimento sem causa, sendo suportada por outrem, com inerente, por regra, diminuição patrimonial, a qual pode traduzir-se, por exemplo, numa renda que se não cobra. Todavia, pode até “não se verificar qualquer efectivo empobrecimento”, já que “… o instituto abrange situações em que a vantagem adquirida por uma pessoa não resulta de um correspondente sacrifício económico sofrido por outra – diminuição patrimonial ou simples privação de um aumento –, embora se haja produzido a expensas desta, à sua custa. Recordem-se, por exemplo, certos casos de uso de coisa alheia sem prejuízo algum para o proprietário” ([13]).

Cabem aqui as situações denominadas de lucro por intervenção (ou por ingerência ou intromissão), atinentes ao uso não lícito de bens ou direitos alheios ([14]), podendo a intervenção causar ao dono do bem um dano excedente ou equivalente à medida do lucro do interventor, ou, em vez disso, um dano inferior ou mesmo nenhum dano causar. Em tais situações, pressuposta a ilicitude do uso (por contrária ao direito de propriedade do titular), haverá que distinguir entre intervenção culposa e intervenção não culposa, sendo que, no caso de intervenção culposa e danosa, o interventor ficará constituído no dever de indemnizar nos termos gerais (art.º 483.º, n.º 1, do CCiv.).

Se, ao contrário, a intervenção não é culposa, excluída fica, por isso, a obrigação de indemnizar (por responsabilidade extracontratual), mas não a obrigação de restituir por enriquecimento sem causa – que prescinde da culpa –, podendo esta subsistir mesmo que não haja prejuízo para o proprietário (pode prescindir-se, pois, também do dano), com o interventor a ter de satisfazer o proprietário pelo “valor objectivo do uso ou fruição do prédio, «ex vi» do art. 473.º …” ([15]).

Ponto é que o enriquecimento – à custa de outrem – se verifique e careça de causa justificativa, ou por nunca a ter tido ou por a ter perdido ([16]), tornando-se, por isso, injusto e, como tal, inaceitável para o direito.

Imprescindível é ainda a ausência de outro meio jurídico – se a lei não faculta ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído –, pois que estamos perante obrigação com natureza subsidiária, como resulta do art.º 474.º do CCiv. ([17]).

A obrigação de restituir abrange, segundo o preceituado no art.º 479.º do CCiv., tudo quanto o enriquecido obteve à custa do empobrecido ou, não sendo possível a restituição em espécie, o correspondente valor em dinheiro (n.º 1), não podendo, porém, exceder-se a medida do locupletamento efetivo (n.º 2), do enriquecimento patrimonial obtido, nem o montante do empobrecimento do lesado, se inferior àquele.

In casu, pretende a A. metade do lucro da venda do imóvel (terreno e construção), isto é, o montante de € 50.912,00, no pressuposto – não verificado – de ter sido vendido um bem comum do casal.

Porém, não se tratando de bem comum, logo falha a pretensão de entrega de metade desse lucro.

Mas já se viu que, cinco meses antes do casamento – tendo este como pressuposto –, A. e R. contraíram um empréstimo bancário (crédito à habitação) para construção da moradia, que seria, como foi, a casa de morada da família.

Em consequência desse contrato de mútuo bancário, em que A. e R. se vincularam como devedores, foi disponibilizada a ambos, pelo banco mutuante, a quantia mutuada de 24.000.000$00 (correspondente, aproximadamente, a € 120.000,00), para pagamento dos custos da construção da moradia.

Por força desse crédito à habitação, para construção da futura casa de morada da família, tornaram-se os mutuários (A. e R., conjuntamente), a partir da respetiva entrega, proprietários daquele montante mutuado, como dispõe o já mencionado art.º 1144.º do CCiv. ([18]).

Assim – repete-se –, independentemente da obrigação de posterior restituição, a que ambos os mutuários se obrigaram (relação mutuários - mutuante), os 24.000.000$00 emprestados passaram efetivamente a pertencer a A. e R..

Donde que na esfera patrimonial da A. (e, do mesmo modo, do seu co-mutuário) tenha, em resultado do mútuo, ocorrido um aumento do ativo, pelo ingresso dum (novo) direito de propriedade, e um correspondente aumento do passivo, pelo surgimento da obrigação de restituir (que também ficou a caber, lado a lado, a ambos os mutuários).

Ora, se esse aumento do ativo foi canalizado – por A. e R. – para financiar a construção da moradia, cumprindo o fim a que se destinava (crédito à habitação), forçoso é concluir que ambos os mutuários (também a A.) utilizaram/investiram, conjuntamente, o montante do empréstimo naquela edificação.

E nem pode dizer-se que a A./Apelante não contribuiu para o pagamento prestacional ao banco credor, pois, como visto já, na constância do casamento os salários obtidos pelos cônjuges passaram a integrar a comunhão conjugal (regime da comunhão de adquiridos), obrigando a concluir que os pagamentos dos mutuários ao mutuante, enquanto durou o matrimónio, foram suportados pelo património comum dos cônjuges.

Por isso, não surpreende que venha provado que a moradia foi construída com o esforço económico de A. e R., tendo ambos contraído empréstimo bancário para o efeito, constituindo-se devedores, ao tempo, da quantia mutuada de 24.000.000$00 (agora, aproximadamente, € 120.000,00) ([19]).

E daqui já uma conclusão parece ser forçoso extrair: se a moradia foi construída com o esforço/investimento económico de A. e R., que ali aplicaram, para o efeito, aquela elevada quantia mutuada (propriedade de ambos), então houve deslocação patrimonial da esfera jurídica da A./Apelante, que assumiu, conjuntamente com o R., até ao montante do empréstimo contraído, as despesas da construção.

Deslocação essa que veio a fixar-se na esfera patrimonial do outro mutuário, o R., que, como proprietário do imóvel, o viria a vender, embolsando o respetivo preço, que não partilhou com a A..

Esse preço, que ascendeu a € 162.500,00, foi usado, para além do mais, para integral pagamento da dívida subsistente ao banco mutuante, num total pago de € 96.373,17, sendo ainda certo que, após o divórcio, foi o R. quem passou a pagar sozinho as prestações que se iam vencendo do empréstimo – o imóvel havia-lhe sido “atribuído até à separação de meações” –, o que não impediu que o prédio fosse, como veio a ser (em 2008), penhorado em execução (com referência a valor de € 117.818,13), instaurada em 2007, movida pelo banco mutuante (cfr. facto 16-).

Assim, se, como verificado, os pagamentos dos então cônjuges ao banco mutuante, enquanto durou o matrimónio, foram suportados pelo património comum, seria injusto que a A., também investidora na construção, nada recebesse uma vez realizada a lucrativa venda.

É claro que está ela empobrecida – com correspondente enriquecimento do R. – relativamente à sua contribuição para a construção da moradia.

Porém, não poderá deixar de ponderar-se que não lhe cabe receber metade do montante investido com o produto do empréstimo (contravalor em euros de 12.000.000$00), posto que o banco mutuante já foi integralmente reembolsado, maioritariamente pelo R., na sequência da venda realizada.

Assim, o empobrecimento da A., vistas as circunstâncias do realizado reembolso, correspondente ao enriquecimento do R., só se reflete nas quantias pagas pelos cônjuges ao banco credor, isto é, as pagas, de acordo com o que vem provado, na constância do matrimónio (entre 16/09/2000 e 19/10/2004), visto que após a data do divórcio só o R. procedeu ao reembolso ao mutuante.

Quanto a essas quantias pagas na constância do casamento, à custa do património comum dos cônjuges, tem a A./Apelante direito a receber metade, pois que se encontra, nessa medida, efetivamente empobrecida e o R. injustamente locupletado, metade essa a apurar/quantificar em ulterior incidente de liquidação, visto que se apura a lesão/empobrecimento mas não o seu exato quantum (cfr. art.º 609.º, n.º 2, do NCPCiv.), o qual pode ainda ser apurado futuramente, com recurso a outras provas, designadamente documentação (bancária ou outra) referente a cada uma das entregas ao banco no período temporal mencionado.

Com o que haverá, na parcial procedência da apelação, de revogar-se a sentença absolutória recorrida, com condenação, em substituição do Tribunal a quo (art.º 665.º do NCPCiv.) e na parcial procedência da ação, do R./Apelado a pagar à A./Apelante, dentro do quantum peticionado, a quantia que se vier a liquidar, em ulterior incidente de liquidação, como correspondente a metade dos montantes de reembolso do empréstimo prestados por aqueles ao banco credor entre 16/09/2000 e 19/10/2004.

Com efeito, prevê aquele art.º 609.º, n.º 2, do NCPCiv., que, não havendo “… elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida”.

No caso dos autos, resulta já apurado, como visto, um enriquecimento sem causa e consequente dever de restituir, apenas carecendo de apuramento o quantum restitutório.

Embora num outro âmbito – o da indemnização em dinheiro por danos causados (cfr. art.º 566.º, n.º 3, do CCiv., que remete para a equidade no caso de não ser possível averiguar o valor exato dos danos) –, já foi entendido pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que a opção entre equidade e liquidação em fase posterior, uma vez provado o dano, mas não estabelecida a sua quantificação, “deve obedecer àquela que dê mais garantias de se mostrar ajustada à realidade”.

Assim é que, “se apesar de provado o dano, não foi possível atingir-se na fase que vai até à Sentença um valor exacto para a sua quantificação, mas seja admissível que ainda é possível atingi-lo com recurso a prova complementar sobre o montante exacto ou muito próximo dos danos reais, não deve passar-se para a fase executiva na parte em que a condenação ainda não esteja líquida, sendo o instrumento adequado o incidente de liquidação …”.

Já “se, pelo contrário, apesar de provado o dano, não foi possível atingir-se a determinação do seu montante exacto, nem se veja forma de o poder atingir com prova complementar sobre a quantificação dele, o meio adequado para o estabelecer é utilizar desde logo a equidade – art. 566.º-3 do CC. (entre outras razões por racionalidade de meios), dentro dos limites que o tribunal tenha disponíveis para o efeito” ([20]).

Seguindo de algum modo este critério, parece adequado também para o caso dos autos considerar, apurado que a obrigação de restituir existe, mas faltando determinar o seu quantitativo, que seria excessivo, na perspetiva da obtenção da justiça material, absolver agora o R./Apelado – sabe-se que este deve restituir por enriquecimento injusto e é ainda possível apurar o quantum respetivo.

Donde que seja de relegar o quantum da condenação para ulterior incidente de liquidação, pois que se perspetiva como possível que outras provas sejam apresentadas pelas partes, o que sempre afastaria o julgamento segundo padrões de equidade ([21]) ([22]).

Também não colheria o argumento, em contrário, de se estar a beneficiar uma das partes em detrimento da outra, violando-se os princípios da igualdade das partes e do contraditório.

Com efeito, a igualdade das partes e o contraditório continuarão a vigorar, obviamente, também na subsequente fase incidental da liquidação e, se é certo que se concede a uma das partes uma nova oportunidade de provar o quantum da obrigação de restituir, tal só ocorre depois de estar demonstrada a obrigação e na perspetiva do bem maior da justiça material ([23]).

Donde que, em vez de beneficiar uma das partes com nova oportunidade probatória, o que está em causa é o escopo de obtenção da justiça material, fim último do processo.

***

IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - No contrato de mútuo as coisas emprestadas passam a ser propriedade do mutuário a partir da entrega e pelo facto desta, cabendo-lhe depois restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.

2. - Na comunhão de adquiridos, o regime em vigor sustenta-se na ideia de só tornar comum aquilo que exprima a colaboração dos cônjuges no esforço patrimonial do casamento.

3. - No regime da comunhão de adquiridos, os salários auferidos pelos cônjuges na constância do matrimónio integram a comunhão conjugal, donde que os pagamentos prestacionais pelos cônjuges no âmbito de crédito à habitação por ambos celebrado se considerem, salvo demonstração em contrário, realizados a expensas do seu património comum, independentemente de resultarem dos salários de ambos ou só de algum deles.

4. - A ação por enriquecimento sem causa depende da verificação de um enriquecimento à custa de outrem, que careça de causa justificativa, por nunca a ter tido ou por a ter perdido, tornando-se, assim, injusto e inaceitável para o direito.

5. - Compreende-se no instituto do enriquecimento sem causa situação em que, depois de contraírem conjuntamente, ainda em solteiros, um crédito à habitação para construção, em terreno pertença de um deles, da casa de morada da família, com aplicação do montante mutuado nessa construção, ambos os cônjuges, casados no regime da comunhão de adquiridos, procederam ao pagamento de prestações de reembolso do empréstimo, vindo depois a divorciar-se, após o que o (ex-)cônjuge proprietário procedeu à venda do imóvel, pagando o remanescente ao credor e embolsando o lucro obtido.

6. - Nesse caso, vendido o imóvel, cabe ao (ex-)cônjuge não proprietário, com fundamento em enriquecimento sem causa, o direito à restituição pelo vendedor do correspondente a metade dos reembolsos efetuados pelos cônjuges ao mutuante na constância do casamento. 

7. - Ao relegar-se para ulterior incidente de liquidação o quantum da obrigação de restituir por enriquecimento sem causa não se prejudica a igualdade de armas entre as partes e o contraditório, que continuarão a vigorar na fase incidental de liquidação, antes se visando, ao conceder nova oportunidade de prova (do montante a restituir), a obtenção da justiça material, fim último do processo.


***

V – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando, em consequência, a sentença absolutória recorrida e, na parcial procedência da ação:

a) Condenando o R./Apelado a pagar à A./Apelante, dentro do quantum peticionado, a quantia que se vier a liquidar, em ulterior incidente de liquidação, como correspondente a metade dos montantes de reembolso do empréstimo prestados por aqueles ao banco credor no período compreendido entre 16/09/2000 e 19/10/2004, a que acrescem os juros de mora peticionados, à taxa supletiva legal aplicável às dívidas de natureza civil;

b) E absolvendo-o do mais peticionado.

Custas da ação e da apelação, provisoriamente, na proporção de metade por ambas as partes, sem prejuízo de adequada definição na ulterior liquidação e do benefício do apoio judiciário concedido a ambos os litigantes.


Escrito e revisto pelo relator.
Elaborado em computador.
Assinaturas eletrónicas.

Coimbra, 09/05/2017

Vítor Amaral (Relator)

        

Luís Cravo

Fernando Monteiro


([1]) Que se transcrevem, na parte relevante.
([2]) Processo instaurado após 01/01/2008, mas antes de 01/09/2013 e decisão recorrida posterior a esta data (cfr. sentença aludida, a fls. 174 e segs. dos autos em suporte de papel, bem como art.ºs 5.º, n.º 1, 7.º, n.º 1, este por argumento de maioria de razão, e 8.º, todos da Lei n.º 41/2013, de 26-06, e Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, ps. 14-16, Autor que refere que, tratando-se de decisões proferidas a partir de 01/09/2013, portanto, após a entrada em vigor do NCPCiv., em processos instaurados anteriormente, mas não anteriores a 01/01/2008, se segue integralmente, em matéria recursória, o regime do NCPCiv.).
([3]) Caso nenhuma das questões resulte prejudicada pela decisão das precedentes.
([4]) Assim o Ac. STJ, de 14/01/2010, Proc. 2299/05.7TBMGR.C1.S1 (Cons. Oliveira Vasconcelos), com sumário disponível em www.dgsi.pt.
([5]) Cfr., por todos, o Ac. STJ, de 23/05/2006, Proc. 06A1090 (Cons. Sebastião Póvoas), em www.dgsi.pt.
([6]) Assim, F. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2008, p. 506.
([7]) Cfr. F. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, op. cit., p. 507.
([8]) Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. IV, 2.ª ed. revista e atualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1992, p. 468, como, aliás, citado na sentença recorrida.
([9]) Cfr., op. cit., p. 469.
([10]) Já, por exemplo, na obrigação indemnizatória por responsabilidade civil extracontratual está, diversamente, em causa a reparação de um dano, causado a outrem, decorrente de facto ilícito e culposo, como tal imputável ao lesante (art.º 483.º, n.º 1, do CCiv.).
([11]) Visto como um enriquecimento real ou patrimonial, traduzindo-se este último na “diferença, para mais, produzida na esfera económica do enriquecido e que resulta da comparação entre a sua situação efectiva (situação real) e aquela em que se encontraria se a deslocação se não houvesse verificado (situação hipotética)”, sendo certo que, nesta sede, “a obrigação de restituir se pauta pelo efectivo alcance das vantagens no património do enriquecido” – assim M. J. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11.ª ed., Almedina, Coimbra, 2008, ps. 492 e seg..  
([12]) Cfr. Almeida Costa, op. cit., p. 492.
([13]) Assim Almeida Costa, op. cit., p. 492. Também Pires de Lima e Antunes Varela aludem, neste âmbito, ao uso ou consumo de coisa alheia, como, por exemplo, a instalação em casa alheia (cfr. Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 454).
([14]) Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., p. 455, quando aludem a “… um acto de intromissão do enriquecido em direitos ou bens jurídicos alheios”.
([15]) Vide ainda Almeida Costa, op. cit., ps. 495 e seg., sendo que o Autor cita também Pereira Coelho, na sua obra O Enriquecimento e o Dano, Coimbra, 1970. 
([16]) Cfr., por todos, Almeida Costa, op. cit., p. 499, e Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., p. 454.
([17]) Ver ainda Almeida Costa, op. cit., p. 501.
([18]) Como esclarecem ainda Pires de Lima e Antunes Varela – Código Civil Anotado, vol. II, 3.ª ed. revista e atualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1986, p. 685 –, a razão de ser da transferência da propriedade da coisa mutuada “está na impossibilidade prática de distinguir, no património do mutuário, designadamente tratando-se de dinheiro, aquilo que representa a coisa entregue e o que deve ser restituído”, pelo que, na “esfera patrimonial do mutuário, o mútuo tem, pois, como consequência, um aumento do activo, pelo ingresso dum direito de propriedade, e um consequente aumento do passivo, pela constituição da obrigação de restituir”. Bem se compreende, assim, que não possa o mutuante – que deixou de ter o direito de propriedade sobre o bem mutuado – usar da ação de reivindicação para restituição da coisa emprestada, diversamente do que ocorre na relação de comodato (em que se mantém a individualização da coisa ao longo da vida do contrato). O direito do mutuante tem, por isso, “por objeto, directamente, uma prestação”, a restituição de outro tando do mesmo género e qualidade (a que alude o art.º 1142.º do CCiv.), isto é, não pode exigir ao mutuário mais que “o cumprimento de uma obrigação” (assim, Pires de Lima e Antunes Varela, op. e loc. cits..
([19]) O que poderá perspetivar-se como surpreendente para a A./Apelante é que, com o empréstimo “associado” a conta bancária titulada por ambos os mutuários, e depois do acordo de ambos em considerar o imóvel como bem comum a partilhar, o R. tenha avançado, sem mais, para a venda, muito embora não se trate, por razões de ordem formal, de bem comum.

([20]) Assim o Ac. STJ, de 03/02/2009, Proc. 08A3942 (Cons. Mário Cruz), in www.dgsi.pt.
([21]) Esta, como escrito no Ac. do STJ de 07/07/2009, Proc. 704/09.9TBNF.S1 (Cons. Fonseca Ramos), in www.dgsi.pt, «é um “Termo de procedência latina (aequitas) com o significado etimológico e corrente de “igualdade”, “proporção”, “justiça”, “conveniência”, “moderação”, “indulgência”, é utilizado na linguagem da ética e das ciências jurídicas sobretudo para designar a adequação das leis humanas e do direito às necessidades sociais e às circunstâncias das situações singulares (a equidade é, por assim dizer, a “justiça do caso concreto”)».

([22]) No sentido aqui defendido, considerando que o preceituado no art.º 661.º, n.º 2, do CPCiv. (atual art.º 609.º, n.º 2, do NCPCiv.), tanto tem aplicação quanto a pedido originário genérico, sem que tenha sido possível convertê-lo em pedido específico, como relativamente a pedido inicial específico, sem obtenção subsequente de elementos que permitissem fixar, com precisão e segurança, o quantum na sentença, não obstando, pois, a dedução originária de pedido líquido a que a sentença venha a condenar em montante a liquidar ulteriormente, cfr., entre muitos outros, o Ac. do STJ, de 04/05/2010, Proc. 5002/05.8TBCSC.L1.S1 (Cons. Azevedo Ramos), em www.dgsi.pt.
([23]) Assim também, entre outros, o Ac. do STJ, de 25/03/2010, Proc. 203/2001.S1 (Cons. Sousa Leite), em www.dgsi.pt.