Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
86/20.1T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
ÓNUS DA PARTE INTERESSADA NO IMPULSO PROCESSUAL
NEGLIGÊNCIA.
Data do Acordão: 02/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – J.L. CÍVEL DE CASTELO BRANCO – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 281º, NºS 1 E 4 DO NCPC.
Sumário: 1. - Notificado o mandatário judicial da requerente de procedimento cautelar de entrega de dois veículos automóveis locados, depois de decretada a providência, de que, por terem resultado infrutíferas as diligências realizadas para localização e apreensão dos veículos e determinação do paradeiro da parte requerida, deveria requerer o que tivesse por conveniente quanto à localização e apreensão das viaturas, após o que, em novo despacho notificado, foi determinado que os autos aguardassem pelo impulso processual da requerente no sentido de requerer o que tivesse por conveniente, sem prejuízo do disposto no art.º 281.º, n.º 1, do NCPCiv., recaia sobre tal requerente, interessada no prosseguimento dos autos, o ónus de formular requerimento ajustado de impulso processual ou, ao menos, justificar o que lhe aprouvesse.

2. - Decorridos mais de seis meses a partir da última daquelas notificações, sem que algo tenha sido requerido e não justificada a inércia em promover o prosseguimento dos autos cautelares, deve ocorrer extinção da instância, por deserção (art.º 281.º, n.º 1, do NCPCiv.)

3. - Em tal caso, sendo inequívoco o prazo de deserção, bem como o momento do seu início de contagem, e claras as consequências da inércia quanto ao ónus de promover a tramitação cautelar, era desnecessária a prolação, em aviso à parte, de (novo) despacho sinalizador da cominação ou notificação para pronúncia quanto à anunciada deserção da instância.

4. - O despacho de deserção da instância, a que alude o art.º 281.º, n.ºs 1 e 4, do NCPCiv., depende da formulação de um juízo de negligência da(s) parte(s) quanto ao impulso processual a seu cargo.

5. - O comportamento aludido em 1. é revelador de negligência da parte demandante, que persistiu no seu comportamento omissivo, com falta ao cuidado/diligência devido, ao não impulsionar o processo, mesmo instada a tanto, nem justificar a sua conduta, quando sabia estar a correr o prazo do art.º 281.º, n.º 1, do NCPCiv..

Decisão Texto Integral:






Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

“C... - SOCIEDADE FINANCEIRA DE CRÉDITO, S. A.”, com os sinais dos autos, intentou providência cautelar de entrega judicial, nos termos do disposto no art.º 21.º do DLei n.º 149/95, de 24-06, na redação do DLei n.º 30/2008, de 25-02, contra

J..., também com os sinais dos autos,

pedindo – pelos fundamentos de facto e de direito que enunciou na petição inicial (p. i.) – que fosse ordenado o decretamento de providência cautelar, sem audição prévia do Requerido, com apreensão judicial e entrega imediata dos seguintes veículos:

a) Veículo ..., de matrícula ...;

b) Veículo..., de matrícula ...

Mais requereu, com o decretamento da providência cautelar, a antecipação do juízo sobre a causa principal, nos termos do disposto no n.º 7 do art.º 21.º do mesmo diploma legal (versão atual), para a resolução definitiva do litígio.

Alegou, para tanto, a falta de pagamento de diversas prestações inerentes aos contratos de locação financeira em causa (que identificou), bem como a respetiva extinção contratual, por resolução decorrente da falta de pagamento das rendas em dívida, sem que ocorresse entrega/devolução dos veículos.

Dispensada a audição prévia do Requerido, procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente.

Saneado o processo, decidiu-se assim quanto à substância cautelar do procedimento (decisão datada de 06/02/2020):

«Pelo exposto, tudo visto e considerado:

(i) Decide-se julgar procedente o presente procedimento cautelar especificado de entrega judicial – na locação financeira - e, em consequência, determina-se a imediata entrega à requerente dos seguintes bens:

(ii) a) Veículo ..., matrícula: ... – bem melhor descrito no doc. 2 já junto;

(iii) b) Veículo..., matrícula: ... – bem melhor descrito no doc. 8 já junto.

 (iv) À Requerente (representada pela G..., S.A., com morada na Rua ...).

(e conexos documentos e chaves).

(v) Custas em termos provisórios pela requerente [cf. o artigo 539.º/1, do CPCivil].

Dê cumprimento, solicitando às entidades policiais competentes a respectiva apreensão e, após a sua consumação, entrega à requerente, devendo para o efeito a requerente diligenciar pela deslocação de um seu representante junto da entidade policial que lograr a apreensão.

Operada a entrega, cumpra-se o disposto nos artigos 366.º/6 e 372.º, do CPC, devendo ainda o requerido se pronunciar nos termos e para os efeitos do n.º 7 do artigo 21.º do mencionado diploma.».

Dos autos consta certidão da GNR, datada de 11/02/2020, informando não ter sido possível localizar o Requerido ou os veículos, tendo a mãe daquele informado desconhecer o paradeiro do Requerido, bem como que as viaturas foram levadas por ele para parte incerta de França.

Em despacho datado de 05/03/2020 foi assim exarado:

«Na sequência da tentativa frustrada de apreensão, e atento o exarado no conexo auto de GNR, notifique a requerente no sentido de requerer o que tiver por conveniente, sem prejuízo do disposto no artigo 281.º/1, do Código de Processo Civil.».

Em requerimento de 06/03/2020 a Requerente expressou continuar «a manter interesse na apreensão a nível nacional» dos veículos, assim requerendo que fosse ordenado «às Autoridades competentes, a informatização da viatura a nível nacional, bem como a ordenar que o IMTT divulgue junto dos centros de inspeção técnica de veículos, os dados das viaturas dos autos para apreensão», mais requerendo «a notificação do requerido, com indicação que deve proceder à entrega dos veículos, das chaves e documentos, devendo para o efeito diligenciar pelo seu regresso de França para Portugal para que seja realizada a diligência judicial», sendo ainda aquele «informado da garantia penal da presente providência prevista no artigo 375.º do CPC.».

Dos autos consta, na sequência, certidão da PSP, datada de 15/03/2020, informando que «esta Polícia procedeu à informatização das viaturas a nível nacional», as quais «podem ser apreendidas em qualquer local e por qualquer OPC».

Foi proferido novo despacho, datado de 16/04/2020, com o seguinte teor:

«Antes de mais, averigue nas bases de dados disponíveis pela morada actualizada do requerido.

Por e-mail, oficie ao Consulado Geral de Portugal em Paris no sentido de informar os autos se o requerido aí se encontra inscrito e/ou em qualquer Consulado de Portugal em França (caso disponham de tal informação), e, na hipótese positiva, qual a respectiva morada.».

Por despacho de 04/06/2020, fez-se constar:

«Tendo em consideração o teor do expediente que antecede, notifique a requerente no sentido de requer[er] o que tiver por conveniente quanto à localização e apreensão das viaturas ajuizadas.».

E por despacho de 01/07/2020 foi determinado:

«Aguardem os autos pelo impulso processual da requerente no sentido de requerer o que tiver por conveniente, sem prejuízo do disposto no artigo 281.º/1, do Código de Processo Civil.

Notifique.».

Não tendo sido conseguida a apreensão das viaturas ou a localização/notificação do Requerido, foi proferida decisão, datada de 12/01/2021, com o seguinte teor:

«Não tendo a requerente impulsionado, entretanto, os autos, encontrando-se o vertente processo suspenso a aguardar o impulso processual da requerente há mais de seis meses, de harmonia com o disposto no artigo 281.º/1, do Código de Processo Civil, julgo deserta a instância.

Registe e Notifique.».

Inconformada, vem, então, a Requerente interpor recurso, apresentando alegação e as seguintes

Conclusões:

...

O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo neste Tribunal ad quem sido mantidos o regime e o efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento da apelação, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito do Recurso

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([1]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante NCPCiv.) –, cabe saber ([2]):

a) Se ocorre nulidade da decisão recorrida, nos termos do art.º 615.º, n.ºs 1, al.ª d), e 4, do NCPCiv. (por omissão de pronúncia, já que deveria ter-se ordenado a citação do Requerido para os termos da causa e para pronúncia sobre a antecipação do juízo da causa);

b) Se foi inobservado o princípio do contraditório (dever de audição prévia);

c) Se não estão verificados os pressupostos legais da deserção da instância, designadamente um comportamento negligente da Requerente.

III – Fundamentação

          A) Matéria de facto

A factualidade a considerar para a decisão do recurso é a que consta do antecedente relatório, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

B) Nulidade da sentença

Defende a Recorrente, se bem se interpreta a sua peça recursiva, que a omissão de pronúncia se consubstancia em não ter o Tribunal recorrido ordenado a citação do Requerido para os termos da causa e para pronúncia sobre a antecipação do juízo da causa, com o que omitiu a necessária decisão sobre tal antecipação do juízo sobre a causa principal.

Porém, reconhece no seu acervo conclusivo (cfr. conclusão T) que, nos termos do invocado n.º 7 do art.º 21.º do DLei n.º 149/95, de 24-06 (na redação dada pelo DLei n.º 30/2008, de 25-02), “Decretada a providência cautelar, o tribunal ouve as partes e antecipa o juízo sobre a causa principal, exceto quando não tenham sido trazidos ao procedimento, nos termos do n.° 2, os elementos necessários à resolução definitiva do caso”.

Isto é, é necessário, primeiro, ouvir as partes, designadamente o Requerido, por indeclinável exigência do princípio do contraditório, sabido que o demandado não pode ser a final condenado sem ter sido ouvido (sem que lhe tenha sido dada a possibilidade de se pronunciar, no âmbito do seu direito de defesa, antes da sua condenação em termos definitivos).

Em suma, a pretendida antecipação do juízo sobre a causa principal depende, sempre, da prévia observância do contraditório [proibição da indefesa, como constitucionalmente consagrado (cfr. art.º 20.º da CRPort., mormente o seu n.º 4, prevendo que todos tenham direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão mediante processo equitativo)], isto é, importa que o Tribunal ouça primeiro as partes.

Sem isso não pode haver tal pronúncia com foros de definitividade.

Doutro modo incorrer-se-ia em crassa violação do princípio do contraditório, vício que contaminaria o que fosse decidido a jusante.

Por outro lado, na decisão de decretamento da providência (esta, sim, sem contraditório prévio) ficou expressamente consignado que, operada a entrega, se cumpriria o disposto nos artigos 366.º/6 e 372.º, do CPC, devendo ainda o requerido se pronunciar nos termos e para os efeitos do n.º 7, do artigo 21.º, do mencionado diploma.

Assim, a referência àqueles art.ºs «366.º/6 e 372.º, do CPC» implica a pronúncia do Tribunal sobre a notificação do Requerido da decisão que ordenou a providência (com aplicação à notificação do preceituado quanto à citação) e quanto ao «contraditório subsequente ao decretamento da providência», âmbito em que é lícito, nos termos legais, ao requerido recorrer ou deduzir oposição, seja quanto ao decretamento da providência, seja até quanto à decisão de inversão do contencioso (cfr. art.º 372.º, n.ºs 1 e 2, do NCPCiv.).

Assim sendo, não poderá dizer-se que foi omitida tomada de posição judicial quanto à “citação”/notificação do Requerido.

E também é certo que foi determinado dever o Requerido ser notificado para se pronunciar nos termos e para os efeitos do n.º 7, do art.º 21.º, do mencionado diploma. Isto é, ser ouvido quanto à questão da requerida antecipação do juízo sobre a causa principal (resolução definitiva do caso, mediante a denominada «inversão do contencioso»).

Há omissão de pronúncia quando o Julgador deixa de pronunciar-se sobre questão – ou questões – que devesse apreciar [art.º 615.º, n.º 1, al.ª d), do NCPCiv.].

No caso, o Tribunal pronunciou-se expressamente sobre aquilo que a Requerente afirma ter sido omitido – coisa diversa é não se ter logrado a apreensão das viaturas e a decorrente notificação do Requerido, apesar das tentativas e dos esforços despendidos nesse sentido.

Improcede, pois, a argumentação da Requerente em contrário, visto ter o Tribunal a quo ordenado a notificação tendente ao cabal exercício do contraditório quanto à plenitude da pretensão da contraparte.

E só não foi decidido sobre a inversão do contencioso, por impossibilidade legal, já que não foi possível garantir/exercer/observar o princípio do contraditório.

Donde que inexista o vício de nulidade invocado.

C) Violação do princípio do contraditório

Importa agora saber se, como pretende a Apelante, foi inobservado o princípio do contraditório (quanto à decidida deserção), por omissão de audição prévia das partes (no caso, a Requerente/Recorrente) quanto à diagnosticada falta de impulso processual, em termos de imputação a comportamento negligente da aqui Demandante.

Vejamos.

Dispõe o art.º 281.º do NCPCiv. que se considera deserta a instância “… quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses” (n.º 1), sendo que “A deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator” (n.º 4).

Comparando com o antecedente art.º 291.º do CPCiv. revogado ([3]), constata-se que a alteração ocorreu quanto aos pressupostos da deserção (n.º 1), mais que no concernente ao modo de decretação (cfr. n.º 4, semelhante ao citado n.º 4 do atual art.º 281.º, quanto ao “julgamento da deserção”).

Relativamente a tais pressupostos dispunha, com efeito, o n.º 1 daquele art.º 291.º ser de considerar “deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando esteja interrompida durante dois anos”.

E complementava – quanto à interrupção da instância – o art.º 285.º daquele CPCiv. revogado: “A instância interrompe-se, quando o processo estiver parado durante mais de um ano por negligência das partes em promover os seus termos ou os de algum incidente do qual dependa o seu andamento”.

Quer dizer, é notória a evolução legal (alteração) quanto ao pressuposto temporal da deserção (encurtamento do prazo/tempo de paragem processual), sem prejuízo, porém, de sempre estar subjacente à deserção um juízo de negligência das partes – ou de alguma delas – em promover o andamento do processo (cfr. atual n.º 1 do art.º 281.º e anterior art.º 285.º, este enquanto pressuposto do também anterior art.º 291.º, n.º 1).

Assim, o juízo de negligência não é exclusivo do art.º 281.º, n.º 1, do NCPCiv., pois já estava previsto nas disposições conjugadas dos anteriores art.ºs 291.º e 285.º do CPCiv. revogado.

Acontece que nem aquelas normas do CPCiv. anterior, nem o invocado art.º 281.º, nos seus n.ºs 1 e 4, do NCPCiv., fazem qualquer referência à prévia atuação do contraditório, com obrigatória audição das partes, para pronúncia em sede de apreciação da negligência quanto ao impulso processual necessário.

Inexistindo, pois, qualquer referência específica ao contraditório em sede normativa de deserção da instância, resta recorrer ao preceito geral do art.º 3.º, n.º 3, do NCPCiv., que estabelece a “necessidade da contradição”, dispondo que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

Ora, a nosso ver, a situação dos autos enquadra-se nos casos de “manifesta desnecessidade” a que alude o citado art.º 3.º, n.º 3, do NCPCiv., pelo que não se impunha, salvo o devido respeito, ao Tribunal a quo proceder à prévia audição da Demandante.

É que a esta foi, como visto, reiteradamente sinalizada a consequência emergente da paralisação do processo, o resultado expetável da sua eventual inação processual, em termos de falta ao impulso devido dos autos.

Assim, como visto quanto às vicissitudes da tramitação processual, foi notada, desde o início, a dificuldade na localização e apreensão dos dois veículos, bem como na localização da pessoa do Requerido.

Com efeito, havendo nos autos informação policial (datada de 11/02/2020) no sentido de não ter sido possível localizar o Requerido ou os veículos – com a mãe daquele a informar o desconhecimento do paradeiro do filho e que as viaturas foram levadas por ele para parte incerta de França –, foi proferido despacho (em 05/03/2020), aludindo àquela tentativa frustrada de apreensão e ordenando a notificação da Requerente para requerer o que houvesse por conveniente, sem prejuízo do disposto no artigo 281.º/1, do Código de Processo Civil.

Isto é, logo ali se sinalizou a vigência cominatória do disposto no art.º 281.º, n.º 1, do NCPCiv., com o que ficou inelutavelmente suscitada – bem ou mal – a questão da deserção da instância, por falta de impulso processual da Requerente, tendo em conta o prazo legal e os demais pressupostos previstos naquela norma processual. A parte não pode, pois, dizer que não foi alertada para tal questão.

É certo que logo no dia seguinte (06/03/2020) a Requerente veio tomar posição, afirmando continuar a manter interesse na apreensão dos veículos, a nível nacional, assim requerendo, nessa parte, que se ordenasse às entidades competentes a informatização das viaturas a nível nacional, bem como ao IMTT no sentido da divulgação, junto dos centros de inspeção técnica de veículos, dos dados das viaturas dos autos para apreensão. Por outro lado, requereu a notificação do Requerido, com indicação que deve proceder à entrega dos veículos, das chaves e documentos, devendo para o efeito diligenciar pelo seu regresso de França para Portugal.

Encontrando o assim requerido eco no Tribunal, dos autos consta certidão da PSP, datada de 15/03/2020, informando ter procedido à informatização das viaturas a nível nacional, a poderem ser apreendidas em qualquer local e por qualquer OPC. Só que a localização e apreensão não foi conseguida.

Por isso, o Tribunal viria a ordenar, em 16/04/2020, que se averiguasse nas bases de dados disponíveis pela morada atualizada do Requerido, bem como se oficiasse ao Consulado Geral de Portugal em Paris no sentido de informar se o Requerido ali se encontrava inscrito e/ou em qualquer Consulado de Portugal em França e qual a respetiva morada. Todavia, nenhum elemento positivo também por esta via se conseguiu.

Daí a prolação do despacho de 04/06/2020, determinando a notificação da Requerente no sentido de requerer o que tivesse por conveniente quanto à localização e apreensão das viaturas [para o que aquela dispunha do prazo regra de dez dias (art.º 149.º do NCPCiv.)].

Porém, nada a Requerente veio dizer.

Foi nesta “dinâmica” processual que, na sequência, foi proferido o despacho de 01/07/2020, determinando que os autos aguardassem pelo impulso processual da Requerente (no sentido de requerer o que tivesse por conveniente, desde logo quanto à localização e apreensão das viaturas, ato prévio à notificação do Requerido para exercício do contraditório, ante o risco de extravio dos bens caso o Demandado soubesse da ordem de apreensão anteriormente à sua consumação), sempre sem prejuízo do disposto no artigo 281.º, n.º 1, do NCPCiv. (possível deserção da instância por falta de devido impulso processual).

Isto é, voltou a sinalizar-se (segunda vez) a vigência cominatória predisposta naquele art.º 281.º, n.º 1, do NCPCiv., com o que ficou, mais uma vez, suscitada – bem ou mal – a questão da deserção da instância, por falta de impulso processual, tendo em conta os pressupostos legais definidos naquela norma processual de referência.

Por isso, se conclui que a parte não deixou de ser alertada para tal questão, consabido até que se encontra devidamente patrocinada por mandatário judicial, um especialista, profundamente conhecedor das normas processuais civis com que nos regemos.

Não obstante, decorridos mais de seis meses sem qualquer outro requerimento ou impulso processual, persistindo a não apreensão – nem localização – das viaturas, ou sequer a localização do Requerido, foi decidida, em 12/01/2021, a deserção da instância ([4]).

Cabe perguntar: Não sabia a Requerente da possibilidade de decisão de deserção da instância por falta de devido impulso processual? Nesse caso, para que teria servido a cominação deixada em aberto, de aplicação («sem prejuízo») do disposto no art.º 281.º, n.º 1, do NCPCiv.?

Alertada para tal cominação legal (de possível deserção da instância), encontrando-se patentes os pressupostos legais na dita norma de referência (expressamente invocada), não poderia a Requerente deixar de saber que, se nada viesse dizer ou requerer, deixando passar o prazo legalmente previsto, se sujeitaria a ver decretada a anunciada deserção da instância.

Teve, pois, a Requerente, no entretanto, a possibilidade de formular novos requerimentos de impulso processual ou, no mínimo, justificar a sua inércia (não impulsão), de molde a afastar qualquer juízo de negligência sua, tendo podido, em qualquer caso, pronunciar-se sobre a questão assim suscitada, a da deserção da instância, o que, por opção própria, não fez.

Neste contexto, dúvidas não temos – salvo o devido respeito – de ter sido a Requerente, através da sua Mandatária judicial, elucidada claramente, mediante a prévia notificação aludida, quanto à situação de paragem dos autos, ao motivo dessa paragem e à necessidade de impulso do processo pela Demandante – fornecendo os elementos necessários à realização da apreensão frustrada, condição para o prosseguimento da ulterior tramitação processual, ou requerendo o que houvesse por conveniente –, sob pena de, decorrido o prazo de deserção da instância (o do art.º 281.º do NCPCiv., preceito expressamente mencionado no despacho notificado), e persistindo a inércia, ser tal deserção declarada/sancionada.

Assim, foi a Requerente previamente esclarecida pelo Tribunal da cabal situação dos autos e da sanção para a sua letargia processual, caso esta continuasse a verificar-se, como verificou.

Por isso, ocorre desnecessidade de observância de (novo) contraditório imediatamente anterior à decisão recorrida, pois o mesmo já havia sido atuado através das notificações precedentes.

Como referem Abrantes Geraldes e outros ([5]), atenta a diversidade de situações “que colidem com o regular andamento da causa, na apreciação do condicionalismo da deserção da instância é importante que se ponderem globalmente as diversas circunstâncias”, podendo, em certos casos, tornar-se necessário, «antes de declarar o efeito extintivo da instância decorrente da deserção, que o juiz sinalize, por despacho, ser aquela a consequência da omissão de algum ato processual». Todavia, nem sempre terá de ser assim.

Por isso, prosseguem os mesmos Autores (com relevo para o caso dos autos): «Mas o resultado já poderá ser diverso quando porventura se mostrem evidentes quer a necessidade de impulso processual a cargo da parte, quer o efeito extintivo da instância decorrente da inércia prolongada.».

 É o que ocorre no caso dos autos, em que o Tribunal sinalizara anteriormente a cominação operativa prevista na norma do art.º 281.º do NCPCiv., alertando a parte para os respetivos pressupostos e consequência.

Estamos, assim, perante um caso de manifesta desnecessidade quanto ao exercício do princípio do contraditório, a que alude o citado n.º 3 do art.º 3.º do NCPCiv., certo que a Requerente bem sabia, por para tal ter sido alertada pelo Tribunal, das consequências da sua inação processual, o que tornaria redundante uma nova notificação prevendo tais consequências, no pressuposto, não ignorado, da sua negligência em sede de impulso processual para realização da imprescindível apreensão.

Donde que improcedam as conclusões em contrário da Recorrente.

D) Não verificação de comportamento processual negligente

Por fim, pugna a Recorrente pela não verificação dos pressupostos legais da deserção da instância, designadamente um seu comportamento negligente.

Argumenta, desde logo, que o processo não se encontra em situação de paralisação, antes devendo aguardar-se «o decurso de algum tempo para que se possa verificar o resultado» das diligências policias solicitadas com vista à apreensão (conclusões M a Q).

Ora, a realidade é que os autos aguardaram esse «decurso de algum tempo», esperando desde março de 2020, sem que a apreensão alguma vez tenha sido conseguida. Não poderia, pois, o processo continuar a esperar indefinidamente, tanto mais que a Requerente nada de novo vinha requerer, em nada concorrendo para a superação dos obstáculos impeditivos da localização e apreensão das viaturas (ou da localização do Requerido).

Com o passar do tempo, sem que fosse conseguida a apreensão – doutro modo as entidades policiais teriam vindo aos autos dar conta de novos elementos, designadamente a localização e apreensão dos veículos ou de algum deles, ou a descoberta do paradeiro do Requerido –, não haveria, em condições de normalidade, que esperar sinalização de que «a diligência já não estava em curso» (conclusão Q), competindo ao Tribunal, como foi feito, ante a demora, mostrar à parte que lhe cabia impulsionar os autos, evitando um quadro processual de tendencial perpetuação, de todo indesejável.

Já quanto à omissão de «antecipação do juízo da causa», reitera-se que a pretendida “inversão do contencioso”, com decisão definitiva do litígio (extravasando o plano da tutela cautelar), sempre dependeria da boa realização de diversos atos/diligências anteriores, desde logo, a localização e apreensão dos veículos, depois a localização do paradeiro do Requerido, com vista ao imprescindível exercício do contraditório, mediante a notificação deste ([6]), seja para defesa quanto à providência decretada, seja quanto à aludida pretensão de «antecipação do juízo da causa».

Ora, esses diversos atos anteriores indispensáveis nunca foram realizados – por tal não se ter mostrado possível –, como bem sabe a Requerente, razão pela qual não se poderia, em tais condições, «decidir imediatamente a causa no procedimento cautelar», por antecipação na resolução definitiva do litígio (conclusões T, U e V), mormente sem atuação do princípio do contraditório, visto o Requerido – tem de repetir-se – nunca ter sido localizado e notificado (conclusões W e X).

Prossegue a Recorrente que o facto de o Requerido não se encontrar citado não decorre de culpa sua (conclusões AA e segs.), mas esquece que, para além de ser desconhecido o paradeiro daquele – e não ter ela trazido aos autos quaisquer elementos que ajudassem ao respetivo apuramento em tempo ([7]) –, a sua «citação» ([8]) não deveria, logicamente, preceder a localização e apreensão dos bens, sob pena de ficar frustrado o resultado da providência cautelar já decretada, por via do extravio – perigo sempre presente, mormente tratando-se de veículos automóveis, facilmente movimentáveis e ocultáveis – dos bens (por banda do Demandado) como forma de evitar abrir mão deles.

Pretende ainda a Apelante que não se verifica negligência da sua parte quanto ao impulso processual, visto ter encetado todas as diligências ao seu alcance para localização do Requerido e dos veículos e decorrente apreensão destes (conclusões DD e segs.).

Ora, se assim era, deveria a Requerente/Apelante tê-lo esclarecido nos autos, quando foi notificada para a possibilidade de subsequente deserção da instância, o que não fez, reservando-se antes a um incompreensível silêncio/inação, na perspetiva do princípio da auto-responsabilidade das partes, quanto ao impulso processual necessário à luz do disposto na norma do art.º 6.º, n.º 1, do NCPCiv..

E foi perante esta postura processual, que não deixa de ser de inércia – nem sequer foi apresentada qualquer justificação para o não impulso do processo ao longo do prazo de mais de seis meses a que alude o n.º 1 do art.º 281.º do NCPCiv. –, que o Tribunal a quo, objetivamente, considerou estarem verificados todos os pressupostos da figura processual da deserção da instância ([9]).

Juízo esse que, como se vê, a argumentação da Apelante não consegue – salvo sempre o devido respeito – contrariar, de nada servindo, finalmente, esgrimir que o Tribunal deveria ter ordenado a citação do Requerido (na indeterminação do seu paradeiro e sem prévia apreensão dos veículos?), quando é certo que a respetiva notificação já havia sido ordenada – para ser realizada no tempo processual próprio – na decisão que decretara a providência e a sua concretização esbarrava (era aqui que estava o ponto) com o evidente desconhecimento do paradeiro do Requerido (cfr. conclusões JJ a LL), nem se mostrando, por outro lado, que algum preceito legal aplicável haja sido violado na decisão em crise.

Donde, pois, a improcedência também nesta parte das conclusões em contrário da Apelante, devendo manter-se a decisão recorrida.

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IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - Notificado o mandatário judicial da requerente de procedimento cautelar de entrega de dois veículos automóveis locados, depois de decretada a providência, de que, por terem resultado infrutíferas as diligências realizadas para localização e apreensão dos veículos e determinação do paradeiro da parte requerida, deveria requerer o que tivesse por conveniente quanto à localização e apreensão das viaturas, após o que, em novo despacho notificado, foi determinado que os autos aguardassem pelo impulso processual da requerente no sentido de requerer o que tivesse por conveniente, sem prejuízo do disposto no art.º 281.º, n.º 1, do NCPCiv., recaia sobre tal requerente, interessada no prosseguimento dos autos, o ónus de formular requerimento ajustado de impulso processual ou, ao menos, justificar o que lhe aprouvesse.

2. - Decorridos mais de seis meses a partir da última daquelas notificações, sem que algo tenha sido requerido e não justificada a inércia em promover o prosseguimento dos autos cautelares, deve ocorrer extinção da instância, por deserção (art.º 281.º, n.º 1, do NCPCiv.)

3. - Em tal caso, sendo inequívoco o prazo de deserção, bem como o momento do seu início de contagem, e claras as consequências da inércia quanto ao ónus de promover a tramitação cautelar, era desnecessária a prolação, em aviso à parte, de (novo) despacho sinalizador da cominação ou notificação para pronúncia quanto à anunciada deserção da instância.

4. - O despacho de deserção da instância, a que alude o art.º 281.º, n.ºs 1 e 4, do NCPCiv., depende da formulação de um juízo de negligência da(s) parte(s) quanto ao impulso processual a seu cargo.

5. - O comportamento aludido em 1.- é revelador de negligência da parte demandante, que persistiu no seu comportamento omissivo, com falta ao cuidado/diligência devido, ao não impulsionar o processo, mesmo instada a tanto, nem justificar a sua conduta, quando sabia estar a correr o prazo do art.º 281.º, n.º 1, do NCPCiv..

V – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo, consequentemente, a decisão recorrida.

Custas do recurso pela Recorrente.

Coimbra, 23/02/2021

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas e em teletrabalho.

Vítor Amaral (Relator)

          Luís Cravo

          Fernando Monteiro


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([1]) Excetuando, logicamente, questões de conhecimento oficioso, não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([2]) Caso nenhuma das questões resulte prejudicada pela decisão de outras.
([3]) Na versão de 1995 (redação dada pelo DLei n.º 329-A/95, de 12-12).
([4]) Apesar do caráter sucinto da decisão – «Não tendo a requerente impulsionado, entretanto, os autos, encontrando-se o vertente processo suspenso a aguardar o impulso processual da requerente há mais de seis meses, de harmonia com o disposto no artigo 281.º/1, do Código de Processo Civil, julgo deserta a instância» –, perceciona-se bem o motivo/fundamento adotado, traduzido na imputada inércia negligente da Requerente em impulsionar o processo, dir-se-ia, vencida pela incapacidade/impossibilidade de trazer novos elementos que permitissem a apreensão dos veículos ou sequer a localização do Requerido.
([5]) Cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, p. 329.
([6]) Insiste-se que impõe o n.º 7 do 21.º do DLei n.º 149/95, de 24-06, na redação do DLei n.º 30/2008, de 25-02, com bons motivos, que, uma vez decretada a providência cautelar, o tribunal ouve as partes e – só depois – antecipa o juízo sobre a causa principal.
([7]) Não deixou de ser determinada averiguação nas bases de dados disponíveis pela morada atualizada do Requerido (cfr. despacho datado de 16/04/2020 e processado subsequente), sem obtenção de quaisquer novos elementos e sem qualquer novo requerimento da Recorrente nesse âmbito.
([8]) Mesmo que «edital», aliás, nunca antes requerida, por a ela só agora a Requerente aludir, em vez de o ter feito – se assim o pretendia – no tempo próprio (perante a 1.ª instância, antes de decretada a deserção), ónus que sobre si impendia, por implicar uma inflexão nas prioridades e estratégia processuais (deixar de dar prioridade à apreensão dos bens, com subsequente notificação do Requerido, para, em tramitação atípica, se começar pela sua “citação”).
([9]) Persistindo, como persistiu, no seu comportamento omissivo – nada dizendo ao Tribunal –, a Requerente/Apelante só de si mesma se poderá queixar, pois que, com essa sua conduta persistente, ocasionou a prolação da decisão recorrida, sendo clara, nesta perspetiva, a sua negligência (falta de cuidado/diligência) em tomar qualquer posição no processo, impulsionando-o ou justificando-se, quando estava, consabidamente, a correr o prazo previsto no dito art.º 281.º, n.º 1, do NCPCiv..