Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
170/09.2TBANS-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: UNIÃO DE FACTO
LIQUIDAÇÃO DE PATRIMÓNIO
Data do Acordão: 06/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ANSIÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1007.º E 1010.º DO CC ; ARTIGOS 265.º-A; 1122.º; 1123.º; 1404.º DO CPC. LEI N.º 7/2001, DE 11 DE MAIO; LEI 23/2010 DE 30 DE AGOSTO
Sumário: 1. É incompatível com a forma especial do processo de liquidação judicial de sociedades dos artigos 1122 e seguintes do CPC a declaração da existência de uma união de facto, da sua cessação e da especificação do acervo de bens que integram o activo e passivo eventualmente gerado por tal união.

2. Em termos processuais esta forma de liquidação pressupõe a declaração judicial de existência e consequente cessação da relação de união de facto.

3. Tendo decorrido acção declarativa com alegação e prova dos requisitos específicos da união de facto e, bem assim, da determinação do activo e passivo que, no termo do período em que a relação se desenvolveu, se mostrou produzido pelos membros respectivos, é de admitir que siga por apenso o processo de liquidação, de harmonia com os termos previstos nos art.º 1122 e seguintes do CPC.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A... requereu no Tribunal Judicial da Comarca de Ansião um processo especial para liquidação de património ao abrigo dos art.ºs 1007 e 1010 do CC e 1122 e seg.s do CPC contra B..., alegando, em síntese:

Entre 1986 e o final de 2002 Requerente e Requerida viveram juntos como marido e mulher num prédio urbano localizado em ..., ..., Ansião, onde, com os proventos de ambos, adquiriam os géneros alimentícios com os quais confeccionaram e tomaram refeições à mesma mesa, dormindo na mesma cama, mantendo relações de intimidade, aí recebendo a correspondência, e daí partindo para as feiras onde faziam em comum a venda de produtos hortícolas e frutícolas, regressando em conjunto a casa uma vez terminada tal actividade; com os proventos auferidos em comum pagavam também as contas de electricidade, água e telefone; adquiriram assim os bens móveis melhor identificados em 6º a 8º do articulado, com os valores aí atribuídos; porém, desde final de 2002 que Requerente e Requerida deixaram de viver juntos, rompendo todo o relacionamento que até então mantinham; sobre tais factos já correu a acção sumária que integrou a acção nº 170/09.2TBANS, cuja cópia juntam; o único processo adequado a liquidar e partilhar o acervo de bens que integra o património de uma união de facto cessada é o da liquidação da sociedade de facto que caracterizou essa união.

Remata pedindo se declare que a união de facto mantida entre Requerente e Requerida cessou por vontade de ambos; que os móveis descritos nos art.ºs 6º e 8º do Req. inicial são património comum dos membros dessa união; e se nomeie liquidatário para a partilha, devendo a Requerida apresentar-lhe aqueles bens, nos termos do art.º 1123 e seguintes do CPC.

Citada oficiosamente pela secção, a Requerida veio apresentar o que qualificou de contestação, dizendo que entre ela e o Requerente nunca existiu nenhuma sociedade de facto, que os bens que foram adquiridos em comum não são os indicados pelo Requerente, nem têm o valor que este lhes atribui, e que a vida em comum só acabou em Julho de 2003. Termina com a improcedência da acção.

O Requerente ainda surgiu com um terceiro articulado que chamou de resposta.    

No despacho saneador, a Sr.ª Juiz, aduzindo que o A. não dispunha de declaração da cessação da união de facto, a qual só poderia ser obtida em acção previamente instaurada para esse efeito, uma vez que não era o processo utilizado o próprio para a obtenção de uma tal declaração, julgou “a acção manifestamente improcedente, absolvendo em consequência o réu do pedido”.

Irresignado, deste veredicto recorreu o A., recurso admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

                                                                             *

Antes de avançar cumpre notar que embora os presentes autos tenham sido distribuídos autonomamente, cabendo-lhes o nº 315/11.2TBANS a partir de dado momento - fls. 36 -  aparece a referência Rem. Electrónica (Fin. criar apenso) passando a caber-lhe a designação 170/09.2TBANS-B, seguindo desde aí como apenso da acção sumária, já decidida, com o nº 170/09.2TBANS.

Embora não tenha sido objecto de consignação na decisão recorrida, deve aditar-se ao que consta do relatório a seguinte matéria, por constar do processo que agora passou a “principal”:

1 - Na aludida acção principal, sendo Ré B..., o aí A. A...alegou na petição:

A. e R. decidiram passar a viver em união de facto um com o outro, pese embora fosse o demandante casado, no ano de 1986 - art.º 1º;

Após tal aquisição os unidos de facto A. e R. passaram:

a) a residir na casa sob 3 b).

b) aí confeccionando e tomando as refeições na mesma mesa;

c) pernoitando e dormindo na mesma cama;

d) mantendo intimidades, afecto, carinho e relações de sexo;

e) recebendo familiares e amigos, bem como a correspondência postal;

(…)

j) a casa referida em 3º b) constituiu o centro e sede da vida pessoal de A. e R. e também o local onde, quem quisesse procurar ambos, se dirigia.

(…) - art.º 8º da p.i.;

A união de facto entre A. e R. perdurou no lapso temporal de 1986 ao final de 2002 - art.º 9º da p.i.;

No aludido lapso de temporal de 14 anos, os litigantes, então unidos de facto, foram adquirindo (como se referiu supra em 12º e 13º):

a) Uma mobília de quarto (…);

b) (...)

c) (…)

d) (…)

e) (…)

f) (…)

g) (…)

h) (…)

i) (…)

j) (…)

- art.º 14º da p.i.;

Os bens móveis e mobiliário supra referidos em 14º eram pertença de A. e R. em compropriedade e no seu conjunto tinham (como têm onde quer que a demandada os tenha escondidos) o valor global de Esc. 974.900$00 ou € 4.862,78 - art.º 29º da m. peça.

2 - Concluindo com a formulação dos seguinte pedidos de condenação da Ré:

a) a reconhecer que os móveis descritos ao item 14º são (eram compropriedade de A. R. em comum e partes iguais na proporção de metade; e

b) consequentemente, apresentar os mesmos para que deles seja feita partilha entre demandante e demandada;

c) caso assim não se venha a entender ou a julgar, de a Ré ser condenada a pagar ao A. a quantia correspondente a metade do valor dos móveis comuns a ambos, ou sejam, € 4.862,78;

d) acrescida dos juros legais civis, actualmente à taxa de 4% -ano, já vencidos, desde o dia a que se reporta o conhecimento do facto ilícito no importe de € 389,02, bem como dos vincendos à mesma taxa (ou aquela que entretanto vier a vigorar) até integral pagamento do capital;

e) e na eventual ausência de apuramento sobre os valores dos referidos móveis, a Ré condenada a pagar ao A. o que se liquidar em execução de sentença no correspondente a metade do supramencionado valor global apurado.     

3 - Na sentença oportunamente proferida ma mesma acção - e já transitada - foi a acção    julgada parcialmente procedente por provada e, em consequência, a Ré condenada a reconhecer que a televisão da marca Sharp e o aspirador da marca Hoover descritos no art.º 14º da petição inicial, adquiridos com os proventos do trabalho de ambos, são compropriedade de autor e réu em comum e partes iguais na proporção de metade, consequentemente devendo a ré apresentar os mesmos para que deles seja feita partilha entre demandante e demandada. No mais foi a Ré absolvida.

4 - No elenco dos factos provados constante da dita sentença foi nomeadamente dado como provado:

“1 - No ano de 1986, A. e R. começaram a viver juntos como se de marido e mulher se tratasse.

(…).

6 - A. e R. viveram como se de marido e mulher se tratasse desde a data referida em 1. até ao final  do ano de 2002.

(…).

8 - A. e R. adquiriram com os proventos do trabalho de ambos: 1 - Uma televisão marca Sharp com écran de 40 cm; 2 - Um aspirador marca Hoover.

                                                                             *

A apelação.     

O apelante remata a sua alegação com o enunciado conclusivo que se passa a transcrever:

1. Não havendo um regime específico para a liquidação do património adquirido no âmbito de uma união de facto, nada obsta a que se utilizem os princípios das sociedades de facto;

2. A união de facto tem de ser judicialmente declarada quando se pretendam fazer valer direitos dela dependentes;

3. Contudo não é necessário que tal declaração conste de acção autónoma proposta para esse efeito;

4. Estando em causa um erro na forma de processo, tal facto constitui uma excepção dilatória inominada que poderá conduzir à absolvição da instância e nunca à absolvição do pedido;

5. Todavia, em nome do princípio do aproveitamento possível e do princípio da adequação formal, quando se entenda estar perante um erro na forma de processo, por não se adequar às especificidades da causa, deve o juiz oficiosamente determinar a prática de actos que melhor se ajustem ao fim do processo, ou seja, proceder à correcção da sua tramitação, sendo que no caso concreto se adequaria a este entendimento a forma de processo sumário.

6. Assim, a aliás douta sentença, violou além do mais a Lei 23/2010 de 30/08, os art.ºs 199, 265-A, 288 e 1122 do CPC e 1007 e 1010 do CC.

Não houve contra- alegação.

A questão central do recurso prende-se com o saber se o processo especial de que o A. se serviu - o processo especial de liquidação previsto nos art.º 1122 e seguintes do CPC - ainda que adaptado ao abrigo do princípio da adequação formal do art.º 265-A do CPC, é o apropriado à definição de todos os pressupostos de que depende a partilha do património construído por A. e R.

Apreciando.

Tal como se observa na decisão recorrida, também se subscreve aqui a ideia de que a tutela dos interesses patrimoniais daqueles que viveram em união de facto, não estando regulada na Lei nº 7/2001 de 11 de Maio, com as alterações introduzidas pela Lei nº 23/2010 de 30 de Agosto, também não pode ser decalcada da que a lei prevê para a partilha subsequente à dissolução do casamento, isto é, do inventário com o processo dos art.ºs 1404 e seguintes do CPC.

Desde logo, não há um regime de bens a determinar a titularidade dos mesmos entre os unidos de facto, nem sequer uma situação que se possa dizer de comunhão traduzida em quotas ideais sobre a globalidade dos bens adquiridos - com bens ou trabalho - pelos dois membros da união.

Isto posto, importa analisar o tipo concreto de enquadramento que melhor caracteriza o produto patrimonial que emerge do esforço de ambos os unidos na aquisição e formação do acervo de bens por eles adquiridos durante a vivência em comum.

E não repugna que, subsumindo a actividade por eles desenvolvida durante esse período ao esquema das sociedade de facto no que concerne aos bens e direitos por eles criados pelo esforço conjunto, seja de trabalho, seja de capital, a liquidação do acervo assim alcançado se faça segundo os cânones da liquidação desse património autonomizado, com direito à participação de cada qual no saldo eventualmente apurado entre passivo e activo que se verifiquem no momento da cessação, e já não por apelo à mera divisão simplista e unidimensional que resultaria, v.g., da redutora visão de uma mera situação de compropriedade nos diversos bens ou direitos em jogo[1].

O problema que, por conseguinte, aqui especialmente se coloca é aquele que se equaciona relativamente à verificação dos pressupostos a que está condicionada a liquidação de um património adveniente de uma união fundada apenas no estado empírico de um relacionamento que, por definição, rejeitou a institucionalização e a regulamentação inerentes à vinculação matrimonial.

Se quanto ao momento da cessação da união, do estado empírico que envolve os unidos, não se suscitariam quaisquer dificuldades, uma vez que nos termos do art.º 8º, nº 1, da Lei nº 7/2001, a união se dissolve por vontade de um dos seus membros, vontade que in natura não carece sequer de ser expressamente declarada nem de ser recepcionada pelo destinatário, bastando que se deduza da inequivocidade da sua conduta - podendo até resultar tácita e obviamente da instauração do processo liquidatório - já outro tanto se não dirá da afirmação e comprovação da existência de uma efectiva união de facto, a qual, como é patente, tem ínsita no seu conceito um certo modus vivendi apenas sindicável por via da alegação e demonstração dos seus vários itens, como sejam, a habitação debaixo de um mesmo tecto, comunhão de mesa e leito, etc.

Ora, basta atentar no modelo processual da lei para a liquidação de patrimónios sociais dos art.ºs 1122 e seguintes do CPC para facilmente se perceber que nunca esse estereótipo foi concebido para nele se fazer a indispensável apreciação, não apenas da efectiva convivência entre os protagonistas da invocada união de facto à luz dos elementos que a tipificam e individualizam, e da respectiva cessação, como sobremaneira da identificação do concreto património a ser objecto de liquidação.

Para as sociedades civis ou comerciais prevê-se a dependência da acção de dissolução (art.º 1122) e, em relação a elas, dispõe o liquidatário, para além dos sinais de afectação dos móveis ao serviço da actividade social, dos pertinentes apoios dos elementos registrais e escriturais ou de inventariação que o poderão orientar na correcta incidência das operações de liquidação.

Nada disso, porém, encontrará na averiguação dos bens que possam compor o acervo dos membros da união de facto. Daí que se afigure inexorável que no momento em que se inicia o processo liquidatório não seja discutível ou sequer fonte de incertezas ou ambiguidades a base patrimonial sobre a qual deve recair o procedimento da liquidação.

O processo especial de liquidação pressupõe a dissolução da sociedade e só se segue quando esta haja sido declarada em acção prévia. Na verdade, desdobra-se em três fases visando a partilha do saldo e a extinção do património da sociedade dissolvida: a liquidação, a prestação de contas e a distribuição de saldo, ou também a partilha de bens, se houver liquidação parcial - cfr. os art.ºs 1125, 1126 e 1127 do CPC. Na verdade, não comporta, uma fase prévia declarativa da causa ou do objecto da partilha: é um processo meramente distributivo.

Neste quadro, antolha-se como incompatível com a forma especial do processo de liquidação judicial de sociedades dos art.ºs 1122 e seg.s do CPC a declaração da existência de uma união de facto entre A. e R., da sua cessação e da especificação do acervo de bens que integram o activo e passivo eventualmente gerado por tal união.

E nem sequer se pode invocar aqui, como faz o recorrente, o princípio da adequação formal da tramitação processual art.º 265-A do CPC, vista a radical incompatibilidade da forma especial do processo de liquidação de patrimónios e dos fins que este visa prosseguir.

Razão pela qual se sufraga a tese do Ac. do STJ citado na decisão recorrida[2], no sentido de que “em termos processuais esta forma de liquidação pressupõe a declaração judicial de cessação da relação de união de facto”, sufrágio que deve ainda ser compaginado com a imperiosa necessidade de, também por essa precedente via declarativa, serem igualmente alvo de alegação e prova os requisitos específicos da união de facto e, bem assim, a determinação do activo e passivo que, no termo do período em que a relação se desenvolveu, se mostrou produzido pelos membros respectivos.

Revertendo ao processo, dir-se-á que, aparentemente, estaria aberta porta para a prolação de uma decisão que por falta de um pressuposto de natureza exceptiva - excepção dilatória de direito material[3] - conduziria à absolvição dos Réus da instância - art.º 288, nº 1, al. e) do CPC.

Sucede que na acção a que este processo liquidação de património se mostra apensa, anteriormente instaurada, tendo sido aí alegado - conforme se pode constatar dos factos oportunamente elencados - que A. e R. viveram em união de facto entre 1986 e o final de 2002, e formulado pedido de condenação da Ré no reconhecimento de que - fruto dessa relação - um determinado conjunto de bens integrava o activo construído por tal união, veio a ser decretada a condenação já transitada da aí e aqui Ré “ a reconhecer que a televisão da marca Sharp e o aspirador da marca Hoover descritos no art.º 14º da petição inicial, adquiridos com os proventos do trabalho de ambos, são compropriedade de autor e réu em comum e partes iguais na proporção de metade, consequentemente devendo a ré apresentar os mesmos para que deles seja feita partilha entre demandante e demandada”. E do mais foi a Ré absolvida.

Esta condenação, além de conter os bens que se consideram resultado da vida em comum das partes, tem como antecedente lógico do seu pronunciamento a certificação de ter havido uma união de facto entre A. e Ré que apenas cessou em final de 2002.

Assim sendo, está patenteada a existência da acção prévia, com decisão final transitada, declarativa dos pressupostos da liquidação, cuja ausência vinha aludida na decisão recorrida, como justificativa do não prosseguimento do processo.

Impõe-se desta forma a sua revogação.

Pelo exposto, revogam a decisão recorrida, decretando a sua substituição por outra que início à tramitação do processo de liquidação, de harmonia com os termos previstos nos art.º 1122 e seguintes do CPC.

Custas pela parte vencida a final.

Freitas Neto (Relator)

Carlos Barreira

Barateiro Martins     


[1] Parecendo apontar neste sentido - da configuração de uma relação mais complexa, inserida numa actividade com um escopo previamente definido entre os participantes ou sócio de facto - a perspectiva de que nos dá conta o Prof. Pereira Coelho, citado pelo aresto recorrido, in RLJ, ano 120, p.80.
[2] Ac. de 9.03.2004, CJSTJ, T. I, p. 113.
[3] Segundo Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 1984, p. 284-285, a excepção material é dilatória se o direito não é exercitável no momento da decisão por falta de algum requisito material, mas pode vir a existir ou a ser exercitável mais tarde.