Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
335/13.2TBAGN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: USUCAPIÃO
SERVIDÃO DE VISTAS
JANELAS
CONCEITO JURÍDICO
Data do Acordão: 03/03/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – ARGANIL – SECÇÃO COMP. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1326º, 1363º E 1364º DO C. CIVIL.
Sumário: I – O problema que coloca a detecção e correcção de pontuais e concretos erros de julgamento é o da aferição da razoabilidade da convicção probatória do julgador, à luz das regras da ciência, da experiência e da probabilidade lógica prevalecente, o que implica que a alteração pela relação do julgamento da 1ª instância se limite aos casos de patente irrazoabilidade, aqueles em que os elementos em que tal julgamento se fundamentou são inidóneos para o efeito, à luz das mencionadas regras.

II - Não devem as restrições ao gozo, tendencialmente pleno, dos direitos de uso, fruição e disposição da coisa sobre que incide o direito de propriedade ser ampliadas a obras cuja semelhança com as expressamente individualizadas na lei seja de afastar ou se apresente bastante duvidosa.

III - Tendo em mente a natureza excepcional da restrição imposta pelo art. 1362º do CC, só será suficiente para o preenchimento do corpus e do animus necessário à posse conducente à constituição da servidão de vistas por usucapião a manutenção de “janela”, com condições de através dela se poder ver, devassar e ocupar o espaço aéreo do prédio vizinho, sobre ele se debruçando ou projectando a parte superior do corpo humano.

IV - Devem ser concebidas como irregulares as aberturas semelhantes a “frestas” e “janelas gradadas” mas com dimensões superiores e/ou situadas a uma altura inferior às indicadas, respectivamente, nos arts. 1363º e 1364º do CC– e que, nos termos anteriormente expostos, também não possam ser qualificadas como “janelas”.

V - A edificação e manutenção dessas aberturas irregulares, sem as características indicadas nos arts. 1363º e 1364º do CC, excedem o conteúdo do direito de propriedade e sujeitam o proprietário vizinho a um encargo a que este se pode opor, exigindo que as aberturas sejam afeiçoadas às condições (dimensão e afastamento do solo ou sobrado) impostas na lei. Se o proprietário vizinho não se insurgir contra o abuso cometido, a posse das utilidades daí resultantes pode originar a aquisição, por usucapião, de uma servidão predial, embora não de uma servidão de vistas atípica.

VI - E uma vez constituída essa servidão predial, o dono do prédio dominante adquire o direito de manter essas aberturas em condições irregulares, cessando o direito de o proprietário vizinho exigir a sua harmonização com a lei, mas este não perde o direito de construir até à linha divisória, mesmo que tape as aberturas, porque a restrição que cria uma zona non aedificandi, no espaço de metro e meio, só é estabelecida em relação à servidão de vistas regulada no art. 1362º.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

       M… intentou a presente acção contra A… e marido E…, pedindo que estes sejam condenados a:
- demolir e recuar a parede do lado sul do seu edifício, de forma a deixar o espaço mínimo de metro e meio em relação à janela existente na parede do lado norte do prédio da A., porque, com tal abertura, se encontra constituído um direito de servidão de vistas sobre o prédio dos RR;
- dotar o seu terraço, que deita para o prédio da A., de um parapeito de altura não inferior a metro e meio.
Os RR contestaram.
Na sentença, o Sr. Juiz, julgando a acção parcialmente provada e procedente, condenou os RR a servir o seu terraço de parapeito de altura não inferior metro e meio, na extensão de cerca de 2,5 metros que deita para o prédio da A. e absolveu-os do demais peticionado por esta.
Inconformada, a A. apelou, delimitando o recurso com conclusões que colocam as questões de saber se:
- deve considerar-se provado que há mais de 15, 20 e até 35 anos, a A. e seus antecessores usufruíram de vistas, podendo abrir a abertura e devassar o prédio dos RR, ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, convictos de serem titulares do direito de servidão de vistas e de não lesarem direitos de quem quer que fosse;
- sendo a dita abertura, existente na parede do lado norte do prédio da A., uma janela (não gradada), deve condenar-se os RR a fazer recuar a parede do lado sul do seu edifício, de forma a deixar o espaço mínimo de metro e meio em relação a tal janela.
São os seguintes os factos considerados provados pela 1ª instância:

Importa apreciar as questões enunciadas e decidir.
A matéria de facto.
Segundo a apelante, deve considerar-se provado que há mais de 15, 20 e até 35 anos, a A. e seus antecessores usufruíram de vistas, podendo abrir a abertura e devassar o prédio dos RR, ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, convictos de serem titulares do direito de servidão de vistas e de não lesarem direitos de quem quer que fosse. Para tanto, a apelante invocou o depoimento da testemunha …, conjugado com o resultado da inspecção ao local e o documento 3 da PI (planta de licenciamento apresentada pelos RR na CM).
Vejamos se, tal como pretende, a prova produzida implica a alteração do julgamento da 1ª instância por não se confirmar a razoabilidade da convicção probatória do julgador, à luz das regras da ciência, da lógica e da experiência.
Como em geral sucede, esta tarefa é norteada pela ideia de que a apreciação da prova, segundo o grau de confirmação que os enunciados de facto obtêm a partir dos elementos disponíveis, está vinculada a um conceito ou a um critério de probabilidade lógica preponderante e, especificamente, face a uma eventual divergência inconciliável de depoimentos de testemunhas, dotadas de uma razão de ciência sensivelmente homótropa, prevalecerão os contributos colhidos por essa via, que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem com tais depoimentos.
Examinemos o sentido dos elementos de prova invocados nas conclusões de recurso, começando pelo testemunho explicitamente enunciado.

No que concerne ao assunto trazido à nossa apreciação, o resultado da inspecção ao local está plasmado na decisão proferida quanto aos factos, que, neste segmento, não foi impugnada, e através dele se constata que a dita abertura existente ao nível do R/C, na parede norte da casa da A. tem, nomeadamente, as seguintes características:
- mede 55 cm de largura e 78 cm de altura;
- (no interior) dista da base do parapeito até ao soalho 87 cm;
- (no exterior) possui uma grade de ferro encastrada na estrutura da abertura, com 1cm diâmetro do ferro, constituída por nove rectângulos, tendo cada um 16 cm de largura e 26,3 cm de altura, e, imediatamente atrás, uma rede de aço cobrindo integralmente a abertura e nela fixada, com uma malha de 1,3 cm por 1cm;
- do interior, junto a tal abertura, uma vez aberto o respectivo caixilho, observa-se a existência da rede de aço e da grade em ferro supra referidas e, para o exterior, consegue-se ver parte da parede das escadas e da garagem e o portão do prédio dos RR, mas não é possível debruçar ou colocar a cabeça ou qualquer outra parte do corpo humano, seja da parte superior ou inferior da cintura humana, ou projectá-lo para fora dela;
- a mesma abertura deita directamente sobre o prédio dos RR e está implantada na parede norte da casa da A., que dista 1,26 m da parede sul da garagem dos RR.
Por outro lado, mesmo admitindo que – como diz a apelante – possa resultar da planta com que os RR instruíram o pedido de licenciamento apresentado na CM que havia sido projectada a edificação que os mesmos vieram a concretizar com um afastamento de 1,5m em relação ao prédio da A., nenhumas ilações daí se poderiam retirar para a demonstração – por ela pretendida – dos invocados actos de posse correspondentes ao exercício do direito de servidão de vistas. Daí nada de útil se colheria para poder afirmar que a A. e seus antecessores usufruíram de vistas, que podiam abrir a abertura e devassar o prédio dos RR, convictos de serem titulares de tal direito.
 Para rematar esta análise, registe-se que ao certo sabemos, sim, que a questionada abertura existe na casa da A. e aí se mantém com as referidas características, há, pelo menos, 35 anos, como também consta da decisão sobre os factos, sem impugnação.
Ora, perante o sentido dos referenciados e examinados elementos, não pode confirmar-se a versão da apelante: a manutenção, ao longo de, pelo menos, 35 anos, de tal abertura, cuja estrutura tem os contornos a que aludimos, apenas tem permitido à A. e seus antecessores as limitadas utilidades supra enunciadas: apesar da sua diminuta dimensão e dos demais dispositivos que a condicionam, como é grade de ferro e a rede fixa e não amovível – sublinhe-se –, com uma apertada malha, a abertura sempre deixa entrar na divisão (quarto) alguma claridade e também ar, uma vez aberto o respectivo caixilho para o permitir.
E é claro que essa abertura, para além da entrada de ar e luz no quarto, também faculta alguma (reduzida) visibilidade do exterior, ou como disse a testemunha nomeada no recurso, dá “para ver qualquer coisa”. Mas, tal como tal abertura tem estado equipada, essa constatação não autoriza a extrapolação sugerida pela apelante no sentido de que a A. e seus antecessores têm usufruído de “vistas” e, muito menos, de que têm podido “abrir a abertura e devassar [invadir] o prédio dos RR”, “convictos de serem titulares do direito de servidão de vistas”.
Não cuidando, nesta sede, de saber com que conteúdo o conceito “janela” é recebido no nosso ordenamento jurídico, o certo é que a questionada abertura implantada na parede da casa da A. não tem tido as utilidades inerentes a uma “janela”, tomando, por ora, a expressão apenas no seu sentido corrente ou comum, como matéria de facto, com apelo às regras da normalidade social e da experiência comum: a A. e os seus antepossuidores, ao longo do tempo (pelo menos 35 anos), não puderam, simplesmente, abrir tal abertura e, através dela, usufruir regularmente das vistas – em tudo o que ultrapasse a muito reduzida visão já aludida – e debruçar-se sobre o prédio que é agora dos réus, enfim, servir-se dela como “janela”, porque a tanto obstaria a sua concreta dimensão e configuração, designadamente quanto à rede e à grade nela encastradas ([1]).
Todos os aduzidos elementos, conjugados entre si e com os factos admitidos como provados, analisados criticamente, segundo o indicado critério de probabilidade lógica prevalecente, facultam as expostas ilações quanto à matéria em apreço, incompatíveis com o acolhimento do sentido por que pugnou a apelante quanto aos pontos referidos no recurso. Assim, perante a prova produzida, pensamos que não se detecta qualquer pontual e concreto erro de julgamento ou patente irrazoabilidade na convicção probatória formada pelo julgador (com imediação ([2])) e improcedem as conclusões de recurso, pelo que a apelante não obtém a alteração visada.
Os pressupostos do direito de servidão de vistas.
Como vimos, no caso em apreço, ao longo de, pelo menos, 35 anos, vem sendo mantida no prédio ora da apelante a abertura pela mesma invocada, com características que apenas permitem a entrada de alguma claridade e também ar, a par de alguma (reduzida) visibilidade para o exterior, mas não que uma qualquer pessoa projecte para fora a cabeça ou outra parte do corpo e, portanto, por maioria de razão, que se debruce ou devasse o prédio vizinho. Realmente, trata-se de um mero postigo ou janelo, com 55 cm de largura por 78 cm de altura, que tem incrustadas na parede e ligadas materialmente a esta – não amovíveis, portanto – uma grade de ferro, constituída por nove rectângulos, cada um com 16 cm de largura por 26,3 cm de altura, e, imediatamente atrás, uma rede de aço, com uma malha de 1,3 cm por 1cm.
Vejamos.
Servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo do outro prédio pertencente a um dono diferente, podendo ser objecto da servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante (cf. arts. 1543° e 1544° do CC ([3])).
Dispõe o artigo 1360º que: «O proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio».
Por sua vez, o artigo 1362º estabelece que:
«1. A existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, em contravenção do disposto na lei, pode importar, nos termos gerais, a constituição de uma servidão de vistas por usucapião.
2. Constituída a servidão de vistas, por usucapião ou outro título, ao proprietário vizinho só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras mencionadas no nº 1 o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão destas obras.».
E, porque tem alguma conexão com a factualidade assente, convém também registar que preceitua o art. 1364º (conjugado com o precedente art. 1363º) que não se consideram abrangidas por tais restrições as «aberturas, quaisquer que sejam as suas dimensões, igualmente situadas a mais de um metro e oitenta centímetros do solo ou do sobrado, com grades fixas de ferro ou outro metal, de secção não inferior a um centímetro quadrado e cuja malha não seja superior a cinco centímetros».
Por fim, não pode olvidar-se que:
Não é permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei (art. 1306º) e daí que as restrições aos direitos de construir ou edificar sejam excepções ao livre e tendencialmente pleno gozo dos direitos de uso, fruição e disposição da coisa sobre que incide tal direito (art. 1305º).
Por assim ser, não devem as excepções advindas dessas restrições ser ampliadas a obras cuja semelhança com as expressamente individualizadas na lei seja de afastar ou se apresente bastante duvidosa. Logo, mantendo sempre em mente a natureza excepcional da restrição imposta pelo art. 1362º, só a verificação da eventual existência duma abertura em contravenção com o disposto na citada norma (art. 1360º), portanto edificada em termos compatíveis com o enquadramento jurídico oferecido pela respectiva definição legal (“janela”) – no confronto com as realidades previstas nos arts. 1363º e 1364º (“frestas, seteiras, óculos para luz e ar” ou “janelas gradadas”) – poderá vir a importar, nos termos gerais, a constituição da servidão de vistas por usucapião. E a simples manutenção de uma “janela”, naquela acepção, ou seja, em condições de através dela se poder ver e devassar o prédio vizinho, será suficiente para o preenchimento do corpus e do animus necessário à posse conducente à usucapião.
Ao estabelecer um regime diferente para a “janela”, relativamente às demais aludidas realidades, a lei usa a expressão com o sentido que tem na linguagem corrente, sem lhe oferecer qualquer outro conteúdo. Todavia, nos termos assim expressos, a restrição imposta pelo art. 1362º só pode ser aplicável, no que aqui interessa, a aberturas/“janelas” que, pelas suas características, a justifiquem, em face da sua razão de ser e da sua excepcionalidade.
Na verdade, a servidão de vistas não se exerce com o facto de se desfrutar as vistas sobre o prédio vizinho, mas antes com a manutenção de uma janela – a obra que aqui relevaria –, em condições de, através dela, se poder ver e devassar esse prédio. Podemos, pois, precisar que o objecto da restrição em causa não é propriamente a visibilidade – muita ou pouca – sobre o prédio vizinho, mas a existência de uma janela que deite sobre o prédio vizinho, nas condições previstas naquele art. 1360°. «Pode a janela ou a porta estar fechada, desde que o não seja, definitivamente, com pedra e cal, que a servidão não deixa de ser exercida», como é explicado por P. Lima e A. Varela ([4])
E adiantam os mesmos Autores: a lei pretende «facilitar as relações de vizinhança, não impedindo aqueles actos que não afectam gravemente os interesses do vizinho e que, pelo seu exercício continuado, poderiam conduzir à constituição de servidões». «Começam somente os prejuízos a ser atendíveis, se existir um parapeito, porque, neste caso, tal como numa janela, a pessoa pode debruçar-se, ocupando parcialmente o prédio alheio, e arremessar com facilidade objectos para dentro deste» ([5]). «É dupla a finalidade da limitação [estabelecida no art. 1360º]. Por um lado, pretende-se evitar que o prédio vizinho seja facilmente objecto da indiscrição de estranhos. Por outro lado, quer-se impedir que o prédio seja facilmente devassado com o arremesso de objectos» ([6]).
O que também significa que não são propriamente (apenas) as vistas que interessam, mas o devassamento, ou melhor, a possível ocupação do terreno vizinho, a intromissão no espaço aéreo deste e possível arremesso de objectos, como ensinou o Prof. Pires de Lima ([7]): «Basta que, no parapeito de uma janela ou dum terraço, a pessoa se debruce numa atitude natural, ou estenda um braço, para que haja violação do direito de propriedade alheia, e é isso o que importa evitar».
Ainda na doutrina, salienta o Prof. Henrique Mesquita ([8]) que:
«(…) as janelas e as frestas são aberturas feitas nas paredes de edifícios, mas que se distinguem não só pelas respectivas dimensões, como pelo fim a que se destinam. As frestas são aberturas estreitas, que têm apenas por função a entrada de luz e ar. As janelas, além de serem mais amplas do que as frestas, dispõem, de um parapeito onde as pessoas podem apoiar-se ou debruçar-se e desfrutar comodamente as vistas que tais aberturas proporcionam, olhando quer em frente, quer para os lados, quer para cima ou para baixo.
No nosso direito antigo (...) considerava-se janela toda a abertura, deixada na parede de um edifício, por onde coubesse uma cabeça humana.
Mas este critério, que foi formulado para edificações que apresentavam com frequência, em virtude das técnicas de construção ou dos materiais utilizados, aberturas (janelas) de dimensões muito exíguas, não parece hoje o mais adequado.».
[No] «conceito de janela devem incluir-se apenas as aberturas através das quais possa projectar-se a parte superior do corpo humano e em cujo parapeito as pessoas possam apoiar-se ou debruçar-se, para descansar, para conversar com alguém que esteja do lado de fora ou para disfrutar as vistas».
Idênticas considerações se colhem da jurisprudência:
«As aberturas situadas na parede exterior de um edifício que deitem directamente para o imóvel contíguo e alheio, podem permitir a constituição de uma servidão de vistas, se tiverem as características previstas no art. 1362º, em confronto com o disposto no art. 1363º, ambos do Cód. Civil, para serem classificadas como janelas. A diferença entre janelas e frestas está, além das suas dimensões, na finalidade de umas e outras. Assim, as janelas além de terem maiores dimensões, devem, em princípio, permitir através delas, a projecção da parte superior do corpo humano e ser dotadas de parapeito onde as pessoas possam apoiar-se ou debruçar-se para descansar, conversar com alguém que esteja do lado de fora ou para desfrutar as vistas, olhando quer em frente, quer para os lados, ou para cima e para baixo. Por seu lado, as frestas sendo de menores dimensões, e situando-se a altura superior a 1,80 metros do sobrado e do solo do prédio vizinho, não são servidas de parapeito e não permitem a projecção através dela do corpo humano sobre o prédio vizinho([9]).
«(…) as janelas, em sentido jurídico, além de darem ar e luz, permitem o devassamento do prédio vizinho, isto é, nos termos do artº. 1360º nº. 1 do Código Civil, têm de ser tais que “deitem directamente sobre o prédio vizinho”, por forma a permitirem o seu devassamento ou o debruçar pelo dono da janela» ([10]).
«(…) Embora as aberturas em causa permitam aos recorrentes avistar o prédio dos recorridos, a sua estrutura não é vocacionada para o desfrute da utilidade das vistas em termos de direito real de servidão a que se reporta o artigo 1362º, (…) Assim, embora se trate de aberturas de maiores dimensões do que aquelas que a lei reserva às frestas, e permitam avistar o prédio dos recorridos, e, porventura, de algum modo, devassá-lo, não foram construídas para o desfrute das vistas» ([11]).
Por conseguinte, a manutenção de uma abertura que não disponha de tal enquadramento fáctico e, consequentemente, jurídico não implica a futura constituição de servidão de vistas, porquanto não é possível a constituição, por usucapião, de uma servidão de vistas atípica ([12]), pelo que o proprietário vizinho, ao levantar edifício ou outra construção no seu prédio, não está obrigado a deixar entre o novo edifício ou construção e uma tal abertura o espaço mínimo de metro e meio.
Ora, as particularidades do postigo aqui invocado pela apelante, se não consentem a sua qualificação como “janela gradada” – porque, não obstante a sua aparência, se situa a menos de um metro e oitenta centímetros do sobrado – também não o deixam caber no conceito de janela, para efeitos do artigo 1360º, respeitante a aberturas mais amplas, que permitem não apenas a entrada de luz e ar mas, ainda, a devassa do prédio vizinho. Só esta concepção se adequa à finalidade prosseguida com a restrição pelo legislador que é a de evitar que o prédio vizinho possa ser devassado ou ser facilmente objecto da indiscrição de estranhos – o que sucederá sempre que sobre ele as pessoas se possam debruçar –, e impedir que seja devassado com o arremesso de objectos.
Confirmando-se que a abertura de que se trata nesta acção não é uma “janela”, para os efeitos previstos nos artigos 1360º e 1362º, uma “fresta” (art. 1363º) ou uma “janela gradada” (art. 1364º), qual é, então, a qualificação que lhe cabe?
As aberturas com dimensões superiores ou situadas a uma altura inferior às indicadas no citado art. 1363º devem ser concebidas como frestas ou aberturas irregulares, o que também deve suceder com as “janelas gradadas”, que se encontrem em idênticas condições (art. 1364º) e não possam ser qualificadas como janelas.
Tem sido questionado se a manutenção dessas aberturas, «em desconformidade com a lei, pode, uma vez decorrido o lapso temporal necessário à usucapião, fazer nascer algum direito que os proprietários vizinhos tenham de respeitar (designadamente se a essas frestas irregulares é aplicável o regime relativo às janelas abertas em contravenção do estabelecido no artº. 1360º/1) ou se, ao invés, estes podem, a todo o tempo, exigir a modificação dessas frestas e a sua colocação em conformidade com o regime legal, ou levantar construção que as tape, impedindo que o ar e a luz continuem a entrar por elas([13]).
 A edificação e manutenção dessas aberturas, sem as características indicadas nos arts. 1363º e 1364º, excedem o conteúdo do direito de propriedade e sujeitam o proprietário vizinho a um encargo a que este se pode opor, exigindo que as aberturas sejam afeiçoadas às condições (dimensão e afastamento do solo ou sobrado) impostas na lei. Se o proprietário vizinho não se insurgir contra o abuso cometido, a posse das utilidades daí resultantes pode originar a aquisição, por usucapião, de uma servidão predial, embora não de uma servidão de vistas atípica, como se disse.
E uma vez constituída essa servidão predial, o dono do prédio dominante adquire o direito, que não tinha até então, de manter essas aberturas em condições irregulares e cessa o direito de o proprietário vizinho exigir a sua modificação e harmonização com a lei. Mas não mais do que isso: «o proprietário vizinho não perde o direito de construir mesmo junto à linha divisória, mesmo que tape as frestas, “porque a restrição que cria uma zona non aedificandi, não permitindo edificar no espaço de metro e meio, medido a partir dos limites do prédio, só é estabelecida pela lei em relação à servidão de vistas regulada no artº. 1362º, em cujo campo de aplicação se não incluem as frestas”. Vale isto dizer que “o proprietário que abre frestas em desconformidade com a lei fica, após o decurso do prazo da usucapião, exactamente na mesma situação jurídica que resulta da abertura de frestas regulares: o vizinho não pode reagir contra a violação cometida, exigindo que as frestas sejam tapadas ou modificadas; mas mantém o direito de, a todo o tempo, construir no seu prédio, ainda que vede ou inutilize tais aberturas”» ([14]).
«A existência de aberturas que não respeitando os limites previstos para as frestas no art. 1363º, nº 2 do Cód. Civil, mas que não permitem a referida projecção das pessoas sobre o prédio vizinho, apenas permitindo a entrada de ar e luz, pode levar à constituição de uma servidão predial, mas não de servidão de vistas impeditiva de o proprietário do prédio vizinho levantar construção que tape aquelas aberturas» ([15]).
Decorre do exposto que, não se demonstrando a existência de qualquer servidão de vistas, não ocorre a limitação estabelecida no nº 2 do art. 1362º e o janelo invocado no recurso só pode ser qualificado como abertura irregular, pelo que, mesmo que devesse ter-se por constituída por usucapião a servidão predial correspondente às utilidades através dele colhidas, não estariam os apelados impedidos de ter construído até à linha divisória, ainda que tapassem ou inutilizassem o postigo, o que estiveram longe de concretizar porque implantaram a sua (nova) edificação a 1m26cm do prédio da A.
Aliás, numa rápida nota final, esta última aferição permite observar que: 1º) não pode omitir-se que tal direito, a existir, teria de ter sido gerado com a violação do direito de propriedade incidente sobre o prédio vizinho, ora dos RR ([16]); 2º) o janelo proporciona uma muito reduzida visibilidade para o exterior, na qual, por certo, não teria impacto significativo o facto de a edificação vir a ser recuada em 24cm (para 1m50cm); 3º) ao invés, seria de algum vulto a demolição e posterior reconstrução de, pelo menos, parte de tal edificação dos RR.
Como tal, parece óbvia a enorme desproporção entre a eventual vantagem da A. na demolição e subsequente reconstrução da obra e os prejuízos que estas necessariamente acarretariam aos RR. Por conseguinte, ainda que se demonstrasse a existência da sustentada servidão de vistas, seria inevitável reconhecer que a pretensão da A. de que os RR fizessem recuar em (apenas) 24cm a sua edificação teria de improceder, por constituir um abuso do seu putativo direito. Esse exercício constituiria uma ofensa ao sentimento jurídico socialmente dominante, por exceder, manifestamente, os limites impostos pelos bons costumes e pelo fim social do mesmo direito (cf. art. 334°).
Síntese conclusiva.
1ª - O problema que coloca a detecção e correcção de pontuais e concretos erros de julgamento é o da aferição da razoabilidade da convicção probatória do julgador, à luz das regras da ciência, da experiência e da probabilidade lógica prevalecente, o que implica que a alteração pela relação do julgamento da 1ª instância se limite aos casos de patente irrazoabilidade, aqueles em que os elementos em que tal julgamento se fundamentou são inidóneos para o efeito, à luz das mencionadas regras.
2ª - Não devem as restrições ao gozo, tendencialmente pleno, dos direitos de uso, fruição e disposição da coisa sobre que incide o direito de propriedade ser ampliadas a obras cuja semelhança com as expressamente individualizadas na lei seja de afastar ou se apresente bastante duvidosa.
3ª - Tendo em mente a natureza excepcional da restrição imposta pelo art. 1362º do CC, só será suficiente para o preenchimento do corpus e do animus necessário à posse conducente à constituição da servidão de vistas por usucapião a manutenção de “janela”, com condições de através dela se poder ver, devassar e ocupar o espaço aéreo do prédio vizinho, sobre ele se debruçando ou projectando a parte superior do corpo humano.
4ª - Devem ser concebidas como irregulares as aberturas semelhantes a “frestas” e “janelas gradadas” mas com dimensões superiores e/ou situadas a uma altura inferior às indicadas, respectivamente, nos arts. 1363º e 1364º do CC– e que, nos termos anteriormente expostos, também não possam ser qualificadas como “janelas”.
5ª - A edificação e manutenção dessas aberturas irregulares, sem as características indicadas nos arts. 1363º e 1364º do CC, excedem o conteúdo do direito de propriedade e sujeitam o proprietário vizinho a um encargo a que este se pode opor, exigindo que as aberturas sejam afeiçoadas às condições (dimensão e afastamento do solo ou sobrado) impostas na lei. Se o proprietário vizinho não se insurgir contra o abuso cometido, a posse das utilidades daí resultantes pode originar a aquisição, por usucapião, de uma servidão predial, embora não de uma servidão de vistas atípica.
6ª - E uma vez constituída essa servidão predial, o dono do prédio dominante adquire o direito de manter essas aberturas em condições irregulares, cessando o direito de o proprietário vizinho exigir a sua harmonização com a lei, mas este não perde o direito de construir até à linha divisória, mesmo que tape as aberturas, porque a restrição que cria uma zona non aedificandi, no espaço de metro e meio, só é estabelecida em relação à servidão de vistas regulada no art. 1362º.

Decisão.
Pelo exposto, julgando improcedente a apelação, decide-se confirmar a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
                   Coimbra, 03/03/2015


***

Alexandre Reis (Relator)
Jaime Ferreira

Jorge Arcanjo


[1] Tudo bem espelhado nas fotografias reproduzidas como docs. 2 e 3 da contestação.
[2] Devendo anotar-se que a falta desta imediação, designadamente a da resultante da observação in loco da realidade física, sempre imporia alguma cautela numa afirmação com tal sentido.
[3] A este diploma pertencerão os preceitos que venham a ser citados, sem indicação de origem.
[4] CC Anot. III, 2ª ed., p. 219.
[5] Ob. citada, p 215.
[6] Ob. citada, p 212.
[7] In RLJ, 99º-240.
[8] In RLJ, nº 128, pp. 149 e ss., em anotação ao Ac. do STJ de 3/4/1991.
[9] Ac. STJ  de 1/4/2008 (07A3114-João Camilo).
[10] Ac. do STJ de 26/2/2004 (03B3498-Santos Bernardino).
[11] Ac. do STJ de 26/6/2008 (08B1716 - Salvador da Costa).
[12] Neste sentido, os Ac. da RP de 21/9/2000, CJ 4º/189, e de 11/1/1996, CJ 1º/194.
[13] Cf. citado Ac. do STJ de 26/2/2004.
[14] Cf. citado Ac. do STJ de 26/2/2004.
[15] Cf. citado STJ  de 1/4/2008.
[16] Se, porventura, fosse estribado na tolerância dos titulares deste, então, não teria existido a posse das “vistas”.