Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4374/12.2TBLRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: PODER DISCRICIONÁRIO
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
ARTICULADOS
JULGAMENTO
Data do Acordão: 01/27/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – 1ª SECÇÃO DE COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 152º, 590º E 591º DO NCPC.
Sumário: I – O “uso do poder discricionário” só pode ser exercido nos casos, contados, em que a lei o consinta e com os limites e fins previstos na norma que o permite.

II - O despacho que não respeite essa tríplice circunstância é um despacho ilegal e, nessa medida, passível de recurso.

III - Em processo de insolvência não é legalmente permitido proferir despacho de aperfeiçoamento, atinente a suprir insuficiências da matéria de facto alegada na petição inicial, em sede de audiência de julgamento, esgotada a produção de prova e alegações orais.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - HISTÓRICO DO PROCESSO

                1.            M… e R… requereram a insolvência de “A…, Lda”, com fundamento em terem sido seus trabalhadores e de não lhes terem sido pagos salários de 2 meses, nem a indemnização devida por antiguidade. Mais alegaram que a Requerida não tem bens, já ter suspendido pagamentos a fornecedores e ter dívidas avultadas, quer ao Estado quer a particulares.

                Citada para o efeito, a Requerida deduziu oposição, impugnando os créditos dos Requerentes e a demais factualidade alegada a respeito da sua situação económico-financeira.

                De seguida procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, na qual se selecionaram os factos assentes e se procedeu à produção de prova quanto à matéria de facto controvertida.

                Em 11.10.2013 a M.mª Juíza proferiu o seguinte despacho:

«Os AA. alegam na petição inicial que foram trabalhadores da A., nada alegando quanto ao contrato de trabalho, nomeadamente remuneração em vigor para os anos de 2011 e 2012, bem como relativamente ao subsídio de alimentação.

No artigo 9º e 10º alegam os AA. conclusivamente os montantes de que se arrogam credores da R., sendo certo que o tribunal desconhece a forma como os mesmos calcularam tais créditos, salientando-se que a R. nega que assista aos AA. qualquer direito de crédito sobre si.

Ora, e salvo melhor entendimento, impõe-se que os AA. aleguem os factos que permitirão ao tribunal determinar se os mesmos detêm um crédito sobre a R. e, no caso afirmativo, que permitirão ao tribunal, ao abrigo da lei laboral aplicável, calcular o montante desse crédito.

O tribunal, pela alegação dos AA., não tem conhecimento dos factos necessários à decisão de tal questão, sendo certo que o tribunal não pode pronunciar-se relativamente à matéria dos artigos 9º e 10º como provada ou não provada, por ser manifestamente conclusiva.

Impõe-se, por isso, que os AA. complementem tal matéria de facto e que juntem os documentos que provem a mesma, ou, sendo caso disso, que indiquem nos autos documentos eventualmente já juntos para prova desses factos.

Do mesmo modo, impõe-se que os AA. aleguem os factos referentes ao processado por eles seguido para a suspensão e posterior resolução dos contratos de trabalho e respetivos fundamentos, para que o tribunal, apurada essa matéria de facto, a subsuma à legislação laboral vigente em ordem a aferir da (in)validade da resolução operada, tanto mais que o invocado direito à indemnização por antiguidade está dependente da prévia verificação da validade da resolução do contrato de trabalho.

Por todo o exposto, notifique os AA. para, no prazo de 10 dias, apresentar articulado no qual complementem a petição inicial relativamente a estes pontos da matéria de facto e arrolem a prova complementar a produzir sobre a mesma.

Junto tal articulado pelos AA., concede-se à R. o prazo de 10 dias para se pronunciar relativamente à mesma.

(…)».

2.            Inconformada com tal decisão, dela apelou a Requerida, formulando as seguintes CONCLUSÕES: 

1) O despacho sob recurso, na parte em que notifica os Requerentes para apresentarem articulado no qual complementem a petição inicial relativamente à matéria do Contrato de Trabalho, Créditos sobre a Requerida e Suspensão do Contrato de Trabalho, é ilegal e absolutamente extemporâneo, na medida em que é proferido após o encerramento da audiência final – artigo 607º, nº 1, a contrario, aplicável por força do disposto no artigo 17º do CIRE.

                2) Consistindo o presente processo num Processo de Insolvência, cuja tramitação se encontra regulamentada no CIRE, o referido despacho de aperfeiçoamento, a existir, deveria ter sido proferido em momento anterior à citação da Requerida ou, quando muito, até ao início da Audiência de Discussão e Julgamento, antes, portanto da realização da mesma – artigo 27º do CIRE.

3) Acaso o legislador quisesse ter permitido o convite, por parte do Tribunal junto das partes, ao aperfeiçoamento dos seus articulados, após o encerramento da Audiência de Discussão e Julgamento, tê-lo-ia feito constar expressamente no artigo 607º do CPC.

                4) O despacho sob recurso põe em crise o Princípio do Dispositivo, o Princípio da auto-responsabilidade das partes e o Princípio da Eventualidade ou da Preclusão.

                5) Num processo de Insolvência, e em termos de ónus da prova, cabe ao Requerente credor alegar e provar a existência do crédito, e ao Devedor-Requerido a prova da sua solvência (artigo 25º e artigo 30º nº 4 do CIRE).

                6) Os Requerentes, no seu articulado, procedem à narração dos factos que, em seu entendimento, conduzem à existência do crédito que se arrogam, tendo indicado prova testemunhal e junto prova documental atinente aos ditos factos.

                7) É às partes que incumbe alegar os factos principais da causa, isto é, os que integram a causa de pedir.

                8) A falta de alegação dos factos constitutivos do direito do autor, gerando a falta ou a deficiência da causa de pedir, origina a absolvição do réu.

                9) Tendo o Tribunal de Primeira Instância considerado, após realização de Audiência de Discussão e Julgamento, com produção integral da prova apresentada pelas partes, não ter «conhecimento dos factos necessários» à questão da existência do crédito laboral dos Requerentes sob a Requerida, deveria o mesmo ter proferido sentença que absolvesse a Requerida do pedido.

                10) A douta sentença sob recurso violou, por erro de interpretação e ou de aplicação os Artigos 25º, 27º, 35º do CIRE e Artigos 5º, 607º a contrario, do CPC.

Termos em que, e no muito que V. Exas se dignarão suprir, deve o douto despacho sob recurso ser revogado, e proferida Decisão conforme for de direito.».

3.            Os Requerentes recorridos contra-alegaram, CONCLUINDO que:

«I – É inadmissível o presente recurso, porquanto o despacho recorrido é irrecorrível ao abrigo do preceituado no nº 7 do artigo 590º do CPC;

II – Contrariamente ao que sustenta a Recorrente, é irrelevante a fase processual em que o juiz suscita o aperfeiçoamento dos articulados, sendo que o que releva é a natureza desse despacho;

III – Se o seu teor for o mesmo, seja na fase dos articulados, seja na fase do julgamento, é indubitável que se trata de despacho irrecorrível, porque não vinculado, enquadrado no âmbito dos poderes discricionários do juiz;

IV – Ora, como é sabido, os despachos proferidos no uso de um poder discricionário são, desde logo, insindicáveis por meio de recurso, de acordo com o preceituado no artigo 630º nº 1;

V – Por outro lado, tendo o juiz salvaguardado o princípio do contraditório, não se vê de que forma o despacho recorrido possa prejudicar a recorrente, pelo que, também por aqui, é irrecorrível o despacho em crise;

VI – Ainda que assim se não considere, o que só por mera cautela de patrocínio se admite, sempre se dirá que não assiste razão à recorrente, na medida em que, mesmo na fase imediatamente anterior à sentença, cabe no âmbito dos poderes do juiz o convite ao aperfeiçoamento, desde que o juiz não tenha ficado convenientemente esclarecido, como foi, de resto, o caso;

VII – Tal resulta desde logo, quanto a nós, da formulação do nº 1 do artigo 607º do CPC, ao qual, ao invés de ter violado – como defende a recorrente – a juiz a quo deu cumprimento de uma forma legítima e atempada, tendo, além do mais, salvaguardado o princípio do contraditório;

VIII – Deverá, por isso, permanecer intacto o despacho recorrido, por inexistirem razões, quer de facto, quer de direito que imponham a sua revogação.

Assim decidindo, farão V.s Ex.ªs a costumada Justiça.».

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

4. O MÉRITO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 684º nº 2 e 3, art. 685º-A nº 1 e 660º n.º 2 Código de Processo Civil (CPC).

                QUESTÕES A DECIDIR:
· Como questão prévia suscitada pelos Recorridos, se o despacho em crise é irrecorrível
· Como questão objeto do recurso, se em sede de audiência de julgamento pode ainda ser proferido despacho de aperfeiçoamento da petição inicial

4.1.                DA (IR)RECORRIBILIDADE DO DESPACHO

                Terminada a produção de prova, em sede de audiência de julgamento, a M.mª Juíza proferiu despacho determinando a notificação dos Requerentes para apresentar “articulado no qual complementem a petição inicial relativamente a estes pontos da matéria de facto [considerando que o alegado em 9º e 10º integram conclusões, pretendia-se a alegação de factos demonstrativos do seu crédito face à Recorrida] e arrolem a prova complementar a produzir sobre a mesma.”

                Entendem os Recorridos que tal despacho é irrecorrível, face ao art. 508º nº 6 e 590º nº 7 do Código de Processo Civil (de futuro, apenas CPC), ex vi do art. 17º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (de futuro, apenas CIRE).

                Iniciando a abordagem pelo CIRE [[1]], conclui-se que nenhuma das normas que se referem aos recursos (14º, 42º, 45º, 78º, 207º nº 2, 255º nº 1, 258º nº 4, 259º nº 3 e 272º nº 2) tratam de situações como a aqui em causa.

                Passando então ao regime geral do CPC [[2]], temos o art. 590º nº 7, determinando que “Não cabe recurso do despacho de convite ao suprimento de irregularidades, insuficiências ou imprecisões dos articulados”.

                Conexionado com este preceito, pode ainda chamar-se à colação o art. 630º nº 1: “Não admitem recurso os despachos de mero expediente nem os proferidos no uso legal de um poder discricionário”.

                Que o despacho recorrido foi proferido no uso de um poder discricionário constitui, aliás, um dos argumentos dos Recorridos para sustentar a sua posição da respetiva irrecorribilidade.

                Quanto ao conteúdo do poder discricionário, o art. 152º nº 4 do CPC considera “proferidos no uso legal de um poder discricionário os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador”.

                Ou seja, o uso do poder discricionário em determinada circunstância tem de estar legalmente previsto.

                Reconhecendo-se a impossibilidade de regulamentação da multiplicidade de circunstâncias concretas que podem ocorrer num determinado processo, e pretendendo-se que a decisão final do processo seja a mais adequada a essas circunstâncias concretas (um processo equitativo, afinal), a previsão de hipóteses de uso dum poder discricionário constitui uma válvula de escape ao rigor processualístico.

                Porém, porque discricionariedade não pode confundir-se com arbitrariedade, o uso desse poder-dever pelo juiz só poderá ser exercido nos casos, contados, em que a lei o consinta e com os limites e fins previstos na norma. O dito “uso legal” a que se refere o art. 152º nº 4 do CPC.

                Neste sentido, Freitas do Amaral [[3]]: «Mas mais: para além de só existir com fundamento na lei, o poder discricionário só pode ser exercido por aqueles a quem a lei o atribuir, só pode ser exercido para o fim com que a lei o confere, e só deve ser exercido de acordo com certos princípios jurídicos de actuação.».   

                Ainda sobre o assunto, e citando Castro Mendes, refere Lebre de Freitas [[4]]: «Constituem despachos proferidos no uso legal de um poder discricionário aqueles que o juiz livremente profere ao abrigo de uma norma que, perante determinado circunstancialismo, lhe confere "uma ou mais alternativas de opção, entre as quais o juiz deve escolher em seu prudente arbítrio e em atenção [aos] fins do processo civil (...).».

Para Marcello Caetano [[5]], a discricionariedade «(...) traduz o reconhecimento pelo legislador da impossibilidade de prever na norma toda a riqueza e variedade das circunstâncias em que o órgão pode ser chamado a intervir e das soluções mais convenientes consoante os casos. O legislador deixa, pois, em maior ou menor grau, a quem tiver e aplicar a lei, liberdade para encontrar a melhor solução para cada caso concreto, considerando-a legal desde que preencha o fim de interesse público que se pretende realizar.».

Por seu turno, Rodrigues Bastos [[6]] adverte que «Não deve, porém, confundir-se poder discricionário, com simples arbitrariedade.

É que o uso do poder discricionário é sempre reconhecido em vista à satisfação de um determinado fim; esse fim, que justifica a concessão daquele poder, limita a liberdade que é inerente à discricionaridade, de tal modo que a sua falta, no caso concreto, afecta a validade do respetivo acto. (...). Não se trata, portanto, de poderes absolutamente livres, nem de normas em branco.

Aqueles fins limitam a legalidade dos respectivos actos; se estes forem, pois, praticados visando a obtenção de outros fins, o juiz age fora dos limites do poder discricionário que aquelas normas lhe conferem, e as decisões, que a esse respeito tomar, são passíveis de recurso ordinário, nos termos gerais. É que então o uso de poder discricionário não poderá dizer-se legal.».

Visto isto, vejamos o caso em concreto.

O convite ao aperfeiçoamento da matéria de facto está expressamente previsto no art. 590º nº 4 do CPC, para as “insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada” pelas partes.

Assim, quanto ao conteúdo, o despacho recorrido respeitou os limites previstos na norma.

Porém, já se não mostram respeitados quer a hipótese/caso da previsão legal, quer os seus fins.

Na verdade, a hipótese da prolação dum tal despacho está confinada pela lei a um momento processual específico: o do pré-saneamento [art. 590º nº 2 al. b) e nº 4] ou o da audiência prévia [art. 591º nº 1 al. c)].

Contudo, na fase de julgamento não existe qualquer previsão legal de se poder recorrer a um despacho de aperfeiçoamento dos articulados (cf. arts. 599º a 607º, designadamente o art. 604º).

Inexistência, portanto, de fundamento/preceito legal prevenindo a hipótese.

A tudo isto acresce que o CIRE comporta regras especiais sobre o ritualismo dum processo de insolvência.

Neste processo, a apreciação liminar é logo obrigatoriamente efetuada sobre a petição inicial, como expressamente decorre do art. 27º do CIRE, sendo essa também a altura em que a lei prevê a possibilidade de despacho de aperfeiçoamento.

Nesta medida, um despacho de aperfeiçoamento da petição inicial proferido em sede de julgamento, após produção de prova e alegações orais, não respeita o “uso legal de um poder discricionário”, antes constituindo um despacho ferido de ilegalidade.

E, assim sendo, ele é recorrível, nos termos gerais, tal como é pugnado por Castro Mendes [[7]] —— «Note-se que a decisão proferida no uso legal de um poder discricionário não é recorrível com o fundamento de que tal decisão não representa a melhor forma de prosseguir o fim que a lei pretende seja atingido; mas já é recorrível com o fundamento de que o condicionalismo de que a lei faz decorrer o poder discricionário não estava presente, ou com o fundamento de que o exercício que o juiz fez do seu poder é em si ilegal (...).». (destaques nossos) —— e por Abrantes Geraldes [[8]] —— «Assim, devem submeter-se ao regime geral dos recursos os casos em que se impugna a legalidade do uso de poderes discricionários, em que se invoca a ausência dos pressupostos definidos pela lei, em que haja alegação de que o acto extravasa o quadro das possibilidades legais ou em que se verifica desvio de poder.».

Concluindo-se pela recorribilidade do despacho, há que abordar a questão central do recurso.

4.2.         PODE UM DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO SER PROFERIDO EM SEDE DE AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO?

Como já atrás se deixou referido, constituindo o processo de insolvência um processo especial, deve em primeira linha atender-se às normas que lhe são próprias, só sendo legítimo o recurso às regras do processo comum quanto a questões não regulamentadas.

Ora, o CIRE apenas prevê o despacho de aperfeiçoamento relativo a matéria de facto no art. 27º nº 1 al. b).

Atentos os interesses em jogo, a petição inicial é obrigatoriamente sujeita a apreciação liminar, como expressamente decorre desse art. 27º, sendo essa também a altura em que a lei prevê a possibilidade de despacho de aperfeiçoamento.

Sobre a manutenção do despacho liminar no processo especial de insolvência, abandonado no processo comum desde 1996, referem Carvalho Fernandes e João Labareda:

«Trata-se de uma opção legislativa que, a nosso ver, se justifica, tendo, nomeadamente, em conta o que resulta do disposto nos art. 28º e 30º nº 5.

Como se verifica desses preceitos, há casos em que a insolvência é declarada sem que, em bom rigor, haja qualquer discussão sobre a causa. Ora, vistas as consequências e o regime de insolvência, compreende-se a preocupação da lei em que o tribunal se certifique de que não ocorrem vícios insupríveis nem faltam, de forma manifesta, requisitos legais, para evitar que seja declarada a insolvência e prossigam processos em situações totalmente anómalas.». [[9]]

Para além de razões de economia processual, o que está essencialmente em causa num despacho de aperfeiçoamento é a garantia a uma tutela jurisdicional efetiva, a prevalência das decisões de mérito sobre as decisões de forma, ou seja, o princípio pro actione.

Porém, há que compatibilizar estes princípios com outros, não menos importantes, como sejam o princípio do dispositivo, o da controvérsia e o da igualdade de armas, conjugados com a independência e equidistância do juiz.

Comentando o art. 4º do atual CPC (que regula sobre a igualdade das partes), referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [[10]]: «No adjetivo substancial, (…), não pode ver-se a consagração do papel assistencial do juiz, em termos que lhe imponham a prestação de auxílio à parte dele carecida por via do deficiente exercício dos seus direitos e faculdades formais, fora dos casos em que uma lei especial o determine (assim, por exemplo, os arts. 590º nº 2-b, 3 e 4, e 591º-1-c). De outro modo poderia ser posta em risco a imparcialidade do tribunal.».

Assim, bem se entende que a lei situe o exercício desse poder-dever nesse momento.

É no despacho liminar que a lei impõe ao juiz que se debruce sobre a petição inicial e averigue sobre as possíveis causas de manifesta improcedência ou outras questões de conhecimento oficioso que impeçam o conhecimento do mérito da ação.

Da mesma feita, é esse o momento para que se possam colmatar aquelas deficiências que possam colidir com o seu objetivo primacial, que é o de uma decisão de mérito que possa resolver definitivamente o litígio. Considerando que essas deficiências ou imprecisões são sanáveis, deve então ordenar o respetivo aperfeiçoamento.

Ultrapassada essa fase, e ordenada a citação nos termos do art. 31º do CIRE (nos casos, como o presente, em que o processo é instaurado por um credor), deve considerar-se que o juiz entendeu inexistirem obstáculos, de ordem processual ou substantiva, a essa decisão de mérito.

Uma vez ultrapassada esta fase, a prolação de um despacho convidativo do Autor/Requerente a aperfeiçoar a matéria de facto alegada na petição inicial, viola os princípios da eventualidade ou da preclusão, bem como o da confiança das partes.

                Quanto ao primeiro, na coerência do sistema, o processo só ultrapassa essa fase liminar quando se considera inexistirem os ditos obstáculos; assim, se o juiz mandou citar, fica precludida a possibilidade de proceder posteriormente a despachos de aperfeiçoamento.

Quanto ao segundo, há que relembrar que na fase da audiência de julgamento o objeto do litígio tem de estar já bem delimitado; as posições das partes estão absolutamente delimitadas, tratando-se apenas de as provar.

Concluindo, um despacho de aperfeiçoamento da petição inicial proferido em sede de julgamento, após produção de prova e alegações orais, constitui um despacho ferido de ilegalidade.

                5.            SUMARIANDO (art. 663º nº 7 do CPC)
a) O “uso do poder discricionário” só pode ser exercido nos casos, contados, em que a lei o consinta e com os limites e fins previstos na norma que o permite.
b) O despacho que não respeite essa tríplice circunstância é um despacho ilegal e, nessa medida, passível de recurso.
c) Em processo de insolvência não é legalmente permitido proferir despacho de aperfeiçoamento, atinente a suprir insuficiências da matéria de facto alegada na petição inicial, em sede de audiência de julgamento, esgotada a produção de prova e alegações orais.

III.           DECISÃO

6.            Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação de Coimbra em julgar provido o recurso e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, determinando o prosseguimento dos autos sem se atender ao despacho de aperfeiçoamento.

                Custas do recurso a cargo dos Recorridos.

                                                                                                              Coimbra, 27/01/2015

(Relatora, Isabel Silva)

(1ª Adjunto, Alexandre Reis)

(2º Adjunto, Jaime Ferreira)

[[1]] Dado que o CIRE constitui lei especial face ao regime geral do CPC, este só será de ter em conta nas situações em que aquele não disponha de normas específicas sobre o assunto.
[[2]] Uma vez que a decisão aqui em crise foi proferida em 11.10.2013, e sendo o recurso naturalmente posterior a essa data, ter-se-á em conta o Código de Processo Civil aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26.06, em vigor desde 01.09.2013.
[[3]] In “Curso de Direito Administrativo”, vol. II, Almedina, 4ª reimpressão, 2004, pág. 87.
      [[4]] in "Código de Processo Civil, Anotado", vol. 1º, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008, pág. 299.
      [[5]] In "Manual de Direito Administrativo", vol. I, Almedina, 1982, pág. 214/215.
      [[6]] In “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. III, Lisboa, 1972, pág. 273/274.

[[7]] In "Direito Processual Civil", vol. III, edição AAFDL, pág. 47/48.

[[8]] In “Recursos em Processo Civil, Novo Regime”, Almedina, reimpressão, pág. 57/58, entendimento que mantém em “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2ª edição, Almedina, 2014, pág. 62.
[[9]] In “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, editora Quid Juris, 2008, pág. 161.
[[10]] In “Código de Processo Civil, Anotado”, vol. 1º, 3ª edição, Coimbra Editora, 2014, pág. 12.