Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
554/14.4T8LMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: SERVIDÃO LEGAL DE PASSAGEM
PRÉDIO URBANO
LOGRADOURO
Data do Acordão: 07/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - LAMEGO - JL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 204, 1305, 1550, 1551 CC
Sumário:
1 – Nos termos do n.º 1 do artigo 1551.º do Código Civil, a servidão legal de passagem pode constituir-se sobre terrenos adjacentes e integrantes de prédios urbanos, como é o caso dos respetivos logradouros.
2 – A servidão de carro que ocupe na totalidade o terreno adjacente à edificação existente no prédio serviente deve ser negada quando o proprietário do prédio serviente:
- Não dispõe de outro logradouro a favor do prédio;
- Dispõe de outros terrenos adjacentes, mas não os utiliza porque objetivamente não proporcionam utilidades aproveitáveis;
- Dispõe de outros terrenos, mas aquele logradouro é o que objetivamente lhe faculta o gozo de utilidades que os outros não consentem.
Decisão Texto Integral:
Recorrente……………R (…) e mulher A (…) residentes (…)
Recorridos……………A (…)
………………………….A (…) e mulher L (…)
L (…) e mulher, D (…)
Todos residentes em (…).
*
I. Relatório
a) Os Autores instauraram a presente ação contra os Réus com o fim de obterem a constituição uma servidão de passagem a pé, de automóvel, carrinha, trator ou quaisquer outros veículos motorizados sobre o logradouro a nascente do prédio dos Réus e a favor do prédio dos Autores identificado na petição, com uma largura nunca inferior a 2,50 metros e a extensão correspondente à distância entre a via pública a norte/nascente e a extrema com o prédio dos Autores.
Pedem ainda a condenação dos Réus a aceitar que os Autores façam no logradouro dos Réus as obras necessárias à passagem de automóveis ou subsidiariamente ser a servidão constituída a favor do prédio dos Autores, sobre o logradouro do prédio dos Réus nas condições em que o mesmo se encontra; e a aceitar tal servidão, a não destruir o seu leito de passagem, mantendo-o livre e desimpedido de automóveis, floreiras, canteiros ou quaisquer outros objetos que possam impedir ou condicionar o acesso ao prédio dos Autores.
Alegaram que são proprietários do prédio identificado na petição inicial, que confronta do norte com o prédio dos Réus, para cujo lado se encontra virado o portão da sua garagem e as escadas de acesso â sua habitação e que, por sentença, já foi reconhecido existir uma servidão de passagem a pé posto e com animais sobre parte do logradouro dos Réus a favor do mesmo prédio dos Autores.
Acrescentam que não dispõem de qualquer acesso com automóvel, carrinhas, tratores ou quaisquer outros veículos ao seu prédio, sendo obrigados a deixar o automóvel na via pública e a partir daí fazer o transporte manual dos seus pertences para a sua casa e garagem.
Quanto a prejuízos para os Réus alegaram que estavam dispostos a indemniza-los dos prejuízos que viessem a ter, referindo, no entanto, que os Réus usam apenas o logradouro para colocar floreiras e vasos.
Os Réus contestaram invocando a exceção do caso julgado, impugnaram os factos alegados pelos Autores, com exceção dos respeitantes à constituição da servidão de passagem a pé posto e com animais, judicialmente reconhecida a favor do prédio dos Autores, argumentando que que a pretensão dos Autores implica o rebaixamento de todo o logradouro dos Réus, situação esta que impediria o acesso ao seu prédio, perdendo o logradouro e o acesso à sua garagem.
No final foi proferida a seguinte decisão:
«Por tudo o exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a acção e, em consequência:
- constitui-se sobre o logradouro do prédio dos RR. descrito em 3, uma servidão de passagem de automóvel, carrinha, tractor ou outros veículos motorizados, em benefício do prédio dos AA. descrito em 1, com a largura nele existente, numa extensão correspondente à distância entre a via pública a norte/nascente e a extrema com o prédio dos AA.;
- condenar os RR. a aceitar que os AA. efectuem no seu logradouro as obras necessárias à passagem de automóveis, nos termos descritos nos pontos 17 e 20 dos factos provados;
- condenar os RR. a não destruir o leito de passagem da dita servidão, mantendo-o livre e desimpedido de automóveis, floreiras, canteiros ou outros objectos que possam impedir ou condicionar o acesso ao prédio dos AA..;
- absolver os RR. do demais contra si peticionado.
Custas da acção por AA. e RR. na proporção do respectivo decaimento, que se considera ter ocorrido na proporção 1/3 para os AA. e 2/3 para os RR., dado o decaimento de parte do pedido dos AA., quanto ao pedido de servidão de passagem a pé e à largura da servidão (arts. 527º, nºs 1 e 2 do C.P.C.)».
b) É desta decisão que recorrem os Réus tendo formulado as seguintes conclusões:
(…)
c) Os Autores responderam pugnando pela manutenção da decisão sob recurso.
II. Objeto do recurso
De acordo com a sequência lógica das matérias, cumpre começar pelas questões processuais, se as houver, prosseguindo depois com as questões relativas à matéria de facto e eventual repercussão destas na análise de exceções processuais e, por fim, com as atinentes ao mérito da causa.
Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões que este recurso coloca são as seguintes:
1 – Em primeiro lugar, cumpre analisar a impugnação da matéria de facto estando em causa os factos provados sob os n.º 12 e 19 que reputa de contraditórios com a factualidade constante do teor do relatório pericial.
2 – Em segundo lugar, cumpre verificar se é viável a constituição da servidão porquanto o prédio serviente dos Réus é urbano.
3 – Em terceiro lugar, coloca-se a questão de saber se o prédio está em situação de «encravado», atendendo a que o mesmo já goza de servidão de passagem a pé e para animais.
4 – Em quarto lugar, os Réus argumentam que não é possível alargar a servidão já constituída para permitir a passagem de veículos, uma vez que o conceito de «alargamento de servidão» não existe na lei.
5 – Em quinto lugar, argumentam que a servidão não pode ser constituída porque a sua constituição inutilizaria por completo o logradouro do prédio dos Autores, que tem apenas cerca de 20 m2, e, além disso, os Autores não provaram que a servidão que já possuem é insuficiente.
III. Fundamentação
a) Impugnação da matéria de facto.
(…)
b) Matéria de facto – Factos provados
1. Os Autores são donos e legítimos proprietários do prédio urbano composto de casa de habitação de três pavimentos (r/c, 1.º e 2.º andar) e quintal, sita (…), descrito na Conservatória do Registo Predial (…) sob o n.º XXXXXX e inscrito na matriz sob o artigo XXX, a favor dos Autores por compra.
2. Os 2.º e 3.º Réus são filhos do 1.º Réu e de M…, falecida em 04.09.1993, a quem ficaram a suceder e de quem são herdeiros.
3. Encontra-se registada a favor do 1º Réu a aquisição de uma casa destinada a habitação, de dois pavimentos, sita no (…), descrito na Conservatória do registo Predial de Lamego sob o n.º XXXXXX e inscrito na matriz sob o artigo XXX.
4. O prédio dos Autores confronta de norte com o prédio dos Réus, para cujo lado o portão da garagem e as escadas de acesso à habitação dos Autores se encontram virados.
5. A garagem dos Autores encontra-se a nível do r/c do seu prédio, cujo portão tem uma largura de 2,50 metros.
6. Adjacente à casa dos Autores pelo lado norte e adjacente à casa dos Réus pelo lado nascente existe um logradouro que integra o prédio destes últimos.
7. Por sentença, transitada em julgado, proferida no processo 520/05.0TLMG que correu termos neste Tribunal, foi reconhecida a existência de uma servidão de passagem a favor do prédio dos AA., a pé posto e com animais sobre o logradouro referido em 6, no sentido norte/sul.
8. O prédio dos Autores não dispõe de um acesso automóvel à via pública e desta à sua garagem.
9. Pelo lado sul, nascente e poente o prédio dos Autores, não tem comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la, devido à existência de edificações, sendo possível construir um acesso automóvel para o prédio dos Autores, do lado norte, mediante a realização de obras no logradouro dos Réus.
10. O caminho público situa-se a um nível inferior ao prédio dos Autores, sendo o desnível de 2,65 metros.
11. A largura do logradouro na parte confinante com o prédio dos Réus é de 3,97 m e no extremo confinante com a via pública de 1,60 m, atingindo no extremo confinante com a garagem dos Autores, a largura de 4,88 m, tendo o logradouro dos Réus uma extensão de 6,80 m até à via pública.
12. A distância a percorrer pelos Autores no logradouro do prédio dos Réus até à via pública é de 4,80 metros.
13. Não é possível rampear o logradouro dos Autores para a via pública, dada a inclinação referida em 10.
14. O portão da garagem dos Réus está virado para o seu logradouro, no qual não existe qualquer outra porta ou janela, numa extensão de 6,80 metros.
15. Parte do logradouro dos Réus está ocupado com vasos, bidões vazios e canteiros de flores.
16. O lado nascente do logradouro dos Réus apresenta um desnível para o caminho público que condiciona o acesso de automóveis ligeiros.
17. O acesso referido em 8 importa a demolição do pavimento existente no logradouro dos Réus, remoção do entulho sobrante, execução do pavimento em betão, aplicação de camada final em betão afagado, execução e aplicação de uma tampa no poço e caixa de visita existentes no logradouro dos Réus.
18. O custo dos trabalhos referidos em 17 ascende a € 2.300,00;
19. A construção da rampa de acesso ao prédio dos Autores importa a ocupação integral do logradouro dos Réus e o dos Autores e permite o acesso de carro a ambos os prédios.
20. Tal rampa pode ser construída de forma a atenuar a sua inclinação junto ao caminho público de acesso à garagem dos Réus;
21. O caminho público mais próximo da habitação dos Autores, que permite o estacionamento automóvel, dista cerca de 50 m de distância da sua casa.
22. No caso de alargamento da entrada do logradouro dos Réus, tal implicará a demolição parcial do muro de pedra existente e execução de outro de suporte em betão armado com uma largura inferior.
23. Os Autores deslocam-se ao imóvel referido em 1, nalguns meses do ano, onde permanecem por alguns dias.
c) Apreciação das restantes questões objeto do recurso.
1 – Os Autores pretendem entrar com o seu veículo para uma garagem que possuem no seu prédio urbano ( A matéria de facto não permite verificar quando foi feita esta garagem.), mas, para isso, têm de passar pelo logradouro dos Réus.
Este logradouro tem de comprimento 6,80 metros e uma largura que varia entre 3,97 metros, na parte em que confina com o logradouro dos Autores, e 1,60 metros na extremidade oposta.
Por conseguinte, a área do logradouro ronda os 20 m2 e ficaria totalmente ocupada, como resulta do facto provado 19, com a constituição da servidão pretendida.
Vejamos então se é viável a constituição da servidão de passagem para carro sobre o prédio dos Réus, por este ser um prédio urbano.
a) Nos termos do n.º 2 do artigo 204.º, do Código Civil ( Sempre que não seja indicada outra origem, os artigos mencionados no texto são do Código Civil em vigor.), «Entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica, e por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro».
Resulta do exposto, que o prédio urbano compreende além das edificações o terreno que lhe sirva de logradouro.
O n.º 1, do artigo 1550.º, dispõe que os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivos incómodos ou dispêndio têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos.
Refere-se nesta norma que a servidão legal de passagem pode ser constituída sobre prédios rústicos.
Dada a especificidade da referência a prédios rústicos, e não apenas a prédios em geral, isso levaria a entender que o legislador não quis que se constituíssem servidões legais sobre prédios urbanos.
Não é exato, porém, este entendimento.
A questão de saber se os prédios urbanos devem permitir a constituição de servidões legais de passagem já vem, pelo menos, do Código Civil de Seabra (1886), a propósito do disposto nesse código nos artigos 2309.º e 2312.º, defendendo a solução afirmativa o Prof. Manuel Rodrigues, porquanto o artigo 2309.º se referia à possibilidade de constituir servidões de passagem sobre «prédios vizinhos» ( Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 56, pág. 179.), sem distinguir entre rústicos e urbanos.
Mais tarde (Reforma de 1930), este artigo 2309.º sofreu nova redação e passou a fazer referência aos prédios servientes como «terrenos vizinhos» ( Sobre esta problemática ver Carlos do Nascimento Gonçalves Rodrigues, Da Servidão Legal de Passagem. Coimbra: Almedina, 1962, pág. 228 a 235.).
E o atual Código Civil manteve esta orientação no artigo 1550.º.
Em regra, pode concluir-se com os Profs. Pires de Lima/Antunes Varela que, «…a servidão legal só recai sobre prédios rústicos (…). A servidão legal de passagem não onera, por conseguinte, os prédios urbanos (…), por se entender que que a solução oposta colidiria com a intimidade de que deve rodear-se a habitação ou domicílio (…) ou com as exigências próprias do exercício da actividade instalada no prédio» ( Código Civil Anotado, Vol. III. 2.ª Edição (reimpressão). Coimbra Editora, 1987, pág. 638.
No mesmo sentido, ver o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20-3-2003 onde se decidiu que «A constituição da servidão legal de passagem só pode fazer-se através de prédios rústicos ou através de terrenos que sirvam de logradouro a prédios urbanos e portanto não através da entrada e das escadas de aceso dum prédio urbano» - Colectânea de Jurisprudência, Ano XVIII, Tomo II (2003), pág. 87.).
b) Mas este princípio comporta exceções.
Com efeito, apesar de no artigo 1550.º se dizer que podem ser constituídas sobre prédios rústicos, logo no n.º 1 do artigo 1551.º se determina que «Os proprietários de quintas muradas, quintais, jardins ou terreiros adjacentes a prédios urbanos podem subtrair-se ao encargo de ceder passagem, adquirindo o prédio encravado pelo seu justo valor».
Ora, como, nos termos do n.º 2 do artigo 204.º, o prédio urbano é composto além das edificações dos «terrenos que lhe sirvam de logradouro», então os «quintais, jardins ou terrenos adjacentes a prédios urbanos» tanto podem fazer parte desse prédio urbano, como serem prédios autónomos (e rústicos), quando, dadas as circunstâncias, confinam com prédios urbanos, mas são matricialmente rústicos e autónomos em relação ao urbano com o qual confinam.
Portanto, nestes terrenos que «sirvam de logradouro» aos prédios urbanos, aos quais se refere o n.º 2 do artigo 204.º, incluem-se sem dúvida os «jardins» mencionados no n.º 1 do artigo 1551.º, sendo estes «jardins» juridicamente «prédios urbanos» porque o integram.
Mas o legislador sujeita-os a servidão, apesar de no artigo 1550.º dizer que a servidão se constituía sobre prédios rústicos.
Esta aparente contradição poderá ser superada se se considerar que no n.º 1 do artigo 1551.º só se incluem os «quintais, jardins ou terrenos adjacentes a prédios urbanos» quando estes forem prédios rústicos que funcionalmente servem de apoio ou desfrute a prédios urbanos adjacentes, ficando apenas isentos do encargo da servidão os «quintais, jardins ou terrenos adjacentes a prédios urbanos» quando estes fizerem parte de prédio urbano.
Parece existir, pois, uma contradição entre o disposto no artigo 1550.º, onde se diz que as servidões de passagem se constituem sobre prédios rústicos, logo, a contrário, os urbanos estarão isentos de tal encargo, e o n.º 1 do artigo 1551.º, onde se diz que também estão sujeitos a servidão de passagem os «quintais, jardins ou terrenos adjacentes a prédios urbanos», quando é certo que estes terrenos podem ser parte de um prédio urbano e, por isso, urbanos, como o prédio de que são parte.
Mas, considerando por outro lado que se porventura estes «quintais, jardins ou terrenos adjacentes a prédios urbanos» fossem apenas objeto de servidão de passagem quando fossem «rústicos», então também não se justificava que o artigo 1551.º lhes fizesse referência, pois já estavam incluídos no artigo 1550.º.
Por isso, a sua referência no artigo 1551.º só ganha sentido se se tratar de terrenos que fazem parte de prédios urbanos.
Por conseguinte, têm de se harmonizar os textos considerando que, em regra, só os prédios rústicos poderão se objeto de servidão de passagem, mas não estão isentos de tal encargo os terrenos que fazem parte de prédios urbanos e lhe são adjacentes, de onde resulta que, afinal, somente as edificações estão livres de servidão de passagem por razões ligadas à salvaguarda da «intimidade de que deve rodear-se a habitação ou domicílio», como referiram os Profs. Pires de Lima/Antunes Varela na passagem acima citada.
Sobre esta questão referiu-se no acórdão do S.T.J. de 15 de dezembro de 1972 ( Boletim do Ministério da Justiça n.º 222, pág. 404.) que «…não é rigorosamente exacto o princípio de que sobre os prédios urbanos se não podem constituir servidões legais, porque, nos termos do artigo 204.º - 2 do citado Código os terrenos que sirvam de logradouro do edifício são considerados “prédio urbano” e, como vimos, sobre tais terrenos podem-se constituir servidões legais. Como assim, da conjugação dos artigos 1550.º e 1551.º do Código Civil resulta o princípio de que só se não podem constituir servidões sobre prédios urbanos (servidões legais) na parte destes prédios respeitantes ao edifício incorporado no solo».
Concluindo-se assim, como se conclui, então o logradouro dos Réus não está, em abstrato livre de sobre o mesmo se poder constituir uma servidão legal de passagem.
2 – Vejamos agora se o prédio dos Autores está em situação de «encravado», atendendo a que o mesmo já goza de servidão de passagem a pé e para animais.
A resposta é afirmativa, pois é encravado o prédio que não tenha, digamos, «pelas suas próprias forças», comunicação coma a via pública, como resulta do disposto no artigo 1550.º, n.º 1, quando se diz que «Os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos».
No caso dos autos, verifica-se, face ao facto provado n.º 4, que «O prédio dos Autores confronta de norte com o prédio dos Réus, para cujo lado o portão da garagem e as escadas de acesso à habitação dos Autores se encontram virados», prédio este que «…não dispõe de um acesso automóvel à via pública e desta à sua garagem» (facto n.º 8) e «Pelo lado sul, nascente e poente o prédio dos Autores, não tem comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la, devido à existência de edificações, sendo possível construir um acesso automóvel para o prédio dos Autores, do lado norte, mediante a realização de obras no logradouro dos Réus» (facto n.º 9).
Verifica-se, por conseguinte, que o prédio dos Autores é encravado.
3 – Vejamos agora o argumento que nega a possibilidade de alargamento da servidão já constituída para permitir a passagem de veículos, uma vez que o conceito de «alargamento de servidão» não existe na lei.
Estamos perante uma questão que se resume ao sentido que é dado às palavras.
No caso dos autos, os Autores não pretendem um alargamento da servidão já existente, mas sim a constituição de uma nova servidão, esta destinada agora ao trânsito de veículos.
E a constituição de tal tipo de servidão é permitida por lei.
Improcede, pelo exposto, a objeção dos Réus.
4 – Por fim, vejamos se a servidão pode ser constituída, uma vez que a sua constituição inutilizaria por completo o logradouro do prédio dos Autores, o qual tem apenas cerca de 20 m2.
E, ainda, se se verifica insuficiência de matéria de facto, uma vez que não há factos que mostrem a incapacidade da servidão já existente para satisfazer as necessidades alegadas pelos Autores.
Quanto a esta última questão, a mesma é improcedente.
Com efeito, é manifesto que a servidão existente sendo uma servidão a pé não tem dimensões que suportem a passagem de veículos e os Autores querem passar com veículos para a garagem que possuem na sua casa de habitação.
Quanto à primeira questão.
Nesta parte assiste razão aos Réus, pelas seguintes razões:
Primeiro – É inerente ao direito de propriedade o gozo exclusivo das utilidades proporcionadas pelo prédio, isto é, em primeiro lugar, cabe ao proprietário usufruir das utilidades do prédio e depois, parcialmente, um terceiro poderá apropriar-se de algumas dessas vantagens através da titularidade e exercício de direitos reais menores.
É o que assegura o artigo 1305.º: «O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas».
Por conseguinte, as utilidades do prédio pertencem em primeira linha ao proprietário e só podem ser colocadas ao serviço de terceiros, de quem não é proprietário, em situações socialmente justificáveis, por razões de equidade social ou de boa vizinhança de acordo com os tipos legais que consagram os direitos reais.
Por isso, quando num caso concreto se verifica que as utilidades do logradouro do prédio serviente ficam totalmente inaproveitáveis para o proprietário porque são colocadas ao serviço do prédio dominante, então não se pode pretender que na esfera jurídica do terceiro se tenha constituído o direito de exigir a passagem.
Com efeito, há que ponderar aqui um conflito de interesses entre proprietário do prédio serviente e proprietário do prédio dominante ( Como se referiu no acórdão do STJ de 11-11-2003 (Lopes Pinto), no processo identificado pelo n.º 03A3510, consultável em www.dgsi.pt, «A colisão de direitos entre o direito de propriedade e o direito real de gozo de servidão (de qualquer servidão, independentemente do modo de constituição e do seu conteúdo) e a conflitualidade de interesses entre o titular daquele e o titular deste existe por natureza, decorre como consequência da admissibilidade e do reconhecimento legal deste direito real de gozo e do que ele compreende e autoriza».
) e a prevalência tem de ser dada ao proprietário do prédio serviente, por ser o titular do direito de propriedade sobre o prédio, podendo os terceiros aproveitar apenas algumas utilidades que seja justo retirar ao proprietário.
Segundo – De acordo com este entendimento, a servidão de carro que ocupe na totalidade o terreno adjacente à edificação existente no prédio serviente deve ser negada quando o proprietário do prédio serviente:
- Não dispõe de outro logradouro a favor do prédio;
- Dispõe de outros terrenos adjacentes, mas não os utiliza porque objetivamente não proporcionam utilidades aproveitáveis;
- Dispõe de outros terrenos, mas aquele logradouro é aquele que objetivamente lhe faculta o gozo de utilidades que os outros não consentem.
No caso dos autos, verifica-se que a constituição da servidão de carro ocuparia a totalidade do logradouro do prédio dos Réus e privaria estes de o usufruírem.
Não se mostra que os Réus disponham de outro logradouro que satisfaça o mesmo tipo de utilidades.
Por conseguinte, se a servidão fosse constituída os proprietários passariam a ficar impedidos de retirar praticamente todas as utilidades do logradouro que podem retirar atualmente, no presente ou futuramente, como colocar lá objetos, como vasos de flores, cadeiras, bicicletas, velocípedes ou motociclos e, inclusive, aumentar o volume da sua habitação ocupando esse espaço, etc.
Por conseguinte, entre esta utilização possível a favor do prédio dos Réus e a sua total inutilização para permitir a passagem de veículos para o prédio dos Autores, julga-se prevalente o direito de propriedade dos Réus, que impede a constituição de uma servidão de passagem.
Por conseguinte, conclui-se que, nestas circunstâncias factuais, não surgiu na esfera jurídica dos Autores o direito de constituir uma servidão de passagem sobre o logradouro do prédio dos Réus.
IV. Decisão
Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente e, em consequência:
a) Revoga-se a sentença recorrida;
b) Absolvem-se os Réus do pedido.
Custas pelos Autores.
*
Coimbra, 10 de Junho de 2018


Alberto Ruço ( Relator )
Vítor Amaral
Luís Cravo