Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
331/13.0JALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: CONDUÇÃO PERIGOSA DE VEÍCULO RODOVIÁRIO
CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
CONCURSO DE CRIMES
Data do Acordão: 09/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (INSTÂNCIA CENTRAL – SECÇÃO CRIMINAL – JUIZ 1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 77.º E 291.º DO CP; ART. 3.º DO DL. N.º 2/98, DE 3-01; ART. 121 DO CE
Sumário: I - Se entre os tipos penais violados não se dá uma relação de exclusão, então ficamos perante o chamado concurso efetivo, verdadeiro ou puro.

II - Preenchendo os factos, quer os elementos constitutivos do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art. 291.º, n.º 1, al. b), do C.P., quer do crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3/01, sendo diferentes os bens jurídicos tutelados nos tipos e plurais as resoluções, praticou o arguido, em concurso real estes dois crimes.

Decisão Texto Integral:




            Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

 Relatório

Pela Comarca de Leiria – Instância Central de Leiria, Secção Criminal – J 1, sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento, em processo comum, com intervenção do Tribunal Coletivo, o arguido

A.... , solteiro, serralheiro civil, nascido a 19 de Outubro de 1977, filho de (...) e de (...) , residente na Av (...) , Marinha Grande e atualmente preso no EP de Lisboa;

imputando-se-lhe a prática de um crime de furto qualificado, p. e  p. pelo art.203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, al. a) e b) ex vi do art.202.º, al. a), todos do Código Penal; um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º1, al. b) do Código Penal; dois crimes de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.3.º, nºs 1 e 2 do DL nº 2/98 de 3 de Janeiro; um crime de falsificação ou contrafação de documento, p. e p. pelos artigos 255.º, al a) e 256.º, n.ºs 1 al e) e 3 do CP; um crime de condução perigosa, p. e p. pelo art.291.º, al. b) do Código Penal; um crime de dano qualificado, p. e p. pelo art.213.º, n.º 1 exvi do art.202.º, al a) do Código Penal; e uma contraordenação, p. e p. pelo art.4.º nºs 1 e 3 do DL nº 114/94 de 3 de Maio, que aprovou o Código da Estrada.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Coletivo, por acórdão proferido a 2 de novembro de 2015, decidiu julgar parcialmente procedente por provada a acusação do  Ministério Público e, em consequência:

- Absolver o arguido A... da prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.204.º, nº 1, al b); (furto dos bens que se encontravam no interior do veículo (...) NZ); e de uma contraordenação, p. e p. pelo art.4.º, n.ºs 1 e 3 do Código da Estrada.

- Condenar o arguido A... pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.204.º, n.º 1 al a) e b) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão; pela prática de um crime de falsificação ou contrafação de documento, p. e p. pelo art.256.º, n.ºs 1, al e) e 3 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão; pela prática de  um crime de condução perigosa, p. e p. pelo art.291.º, nº 1, al b), do Código Penal, na pena de 18 (dezoito) meses de prisão; pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.3.º, n.º 2 do DL 2/98, na pena de 9 (nove) meses de prisão; pela prática de um crime de dano qualificado, p. e p. pelo art.213.º, n.º 1, al a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão;

- Operar o cúmulo jurídico e condenar o arguido na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão efetiva.

           Inconformado com o douto acórdão dele interpôs recurso o Ministério Público, concluindo a sua motivação do modo seguinte:

1.ª - Vem o presente recurso interposto pelo Ministério Público do douto Acórdão de fls nas partes em:

a) -- Absolveu o arguido A... da prática, em autoria material, de um dos dois crimes de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3°, n° 2, do D.L. n° 2/98, de 3 de Janeiro, com referência ao artigo 121°, n.º 2, do Código da Estrada, tendo considerado que este se encontrava numa relação de consumpção com o crime de condução perigosa de veículo rodoviário pelo qual foi condenado;

b) -- Condenou o arguido A... pela prática, em autoria material e em concurso efectivo, real, nos termos dos artigos 14°, n.º 1, 26°, 30°, n.º 1 e 77°, todos do Código Penal, pela prática de:

b.1) -- 1 (um) crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291°, n.º 1, al. b), do Código Penal, apenas na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;

b.2) - 1 (um) crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal,

p. e p. pelo artigo 3°, n.º 2, do D.L. n.º 2/98, de 3 de Janeiro, com referência ao artigo 121°, n.º 2, do Código da Estrada, apenas na pena de 9 (nove) meses de prisão;

-- E, em cúmulo jurídico, na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão.

2.ª - Dispõe o artigo 30°, n.º 1, do Código Penal, que “o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.”

3.ª -- O concurso de crimes corresponde a uma pluralidade de crimes, não necessariamente a uma pluralidade de actos: -- o critério do concurso efectivo de crimes assenta na pluralidade de tipos violados pela conduta do agente, equiparando-se na lei os casos de concurso real, em que a conduta se desdobra numa pluralidade de actos, aos de concurso ideal, em que a conduta se analisa num único acto.

4.ª - Na definição de concurso efectivo de crimes não basta o elemento da pluralidade de bens jurídicos violados --- exige-se a pluralidade de juízos de censura, traduzido por uma pluralidade de resoluções autónomas.

5.ª -- Com a tipificação do crime de condução perigosa de veículo rodoviário prevista no artigo 291°, do Código Penal pretendeu o Legislador sancionar penalmente tal actividade, sempre que se verifique um desrespeito grosseiro daquelas normas de conduta, com a criação, em concreto, de um perigo para a vida, para a integridade física ou para bens patrimoniais de valor elevado, pertencentes aos demais utentes da via, já que a condução de veículos automóveis é, já por si, uma actividade intrinsecamente perigosa, cujo perigo fica contido em limites razoáveis se forem respeitadas certas normas de conduta, o que permite considerá-la uma actividade lícita, apesar de perigosa.

6.ª - Com a tipificação legal crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal pretendeu o Legislador salvaguardar, apenas, a segurança subjacente ao exercício da condução que, como actividade perigosa que é, deve ser rodeada de todas as cautelas necessárias a evitar os resultados lesivos que daí possam advir.

7.ª - A factualidade provada constante do douto Acórdão a quo sob os pontos 10° a 15°, 24° e 26°, faz incorrer a prática pelo arguido de 1 (um) crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291°, n.º 1, al. b), Código Penal.

8.ª -- Para além dos factos provados constantes dos pontos 10° a 15°, 24° e 26° --- resultou provado que:

  a) Antes destes, no dia 28 de Novembro de 2013. pelas 1H40. o arguido conduziu o veículo de marca “Mitsubishi”, modelo “Space Star”, descrito no ponto 2 na Estrada Municipal n° 545, em Tojal de Cima, Porto de Mós, sem que para tal estivesse habilitado com a respectiva carta de condução que lhe permitisse a circulação do referido veículo na via pública, tendo agido, em todos os momentos, com vontade livre e consciente, bem sabendo que o seu comportamento era e é punido por lei;

  b) Depois destes, depois de “os militares perderam o arguido de vista, pelas 3H00, o arguido conduziu o veículo descrito em 2, até Casais dos Ledos - Batalha, estacionando o mesmo perto da Rua Principal, num lugar ermo, sem que para tal estivesse habilitado com a respectiva carta de condução que lhe permitisse a circulação do referido veículo na via pública, tendo agido, em todos os momentos, com vontade livre e consciente, bem sabendo que o seu comportamento era e é punido por lei.”

9.ª - Pelo que tal factualidade faz incorrer o arguido na prática de um outro crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3°, n.º 2, do D.L. n.º 2/98, de 3 de Janeiro, com referência ao artigo 121°, n.º 2, do Código da Estrada

10.ª -- Os referidos crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, cujos elementos objectivos e subjectivos resultaram provados devem serem punidos, em concurso efectivo, real de infracções, dado que:

  a) As condutas levadas a cabo pelo arguido tiveram por base duas resoluções criminosas;

  b) As condutas levadas a cabo pelo arguido preencheram duas previsões normativas distintas:

  c) Essas previsões normativas têm dois e diferentes fundamentos da sua punição e tutelam dois e diferentes bens jurídicos.

11.ª -- Ao subsumir a matéria de facto provada apenas ao disposto nos disposto no artigo 291°, n.º 1, al. b), do Código Penal, violou o douto Acórdão a quo o disposto nos artigos 30°, n.º 1 e 77°, ambos do Código Penal, 3º, n.º 2, do D.L. n.º 2/98, de 3 de Janeiro e 121°, do Código da Estrada, pelo que, em consequência, deverá o douto Acórdão a quo ser substituído por douto Acórdão a proferir que condene o arguido pela prática de ambos ilícitos criminais, em concurso real, efectivo

12.ª - Ponderando:

- Os graus de ilicitude presentes nas condutas do arguido não podem deixar de ser considerados elevados, o que tem necessárias sequelas ao nível da culpa, fazendo, por um lado, estabilizar tais exigências e, por outro, aumentá-las;

- Os dolos presentes nas condutas do arguido -- intensos -- pois que na sua modalidade mais grave: -- o dolo directo, dado que os factos foram representados e queridos pelo agente, o que faz aumentar as exigências de culpa;

- As suas condutas anteriores, plasmadas no seu certificado de registo criminal, o que denota e evidencia não estarmos perante a prática de um acto isolado ou singelo, mas antes perante uma tendência para a reiteração criminosa, conducente, inclusive, à presente situação de cumprimento de pena de prisão efectiva, o que eleva as mesmas exigências preventivas;

- A ausência total de um projecto de vida por parte do arguido, minimamente consistente ou fundado, capaz de o impulsionar para a adopção de uma nova conduta, o que faz elevar as exigências preventivas;

- A total ausência de suporte familiar por parte do mesmo, o que necessariamente dificulta a sua desejável reinserção social e comunitária, tornando mais prementes as mesmas exigências preventivas;

- A ausência de quaisquer hábitos laborais, regulares e contínuos, aliados à ausência de quaisquer outros rendimentos, o que dificulta a almejada reinserção e onera as mesmas exigências preventivas;

- O comportamento processual do arguido que, nem sequer, confessou os factos que lhe haviam sido imputados, o que revela falta de consciencialização dos seus actos, tendência em desvalorizar os seus comportamentos delituosos, circunstâncias a ponderar em sede de exigências preventivas, que surgem reforçadas;

- A sua tendência para manter condutas socialmente desajustadas e contrárias às normas legais;

- A presente situação pessoal do arguido, anotada no seu relatório social,

13.ª -- Entende o Ministério Público que teria sido justo aplicar ao arguido, por equitativas, as seguintes penas parcelares:

  a) 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão, pela prática, em autoria material singular, na sua forma consumada, de 1 (um) crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. artigo 291°, n° 1, al. b), do Código Penal;

  b) 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, pela prática, em autoria material singular, na sua forma consumada, por cada um dos dois crimes de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3°, n° 2, do D.L. n° 2/98, de 3 de Janeiro, com referência ao artigo 121°, do Código da Estrada.

14.ª -- Estando-se perante concurso de infracções, impõe-se a determinação de uma pena única, de acordo com os critérios plasmados no artigo 77°, do Código Penal, sendo que o cúmulo material, in casu, correspondente à soma das penas parcelares, se situa, entre o limite mínimo de 3 (três) anos de prisão e o máximo de 10 (dez) anos e 2 (dois) meses de prisão, critérios que, in casu, se traduzem na ponderação e apreciação da totalidade dos factos praticados, a natureza dos bens jurídicos violados, a sua motivação ou causa, bem como a personalidade do arguido revelada através dos mesmos.

15.ª - Ponderando-se os factores enunciados, entende o Ministério Público que teria sido justo --- e será justo --- aplicar, por equitativas, em cúmulo jurídico daquelas penas parcelares, ao arguido A... a pena única de 5 (anos) e 6 (seis) meses prisão.

16.ª - Ao ter decidido de forma diversa da ora sustentada pelo Ministério Público, violou o douto Acórdão a quo o disposto nos artigos 40°, 70°, 71° e 77°, n°s. 1 e 2, todos do Código Penal, pelo que o douto Acórdão a quo deverá ser substituído por outro que condene o arguido A... nos acima pugnados.

            Também o arguido A... não se conformou com o douto acórdão e dele interpôs recurso, apresentando as seguintes conclusões da motivação:

1 - Mal andou o Tribunal a quo na apreciação da prova relativa à prática pelo arguido do crime de dano qualificado, p. e p. pelo artigo 213.°, n.º 1, alínea a) Código Penal, ao sustentar a condenação do arguido pela prática do mesmo nos depoimentos dos dois militares da GNR e no documento de fls. 68 dos autos;

2 - É que não foi produzida em sede de julgamento qualquer prova objectiva de que tenha sido o arguido ora recorrente quem, na circunstância de tempo e lugar descritas na acusação, incendiou a viatura, incorrendo em virtude disso, na prática de um crime de dano qualificado;

3 - Com efeito, se, de algum modo, o Tribunal é livre na apreciação da prova no processo crime, o certo é que, esta “...livre apreciação da prova, não se confunde com a apreciação arbitrária da mesma, nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador, pelos diversos tipos de prova: trata-se antes de uma liberdade para a objectividade. Daí a íntima ligação entre o princípio da livre apreciação da prova e o da fundamentação e, através desta, a possibilidade/dever de ampla e efectiva e substancial intervenção no Tribunal de recurso verificando se as regras da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, susceptíveis de objectivar a apreciação dos factos, foram observados, a respeito de cada um deles, na motivação apresentada pelo Tribunal Recorrido” -Acórdão do S.T.J., de 12/9/2007, processo A7P2582, in www.dgsi.pt,

4 - As únicas testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento aptas a depor e que depuseram sobre o crime de dano qualificado pelo qual o arguido vinha acusado, consubstanciado no acto de atear fogo ao veículo, foram os dois militares da G.N.R.;

5 - Para além dos Srs. militares da G.N.R., nenhuma testemunha depôs acerca da factualidade respeitante ao crime de dano qualificado.

6 - Do depoimento do Sr. Militar da G.N.R., Sr. C..., a instância do Sr. Procurador do Ministério Público, resulta claro que se verificou um hiato temporal de cerca de meia ou de uma hora entre a última vez que viu o arguido e a notícia do incêndio da viatura;

7 - Esta testemunha, militar da G.N.R., refere, igualmente, que o arguido não iria sozinho na viatura, e que no interior da mesma avistara um passageiro, pois viu um vulto, embora não tenha conseguido precisar com certeza se se trataria de uma pessoa;

8 - Da resposta da testemunha C... a instâncias do defensor do arguido depreende-se que a testemunha ficou com a percepção de que o arguido ora recorrente se fazia transportar na viatura acompanhado por outra pessoa;

9 - Do depoimento prestado pela testemunha C... , militar da G.N.R., nada resulta quando à origem dos danos ocorridos na viatura;

10 - Quando questionado pelo Mmo. Juiz Presidente do Colectivo sobre se a viatura teria entrado em despiste, esta testemunha nada sabe explicar, dizendo que apenas viu o carro ardido;

11 - Por outro lado, do seu depoimento emergem dúvidas acerca da possível presença de outra pessoa no local, sendo que estando outra pessoa no local, dever-se-iam colocar dúvidas sobre a respectiva intervenção nos factos;

12 - Para que fosse dado como provada a prática pelo arguido do crime de dano qualificado, previsto e p. pelo artigo 213°, n.° 1, alínea a) Código Penal, consubstanciada na destruição da viatura através do ateio de fogo à mesma, impor-se-ia a produção de prova cabal de que tenha sido o arguido que, efectivamente perpetrou tal incêndio;

13 - E a verdade é que a testemunha C... , não viu o arguido praticar o facto dado como provado no ponto 18 dos factos provados do douto Acórdão a quo, nem soube a explicar a eclosão do incêndio, nem se teria havido despiste ou qualquer outro acidente, nem, tão pouco, se se tinha tratado de fogo posto, ao contrário do vertido na fundamentação da matéria de facto do douto acórdão sob recurso;

14 - Para além da testemunha Sr. C... , a única testemunha que aflora em sede de julgamento os factos atinentes ao incêndio da viatura é o militar da G.N.R., Sr. D... ;

15 - No entanto, a testemunha D... também não viu o arguido a praticar os factos que consubstanciam a prática do crime de dano qualificado pelo qual vinha acusado;

16 - Ademais, do depoimento desta testemunha também não se logra apurar para além de uma dúvida razoável, se foi o arguido quem destruiu efectivamente a viatura, como se deu o incêndio, ou se o mesmo ocorreu de forma acidental;

17 - O facto de o incêndio ter começado no interior da viatura, como indica o Relatório Pericial, não significa, só por si, necessariamente, que o mesmo tenha ocorrido de forma intencional e dolosa;

18 - E, nem o intuito de atear fogo à carrinha poderia ser o de o arguido não ser detectado, pois, nada seria mais chamativo e denunciado que um incêndio no meio da escuridão, que, necessariamente, iria atrair as atenções da vizinhança, da própria G.N.R. e dos bombeiros;

19 - As regras de experiência ditam que alguém que se queira esconder não deve atear um fogo, muito menos a uma viatura automóvel, de noite, perto de uma habitação;

20 - Ao contrário do sustentado na fundamentação da matéria de facto dada como provada no douto acórdão sob recurso, também a testemunha D... (como nenhuma outra) não disse que se tratou de fogo posto.

21 - A prova contra o recorrente, no que tange à prática do crime de dano qualificado, assenta exclusivamente em meras presunções, princípios de normalidade e regras de experiência, pois ninguém presenciou tais factos, nem existe qualquer outro elemento probatório capaz de sustentar com certezas e de forma objectiva que o arguido praticou o crime de dano qualificado, consubstanciado no acto de ter ateado fogo à viatura;

22 - No entanto, cumpre referir que a realidade da vida é, a cada passo, mais rica do que qualquer enquadramento que da mesma se possa operar e que nem sempre, através da mobilização de raciocínios lógicos, de factos conhecidos se consegue extrair a verdade escondida dos factos desconhecidos;

23 - Em obediência ao princípio in dubio pro reo, segundo o qual, perante a existência de factos incertos e perante uma dúvida irremovível e razoável, deverá o Tribunal, na apreciação e valoração das provas e na determinação dos factos provados, favorecer o arguido, no sentido de não dar como provados os factos que lhe são imputados na acusação e que, a provarem-se, seriam fundamento para a aplicação de uma pena.

24 - No Acórdão sob recurso fez-se precisamente o contrário, decidiu-se contra o arguido Recorrente, como se sobre este incidisse um qualquer ónus de provar o contrário do vertido na acusação, pois nenhuma prova objectiva foi produzida sobre qualquer facto integrador da prática por parte do recorrente de um crime dano qualificado;

25 - Deste modo, a matéria constante dos pontos 18, 19 e 25 dos factos provados devia ter sido julgada não provada, com a consequente absolvição do arguido da prática de um crime de dano qualificado, p. e p. pelo artigo 213 °, n.º 1. al a) Código Penal.

26 - Como consequência directa da absolvição do arguido pela prática do crime de dano qualificado, previsto e punido nos termos do artigo 213.°, n.º 1, alínea a) do Código Penal, deverá ser refeita a operação de determinação da pena única do concurso, nos termos do artigo 77° do Código Penal;

27 - Destarte, a moldura penal abstracta correspondente ao concurso deve passar a ter como limite máximo 6 anos e 3 meses de prisão, devendo a pena única do concurso cifrar-se em 3 anos e 9 meses de prisão, com respeito pelos específicos critérios da determinação da pena única.

Termos em que, reapreciando a matéria de facto, julgando procedente o recurso apresentado e absolvendo o arguido da prática de um crime de dano qualificado, p. e p. pelo artigo 213.°, n.º 1, alínea a) Código Penal, com a consequente reformulação da pena única do concurso aplicada, farão V/as Exas., Venerandos Desembargadores, a Costumada Justiça!

O Ministério Público na Comarca de Leiria, Instância Central de Leiria, respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pelo não provimento do recurso.

            O arguido A... respondeu igualmente ao recurso interposto pelo Ministério Público, concluindo que deve ser rejeitado liminarmente ou, em qualquer caso, negar-se provimento ao mesmo.

            O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso do Ministério Público deverá proceder, no sentido definido pelo Ministério Público da 1.ª Instância e que deverá ser negado provimento ao recurso do arguido.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do C.P.P., tendo o arguido na resposta ao douto parecer reiterado o entendimento de que o recurso por si apresentado deve ser julgado procedente e improcedente o apresentado pelo Ministério Público caso o Tribunal da Relação conheça do seu mérito.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

     Fundamentação

A matéria de facto apurada e respetiva motivação constantes do acórdão recorrido é  a seguinte:

Factos provados

1).- No dia 9 de Novembro de 2013, pelas 17h00, o arguido A... dirigiu-se ao cemitério do Casal Galego, sito na Marinha Grande, com o propósito de se apoderar de objectos de valor que ali encontrasse.

2).- Ali chegado, tendo visto a queixosa E... a colocar as chaves do seu veículo sobre uma pedra tumular, o arguido apoderou-se delas e dirigiu-se ao veículo de marca "Mitsubishi", modelo Space Star com matrícula (...) SD e valor de 9 000 € propriedade de E... , o qual continha no seu interior os seguintes objectos:

-- Cartão de cidadão em nome de E...;

-- Cartão de débito, emitido pelo banco CGD, em nome de E... ;

-- Caderneta de depósito, emitida pelo banco CGD, em nome de E... ;

-- Telemóvel, marca Nokia, com cartão SIM nº (...) ;

-- Carta de condução em nome de E... ;

-- Conjunto de chaves da habitação de E... .

 3).- De seguida, com as chaves na sua mão, o arguido colocou o veículo em funcionamento, apoderando-se do veículo e objectos referidos, levando-os consigo e saiu daquele local conduzindo-o.

4).- Sem que para tal tivesse habilitado com a respectiva carta de condução que lhe permitisse a circulação do referido veículo na via pública.

5).- No dia 18 de Novembro de 2013, pelas 10H15, alguém que não foi possível identificar, dirigiu-se ao Largo Cónego Simões Inácio, sito na Batalha, área desta comarca, com o propósito de se apoderar de objectos de valor que ali encontrasse.

6).- Ali chegado, aproximou-se do veículo com matrícula (...) NZ, propriedade de B... o qual se encontrava devidamente fechado.

7).- Acto contínuo, munindo-se de uma pedra que ali se encontrava, arremessou-a ao vidro frontal lateral direito, partindo-o, o que lhe permitiu aceder ao seu interior, de onde retirou uma mala de senhora que continha no seu interior os seguintes objectos, levando-os consigo:

-- Duas cadernetas bancárias;

-- Um par de óculos graduados;

-- Trinta euros em dinheiro.

8).- No dia 28 de Novembro de 2013 pelas 1H40 o arguido, apôs a matrícula (...) RC pertencente ao veículo de marca "Renault", modelo Kangoo, propriedade de “F..., Ltd”, no veículo de marca "Mitsubishi", modelo SPACE STAR, descrito no ponto 2).- de forma a dificultar a identificação do mesmo.

9).- Após, conduziu-o, na estrada municipal 545, Tojal de Cima, em Porto de Mós, sem que para tal tivesse habilitado com a respectiva carta de condução que lhe permitisse a circulação do referido veículo na via pública.

10).- No mesmo dia, hora e lugar, o militar C... , no exercício das suas funções, conduzia o veículo da GNR, devidamente identificado, transportando consigo o militar D... .

11).- Sendo do conhecimento dos referidos militares que o arguido não detinha licença de condução de veículos, os militares, ao avistarem o arguido, ligaram os sinais luminosos (rotativos), com vista à paragem para fiscalização.

12).- Acto contínuo, o arguido colocou-se em fuga e desligou as luzes do veículo por si conduzido, seguindo o seu trajecto para a via IC 9 sentido Tomar - S. Jorge.

13).- Nesta sequência, o militar C... iniciou o seu seguimento.

14).- Quando o arguido seguia pela localidade de Pinheiros e imediatamente após avistar o veículo da GNR, efectuou manobra repentina e mudou a direcção para a Rua do Crespo Sul, por onde seguia o veículo da GNR.

15).- Em consequência da manobra descrita, o militar C... efectuou uma travagem brusca a fim de evitar colidir com o veículo conduzido pelo arguido.

16).- Em consequência do exposto, os militares perderam o arguido de vista.

17).- Pelas 3H00, o arguido conduziu o veiculo descrito em 2).- até Casais de Ledos, Batalha, estacionando o mesmo perto da Rua Principal, num lugar ermo.

18).- Acto contínuo, de modo concretamente não apurado, o arguido ateou fogo ao veículo referido.

19).- Em consequência directa e necessária do comportamento supra descrito do arguido, o veículo, propriedade de E... , ficou totalmente carbonizado, causando à ofendida um prejuízo de 9 000 €.

20).- O arguido ao praticar os factos descritos em 1).-, 2).- e 3).- sabia que os objectos ali mencionados não lhe pertenciam e que se apoderava dos mesmos contra a vontade e sem o consentimento do seu legítimo proprietário.

21).- O arguido ao praticar os factos descritos nos pontos 3).-, 4).-, 10).- e 13).- sabia que conduzia um veículo automóvel na via pública e que não estava habilitado para tal.

22).- Todavia, o arguido quis conduzir o mesmo, apesar de saber que a condução de veículos com motor na via pública só é permitida aos titulares de documento que os habilite a tanto.

23).- O arguido, ao circular no veículo de marca "Mitsubishi", modelo Space Star com a matrícula (...) SD descrito no ponto 8).- mas com a chapa de matrícula (...) RC por si aposta, fê-lo com a intenção de criar a aparência de que esta matrícula a esse veículo pertencia, bem sabendo que tal não era verdade, e que dessa forma, lesava a segurança e confiança no tráfico jurídico.

24).- Ao praticar os factos descritos em 13).-, 14).-, 15).- e 16).- o arguido estava ciente de estar a desrespeitar as mais elementares regras de circulação estradal e os mais básicos deveres de prudência rodoviária e que, por via da sua conduta, colocava em perigo, como colocou, a integridade física dos militares da GNR, caso o militar C... não tivesse atempadamente travado o veículo por si conduzido.

25).- O arguido ao praticar os factos descritos em 18).-, 19).- e 20).- sabia que inutilizava e destruía, como inutilizou e destruiu um bem que não lhe pertencia e que actuava contra a vontade da respectiva proprietária e, todavia, quis actuar da forma descrita.

26).- O arguido agiu, em todos os momentos, com vontade livre e consciente, bem sabendo que o seu comportamento era e é punido por lei.

27). O arguido:

- no âmbito do processo sumário nº 69/99 do 1º Juízo de Porto de Mós, por factos integradores de um crime de furto, factos de 8.6.99, foi condenado em multa;

- no âmbito do processo sumário nº 133/99 do 1º Juízo do Tribunal de Porto de Mós, por factos integradores de um crime de furto simples, factos de 24.9.99, foi condenado em 4 meses de prisão suspensa por 18 meses;

- no âmbito do processo nº 29/98 do 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, por factos integradores de um crime de furto, factos de 15.7.97, foi condenado em 3 meses de prisão substituída por igual período de prisão militar, pena que lhe foi perdoada;

- no âmbito do PCS nº 46/2001 do 1º Juízo de Porto de Mós, por factos integradores de um crime de furto, falsificação de documento e burla, factos de 1.6.99, foi condenado em multa;

- no âmbito do PCS nº 70/01 do 2º Juízo do Tribunal de Porto de Mós, por factos integradores de um crime de falsificação de documento na forma continuada, factos de 15.7.99 , foi  condenado em multa;

-  no âmbito do PCS nº 151/99.2GAPMS do 2º Juízo de Porto de Mós, por factos integradores de um crime de furto, factos de 23.5.99 , foi condenado em multa;

- no âmbito do PCS nº 139/99.3GBPMS do 2º Juízo de Porto de Mós, por factos integradores de dois crimes de roubo, factos de 7.5.99, foi condenado em 5 anos de prisão;

- no âmbito do PCC nº 324/01.GAPMS do 2º Juízo de Porto de Mós, por factos integradores de um crime de furto qualificado, factos de 26.10.2001, foi condenado em 2 anos e 10 meses de prisão;

- no âmbito do PCC nº 66/02.9GBPMS do 2º Juízo de Porto de Mós, por factos integradores de um crime de furto qualificado, factos de 23.2.2002, foi condenado em 10 meses de prisão; - no âmbito do PCS nº 113/02.4GCPMS do 1º Juízo de Porto de Mós, por factos integradores de um crime de condução sem habilitação legal, factos de 4.10.2002, foi condenado em multa; - no âmbito do PCS nº 630/10.2GBPMS do 2º Juízo de Porto de Mós, por factos integradores de um crime de furto qualificado, factos de 16.12.2010 foi condenado em 2 anos de prisão suspensa por 2 anos;

- no âmbito do P sumário nº 330/12.9GBPMS do 2º Juízo de Porto de Mós, por factos integradores de um crime de furto na forma tentada, factos de 4.7.2012, foi condenado em 72 períodos de prisão por dias livres;

- no âmbito do P sumário nº 106/12.3GBPMS do 1º Juízo de Porto de Mós, por factos integradores de um crime de condução sem habilitação legal, factos de 20.02.2012, foi condenado em 4 meses de prisão pena suspensa por 1 ano;

- no âmbito do PCS nº 682/09.8TAPMS do 2º Juízo de Porto de Mós, por factos integradores de um crime de maus tratos, factos de 19.10.2009, foi condenado em 2 anos de prisão pena suspensa por 2 anos;

- no âmbito do PCS nº 574/12.3GBPMS do 2º Juízo de Porto de Mós, por factos integradores de um crime de condução de veículo no estado de embriaguez, factos de 7.12.2012, foi condenado na pena de 1 ano de prisão suspensa por 1 ano;

- no âmbito do PCC nº 40/13.0PJVFX do 1º Juízo Criminal de V. F de Xira, por factos integradores de um crime de roubo, factos de 4.12.2013 , foi condenado em 3 anos e 6 meses de prisão;

- no âmbito do PCS nº 667/13.0GCBNV do 2º Juízo de Benavente, por factos integradores de um crime de furto qualificado 3.12.2013, foi condenado em 2 anos e 6 meses de prisão;

- no âmbito do PCS nº 278/13.0GBPMS da Instância Local Criminal, por factos integradores de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, factos de 24.7.2013, foi condenado em 3 anos e 6 meses de prisão;

28).- Do relatório social extrai-se que A... é o irmão germano mais novo de uma fratria de 4 irmãos, e possui outros 2 irmãos uterinos de uma relação anterior da progenitora.

    O seu desenvolvimento decorreu no seio de uma família humilde, de baixa condição sócio- económica, em que o pai como pedreiro e a mãe empregada doméstica asseguravam com dificuldade a sustentabilidade familiar. Existiam indicadores de violência doméstica, sobretudo sobre a progenitora, devido aos hábitos etílicos do pai.

    Quando A... nasceu a família já se encontrava radicada numa aldeia, em Porto de Mós, numa situação de vida aparentemente mais estável, já que o progenitor veio a abandonar o consumo de álcool, e o arguido, por ser o mais novo da família e com alguns problemas de saúde, foi educado com maior proteccionismo e permissividade normativa.

    No domínio escolar fez, assim, um percurso irregular e pouco investido e aos 15/16 anos, com o 5° ano de escolaridade completo, abandonou os estudos, para começar a trabalhar em actividades profissionais indiferenciadas e ligadas à construção civil.

    Paralelamente e junto ao grupo de pares de convívio iniciou-se, nessa fase, no consumo de haxixe e posteriormente, aos 18 anos, de heroína, sem outra motivação para além da curiosidade e da pressão do grupo.

    Inicialmente segundo o próprio, custeava o consumo com o rendimento do seu trabalho e a família só se apercebeu tardiamente da dependência de A... , na sequência da morte da mãe. Os irmãos a partir dessa data tentaram ajudar e reabilitar o arguido, através de tratamentos e desintoxicações custeados por estes, mas dos quais não houve efeitos duradouros nem consistentes, uma vez que o arguido recaía nos consumos, mantinha relações com pares problemáticos desse meio, e iniciou-se na prática de ilícitos criminais

    A partir de 1999 foi alvo de várias condenações em penas de prisão suspensas na sua execução e prisão efectiva. Durante o cumprimento das medidas probatórias, em 2000 foi inserido num projecto terapêutico de tratamento à toxicodependência mas teve dificuldade de adaptação às regras e abandonou o mesmo ao fim de pouco tempo, permanecendo alguns meses como sem abrigo e a consumir junto ao grupo de pares.

    Entre 2002 e 2009 esteve em cumprimento de pena de prisão efectiva. Durante o período de reclusão abandonou o consumo de tóxicos, completou o 2° ciclo com bom aproveitamento, iniciou a frequência do 3° ciclo por unidades capitalizáveis e habilitou-se ainda com o curso de serralharia, tendo uma conduta institucional adequada.

Durante o período de liberdade condicional, que decorreu entre Abril de 2009 e 27/10/11, A... estabeleceu um relacionamento afectivo e conseguiu inicialmente um trabalho na área de serralharia, e posteriormente na montagem de paineis voltaicos. Contudo, a sua instabilidade afectiva e recaída nos consumos alterou este padrão de conduta e apesar de manter acompanhamento a nível da sua problemática de toxicodependência, recaiu nos consumos de drogas duras, perdeu o trabalho e separou-se da companheira, sendo acolhido novamente em casa dos irmãos. Foi também alvo de novas queixas-crime na GNR de Porto de Mós, nesse período.

    Em Dezembro de 2011 foi condenado por um crime de furto qualificado a 2 anos de prisão suspensos na sua execução com regime de prova. Contudo durante o período de cumprimento da mesma, A... evidenciou falta de motivação para inflectir o estilo de vida delinquencial e associado ao consumo de estupefacientes que vinha a manter e apesar de estar a viver num apartamento arrendado pela família e contar com o apoio destes, não seguia as orientações que lhe davam.

    Por factos cometidos em Julho de 2012 foi condenado, por crime de furto, a uma pena de prisão por dias livres (72 períodos), que iniciou em Fevereiro de 2013.

    Em Novembro de 2012 estabeleceu novo relacionamento afectivo com outra companheira, separada, desempregada e com um filho menor a cargo. À data encontrava-se sem ocupação laboral fixa e a realizar trabalhos esporádicos em pintura de construção civil e serralharia. Contudo, por influência desta companheira, no início de 2013 retomou as consultas, o acompanhamento à sua problemática de toxicodependência e iniciou tratamento por metadona.

    A... manteve-se com alguma estabilidade de vida entre 2012 e 2013, quando retomou um estilo de vida irregular e ligado ao consumo de tóxicos, nomeadamente cocaína, apesar de continuou a tomar regularmente metadona.

    Este estilo de vida ligado a meios de consumo e tráfico bem como à continuidade do relacionamento do arguido com pares não normativos e comportamentos delinquenciais associados, como furtos de bens em casa, levou a companheira a deixar a morada de família em Agosto de 2013.

    Segundo A... , manteve-se ainda a viver até Setembro nessa morada, mas devido á falta de recursos para custear as despesas inerentes à habitação, abandonou a mesma. Pernoitou inicialmente algumas noites, na morada da irmã, mas quando esta começou a exigir-lhe uma conduta normativa e a questionar o seu comportamento aditivo, deixou de a contactar e ficou sem paradeiro conhecido da família, nos meses que antecederam a sua prisão preventiva em Dezembro de 2013.

    De acordo com o arguido terá sido sobretudo nessa época, em que adoptou um modo de vida desestruturado, intensificou o consumo de cocaína e os contactos com meios ligados ao tráfico, e se encontrava desestabilizado emocionalmente com a separação da companheira, que ocorreram alguns dos acontecimentos que motivaram a sua actual situação jurídico-penal.

    Nesse período também deixou de cumprir a prisão por dias livres e de comparecer na DGRSP, no âmbito de um acompanhamento de uma pena suspensa na sua execução, registando igualmente uma queixa-crime na GNR local.

    Esta postura do arguido, marcada por sucessivas recaídas no consumo de tóxicos, provocou algum cansaço na família, e na época, uma menor disponibilidade para o apoiarem, em meio externo. Presentemente apenas a irmã G...., refere disponibilidade para, no futuro, acolher e apoiar A... .

    Considera que este tem vindo a fazer uma evolução positiva durante a presente reclusão, já que abandonou aparentemente o consumo de estupefacientes, mantém-se no programa de metadona e verbaliza o desejo de estabilizar e reorganizar a sua vida quando for colocado em liberdade.

    Ainda que esta irmã revele disponibilidade para receber A... , na sua morada quando este estiver em liberdade, poderá não dispor de capacidade para impedir uma recaída do arguido no consumo de estupefacientes, como já se verificou em períodos anteriores, constituindo-se assim este apoio pouco consistente por si só, no que respeita á problemática aditiva de A... .

    O arguido também evidencia dificuldade para avaliar os motivos que conduziram à sua presente situação, os quais atribui á sua problemática de toxicodependência, e á forma pouco ponderada como avaliou as consequências dos seus actos.

    Do que foi possível avaliar, parece existir, subjacente à conduta aditiva de A... , uma problemática afectiva e sentimentos de culpabilidade relativamente à morte da progenitora, ainda não ultrapassados, e que de certa forma perpetuam o recurso a substâncias aditivas em momentos de desorientação e angústia.

    Paralelamente o arguido revela-se uma pessoa com alguma permeabilidade aos outros e aos meios de consumo de estupefacientes dispondo de uma menor capacidade de discernimento sob tensão emocional, condições internas que aumentam os factores de risco em meio livre.

    O arguido iniciou os confrontos com o sistema de Justiça Penal precocemente, cumprindo uma pena de prisão efectiva durante a qual evidenciou capacidade para se adaptar aos normativos institucionais e para optimizar os recursos que lhe foram oferecidos a nível institucional, beneficiando também de várias licenças de saída jurisdicionais com sucesso. Apesar de ter revelado interiorização do desvalor da sua conduta e verbalizar preocupação pela consequência dos seus comportamentos criminais nessa fase, manteve uma postura desculpabilizante relativamente aos mesmos, atribuindo a condenação anterior, exclusivamente à sua dependência aditiva. Actualmente já pondera outras questões, como a sua relação e vulnerabilidade à influência de meios de tráfico e consumo de drogas.

    Todavia, em liberdade verifica-se que A... revela acentuada dificuldade para manter condutas normativas e socialmente ajustadas e foi condenado em vários outros processos, a maioria por furtos e em fases de recaída no consumo de estupefacientes.

    Das várias abordagens técnicas e terapêuticas efectuadas com o arguido ao longo do tempo nenhuma parece ter conseguido afastar de forma mais definitiva, A... da sua conduta aditiva e consequentemente, criminal.

    Trata-se assim de um arguido que necessita de uma intervenção terapêutica prolongada em espaço confinado, de forma a adquirir as competências necessárias a levar uma vida socialmente mais ajustada no futuro.

    No Estabelecimento Prisional não tem registos disciplinares, evidencia uma conduta adaptada aos normativos institucionais e continua inserido no programa de metadona, embora já em fase de redução terapêutica. Mantém-se contudo inactivo e sem projectos de vida estruturados e não tem demonstrado vontade em alterar a sua situação, postura que traduz alguma falta de motivação e dinâmica para estruturar um modo de vida mais construtivo.

    Pretende aguardar a definição da sua situação jurídica, para requerer transferência para outro Estabelecimento Prisional e estabelecer objectivos a nível pessoal, profissional ou laboral, uma vez que já foi condenado a 11 anos de prisão efectiva por alguns processos e ainda tem processos pendentes e a aguardar julgamento.

Factos não provados

-- não se provou que tivesse sido o arguido que no dia 18 de Novembro de 2013, pelas 10h15, se dirigiu ao Largo Cónego Simões Inácio, sito na Batalha, área desta comarca, com o propósito de se apoderar de objectos de valor que ali encontrasse; que após ter partido o vidro do carro se apoderou de duas cadernetas bancárias, um par de óculos graduados e trinta euros em dinheiro.

Fundamentação dos factos provados e não provados.

Os factos acima provados tiveram por fundamento os seguintes meios de prova, pontos 1 a 4 a testemunha E... disse que estava no cemitério a enfeitar uma campa, tinha as chaves do seu carro em cima da campa, o arguido apanhou-as, abriu o veículo e desapareceu com ele; disse o que tinha no interior do veículo, corrigiu o valor do veículo para 9 000 €; o seu veículo apareceu dias depois queimado; não recuperou nenhum dos objectos que se encontravam no interior do veículo; a testemunha reconheceu o arguido como sendo a pessoa que se apropriou do veículo; pontos 5 a 7 inclusivé, a testemunha H... disse que no dia 18.11.2013 da parte da manhã, foi dar umas voltas e quando chegou junto do seu veículo tinha o vidro da porta do lado do pendura partido e uma pedra dentro do carro, concluindo que tinha sido com aquela pedra que lhe partiram o vido; relacionou os bens que lhe furtaram do interior do veículo; mais disse que não recuperou nenhum objecto; ponto 8 os documentos de fls 17 e 18 descrevem as características dos dois veículos matrículas (...) SD e (...) RC, o relatório de inspecção judiciária comprova que no Mitsubishi foi aposta uma matrícula que não correspondia à verdadeira e só podia ter sido o arguido a fazer aquela alteração de matrículas pois era quem tinha a posse do dito veículo, porque o furtou e foi visto a conduzi-lo nesse dia, o arguido sabia que os agentes da autoridade tinham conhecimento de que não era portador de carta de condução pelo que utilizou todos os disfarces possíveis para não ser identificado por estes; pontos 9 a 18 os dois militares da GNR C... e D... disseram que quando andavam numa patrulha de rotina avistaram um Mitsubishi, apercebendo-se que o condutor era o arguido, ligaram os máximos e os sinais rotativos a fim de que o arguido parasse; ele pôs-se em fuga, os agentes da autoridade  perseguiram-no, por razões alheias à vontade dos agentes perderam-no de vista; mais tarde voltaram a encontrá-lo, ficando o arguido, conduzindo do Mitsubishi de frente para o veículo dos agentes da autoridade; o arguido ao aperceber-se destes, mudou de direcção, atravessou-se à frente do veículo da GNR e acelerou; o agente da autoridade C... fez uma travagem para não embater no arguido; na sua marcha não respeitou as rotundas, seguia em alta velocidade; pouco tempo depois destes factos encontraram o dito Mitsubishi num descampado junto a uma habitação a arder; não eram visíveis nem perceptíveis quaisquer sinais de despiste ou acidente; o doc de fls 279 provindo do IMTT diz que o arguido não era titular de carta de condução; ponto 19 os agentes da autoridade dizem que se tratou de fogo posto no veículo pois o mesmo estava numa posição regular, e no local onde o mesmo se encontrava ou nas proximidades, não havia sinais de despiste, acidente ou qualquer outro acontecimento que permitisse concluir não se tratar de fogo posto; por outro lado o relatório de fls 68 documentado com fotografias, diz que nelas se observa que o fogo provém do interior do veículo, para o exterior, ou seja, o arguido para não deixar vestígios lançou fogo ao interior do veículo que acabou por o carbonizar totalmente; pontos 20 a 26 reportam-se ao dolo e ele resulta das presunções materiais, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência. – Ac RP de 23.2.83 BMJ 324-620. Quanto ao elemento subjectivo, apenas cumpre citar as palavras de Malatesta (A Lógica das Provas em Matéria Criminal, pág 172) quando refere que “o homem ser racional não obra sem dirigir as suas acções a um fim. Ora quando um meio só corresponde a um dado fim criminoso, o agente não pode tê-lo empregado senão para alcançar aquele fim”. Ou como refere o Ac do STJ de 26.10.2011 Procº 19/05.5JELSB.S1 “no que concerne ao elemento subjectivo do tipo, a partir do momento em que se demonstram os pressupostos de facto que indicam a prática de actos integrantes do tipo legal imputado, a afirmação do elemento subjectivo é uma questão de dedução lógica, ou seja, e também aqui, de prova indiciária; ponto 27 pelo RC de fls 349 e ss; ponto 28 e ss pelo relatório social de fls 365 e ss.

Apreciação crítica da prova: as testemunhas depuseram com rigor, objectividade, descreveram os factos que presenciaram com pormenores que não deixaram quaisquer dúvidas sobre os mesmos e quem foi o seu autor. Relativamente ao furto ocorrido no dia 18 de Novembro de 2013, pelas 10h15, no Largo Cónego Simões Inácio, sito na Batalha, área desta comarca, ninguém o viu e não há outros elementos e prova que permitam imputar a sua autoria ao arguido.


 *

            O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação. (Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96   e de 24-3-1999   e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar  , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

Como bem esclarecem os Cons. Simas Santos e Leal-Henriques, « Se o recorrente não retoma nas conclusões, as questões que suscitou na motivação, o tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no art.684.º, n.º3 do CPC. [art.635.º, n.º 4 do Novo C.P.C.]» (in Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, pág. 801).  

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recorrente Ministério Público as questões a decidir são as seguintes:

- se os crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo automóvel sem habilitação legal devem ser punidos em concurso efetivo; e,

- se as penas parcelares e a pena única aplicadas ao arguido não se mostram ajustadas, impondo-se um agravamento das mesmas. 

Tendo em consideração as conclusões da motivação do arguido A... são duas as questões a decidir:

- se a matéria constante dos pontos n.ºs 18, 19 e 25 dos factos provados foi julgada incorretamente pois que devia ter sido julgada não provada; e

- se em face da alteração dessa matéria de facto e consequente absolvição do arguido da prática do crime de dano qualificado, p. e p. pelo artigo 213 °, n.º 1. al a) Código Penal, deve ser reformulado o cúmulo jurídico e fixar-se a pena única em 3 anos e 9 meses de prisão.


*

            Recurso do Ministério Público

            1.ª Questão: do concurso efetivo dos crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo automóvel sem habilitação legal.

O Ministério Público defende que o Tribunal a quo ao subsumir a matéria de facto dada como provada relativa aos factos ocorridos no dia 28 de novembro de 2013, apenas ao disposto no artigo 291.°, n.° 1, al. b), do Código Penal, absolvendo o arguido da prática ainda de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, violou o disposto nos artigos 30°, n.º 1 e 77°, ambos do Código Penal, 3.º, n.º 2, do D.L. n.º 2/98, de 3 de Janeiro e 121.°, do Código da Estrada, pois estamos perante um caso de concurso real, efetivo, de crimes.

Em concreto e para fundamentar a sua pretensão, o recorrente indica, no essencial, os seguintes argumentos:

- O crime de condução perigosa de veículo rodoviário e o crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, protegem bens jurídicos diferentes;

- As condutas levadas a cabo pelo arguido no dia 28 de novembro de 2013 tiveram por base duas resoluções criminosas.

Há uma resolução do arguido de conduzir o veículo automóvel sem habilitação legal que se consubstancia quando inicia a condução do veículo ( pontos n.ºs 8 e 9 dos factos provados) e, depois, uma nova resolução, tomada após ter avistado a patrulha da GNR, que o leva a fugir e conduzir do modo perigoso que ser mostra descrito nos pontos n.ºs 10 a 15 dos factos provados. A resolução de conduzir continua depois dos militares da GNR o terem perdido de vista, pois continuou a conduzir o mesmo veículo, até pelo menos as 3 horas ( pontos n.ºs 16 e 17 dos factos provados);  

- Considerando a definição de concurso efetivo de crimes a conduta do arguido preencheu as duas previsões normativas distintas pelas quais vinha acusado, pelo que deve ser condenado pela prática de ambos os ilícitos e não apenas pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário.

Vejamos.

O art.30.º, n.º1, do Código Penal, é a norma fundamental sobre o concurso de crimes,  estabelecendo que «O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente».

Existe concurso de crimes quando o agente, com a sua conduta, preenche mais do que um tipo de crime, ou o mesmo tipo de crime mais do que uma vez.

No regime do concurso de crimes, em sentido amplo, é corrente distinguir-se o concurso legal, aparente ou impuro, do concurso efetivo, verdadeiro ou puro.

No caso do concurso legal, aparente ou impuro, a aplicação de uma das normas penais abstratamente aplicáveis exclui a aplicação da outra ou outras. A conduta criminosa é tão esgotantemente abarcada pela aplicação ao caso de um só dos tipos penais violados que o restante ou restantes tipos devem recuar, subordinando-se ou hierarquizando-se perante uma tal aplicação.

É tradicional a doutrina distinguir no concurso aparente de normas penais três categorias: da especialidade, da consunção e da subsidiariedade. 

Na relação da especialidade as duas normas têm os mesmos elementos típicos, mas uma delas caracteriza o facto ou o agente através de elementos distintivos que a particularizam.

Relação de especialidade será aquela que intercede entre qualquer tipo fundamental e o respetivo tipo qualificado ou privilegiado. Neste caso, a lei especial derroga a lei geral – “lexspecialisderogatlegigenerali” –, pelo que só o tipo penal especializado deverá ser concretamente aplicado. Em regra limita-se a relação de especialidade aos casos em que de uma comparação abstrata dos tipos resulta por necessidade lógico-conceitual, que um é especial relativamente ao outro.

O Prof. Paulo Pinto de Albuquerque indica os seguintes casos em que existe uma relação de especialidade: “(1) na relação entre o tipo fundamental e os tipos qualificado, agravado ou privilegiado; (2) na relação entre o tipo simples e o tipo complexo ( como no caso de roubo, que se compõe do furto e de coação); (3) na relação entre o crime fundamento e o crime específico impróprio  correspondente ( como no caso do furto e do peculato); (4) na relação entre o tipo penal da lei penal especial e o tipo penal do C.P correspondente (como no caso da corrupção e da corrupção desportiva) (...)”.[1]

Com contornos doutrinais menos definidos está a categoria da consunção, que se verificará quando a realização do tipo de crime (mais grave) inclui, ao menos em regra, a realização de outro tipo de crime (mais leve), aceitando-se que o legislador ao fixar a pena mais grave tenha já entrado em conta tenha já tido em conta esse facto e, por isso, a aplicação da norma que prevê o crime menos grave deve considerar-se excluída, de acordo com o princípio “lexconsumensderogatlegiconsuntae”. 

Na lição do Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, dar-se-á a relação de consunção quando o conteúdo de um facto ilícito típico inclui normalmente o de outro facto ilícito típico e a punição do primeiro esgota o desvalor de todo o acontecimento, sendo casos de consunção os seguintes: “(1) facto concomitante não punido (…), por exemplo por se tratar de um crime instrumental para a realização de um crime-fim, como na ofensa corporal da mulher grávida vítima de aborto não consentido ou no dano causado na roupa da vítima do homicídio ou (2) facto posterior não punido (…), como, por exemplo, o dano de coisa furtada (…)”.

A consunção tem o designativo de consunção pura quando o crime mais grave consome um facto concomitante/posterior menos grave e será consunção impura quando o facto concomitante/posterior é mais grave, caso em que os crimes em concurso são punidos com a pena mais grave.[2]

Uma terceira categoria que se costuma autonomizar é a da subsidiariedade. Ela significa que certas normas penais intervêm só de forma auxiliar ou subsidiária, quando o facto não seja punido por uma outra norma mais grave.

Ainda no dizer do Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, a lei prevê casos de subsidiariedade formal ou expressa, como nos artigos 150.º, n.º2 e 208.º, n.º1 do Código Penal, e casos de subsidiariedade material ou implícita, como nos seguintes casos: “ (1) na relação entre atos preparatórios, tentados ou consumados; (2) na relação entre crimes de perigo abstrato, perigo abstrato-concreto, perigo concreto e dano; (3) na relação entre crimes cometidos nas formas de autoria , instigação e cumplicidade; (4) na relação entre o crime por ação e por omissão; (5) na relação entre a violação de um dever de garante ( art.10.º, n.º2) e a violação do dever geral de auxílio (art.200.º); (6) na relação entre crime doloso e crime negligente; (7) na relação entre o tipo de crime de embriaguez e intoxicação e a ação livre na causa ( art.20.º, n.º4).”.[3]

A ideia fundamental comum a este grupo de categorias ou formas de concurso legal, aparente ou impuro de crimes é a de que o conteúdo do injusto de uma ação pode determinar-se exaustivamente apenas por uma das leis penais que podem entrar em consideração e, consequentemente, sendo uma das disposições penais violadas a condenação será só pela sanção que ela contém.

Se entre os tipos penais violados não se dá uma relação de exclusão, então ficamos perante o chamado concurso efetivo, verdadeiro ou puro.

O art.30.º, n.º1, do Código Penal, não regula o concurso aparente de crimes, mas apenas o concurso efetivo, como resulta da expressão “ de tipos de crime efetivamente cometidos”.

O Prof. Eduardo Correia, autor do projeto do Código Penal, justificou a ausência no direito positivo da regulação do concurso aparente de crimes, referindo que “ …quanto à explicitação das regras da especialidade e da consunção, não se julga ser ela oportuna, uma vez que se trata, por um lado, de regras doutrinais e não legislativas , e, por outro, de regras gerais de interpretação do tipo legal de crime e não regras privativas do problema da unidade e pluralidade de infrações.”.[4]

De acordo com art.30.º, n.º1, do Código Penal, o concurso efetivo tanto pode envolver a aplicação de diferentes normas incriminadoras (concurso heterogéneo), como a aplicação plúrima de uma única norma incriminadora (concurso homogéneo). Por outro lado, o preceito não distingue o concurso ideal (um único ato viola vários bens jurídicos protegidos por diversas incriminações) e o concurso real (uma pluralidade de atos violam vários bens jurídicos protegidos por diversas incriminações). 

Uma vez que o concurso efetivo, verdadeiro ou puro consiste na subsunção dos factos a diversas incriminações ou “tipos de crime” impõe-se concretizar o que seja um “tipo de crime” para efeito de concurso de crimes. 

O bem jurídico é o cerne do tipo e da valoração que este exprime. A razão teleológica para determinar as normas efetivamente violadas ou os crimes efetivamente cometidos, só pode encontrar-se na referência a bens jurídicos que sejam efetivamente violados.

concurso efetivo de crimes quando os factos se subsumem a tipos de crime que protegem bens jurídicos distintos ou, sendo subsumíveis a crimes que protejam o mesmo bem jurídico, as violações tenham tido lugar em situações históricas distintas, pois neste caso indicia-se que houve uma pluralidade de resoluções criminosas.

No caso dos crimes tutelarem bens jurídicos eminentemente pessoais, haverá tantos crimes quantas as vítimas, independentemente de a conduta do agente se analisar em um único ato ou numa pluralidade de atos, atento o estatuído no n.º3 do art.30.º do Código Penal. 

Posto isto, importa agora verificar, em concreto e através da comparação dos bens jurídicos, se existe uma situação de concurso aparente ou antes de concurso efetivo entre os crimes de crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art.291.°, n.°1, al. b), do Código Penal e o crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, p. e p. pelo art.3º, nº 1, do DL 2/98, de 3 de Janeiro.

A este respeito o Tribunal Coletivo limitou-se a consignar no acórdão recorrido que « No caso dos autos, o arguido conduziu por duas vezes um veículo automóvel. Mas numa delas fê-lo praticando a condução perigosa, pelo que tal condução se encontra numa relação de consumpção (um certo tipo de crime faz parte da realização de outro tipo de crime) com o crime de condução perigosa.».

Cremos que o Tribunal a quo não andou bem ao decidir-se pela existência de um concurso aparente de crimes, pelas razões que sucintamente se passam a expor.

O art.291.º do Código Penal, epigrafado de «Condução perigosa de veículo rodoviário», estabelece, designadamente:

« 1 - Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada:

a) Não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, ou por deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva; ou

b) Violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita;

e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.».

Os bens jurídicos protegidos pela incriminação são a vida, a integridade física de outrem e os bens patrimoniais alheios de valor elevado.

Com a adoção das condutas ou a omissão das cautelas impostas nas situações descritas nas alíneas a) e b) do art.291.º do Código Penal, o agente cria um perigo concreto para a vida ou  para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado.

O crime de condução perigosa de veículo rodoviário é um crime de perigo comum concreto.

Como bem se refere no douto acórdão recorrido, seguindo a lição do Prof. Faria Costa, ( Comentário Conimbricense do Código Penal, T. II, Coimbra Ed., 1999, p. 867), os crimes de perigo comum são aqueles em que o perigo se expande relativamente a um número indiferenciado e indiferenciável de objetos de ação sustentados ou iluminados por um ou vários bens jurídicos.

Dentro dos crimes de perigo comum pode-se distinguir entre crimes de perigo concreto e crimes de perigo abstrato.

Nos primeiros, o perigo é elemento do tipo legal de crime, ou seja, enquanto elemento do tipo, como efeito da ação criminosa do agente, é exigida a concretização ou materialização de um perigo de lesão para determinados bens jurídicos.

Já nos crimes de perigo abstrato o perigo não é elemento do tipo mas tão só motivação do legislador. Nestes crimes é a própria ação em si que é considerada perigosa pois, atendendo às regras da experiência comum, é considerada apta a produzir efeitos danosos; contudo, esse perigo que a conduta tipificada encerra, constitui tão só a motivação do legislador para a incriminar, assim, não se torna necessário que, no caso concreto, tal perigo se materialize, já que não está previsto como efeito da ação típica.

Com esta incriminação pretendeu-se evitar, ou pelo menos, manter dentro de certos limites, a sinistralidade rodoviária, punindo todas as condutas que se mostrem suscetíveis de lesar a circulação rodoviária e que, ao mesmo tempo, coloquem em perigo a vida, a integridade física ou bens patrimoniais alheios de valor elevado (sendo estes os bens jurídicos protegidos com a incriminação).

O art.3.º, n.º 1, do DL 2/98, de 3 de Janeiro, estabelece, por sua vez, que “ Quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada” é punido com prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias», acrescentando o seu nº 2 que a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, se o veículo for um motociclo ou automóvel.

Enquanto a condução perigosa de veículo rodoviário é um crime de perigo concreto, o crime de condução sem habilitação legal é um crime de perigo abstrato.

Pune-se no tipo penal descrito no art.3.º, n.º 1, do DL 2/98, de 3 de Janeiro, a condução sem habilitação legal por o Estado presumir que a prática de condução nessas condições não tem a segurança que resulta da submissão do condutor a exames para apuramento da capacidade de conduzir na via pública.

A condução de veículos motorizados exige aprendizagem, quer de técnicas quer de regras de circulação rodoviária, sendo a segurança rodoviária que subjaz à incriminação da condução sem habilitação legal.

O risco de lesão da segurança rodoviária, dada a não certificação pelo Estado de que o condutor tem capacidades para conduzir na via pública, coincide com a própria atividade proibida.

O bem jurídico autonomiza-se de cada um dos concretos bens jurídicos que possam vir a ser individualmente afetados na respetiva titularidade concreta. Deste modo, a lesão do bem jurídico de perigo, assim compreendido, coincide logo no momento da condução do veículo motorizado na via pública, independente da relação, específica e autónoma, de cada um dos valores individualizados que possam vir a ser concretamente afetados em momento posterior.

O crime de condução sem habilitação legal, como crime de perigo abstrato, ficou integrado, autonomamente, logo com a condução do veículo, independentemente do resultado posterior da condução, designadamente da adoção das condutas ou da omissão das cautelas impostas nas situações descritas nas alíneas a) e b) do art.291.º do Código Penal

Embora a condução de veículo com motor faça parte do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, como também do crime de condução sem habilitação legal, entendemos que, salvo o devido respeito, não se verifica uma situação de concurso aparente de crimes, na categoria de consunção, pois o conteúdo de injusto da ação típica do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, de um ponto de vista jurídico, não expressa de forma exaustiva o desvalor da condução sem habilitação legal, nem é a falta de habilitação legal que é causal do crime de condução perigosa de veículo rodoviário.

Como bem refere o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, a falta de habilitação legal para conduzir não constitui um caso em que o agente não está em condições de conduzir em segurança, para os efeitos do disposto no art.291.º, n.º1, al. a) do Código Penal.[5]

Também o Prof. Germano Marques da Silva, a propósito alínea b) , n.º1 do art.291.º do Código Penal, na redação dada pelo DL n.º 48/95 -  e que antecede a atual redação -, quando a norma não descrevia as concretas regras que integravam a violação grosseira das regras da circulação, entendia que a condução sem habilitação legal - então criminalizada no art.1.º do DL n.º 123/90 - , não integrava o conceito daquela alínea, concluindo mesmo que não se verificava uma relação de consunção entre estes crimes, mas um concurso real.[6]

No caso concreto também não se vislumbra existir qualquer situação de concurso aparente de normas penais nas categorias da especialidade ou da subsidiariedade. 

Os bens jurídicos protegidos são, pois, distintos num e outro dos crimes.

E as condutas levadas a cabo pelo arguido A... , no dia 28 de novembro de 2013, tiveram por base duas resoluções criminosas, tomadas em momento espacio temporal distinto, como bem anota o recorrente.[7]

Efetivamente, há uma primeira resolução do arguido, de conduzir o veículo automóvel sem habilitação legal, que se consubstancia quando inicia a condução do veículo ( pontos n.ºs 8 e 9 dos factos provados) - sabendo que para conduzir aquele automóvel na via pública era necessário ser titular de uma carta de condução, habilitação que não tinha - , e que se mantem sempre enquanto conduz nessa noite ( pontos n.ºs 16 e 17 dos factos provados); e existe uma outra e nova resolução, tomada após ter avistado a patrulha da GNR, que o leva a fugir e conduzir do modo perigoso que ser mostra descrito nos pontos n.ºs 10 a 15 dos factos provados - sabendo que colocava em perigo, como colocou, a integridade física dos militares da GNR.

Pelo exposto, preenchendo os factos, referentes ao dia 28 de novembro de 2013, quer os elementos constitutivos do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art. 291º, n.º1, al. b), do C.P., quer do crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art.3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3/01, sendo diferentes os bens jurídicos tutelados nos tipos e plurais as resoluções, praticou o arguido, em concurso real estes dois crimes.

Procede, assim, esta questão.


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2.ª Questão: da inadequação das penas parcelares aplicadas relativamente aos crimes de condução perigosa e de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, e da pena única, por se impor um agravamento das mesmas.

Nesta altura, temos já como assente que o arguido A... , com a sua conduta descrita nos factos provados, praticou em autoria material e em concurso efetivo os seguintes crimes:

- um crime de furto qualificado, p. e p. nos termos do art.204.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal, com pena de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias;

- um crime de falsificação de documento, p. e p. nos termos do art.256.º, n.ºs 1 al e e) do Código Penal, com pena de prisão de 6 meses a 5 anos ou multa de 60 a 600 dias;

- umcrime de condução perigosa, p. e p. nos termos do art.291.º, n.º 1, al. b) do Código Penal,   com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias.

- dois crimes de condução sem habilitação legal, p. e p. nos termos do art.3.º, n.º 2 do DL 2/98, com pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias; e

- um crime de dano qualificado, p. e p. pelo art.213.º, nº 1, al a) do Código Penal, com  pena de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias.

O mesmo arguido foi condenado nas seguintes penas:

- 3 anos de prisão pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.204.º, n.º 1 al a) e b) do Código Penal;

- 1 ano de prisão pela prática de um crime de falsificação, p. e p. pelo art.256.º, n.ºs 1, al e) e 3 do Código Penal;

- 18 meses de prisão pela prática de um crime de condução perigosa, p. e p. pelo art.291.º, nº 1, al b), do Código Penal;

-  9 meses de prisão pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.3.º, n.º 2 do DL 2/98; e

- 2 anos de prisão pela prática de um crime de dano qualificado, p. e p. pelo art.213.º, n.º 1, al a) do Código Penal.

O recorrente defende que não são justas e equitativas as penas aplicadas ao arguido A... pela prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário e do crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, além de faltar a punição do mesmo pela prática do crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal respeitante ao dia 28 de novembro de 2013.

No seu entender, o arguido deveria ter sido condenado numa pena de 1 ano e 10 meses de prisão pela prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. artigo 291°, n° 1, al. b), do Código Penal e nas penas de 1 ano e 2 meses de prisão, pela prática de cada um dos dois crimes de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3°, n° 2, do D.L. n° 2/98, de 3 de Janeiro, com referência ao artigo 121°, do Código da Estrada.

Argumenta para o efeito, em síntese, que os graus de ilicitude presentes nas condutas do arguido não podem deixar de ser considerados elevados; os dolos são intensos; as suas condutas anteriores, plasmadas no seu certificado de registo criminal, denotam uma tendência para a reiteração criminosa, conducente, inclusive, à presente situação de cumprimento de pena de prisão efetiva; a ausência total de um projeto de vida por parte do arguido, minimamente consistente ou fundado, capaz de o impulsionar para a adoção de uma nova conduta, faz elevar as exigências preventivas; a total ausência de suporte familiar por parte do mesmo tornando mais prementes as mesmas exigências preventivas; a ausência de quaisquer hábitos laborais, regulares e contínuos, aliados à ausência de quaisquer outros rendimentos, o que dificulta a almejada reinserção e onera as mesmas exigências preventivas; o comportamento processual do arguido que, nem sequer, confessou os factos que lhe haviam sido imputados, o que revela falta de consciencialização dos seus atos, tendência em desvalorizar os seus comportamentos delituosos; a sua tendência para manter condutas socialmente desajustadas e contrárias às normas legais; e a presente situação pessoal do arguido, anotada no seu relatório social.

Vejamos.

O artigo 70º do Código Penal prescreve que “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma suficiente e adequada as finalidades da punição.”.

As finalidades da punição vêm definidas no art.40.º, n.º1 do Código Penal , resultando dos seus termos que «a aplicação de penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.».

O objetivo último das penas é a proteção, o mais eficaz possível, dos bens jurídicos fundamentais.

Esta proteção implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo primordialmente para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração).

A prevenção geral radica no significado que a “gravidade do facto” assume perante a comunidade, isto é, no significado que a violação de determinados bens jurídico penais tem para a comunidade e visa satisfazer as exigências de proteção desses bens na medida do necessário para assegurar a estabilização das expectativas na validade do direito.

A reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou individual, isto é , à ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida.

A escolha entre a pena de prisão e a alternativa ou de substituição depende unicamente de considerações de prevenção geral e especial.

A culpa, entendida como juízo de censura que é possível dirigir ao agente por não se ter comportado, como podia, de acordo com a norma , não tem relevância no problema da escolha da pena.[8]

Sendo o crime de condução perigosa, p. e p. pelo art.291.º, n.º 1, al. b), do Código Penal,  sancionado com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias, o Tribunal a quo optou, por razões de prevenção, pela pena de prisão, em detrimento da pena de multa.

Igualmente optou o Tribunal a quo pela aplicação da pena de prisão, em detrimento da pena de multa, relativamente ao crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, praticado em 9 de novembro de 2013, pese embora fosse punível com pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.

No caso em análise, e relativamente ao crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal,praticado em 28 de novembro de 2013, as exigências de prevenção geral são razoavelmente elevadas, tendo em conta, nomeadamente, o elevado número de pessoas que conduz veículos motorizados sem habilitação legal e a continuação de existência de um elevado índice de sinistralidade rodoviária, para a qual contribuem de modo não negligenciável condutores sem habilitação legal.

As razões de prevenção especial ou individual são elevadas, considerando, designadamente, e para além da acumulação de crimes neste processo, que o arguido tem um longo passado criminal, onde pontuam entre outros crimes, os crimes rodoviários.

Entre estes crimes anotamos a prática, por duas vezes, do crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, pelas quais sancionado, uma vez, com pena de multa ( proc. sumário n.º 113/02.4GCPMS do 1º Juízo de Porto de Mós) e outra, com 4 meses de prisão suspensa na execução por um ano (proc. sumário n.º 106/12.3GBPMS do 1º Juízo de Porto de Mós).

Ao voltar a delinquir com a prática de mais um crime de condução sem habilitação legal, conjuntamente com a prática de outros crimes, nomeadamente de condução perigosa de veículo rodoviário, o arguido A... demonstra alguma insensibilidade à segurança rodoviária e às penas de multa em que tem sido condenado por variados crimes.

O Tribunal da Relação considera que a aplicação ao arguido de uma pena de multa, como pena principal, relativamente ao crime de condução sem habilitação legal praticado em 28 de novembro de 2013, não cumpriria o objetivo de intimidação e aprofundamento da validade e eficácia das normas penais pelos cidadãos em geral e pelo arguido em particular.

Pelas razões expostas, optamos pela aplicação da pena de prisão, em detrimento da multa, relativamente à prática deste crime de condução sem habilitação legal pelo arguido.

Importa agora, dentro dos limites definidos na lei e de acordo com o critério geral estabelecido no art.71.º, n.º 1 e 2 do Código Penal, decidir a pena a aplicar ao arguido pela prática deste crime de condução sem habilitação legal (praticado em 28 de novembro de 2013) e verificar se pecam por defeito as penas aplicadas na 1.º instância, pelo outro crime de

condução sem habilitação legal e pelo crime condução perigosa de veículo rodoviário,  como sustenta o recorrente.

Nos termos do art.71.º, n.º 1 e 2 do Código Penal, a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo o Tribunal a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra ele.

O facto punível não se esgota com a ação ilícita-típica, necessário se tornando sempre que a conduta seja culposa, “ isto é, que o facto possa ser pessoalmente censurado ao agente, por aquele se revelar expressão de uma atitude interna pessoal juridicamente desaprovada e pela qual ele tem por isso de responder perante as exigências do dever-ser sociocomunitário.”[9]

Na determinação da medida concreta da pena, a prevenção geral positiva fornece uma moldura de prevenção dentro de cujos limites podem e devem atuar considerações de prevenção especial.

As circunstâncias gerais enunciadas exemplificativamente no n.º2 do art.71.º do Código Penal, são, no ensinamento do Prof. Figueiredo Dias, elementos relevantes para a culpa e para a prevenção e, “ por isso, devem ser consideradas uno actu para efeitos do art.72.º-1; são numa palavra, factores relevantes para a medida da pena por força do critério geral aplicável.”.

Para o mesmo autor, esses fatores podem dividir-se em “Fatores relativos à execução do facto”, “Fatores relativos à personalidade do agente” e “Fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto”.

Podemos agrupar, nas alíneas a), b), c) e e), parte final, do n.º 2 do art.71.º, do Código Penal, os fatores supra mencionados relativos à execução do facto; nas alíneas d) e f), os factores relativos à personalidade do agente; e na alínea e), os factores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto. 

Por respeito à eminente dignidade da pessoa a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa ( art.40.º, n.º 2 do C.P.) , designadamente por razões de prevenção.

No que respeita aos “Factores relativos à execução do facto”, resulta da factualidade dada como provada, que o grau de ilicitude dos factos cometidos pelo arguido, no que respeita à condução sem habilitação legal e à condução perigosa, é razoavelmente elevado. A condução tem lugar, num primeiro momento, como modo do arguido fugir com um veículo automóvel que acaba de subtrair á legitima proprietária. Posteriormente, quando conduz o mesmo veículo furtado, sem habilitação legal, não hesita em violar grosseiramente normas de circulação rodoviária para mais uma vez fugir, agora às autoridades policiais, quando o quiseram fiscalizar.

O arguido agiu com dolo direto e intenso, como resulta bem evidenciado do seu comportamento descrito nos pontos n.ºs 1 a 4 e 8 a 17 dos factos provados.

No que respeita aos «Fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto», que integram a alínea e), n.º2 do art.71.º do Código Penal, anotamos que já apresenta antecedentes criminais por crimes de natureza idêntica – dois crimes de condução sem habilitação legal e um crime de condução perigosa de veículo rodoviário - e crimes de natureza diversa - crimes de furto simples, qualificados e tentado, crimes de roubo, crimes de falsificação de documentos, de burla, de maus tratos e de condução em estado de embriaguez -, pelos quais foi condenado quer em penas detentivas , quer privativas da liberdade.

As condenações agora em causa não são, pois, um episódio ocasional e isolado no contexto de uma vida de resto fiel ao direito.

Dos factos provados não constam circunstâncias relevantes para a atenuação da responsabilidade criminal do arguido A... , como a confissão aberta e o arrependimento do arguido, a reparação do danos ou mesmo a simples  inscrição em escola de condução com vista à obtenção de titulo que o habilite no futuro a conduzir veículos automóveis.

Nos “Fatores relativos à personalidade do agente” assume preponderância a não interiorização satisfatória da gravidade das condutas em causa por parte do arguido e a ausência de um projeto de vida fundado no trabalho, longe do consumo de estupefacientes.

Apenas uma irmã lhe dá algum apoio, mas o arguido não apresenta falta de motivação e dinâmica para estruturar um modo de vida mais construtivo

No que respeita às condições pessoais e económicas do arguido, resulta da factualidade dada como provada que tem modesta condição social e fraca situação económica.

Se são razoavelmente elevadas as razões de prevenção geral, dada a frequência com que o tipo de crimes em apreciação são cometidos em todo o País, são já muito prementes as razões de prevenção especial considerando o grau de perigosidade do arguido A... que se retira dos factos provados. Perante estes elementos objetivos relevantes para a culpa e para a prevenção, entendemos que é elevada a culpa do arguido.

Importa, porém, aqui realçar, que todos os crimes dados como provados e cometidos pelo arguido A... , se inserem na média/pequena criminalidade e numa linha que começa com o furto de um veículo até á sua destruição pelo fogo.

É nesse percurso de vida, situado entre 9 e 28 de novembro de 2013, que o arguido pratica dois crimes de condução de veículo automóvel sem habilitação legal - um a 9 e outro a 28 de novembro de 2013 - e um crime de condução perigosa de veículo rodoviário.

Considerando estas e todas as outras circunstâncias que depõem contra e a favor do arguido e as exigências de prevenção e a culpa, o Tribunal da Relação entende que as penas de 18 meses de prisão pela prática de um crime de condução perigosa, p. e p. pelo art.291.º, nº 1, al b), do Código Penal e de 9 meses de prisão pela prática de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, p. e p. pelo art.3.º, n.º 2 do DL 2/98, praticado em 9 de novembro de 2013, são penas que respeitam os critérios de proporcionalidade ínsitos no art.71.º do Código Penal. 

Pelas mesmas razões entendemos condenar o arguido pela prática de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, praticado em 28 de novembro de 2013, numa pena de 9 meses de prisão.

Importa agora refazer o cúmulo jurídico em face da condenação do arguido pela prática de mais um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal.

O art.77.º, n.º 1, do Código Penal, na redação do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, estabelece que « Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.». O seu n.º 2 acrescenta que « A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.».

A medida da pena a atribuir em sede de cúmulo jurídico tem uma especificidade própria.

Por um lado, está-se perante uma nova moldura penal mais abrangente; por outro, tem lugar uma específica fundamentação, que acresce à decorrente do artigo 71.º do Código Penal.

Como refere Figueiredo Dias, a pena conjunta do concurso será encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção, fornecendo a lei, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art.72º, n.º1 (atual 71º.º, n.º1), um critério especial: o do artigo 77º, nº 1, 2ª parte. 

Explicita este Professor que, na busca da pena do concurso «Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta».

E acrescenta que « de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização

Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.

Com o sistema da pena conjunta, perfilhado neste preceito penal, deve pois olhar-se para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente.

No caso concreto, a moldura de punição será de 3 anos de prisão, como limite mínimo, e 9 anos de prisão como máximo legal.

Quanto à ilicitude global, entendida como juízo de desvalor da ordem jurídica sobre um comportamento, por este lesar e pôr em perigo bens jurídico-criminais, é elevada, tendo em conta o tipo de conexão entre os factos em concurso, designadamente o modo de execução já atrás descrito.  

Resulta dos factos dados como provados que o arguido/recorrente agiu com dolo direto e intenso em todos os crimes.

As necessidades de prevenção geral nos crimes em causa são razoavelmente elevadas e o arguido não se mostra inserido socialmente, nem na família, nem no trabalho, mostrando grandes dificuldades em sair da vida de alguma marginalidade em que se encontra e a que não é a alheia a toxicodependência. 

O ilícito global agora julgado aproxima-se já uma tendência criminosa, a permitir concluir que o arguido carece de forte socialização.

Neste contexto, valorando o ilícito global perpetrado e ponderando, em conjunto, a gravidade dos factos e a personalidade do recorrente, entendemos que a pena conjunta deverá ser fixada em 4 anos e 10 meses de prisão.

Assim, alteramos a pena conjunta, fixada pelo Tribunal a quo, em cúmulo jurídico, para 4 ( quatro) anos e 10 ( dez) meses de prisão.

Está pena de prisão será efetiva, uma vez que por não se verificarem os pressupostos materiais da suspensão da execução da pena, enunciados no art.50.º, n.º1 do Código Penal a que alude como se mostra bem fundamentado no douto acórdão recorrido.

Procede assim, nestes termos, parcialmente a presente questão e o recurso interposto pelo  Ministério Público.


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            Recurso do arguido A...

1.ª Questão: do erro de julgamento

O arguido A... entende o Tribunal a quo andou mal na apreciação da prova relativa à prática de um crime de dano qualificado, constante dos pontos n.ºs 18, 19 e 25 dos factos dados provados na sentença, pois os depoimentos dos dois militares da GNR e o documento de fls. 68 dos autos em que se sustentou para dar como provada aquela factualidade, não o permitiam.

Alega para o efeito e em síntese, o seguinte:

- As únicas testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento aptas a depor e que depuseram sobre o crime de dano qualificado pelo qual o arguido vinha acusado, consubstanciado no ato de atear fogo ao veículo, foram os dois militares da G.N.R., e testemunhas C... e D... .

Do depoimento do Militar da G.N.R., C... , cujos segmentos indica na gravação e reproduz na motivação do recurso, resulta, designadamente, que se verificou um hiato temporal de cerca de meia ou de uma hora entre a última vez que viu o arguido e a notícia do incêndio da viatura; que ficou com a perceção de que o arguido não iria sozinho na viatura, embora não tenha conseguido precisar com certeza se se trataria de uma pessoa; e quando questionado sobre se a viatura teria entrado em despiste, esta testemunha nada sabe explicar, dizendo que apenas viu o carro ardido, nem se se tinha tratado de fogo posto.

Do depoimento da testemunha D... , cujos segmentos indica na gravação e reproduz na motivação do recurso, resulta, designadamente, que a testemunha não disse que se tratou de fogo posto e também não viu o arguido a praticar os factos que consubstanciam a prática do crime de dano qualificado pelo qual vinha acusado.

- A prova contra o recorrente, no que tange à prática do crime de dano qualificado, assenta exclusivamente em meras presunções, princípios de normalidade e regras de experiência.

O facto de o incêndio ter começado no interior da viatura, como indica o Relatório Pericial, não significa, só por si, necessariamente, que o mesmo tenha ocorrido de forma intencional e dolosa. Nem o intuito de atear fogo à carrinha poderia ser o de o arguido não ser detetado, pois, nada seria mais chamativo e denunciado que um incêndio no meio da escuridão, que, necessariamente, iria atrair as atenções da vizinhança, da própria G.N.R. e dos bombeiros. As regras de experiência ditam que alguém que se queira esconder não deve atear um fogo, muito menos a uma viatura automóvel, de noite, perto de uma habitação.

- Em obediência ao princípio in dubio pro reo, não tendo ninguém presenciado os factos, nem existindo qualquer outro elemento probatório capaz de sustentar com certezas e de forma objetiva que o arguido ateou fogo à viatura, deveria o Tribunal a quo, na apreciação e valoração das provas e na determinação dos factos provados, ter favorecido o arguido e dar como não provados os factos que constantes dos pontos n.ºs 18, 19 e 25 dos factos dados como provados na sentença; mas fez precisamente o contrário, decidiu-se contra o arguido Recorrente, como se sobre este incidisse um qualquer ónus de provar o contrário do vertido na acusação.

- Deste modo, a matéria constante dos pontos 18, 19 e 25 dos factos provados devia ter sido julgada não provada, com a consequente absolvição do arguido da prática de um crime de dano qualificado, p. e p. pelo artigo 213.°, n.º 1. al a) Código Penal.

Vejamos se assim é.

O Tribunal da Relação conhece de facto e de direito (art.428 do C.P.P.). Porém, sem prejuízo dos vícios aludidos no art.410.º do C.P.P., o tribunal de recurso apenas pode modificar a matéria de facto quando, nos termos do art.431.º do Código de Processo Penal, se verifiquem os seguintes requisitos: « a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do art.412.º; ou     c) Se tiver havido renovação de prova.».

A situação prevista na alínea a), do art.431.º, do C.P.P. está excluída quando a decisão recorrida se fundamenta, não só em prova documental, pericial ou outra que consta do processo, mas ainda em prova produzida oralmente em audiência de julgamento. 

Também a possibilidade de modificação da decisão da 1.ª instância ao abrigo da al.c) do art.431.º, do C.P.P., está afastada quando não se realizou audiência para renovação da prova neste Tribunal da Relação, tendo em vista o suprimento dos vícios do art.410.º, n.º 2 do C.P.P..

A situação mais comum de impugnação da matéria de facto é a que respeita à alínea b) do art.431.º do C.P.P. e foi a que o recorrente A... quis utilizar para impugnar a matéria de facto.

Esta alínea b) do art.431.º do C.P.P., conjugada com o art.412.º, n.º3 do mesmo Código, impõe ao recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o dever de especificar: « a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devam ser renovadas.»

O n.º 4 deste art.412.º, acrescenta que «Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 2 do art.364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação

O recorrente deverá indicar a sessão de julgamento em que as declarações ou depoimentos constam e localizar a passagem em causa na gravação, entre os minutos em que produziu prova oralmente, de modo a deixar claro qual a parte da declaração ou depoimento que se quer que o Tribunal de recurso ouça e aprecie.

Nos termos do n.º 6 do art.412.º do C.P.P., o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e, ainda, de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.

No presente caso, o arguido A... especifica nas conclusões da motivação os concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados e as concretas provas produzidas oralmente que impõem decisão diversa da recorrida, mas não indica as concretas passagens, com sessão de julgamento e localização na gravação, onde constam os depoimentos em que funda a impugnação.

Porém, uma vez que na motivação do recurso o arguido A... localiza na gravação os depoimentos das testemunhas em que funda a impugnação, prestados na única sessão de julgamento em que houve produção de prova, transcrevendo os segmentos desses  depoimentos  produzidos oralmente que tem como relevantes para impugnar a matéria de facto da acusação, o Tribunal da Relação considera que o mesmo deu cumprimento mínimo ao estabelecido no art.412.º, n.ºs 3, al. b) e 4 do C.P.P. e, por uma questão de economia processual, mesmo sem convite ao aperfeiçoamento das conclusões da motivação, julga-se apto a modificar a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo, se concluir pela existência de erro de julgamento.

Importa realçar, porém, que embora a documentação da prova em 1ª instância tenha por fim primeiro garantir o duplo grau de jurisdição da matéria de facto, o recurso de facto para o Tribunal da Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada como se o julgamento ali realizado não existisse.

O art.127.º do Código de Processo Penal, epigrafado «Livre apreciação da prova », dispõe que «Salvo quando a lei dispuser de modo diferente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.».

As normas da experiência, a que se deve atender na livre apreciação da prova, são «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “subjudice”, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.»[10].

Quanto à livre convicção do juiz, nessa apreciação da prova, não pode deixar de ser «... uma convicção pessoal -  até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais  -  , mas em todo o caso , também ela ( deve ser) uma convicção objetivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros[11].

Na livre apreciação da prova o juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis, observando, a este respeito, o Prof. Germano Marques da Silva, que « Num primeiro aspeto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente ( v.g., a credibilidade que se concede a um certo meio de prova).

 Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem essencialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correção do raciocínio, que há-de fundar-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.».[12]

O princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no art.355.º do Código de Processo Penal. É ai, na audiência de julgamento, que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na receção direta de prova e se assegura o princípio do contraditório, garantido constitucionalmente no art.32.º, n.º5.

Na verdade, a convicção do Tribunal a quo é formada da conjugação dialética de dados objetivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.

Assim, se o recorrente impugna somente a credibilidade das declarações ou do depoimento deve indicar elementos objetivos que imponham um diverso juízo sobre a credibilidade das declarações ou depoimentos, pois aquela, quando estribada em elementos subjetivos é um sector especialmente dependente da imediação do tribunal recorrido. 

Uma vez que o princípio da livre apreciação da prova tanto vincula o tribunal de 1.ª instância como o tribunal de recurso, e que a reforma do Código de Processo Penal de 1998 deixou inequívoco que se quis assegurar um recurso efetivo da matéria de facto, o Tribunal da Relação, na reapreciação da matéria de facto a que se procede nos termos do art.412.º, n.ºs 3 e 4 do C.P.P., deve proceder a uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão tomada pelo Tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, avaliando se as provas indicadas por este impõem decisão diversa da recorrida. Note-se, porém, só deverá determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.

A propósito da apreciação da prova, importa ainda fazer duas considerações.

A primeira consideração, é que o objeto da prova, tanto pode incidir sobre os factos probandos (prova direta), como pode incidir sobre factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto a este (prova indireta ou indiciária).

A prova indireta “ … reside fundamentalmente na inferência do facto conhecido – indício ou facto indiciante – para o facto desconhecido a provar, ou tema último da prova”.[13]

Como salienta o acórdão do STJ de 29 de Fevereiro de 1996 , “ a inferência na decisão não é mais do que ilação , conclusão ou dedução , assimilando-se todo o raciocínio que subjaz à prova indireta e que não pode ser interdito à inteligência do juiz.”.[14]

Como bem notava o Prof. Cavaleiro de Ferreira, “a prova indiciária tem uma suma importância no processo penal; são mais frequentes os casos em que a prova é essencialmente indireta do que aqueles em que se mostra possível uma prova direta”. [15] É que quem comete um crime busca intencionalmente o segredo da sua atuação pelo que é frequente a ausência de provas diretas.

A outra consideração respeita ao princípio in dubio pro reo, que estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.

O mesmo decorre do princípio da presunção da inocência, consagrado no art.32.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa, que estatui que “ todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.

O Tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito desse princípio se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo - e não os sujeitos processuais ou algum deles - chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido.[16]

A deteção de violação ao in dubio pro reo, em sede de recurso, passa, pois, pela sua notoriedade face aos termos da decisão recorrida, ou seja, a violação do princípio tem que resultar do texto da decisão.

Se na fundamentação da sentença/acórdão oferecida pelo Tribunal, este não invoca qualquer dúvida insanável, ou, ao invés, se a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, com indicação clara e coerente das razões que fundaram a convicção do tribunal, inexiste lugar à aplicação do princípio in dubio pro reo. Como refere o Prof. Roxin, “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida”.[17]

Feitas estas considerações de âmbito geral retomemos o caso concreto.

Tendo o Tribunal da Relação procedido à audição da gravação dos depoimentos das testemunhas C... e D... , militares da GNR, do Posto de Porto de Mós, dizemos, desde já, que efetivamente estas testemunhas depuseram sobre a factualidade impugnada pelo recorrente, constante dos pontos n.ºs 18 – “Acto contínuo, de modo concretamente não apurado, o arguido ateou fogo ao veículo referido” -,19 – “Em consequência directa e necessária do comportamento supra descrito do arguido, o veículo, propriedade de E... , ficou totalmente carbonizado, causando à ofendida um prejuízo de 9 000 €” - e 25 – “O arguido ao praticar os factos descritos em 18).-, 19).- e 20).- sabia que inutilizava e destruía, como inutilizou e destruiu um bem que não lhe pertencia e que actuava contra a vontade da respectiva proprietária e, todavia, quis actuar da forma descrita” - dos factos dados como provados na sentença, que respeitam ao crime de dano qualificado.

Resultando da fundamentação da matéria de facto da sentença recorrida que apenas as testemunhas C... e D... são indicadas para sustentar a factualidade dada como provada nos citados pontos n.ºs 18, 19 e 25, podemos concluir com o recorrente que estas foram as únicas testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento aptas a depor e que depuseram sobre essa factualidade.

Do pequeno depoimento da testemunha C... , que ouvimos na íntegra, resulta, designadamente e no essencial, no que respeita à parte aqui em apreciação, que na noite em causa era o condutor do veículo da GNR, na estrada nacional, quando o seu colega de patrulha, a testemunha D... , lhe disse que o arguido A... ia a conduzir um veículo, que se deslocava em sentido oposto. Logo depois, também a testemunha viu o arguido a conduzir um veículo, designadamente quando este cortou a estrada para virar à esquerda, mesmo em frente à da viatura da GNR, obrigando a testemunha a travar para não embater no veículo. Não tem a certeza se com o arguido seguia um passageiro, pois “viu um vulto depois, no outro lado, mas não tenho a certeza se seria qualquer outra coisa. Não, não me recordo, já não me recordo.”. Tendo perdido de vista o veículo conduzido pelo arguido por o mesmo “acelerar como se não houvesse amanhã”, vieram a saber “sei lá, meia hora, …não sei, uma hora” depois de o terem visto pela última vez, que o veículo conduzido pelo arguido estava em chamas, a arder, a uns 300 metros do último local onde deixaram de o ver. Não faz ideia do motivo porque o veículo estava a arder, mas sabe que estava num terreno, talvez agrícola, junto a uma habitação.

Do depoimento da testemunha D... , resulta, designadamente, que se tendo cruzado na estrada com o veículo conduzido pelo arguido, e sabendo que o arguido anteriormente não tinha carta de condução, a fim de averiguarem se a situação, o seu  colega e testemunha C... , inverteu o sentido de marcha e quando quiseram fiscalizar o arguido este fugiu no veículo. Depois de uma perseguição ao veículo, houve uma altura em que deixaram de o ver. Sensivelmente meia hora, ou 20 minutos depois de o deixarem de ver, tiveram conhecimento de que uma viatura estava a arder num raio de 500 metros ou 1 km no máximo do local onde o tinham perdido de vista. Conseguiu ver “perfeitamente” que era o arguido quem ia dentro da viatura e que tivesse reparado não ia mais alguém dentro dela. Não sabe se o veículo foi queimado intencionalmente. O veículo que o arguido conduzia estava a arder no meio de um terreno agrícola, um quintal, encostado e por trás de uma casa de habitação. Estava “direitinho”, não estava amolgado, não tendo aparentemente batido em lado nenhum.

Do depoimento gravado destas duas testemunhas não resulta, ao contrário do mencionado na fundamentação da matéria de facto do douto acórdão recorrido, que “ os agentes da autoridade dizem que se tratou de fogo posto no veículo”, embora se retire dos seus depoimentos, tal como se consigna na fundamentação, que o veículo estava numa posição regular e no local onde o mesmo se encontrava ou nas proximidades, não havia sinais de despiste, acidente ou qualquer outro acontecimento que permitisse concluir-se estarmos perante um fogo acidental.

As testemunhas não presenciaram o ateamento do incêndio, nem consta que têm particulares conhecimentos sobre crimes praticados com fogo, pelo que dizerem elas se estamos ou não estamos perante um caso de “fogo posto no veículo”, não passaria da emissão de opiniões sem particular relevância.

Sendo certo que o facto do incêndio ter começado no interior da viatura, como indica o Relatório Pericial, não significa, só por si, necessariamente, que o mesmo tenha ocorrido de forma intencional e dolosa, também não deixa de ser verdade, em face das regras da experiência comum, por um lado, que os veículos automóveis só em casos muito excecionais se incendeiem espontaneamente e, por outro, que é razoavelmente frequente os delinquentes lançarem fogo aos veículos em que se fazem transportar para assim tentarem apagar vestígios de que estiveram dentro do veículo e assim se subtraírem à ação da justiça.

Acontece que o arguido A... praticou vários ilícitos criminais, designadamente o furto e falsificação da matrícula do veículo que ardeu, conduziu o veículo momentos antes do incêndio, que proveio do interior do veículo para o exterior, e não se apuraram fatores externos, como a existência de acidente com derramamento de combustível, que possam justificar o incêndio, que tem lugar a umas centenas de metros do local onde a patrulha da GNR o perdeu de vista e num período que vai de 20 a 60 minutos no máximo, desde que a mesma patrulha deixou de o ver.  

Assim, não viola as regras da experiência comum e a livre apreciação da prova, suportada na imediação e oralidade, concluir-se que o arguido, na sequência da perseguição que lhe feita,  para tentar apagar vestígios de que esteve dentro do veículo e assim se subtrair à ação da justiça, ateou o fogo ao interior do veículo, e fugiu do local.

O argumento do recorrente, de que as regras de experiência ditam que alguém que se queira esconder não deve atear um fogo, muito menos a uma viatura automóvel, de noite, perto de uma habitação, parte do princípio que atear-se fogo a um veículo, para se apagarem vestígios neles existentes, impossibilita o esconderijo e a fuga do agente do local.

Ora, no caso, o veiculo furtado e conduzido pelo arguido foi incendiado, de noite, conseguindo apagar os vestígios da sua presença no interior e, ainda assim, o arguido logrou esconder-se das autoridades policiais pois não foi encontrado no local quando aí se deslocou a GNR.

Em suma, reapreciada a prova indicada pelo recorrente nas conclusões do recurso e pese embora as testemunhas C... e D... não tenham opinado “que se tratou de fogo posto” – ou que não foi fogo posto –, o Tribunal da Relação conclui que a convicção a que o Tribunal a quo chegou ao dar como provada a factualidade impugnada, fundada em prova indireta, mostra-se objeto de um procedimento lógico e coerente de valoração, onde não se vislumbra assumo de arbítrio na apreciação da prova.

Lendo a fundamentação sobre a matéria de facto do douto acórdão também não se vislumbra nele que o Tribunal recorrido tenha chegado a qualquer estado de dúvida sobre a prática pelo arguido dos factos dados como provados nos pontos 18, 19 e 25, que são impugnados no recurso.

O que resulta daquela é um estado de certeza do Tribunal recorrido relativamente à prática pelo arguido/recorrente A... dos factos dados como provados.

Está deste modo afastada a violação pelo Tribunal recorrido – e bem face à prova produzida – do principio in dubio pro reo e, não se impondo uma decisão diversa da recorrida, mais não resta que confirmar a decisão relativamente à matéria de facto.


-

            2.ª Questão: da absolvição do crime de dano qualificado e reformulação do cúmulo jurídico.

A questão ora colocada, traduzida na absolvição do arguido da prática do crime de dano qualificado, p. e p. pelo artigo 213 °, n.º 1, al a), Código Penal, e consequente  reformulação do cúmulo jurídico – parte do pressuposto que foi  julgada procedente a questão anterior , ou seja, que a matéria constante dos pontos n.ºs 18, 19 e 25 dos factos provados dados como provados na sentença foi alterada, passando a integrar os factos dados como não provados.

Tal alteração não se verificou, mantendo-se aquela factualidade impugnada pelo recorrente nos factos dados como provados.

Integrando a factualidade dada como provada todos os elementos do tipo objetivo e do tipo subjetivo do crime de dano qualificado, p. e p. pelo artigo 213 °, n.º 1, al a), Código Penal, tal como consta do douto acórdão recorrido, mostra-se prejudicada a pretensão do recorrente de absolvição deste crime e consequente reformulação do cúmulo jurídico que adviria da absolvição do mesmo crime.

A reformulação do cúmulo jurídico foi efetivamente realizada, no presente acórdão , em face do recurso interposto pelo  Ministério Público, e não foi seguramente no sentido aqui pretendido pelo arguido.

Deste modo e perante tudo o que se deixou consignado impõe-se negar provimento a esta questão e ao recurso interposto pelo arguido.

            Decisão

            Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em:

- conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo  Ministério Público e, revogando parcialmente o douto acórdão recorrido, condena-se o arguido  A... pela prática de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal (relativo a 28 de novembro de 2013), na pena de 9 ( nove) meses de prisão e, em cúmulo jurídico de penas, condena-se o mesmo arguido na pena conjunta de 4 ( quatro) anos e 10 ( dez) meses de prisão e,

- em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido A... .

             Custas pelo arguido, fixando em 4 Ucs a taxa de justiça (art. 513º, nºs 1 e 3, do C. P.P. e art.8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa).

                                                                           *

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).


*

             Coimbra, 14 de Setembro de 2016

              

(Orlando Gonçalves - relator)

              

(Inácio Monteiro - adjunto)

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                    


[1] In "Comentário do Código Penal", UCE, 2.ª edição, pág. 155.  
[2] Obra cit. pág. 156.

[3] Obra cit. pág. 155.  
[4] “Actas do Código Penal”, 1965, pág. 213.

[5]In "Comentário do Código de Processo Penal", UCE, 2.ª edição, pág. 826.
[6]In “Crimes Rodoviários”, UCE, págs 27 e 28. Ainda no sentido da existência do concurso efetivo de crimes, cfr. Francisco Marques Vieira, in Direito Penal Rodoviário, Publicações UC, 2007, págs. 202 e 203.

[7]O arguido vem acusado de dois crimes de condução se habilitação legal: um por referência ao dia 9 de novembro de 2013 e outro ao dia 28 de novembro de 2013.

[8] Cfr. Cons. Maia Gonçalves , in “Código Penal  Português anotado” , 8ª edição , pág.354 e Prof. Figueiredo Dias, in  “Direito Penal Português, As  consequências Jurídicas do crime”, Notícias Editorial, pág.332.

[9]Cf. Prof. Fig. Dias, in “Temas básicos da doutrina penal”, Coimbra Ed., pág. 230.


[10]cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira , in “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.300. 
[11]cfr. Prof. Figueiredo Dias , “Direito Processual Penal”, 1º Vol., Coimbra Ed., 1974, páginas 203 a 205.
[12] Cfr. “Curso de Processo Penal”, Vol. II, Verbo, 5.ª edição, pág.186

[13]  Cf. Prof. Cavaleiro de Ferreira, in “ Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág. 289. 

[14] Cf. Revista Portuguesa de Ciência Criminal , ano 6.º , tomo 4.º, pág. 555. No mesmo sentido, o acórdão da Relação de Coimbra, de 9 de Fevereiro de 2000, ano XXV,  1.º, pág. 51.
[15]“Curso de Processo Penal II”, Reimpressão da Universidade Católica, 1981, pp. 288 a295.

[16]Cfr. entre outros , o acórdão do S.T.J. de 2 e Maio de 1996 , in C.J. , ASTJ , ano IV , 1º, pág. 177  .

[17] “DerechoProcessal Penal”, Editores delPuerto, Buenos Aires, pág. 111.