Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3545/19.5T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: ABUSO DE REPRESENTAÇÃO
VENDA DE IMÓVEIS
RELAÇÃO SUBJACENTE À PROCURAÇÃO
BOA-FÉ
Data do Acordão: 04/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 267.º, 269.º E 762.º, N.º 2, DO CÓDIGO CIVIL.
Sumário: I – Há abuso de representação se o exercício da atividade representativa, embora dentro dos limites formais dos poderes conferidos, ocorre de modo substancial ou materialmente contrário aos fins da representação ou às indicações do representado.

II – O que obriga a ter em conta a relação jurídica subjacente à procuração, posto, em regra, ser nesta relação que se colhem os fins da representação, a função da procuração e o modo de exercício dos poderes representativos, sem esquecer, por outro lado, as exigências da boa-fé.

III – O facto de o réu ter exercido os poderes representativos cerca de 17 anos depois de eles lhe terem sido concedidos não configura abuso de representação, para efeitos do disposto no artigo 269.º do CCiv., se não se mostra que aquele contrariou a relação jurídica que serviu de causa à procuração, desrespeitou as indicações sobre o tempo do exercício dos poderes de representação ou atentou contra a boa-fé.

IV – A concessão de poderes para vender determinados imóveis pelo preço e sob as cláusulas que o réu entendesse por convenientes deve colher interpretação, em termos de razoabilidade e boa-fé, no sentido de, caso os imóveis fossem vendidos, deverem sê-lo pelo respetivo preço de mercado, e não menos.

Decisão Texto Integral:
Relator: Emídio Francisco Santos
1.ª Adjunta: Catarina Gonçalves
2.ª Adjunta: Maria João Areias

Processo n.º 3545/19.5T8LRA.C1

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

AA, residente no Largo ..., ..., ..., ... ..., propôs a presente acção declarativa com processo comum contra BB, residente na Rua ..., ... ..., e CC, residente na Rua ..., ..., ... ..., pedindo:
a) A condenação dos réus a reconhecerem-na a ela, autora, como legítima proprietária dos bens imóveis descritos pelas letras A) e B) do artigo 48.º, e letra C) do artigo 50.º da petição inicial;
b) A declaração de nulidade dos contratos de compra e venda controvertidos com fundamento na falta de poderes de representação dos réus, que bem sabiam que a procuração em causa havia sido pessoalmente revogada e rasgada por ele próprio;
c) A declaração de nulidade dos três contratos de compra e venda, por simulação do negócio, uma vez que não houve qualquer pagamento por parte da suposta compradora, e as compras e vendas serviram apenas para dissimular verdadeiras doações, para as quais o representante não tinha poderes de disposição;
d) Quando assim não se entendesse, a anulação de tais contratos com fundamento na violação das regras da boa fé na execução dos poderes conferidos pela autora por existir abuso de representação e evidente conflito de interesses e conluio entre os réus, tendo em vista prejudicar a autora, sendo declarada a ineficácia dos ditos contratos em relação à autora;
e) Em qualquer das decisões, se ordenasse o cancelamento das inscrições efectuadas a favor da ré CC registadas sob as AP seguintes:
· AP. ...33 de 2019/.../... da Conservatória do Registo Predial ..., sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...18 da Freguesia ...;
· AP. ...14 de 2019/.../... da Conservatória do Registo Predial ... sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...84 da freguesia ...;
· AP. ...51 de 2019/.../... da Conservatória do Registo Predial ..., sobre o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...90, da Freguesia ...;

e o consequente regresso dos mesmos imóveis à titularidade da autora.

Para o efeito alegou em síntese:
· No ano de 2002 a autora e o seu marido entenderam que, uma vez que não tinham descendentes, devido às constantes viagens na sua actividade e entre ... e ..., seria conveniente passar uma procuração a algum familiar próximo para poder prover às suas necessidades caso se verificasse o infortúnio de um acidente ou doença que os deixasse incapacitados;
· Passaram então procurações ao seu cunhado, o agora réu BB, casado com a sua irmã DD, nas quais o autorizaram a vender algum dos seus bens imóveis em caso de acidente ou outra incapacidade dos dois, para prover às suas necessidades;
· À data destas procurações, o casal possuía um imóvel em ..., um apartamento na ..., uma moradia em ... e a casa de morada em ...;
· Ao fim de algum tempo surgiu alguma insegurança e alguns desentendimentos no casal por causa da extensão desses poderes e, em meados de 2005, falaram com o réu BB para lhes devolver as procurações, vindo alguns dias depois a ... para as receber;
· Em casa do réu, este mostrou-lhes as procurações e, sem que nada o fizesse prever, numa atitude brusca, rasgou-as aos bocadinhos e atirou-as ao lixo, dizendo-lhes: “pronto, já não há procurações”;
· No dia .../.../2019, os réus dirigiram-se ao escritório da Advogada Dr.ª EE, na Rua ... Drtº. em ..., onde assinaram dois Documentos Particulares Autenticados de compra e venda, nos quais, sem qualquer instrução e contra a vontade da autora, o réu BB vendeu à sua filha, pelos valores patrimoniais ou muito próximos destes o seguinte prédio urbano: moradia destinada a habitação, sito na Freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...18, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...27, com o valor patrimonial de € 66.420,21, que foi transmitida pelo valor de € 67,000 euros;
· Sucede que este imóvel foi adquirido em .../.../1997 pelo marido, ainda no estado de divorciado do primeiro casamento, e sendo um bem próprio não entrou na comunhão conjugal, sendo que à data do contrato o réu BB não tinha poderes para o vender;
· À data da compra e venda – .../.../2019 – o titular inscrito, FF ainda estava vivo - faleceu em .../.../2019 – pelo que forçosamente teria de participar no acto de venda, e não foi o caso,
· Pelo que este contrato de compra e venda é nulo e de nenhum efeito;
· Ainda que assim não fosse, a verdade é que as instruções, dadas ao réu em 2002, era para vender um ou outro imóvel, caso ficassem incapacitados de gerir a sua vida, e nunca deu instruções para vender as suas propriedades ao desbarato ou que se locupletasse com elas em seu benefício e da sua família;
· Pelo que as vendas efectuadas constituem manifesto abuso dos poderes de representação, que os réus conluiados entre si usaram para se beneficiarem a si próprios com os bens da autora;
· Ainda que lhe fosse legítimo usar esta procuração, no que não se concede, o seu uso pelo procurador sem instruções expressas da autora é abusivo e encontra-se viciado por manifesto conflito de interesses, pois prejudicou ostensivamente os direitos e interesses da autora para beneficiar a R. sua própria filha;
· O preço declarado é manifestamente abaixo do valor de mercado do imóvel;
· Efectivamente, o imóvel é uma moradia de 2 pisos, com sala ampla, 3 quartos, 2 WC, cozinha muito espaçosa e terraço com vista para a ..., foi recuperado há poucos anos e está em bom estado de conservação, estimando-se que o seu valor de mercado será superior a € 200.000,00 (duzentos mil euros);
· Como quer que seja, este negócio não envolveu qualquer pagamento por parte da ré adquirente, pelo que é o próprio tipo de negócio que está em causa, já que se trata de uma doação, para a qual não tinha poderes, dissimulada de compra e venda, sendo, portanto, nula;
· O réu BB vendeu ainda à sua filha a fracção designada pela letra ... do prédio urbano, sito na Rua ..., Lugar ..., na União de Freguesias ... e ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...84 da freguesia ..., inscrito na matriz predial urbana respectiva sob o artigo ...29, com o valor patrimonial de 40.188,00 euros, transmitido pelo valor de € 45,000,00 (quarenta e cinco mil euros);
· Tal como no prédio anterior, também neste contrato, ainda que a autora o quisesse vender – e não tinha essa intenção - o procurador não tinha poderes para tal;
· Tratando-se de um bem comum do casal, e estando o marido ainda vivo à data do contrato, este teria de participar da venda, sob pena de nulidade do acto;
· De qualquer forma, nem o marido nem a autora quiseram vender este imóvel, e nunca deram instruções ao procurador para a vender;
· Acresce que o preço declarado é manifestamente abaixo do valor de mercado do imóvel;
· Efectivamente, trata-se de um apartamento de 2 assoalhadas, com vista de mar, a poucos minutos da praia, numa zona de forte interesse do mercado imobiliário, estimando-se que o seu preço possa ser superior ao dobro do valor declarado;
· Como quer que seja, este negócio não envolveu qualquer pagamento por parte da ré adquirente, pelo que é o próprio tipo de negócio de compra e venda que está em causa, já que se trata de uma doação simulada, para a qual não tinha poderes, sendo, pois, nula;
· Acresce que o uso da procuração pelo procurador sem instruções expressas nem tácitas da autora é doloso e encontra-se viciado por conflito de interesses, pois os réus bem sabiam que este negócio prejudicava fortemente os direitos e interesses da autora e conformaram-se com ele para se beneficiarem a si próprios, sendo, portanto, anulável;
· Para não se tornarem públicos através do registo, estes dois contratos mantiveram-se secretos e na posse dos réus até .../.../ 2019 – 5 dias após terem sabido da revogação do testamento e da procuração a favor da ré CC – data esta em que foram autenticar os mesmos no supra-referido escritório de forma a procederem aos registos dos prédios;
· Em 02 de Outubro de 2019 foram de novo ao mesmo escritório de advocacia para firmar novo DPA de compra e venda, sempre sem o conhecimento e autorização da autora, assinado e autenticado nessa mesma data, transmitindo a própria casa de morada da autora, colocando-a na indigência e na absoluta dependência dos réus: Prédio urbano, moradia, situado na Urbanização ..., em ..., na União de Freguesias ... e ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...90, inscrito na matriz predial urbana respectiva sob o artigo ...42, com o valor patrimonial de 47.384,00 euros, sendo declarado o valor de € 50,000,00 (cinquenta mil euros);
· Neste caso os réus chegaram ao despudor de se locupletarem com a própria morada da autora, pondo em causa, a breve trecho, o seu direito a uma habitação condigna;
· De qualquer forma, a autora nunca quis vender este imóvel, e nunca deu instruções ao procurador para esse efeito, já que a procuração aqui em causa estava sujeita a uma condição que felizmente não se verificou, a eventual incapacidade da autora;
· Acresce que o preço declarado é manifestamente abaixo do valor de mercado do imóvel;
· Efectivamente, trata-se de uma moradia de 2 assoalhadas com 60 m2 de área privativa, situada perto da ... e a poucos minutos da praia, numa zona de fortes interesses turístico e imobiliário, estimando-se que o seu preço possa ser superior a € 250.000,00 euros;
· Como quer que seja, este negócio não envolveu qualquer pagamento por parte da ré adquirente, pelo que é o próprio tipo de negócio de compra e venda que está em causa, já que se trata de uma doação simulada, para a qual o réu não tinha poderes, sendo, pois, nula;
· Acresce que o uso da procuração pelo procurador sem instruções expressas nem tácitas da autora é um comportamento doloso, viciado por um conflito de interesses, pois os réus bem sabiam que este negócio prejudicava fortemente os direitos e interesses da autora e conformaram-se com ele para se beneficiarem a si próprios, sendo, portanto, anulável;
· O casal não precisava em 2002 de vender qualquer bem, como não precisava actualmente, dados os rendimentos auferidos pela autora a título de reforma de cerca de 800,00 euros mensais, vivendo em casa própria integralmente paga;
· A venda destes bens constitui uma vingança despudorada dos réus por a autora não ter deixado tudo à Ré CC no testamento de 05/12/2018, que não se contentou com metade, e pela revogação da procuração e ruptura da autora, em relação a ela no passado mês de Setembro.

Os réus contestaram e deduziram reconvenção.

Na sua defesa alegaram, em síntese, que as procurações foram passadas porque a autora e o seu marido queriam que os seus bens imóveis ficassem a pertencer à ré CC, que na altura e desde há bastante tempo os vinha ajudando e apoiando em todas as suas necessidades do dia a dia, quando lhes era necessário ou conveniente;

Em sede de reconvenção, a ré alegou que adquiriu por usucapião os prédios discriminados no artigo 47.º da petição inicial sob as alíneas A) e b). Pediu:
a) Se julgasse improcedente a acção;
b) Se julgasse procedente a reconvenção e que, em consequência, fosse declarada proprietária e legítima possuidora, por os ter adquirido por usucapião, dos prédios identificados no artigo 47.º A), B) e C) da petição inicial;
c) Se ordenasse o cancelamento dos registos de aquisição que actualmente incidem e estão em vigor sobre os mesmos prédios, por virtude de terem sido lavrados face a causas que agora se mostram superadas pela indicada usucapião;
d) Se ordenasse cancelamento de quaisquer registos que venham a incidir sobre os mesmos prédios, caso venham existir.

A autor    respondeu, pedindo se julgasse improcedente a reconvenção.

Sentença

O processo prosseguiu os seus termos e após realização da audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que decidiu:
1. Declarar ineficazes relativamente à autora AA os seguintes negócios:
· A compra e venda do prédio inscrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...19 da Freguesia ..., aquisição essa constante da apresentação nº ...33 de 2019/.../...;
· A compra e venda da fracção inscrita na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...13... da freguesia ..., aquisição essa contante da apresentação nº ...14 de 2019/.../...;
· A compra e venda do prédio inscrito na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis ... sob o nº ...28 da Freguesia ..., aquisição essa constante da apresentação nº ...51 de 2019/.../...;
2. Absolver os réus BB e CC, do demais peticionado pela autora;
3. Absolver a autora do pedido reconvencional deduzido pela ré.


*

O recurso

Os réus não se conformaram com a sentença e interpuseram o presente recurso de apelação, pedindo a alteração da decisão recorrida.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. A sentença ora impugnada incorreu em erro na apreciação da prova e na aplicação do direito, quando decidiu declarar ineficazes relativamente à autora a compra e venda relativa à casa de ... e a compra e venda relativa ao apartamento da ...;
2. Contrariamente à tese que sustenta a decisão do tribunal a quo, consideramos que os negócios de compra e venda efectuados no dia .../.../ 2019 pelo reu, em representação da autora e do seu marido, são válidos e eficazes;
3. Porquanto a autora e o marido constituíram a 03/09/2002 o réu seu procurador, concedendo- lhe “(…) Poderes para vender pelo preço e sob as cláusulas que entender por convenientes (…)” quaisquer bens imóveis sua propriedade;
4. Tendo sido na qualidade de procurador da autora e do marido, que o réu vendeu à ré a casa de ... e o apartamento da ..., até porque as procurações em causa não foram revogadas, como resultou do “Facto não provado (…) “b) Em data não concretizada, mas algum tempo após a emissão dos referidos documentos [procurações], a autora e FF, solicitaram ao réu para que o mesmo lhes devolvesse aqueles documentos, tendo o réu ido buscá-los, rasgando-os à frente da autora e seu marido”;
5. Até porque, como refere a Sentença a fls. 29, “(…) não se consegue compreender como é que a autora, mesmo a ser verdade que o réu teria rasgado as procurações, entendia não ser necessário revogá-las, quando alguns anos mais tarde de modo expresso e através de documento certificado notarialmente revogou a procuração outorgada a favor da ré”;
6. Merece a nossa total discordância a posição do tribunal a quo, que considera existir abuso de poder de representação por parte do réu, invocando os seguintes fundamentos: i) as vendas são feitas pelo réu em favor da ré sua filha e sobrinha da autora, já depois de tal ré saber que a sua tia lhe havia revogado um testamento feito a seu favor; ii) as vendas são feitas por valores inferiores às do mercado e não há recebimento do preço; iii) os negócios são efectuados 16 anos depois da emissão das procurações.”;
7. Senão vejamos, o tribunal a quo esteve mal quando invocou o alegado conhecimento da ré da revogação do testamento a seu favor por parte da tia como uma das razões que sustentam a existência de abuso de poder de representação por parte do réu na venda da casa de ... e do apartamento da ..., na medida em que esta conclusão contraria os factos provados 6 a 9 e 12 e 13;
8. Sucede que desses mesmos factos resulta que, no dia .../.../ 2019, aquando da realização destes dois contratos de compra e venda, a ré não tinha conhecimento da revogação pela sua tia do testamento a seu favor, tal só acontecendo no dia 30 de Setembro de 2019, conforme factos provados 12 e 13;
9. Tendo o tribunal a quo assim decidido com base no pressuposto errado de que os contratos de compra e venda relativos à casa de ... e ao apartamento da ... foram celebrados depois de a ré saber que a sua tia lhe havia revogado um testamento feito a seu favor, deve esta Relação alterar a decisão ora impugnada quanto a este aspecto;
10. Relativamente ao segundo fundamento, importa, desde já, salientar que a transmissão, em Setembro de 2019, pelo réu, em representação da autora e do marido, da casa de ... pelo preço de € 67.000,00 e do apartamento da ... pelo preço de € 45.000,00, correspondem sensivelmente aos valores patrimoniais dos mesmos (respectivamente € 66.490,21 e € 40.188, 98), determinados no ano de 2016;
11. Pelo que se conclui que foi atribuído aos imóveis um preço perfeitamente razoável, nomeadamente, tendo em conta que a compradora não era uma mera compradora, mas sim a sobrinha e afilhada da autora, com a qual os tios tinham uma relação muito próxima;
12. Como das procurações emitidas em 2002 pela autora e pelo marido resultam claramente poderes para o réu vender “pelo preço e sob as cláusulas que entender por convenientes” qualquer dos seus bens imóveis, aquando da realização dos negócios em causa este estava perfeitamente legitimado na qualidade de procurador para concretizar o negócio que o dominus não queria, ou não podia concretizar por si próprio e nos termos em que este o definiu;
13. Ainda que in casu assim não se considere, o que se admite por mero dever de patrocínio, sempre se dirá que não sendo explícito o conteúdo das procurações, seria a relação subjacente a definir o conteúdo material da procuração, a delimitar os poderes e a modelar a actuação do procurador, ou seja, seria pela relação subjacente que o procurador deveria nortear a sua actuação;
14. Não só a autora e o marido conferiram poderes ao réu para vender “pelo preço e sob as cláusulas que entender por convenientes”, como a relação subjacente às procurações, que norteou a actuação do réu apontava no sentido de privilegiar esta sobrinha e afilhada, tanto mais que, em 5 de Dezembro de 2018, os tios outorgaram testamento, instituindo- a como sua única e universal herdeira (cfr. factos provados 3 e 4;
15. É neste contexto, que em .../.../ 2019, o réu transmitiu a propriedade da casa de ... e o apartamento da ... à ré porque de facto era esse o desejo da autora e do marido, até porque estes imóveis já anteriormente tinham pertencido à ré, tendo-se mantido na sua esfera patrimonial até 2007;
16. Acresce referir que, apesar do tribunal a quo ter dado como provados os factos identificados em 21 e 22, que dão conta que já em Julho de 2004 e de 2005, o réu, na qualidade de procurador da autora e do marido, vendeu à ré o apartamento da ... e uma outra casa sita em ..., não retirou destes factos quaisquer consequências, que se impunham retirar para a decisão que ora se impugna;
17. Assim como também não o fez relativamente aos factos Provados 23 e 24, segundo os quais, a 4 de Junho de 2007, a ré e o marido venderam à autora ambos os imóveis, na tentativa de salvaguardarem este património das consequências do divórcio da ré, que se verificou nesse mesmo ano;
18. Ora, relativamente a todos estes negócios de compra e venda destes imóveis, celebrados primeiro em 2004 e 2005 e depois em 2007, não se verificou o pagamento do preço, à semelhança do que viria a suceder mais tarde, em Setembro de 2019, aquando da realização das escrituras de compra e venda a favor da ré, e cuja validade é questionada pelo tribunal a quo na sentença ora impugnada;
19. Impõe-se dizer relativamente ao fundamento de as vendas da casa de ... e do apartamento da ... terem sido efectuadas 16 anos após a emissão das procurações, que durante todo este período o interesse da autora e do marido foi sempre o de privilegiar a ré, como, aliás, resulta do testamento e procurações a favor desta sobrinha e afilhada de baptismo e casamento, instituindo-a como sua única e universal herdeira e dando-lhe amplos poderes para gerir o património da A. e do marido (cfr. factos provados 3 e 5);
20. Sendo que o único filho da autora e do marido morreu com apenas 17 anos de idade, estes acabaram por desenvolver uma relação muito próxima com esta sobrinha e afilhada, a ora ré, que cuidou do marido da autora durante os seis meses em que esteve gravemente doente, até à data da sua morte, em 3 de Março de 2019 (cfr. factos provados 10 e 32);
21. Desta forma, a transmissão da casa do ... e do apartamento da ... à ré, acontece num contexto pautado ao longo dos anos por uma relação especial por parte da autora e do marido relativamente a esta sobrinha, nomeadamente, dando-lhe poderes para administrar os bens, receber e dispor de contas bancárias e mesmo outorgando testamento em que a instituíram como sua única e universal herdeira;
22. De tudo o supra exposto, resulta que quando, no dia .../.../ 2019, o réu efectuou a venda à ré da casa de ... e do apartamento da ..., não abusou dos poderes que lhe foram conferidos pela autora e pelo marido, pelo que se impõe concluir pela validade dos negócios, não devendo, consequentemente serem cancelados quaisquer registos a favor da ré/ora recorrente;
23. Ao decidir pela declaração de ineficácia dos negócios em causa relativamente à autora, a sentença ora impugnada laborou em erro na apreciação da prova, conforme desenvolvido infra, e na aplicação do direito, nomeadamente violando o disposto nos artigos 267.º e 269.º do Código Civil, a contrario.

A autora respondeu ao recurso, sustentando a manutenção da decisão recorrida. Para o efeito alegou em síntese:

(…).


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Delimitação do objecto do recurso:

A apelação tem como objecto o segmento da decisão que declarou ineficazes em relação à autora AA [ora recorrida] os seguintes negócios:
· A compra e venda do prédio inscrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...19 da Freguesia ..., designado nas alegações como “a casa de ...;
· A compra e venda da fracção inscrita na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...13... da freguesia ..., designado nas alegações de recurso como “apartamento da ...”.

Fora do objecto do recurso estão, pois, os seguintes segmentos da sentença desfavoráveis aos recorrentes:
· O que declarou ineficaz em relação à autora a compra e venda do prédio inscrito na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis ... sob o nº ...28 da Freguesia ..., aquisição essa constante da apresentação nº ...51 de 2019/.../...;
· O que julgou improcedente a reconvenção.

Estes segmentos devem considerar-se transitados em julgado, visto a noção de trânsito em julgado constante do artigo 628.º do CPC e a circunstância de, no prazo legal, não terem sido objecto de apelação, nem de reclamação.  

Devem igualmente considerar-se transitados em julgado e pelas mesmas razões os seguintes segmentos da decisão desfavoráveis à recorrida:
· O que julgou improcede improcedente o pedido de condenação dos réus a reconhecerem a autora como legítima proprietária dos bens imóveis descritos pelas letras A) e B) do artigo 48.º e letra C) do artigo 50.º da petição inicial;
· O que julgou improcedente o pedido de declaração de nulidade dos contratos de compra e venda controvertidos com fundamento na falta de poderes de representação dos réus.

A situação já é diferente quanto ao pedido deduzido pela autora sob a alínea c), no sentido de ser declarada a nulidade dos três contratos de compra e venda por simulação do negócio. A diferença procede da circunstância de a sentença sob recurso não ter conhecido do mesmo. Na verdade, o tribunal a quo não se pronunciou sobre tal pedido, com a justificação de que era desnecessário apreciá-lo, tendo em consideração a procedência do pedido baseada no abuso da representação. Por outras palavras, a sentença sob recurso entendeu que a questão da declaração de nulidade dos contratos por simulação estava prejudicada pela solução dada à questão do abuso da representação. Apesar de, segundo a ordem por que foram deduzidos tais pedidos, a procedência do pedido de declaração de nulidade por simulação é que prejudicava o conhecimento do pedido baseado no abuso de representação e não o contrário, a verdade é que, uma vez que nenhuma das partes impugnou a decisão na parte em que ela entendeu que a procedência do pedido baseado no abuso de representação prejudicava o conhecimento do pedido de declaração de nulidade fundado na simulação, no caso de este tribunal julgar procedente o recurso, cabe-lhe assumir a instância e conhecer de tal pedido no caso de dispor dos elementos necessários. Assim o impõe o n.º 2 do artigo 665.º do CPC e o respeito pelo que foi decidido, com trânsito em julgado pela sentença recorrida.


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Questão suscitada pelo recurso

A principal questão suscitada pelo recurso é a de saber se, ao declarar ineficazes em relação à autora, a compra e venda da “casa de ... e do “apartamento da ...”, a sentença sob recurso errou na apreciação da prova e violou o disposto nos artigos 267.º e 269.º, ambos do Código Civil.


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Não tendo sido impugnada a decisão relativa à matéria de facto, nem havendo razões para a alterar oficiosamente consideram-se provados e não provados os seguintes factos:

Provados:
1. No dia 03 de Setembro de 2002 a autora compareceu no ... Cartório Notarial ..., onde pelo seu punho assinou, assinatura que aí foi reconhecida, um documento manuscrito apelidado de “procuração” com o seguinte conteúdo: “AA Natural da Freguesia de ... Concelho ..., Residente na Rua ... ..., casada com FF sob o regime de comunhão de adquiridos NIF ... constitui seu Procurador BB casado Natural de ..., ..., Residente na Rua ... ..., ao qual concede Poderes para vender Pelo Preço e sob as cláusulas que entender Por convenientes e celebrar os respetivos contratos de promessa de compra e venda outorgando e assinando as respectivas escrituras, qualquer Bem imovel de minha Propriedade e ainda os Poderes para junto de qualquer Repartição Pública, nomeadamente Finanças, Camara Municipal e Conservatória do Registo Predial requerer quaisquer acto de registo Provisório e de uma maneira em geral Praticando e requerendo e assinando Tudo o mais que se torne necessário aos indicados fins”.
2. No dia e local indicado em 1, aí compareceu FF, onde pelo seu punho assinou, assinatura que aí foi reconhecida, um documento manuscrito apelidado de “procuração” com o seguinte conteúdo: “FF, Natural da Freguesia ..., concelho ..., residente na Rua ... ..., casado com AA sob o regime de comunhão de adquiridos, NIF ..., constitui seu Procurador BB casado Natural de ..., ..., Residente na Rua ... ..., ao qual concede poderes para vender pelo preço e sob as cláusulas que entender por convenientes e celebrar os respetivos contratos de promessa de compra e venda outorgando e assinando as respectivas escrituras, qualquer bem imóvel de minha propriedade e ainda os poderes para junto de qualquer Repartição Pública, nomeadamente Finanças, Camara Municipal e Conservatória do Registo Predial requerer quaisquer acto de registo provisório e de uma maneira em geral praticando e requerendo e assinando tudo o mais que se torne necessário aos indicados fins.
3. No dia 05 de Dezembro de 2018 a autora outorgou em Cartório Notarial ..., testamento com o seguinte conteúdo: “Que revoga na totalidade todo e qualquer testamento que anteriormente haja realizado. Que não tem descendentes nem ascendentes vivos, pelo que faz o seu testamento da seguinte forma: - Institui como seu único herdeiro, seu referido marido FF, Natural da Freguesia ..., concelho ... residente com a ora testadora. - Que no caso do seu referido marido lhe pré-falecer, institui como sua única e universal herdeira, sua sobrinha, CC, Natural da Freguesia ... – ..., filha de sua irmã DD e de BB, residente na Rua ..., ... andar C, em ..., concelho ...”.
4. No dia 05 de Dezembro de 2018 FF outorgou em Cartório Notarial ..., testamento com o seguinte conteúdo: “Que revoga na totalidade todo e qualquer testamento que anteriormente haja realizado. Que não tem descendentes nem ascendentes vivos, pelo que faz o seu testamento da seguinte forma: P- Institui como sua única herdeira, sua referida mulher, Maria de Fátima Ferreira Lopes Hinners, natural da freguesia ..., Concelho ..., residente com o ora testador. - Que no caso da sua referida mulher lhe pré-falecer, institui como sua única e universal herdeira, sua sobrinha por afinidade, CC, Natural da Freguesia ... – ..., filha da sua cunhada DD e de BB, residente na Rua ..., ... andar C, em ..., concelho ...”.
5. No dia indicado em 4 e 5 em Cartório de ..., com o título “procuração” FF e AA, disseram, além do mais,: “Que pelo presente instrumento, constituem sua bastante procuradora, CC (…) a quem conferem os poderes necessários para em sua representação administrar, gerir, prometer arrendar e arrendar quaisquer bens imóveis, que os ora outorgantes sejam proprietários, a quem, pelos prazos, rendas e condições que entender convenientes, podendo receber rendas, emitir e assinar recibos e proceder à cobrança as rendas fixadas, celebrar, renovar, prorrogar ou rescindir os respectivos contratos, despejar inquilinos, aceitar renúncias, assinando e outorgando os competentes contratos, recebendo quaisquer quantias ou valores que lhe pertençam ou que venham a pertencer, seja qual for a sua proveniência, liquidar contas com credores e devedores, dando as respectivas quitações e representá-los em quaisquer reuniões ou Assembleias Gerais de condomínios, assinando tudo o que se mostra necessário”;
6. Com data de .../.../2019, BB declarou em documento particular, na qualidade de procurador e em representação de AA, que vendia a CC, pelo preço de sessenta e sete mil euros (€ 67 000,00) prédio urbano destinado a habitação, situado no número três da Rua ..., lugar de ..., na freguesia ..., ... e ..., concelho ..., descrito na conservatória do registo predial ... sob o n.º ...18,, da freguesia de na freguesia ..., ... e ..., com o valor patrimonial de sessenta e seis mil e quatrocentos e noventa euros e vinte e um cêntimos, determinado no ano de 2016. Mais declarou que já havia recebido o preço indicado, do qual dava a correspondente quitação e que o preço foi pago mediante o cheque n.º ...29, sacado sobre o Banco Milleniumbcp. As partes declararam aceitar a compra e venda nos termos exarados.
7.  O documento aludido em 6 foi autenticado perante advogada no dia .../.../ 2019.
8. Com data de .../.../2019, BB declarou em documento particular, na qualidade de procurador e em representação de AA, que vendia a CC, pelo preço de 45 mil euros (€ 45 000) a fracção autónoma designada pela letra ..., a que corresponde o ... andar do prédio em propriedade horizontal situado no ... da Rua ..., no Lugar ..., na União de Freguesias ... e ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...84, da freguesia ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...29, da União de Freguesias ... e ..., concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial de quarenta mil cento e oitenta e oito euros e noventa e oito cêntimos, determinado no ano de 2016. Mais declarou que já havia recebido o preço indicado, do qual dava a correspondente quitação e que o preço foi pago mediante o cheque n.º ...29, sacado sobre o Banco Milleniumbcp. As partes declararam aceitar a compra e venda nos termos exarados.
9. O documento aludido em 8 foi alvo de termo de autenticação perante Advogada no dia .../.../ 2019.
10. No dia .../.../2019 faleceu FF.
11. Em 13 de Setembro de 2019 foi outorgada “habilitação de herdeiros” pela qual aí se indica como única herdeira de FF, a aqui autora AA, e que o mesmo deixou testamento no qual instituiu como herdeira a referida AA.
12. No dia 20 de Setembro de 2019 a autora revogou o testamento aludido em 3.
13. No mesmo dia 20 de Setembro de 2019, a autora através de instrumento público designado de “revogação de procuração”, disse que “revoga na totalidade quaisquer procurações por si passadas a favor de CC (…) incluindo a outorgada em 05/12/2018 neste Cartório Notarial”, facto este que foi transmitido à ré e chegou ao conhecimento da ré a 30 de Setembro de 2019.
14. Com data de 02 de Outubro de 2019, BB declarou em documento particular, na qualidade de procurador e em representação de AA, que vendia a CC, pelo preço de cinquenta mil euros (€ 50 000) o prédio urbano destinado a habitação, situado na Urbanização ..., lugar de ..., na União de Freguesias ... e ..., descrito na Conservatória dos Registos Civil, Predial e Comercial e Automóveis ... sob o n.º ...90, da Freguesia ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...42 da União de Freguesias ... e ..., distrito de ..., com o valor patrimonial de quarenta e sete mil trezentos e oitenta e quatro euros, determinado no ano de 2018. Mais declarou que já havia recebido o preço indicado, do qual dava a correspondente quitação e que o preço foi pago mediante o cheque n.º ...35, sacado sobre o Banco Milleniumbcp. As partes declararam aceitar a compra e venda nos termos exarados.
15. O documento aludido em 14 foi alvo de termo de autenticação perante Advogada no dia 02 de Outubro de 2019.
16. O prédio indicado em 6 está registado na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...19, sendo que pela apresentação nº ...33 de 2019/.../... consta registo de aquisição provisório por natureza e dúvidas, tendo por causa a compra, como sujeito activo a aqui R. e como sujeito passivo a aqui A. com a menção “o sujeito passivo é única herdeira de FF”.
17. A fracção indicada em 8 está registado na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...13..., sendo que pela apresentação nº ...14 de 2019/.../... consta registo de aquisição, tendo por causa a compra, como sujeito activo a aqui ré e como sujeito passivo a aqui autora com a menção “o sujeito passivo é a herdeira habilitada e representa a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de FF – NIF ...”
18. O prédio indicado em 14 está registado na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...28, sendo que pela apresentação nº ...51 de 2019/.../... consta registo de aquisição, tendo por causa a compra, como sujeito activo a aqui ré e como sujeito passivo a aqui autora com a menção “o sujeito passivo intervem por si e como única herdeira de FF”.
19. À data em que foram feitos os negócios de compra e venda dos três imóveis acima referidos, o valor de mercado dos mesmos era o seguinte: - prédio de ... - € 142.000,00; - fracção da ... - € 85.000,00; - prédio de ... - € 120.000,00.
20. Em nenhuma das compra e vendas aludidas em 6, 8 e 14 foi pago qualquer valor pelos bens.
21. Em 06 de Julho de 2004 o réu, na qualidade de procurador da autora e seu marido – com base nos documentos indicados em 1 e 2 - havia por escritura de compra e venda alineado à ré a fracção indicada em 8, pelo preço de quarenta mil euros.
22. Em 21 de Julho de 2005, o réu, na qualidade de procurador da autora e seu marido – com base nos documentos indicados em 1 e 2 – havia por escritura de compra e venda alineado à ré o prédio indicado em 14 pelo preço de sessenta e cinco mil euros.
23. No dia 04 de Junho de 2007, a ré e marido venderam à autora o prédio indicado em 8 pelo preço de quarenta mil euros.
24. No mesmo dia, a ré e marido venderam à autora o prédio indicado em 14 pelo preço de sessenta e cinco mil euros.
25. Em 30 de Dezembro de 2004, a ré outorgou na indicada qualidade de senhoria com GG, o pelas partes designado “contrato de arrendamento” tendo por objecto a fracção autónoma indicada em 8, pelo prazo de 1 ano prorrogável, pelo valor de € 325,00 por mês, sendo tal acordo assinado por ambos.
26. No dia 25 de Junho de 2019 a autora emitiu um documento com o seguinte conteúdo: “Eu, abaixo assinado, CC, portador do BI n.º ..., emitido pelo ..., proprietária da casa na morada Rua ... códido postal:... ..., declaro por minha honra, ter recebido o valor de DOIS MIL EUROS (2000€) referente a um mês de arrendamento e um mês de caução na locação do imóvel acima descrito à empresa do Srº HH, portador do NIF ...”.
27. No dia 20 de Agosto de 2019 a autora emitiu um documento com o seguinte conteúdo: “Eu, abaixo assinado, CC, portador do BI n.º ..., emitido pelo ..., proprietária da casa na morada Rua ... códido postal:... ..., declaro por minha honra, ter recebido o valor de Um MIL EUROS (1000€) referente ao mês de Setembro de arrendamento na locação do imóvel acima descrito à empresa do Srº HH, portador do NIF ...”.
28. No dia 13 de Setembro de 2019, autora emitiu um documento com o seguinte conteúdo: “Eu, abaixo assinado, CC, portador do BI n.º ..., emitido pelo ..., proprietária da casa na morada Rua ... códido postal:... ..., declaro por minha honra, ter recebido o valor de Um MIL EUROS (1000€) referente ao mês de Setembro de arrendamento na locação do imóvel acima descrito à empresa do Srº HH, portador do NIF ...”.
29. Em Novembro e Dezembro de 2019, Abril de 2020, Maio de 2020, Julho de 2020, Agosto de 2020, Setembro de 2020, a M... S.A. emitiu facturas a favor da R. referente a serviços de telecomunicações e relativos à seguinte morada: LG. RA D. II 19 C ... ... ....
30. Em 14 de Setembro de 2017, foram remetidos à ré orçamentos do terraço e telhado que de acordo com a mensagem de correio electrónico pela mesma recebidos diziam respeito a obra a realizar em .../....
31. Em data não concretizada, mas há cerca de 12 anos primeiramente, e depois há cerca de 2 anos, a ré procedeu a algumas obras de recuperação no imóvel identificado em 6, mormente ao nível do telhado, bem assim com recuperação de algumas divisões dessa moradia.
32. O marido da autora esteve a viver durante pelo menos os últimos seis meses de vida em casa da ré.

Não provados:
a) Que a autora e seu falecido marido, aquando da emissão dos documentos referidos em 1 e 2 a favor do réu, fizeram-no para que ele usasse os poderes aí conferidos, apenas em caso de acidente ou outra incapacidade da autora e do seu marido e para prover às suas necessidades;
b) Que em data não concretizada, mas algum tempo após a emissão dos referidos documentos, a autora e FF, solicitaram ao réu para que o mesmo lhe devolvesse aqueles documentos, tendo o réu ido buscá-los, rasgando-os à frente da autora e seu marido,
c) Que os negócios indicados em 23 e 24 aconteceram porque a autora e o seu falecido marido ameaçaram os réus com o recurso a tribunal, caso os mesmos não fossem feitos;
d) Que o não pagamento da quantia indicada em 19 foi feito com o intuito de enganar a autora e seu falecido marido, tratando-se na verdade de uma disposição gratuita;
e) Que em 2002, a autora e seu falecido marido quiseram dispor de forma gratuita dos imóveis já acima identificados, entregando-os desde logo à 2ª ré para que esta os fizesse seus;
f) Que desde 2002 que a 2.ª ré vem agindo como verdadeira proprietária dos imóveis referidos em 6, 8, e 14, com o consentimento e conhecimento da A. e seu falecido marido, à vista de todos sem que alguém conteste o seu direito.


*

Descritos os factos passemos à resolução das questões supra enunciadas.

Como resulta do já exposto, o segmento da sentença impugnado pelos recorrentes é o constituído pela decisão de julgar ineficazes em relação à autora a compra e venda da “casa de ...” e a compra e venda do “apartamento da ...”. Precise-se que o réu vendeu os dois imóveis, “na qualidade de procurador e em representação da autora” e apenas da autora e não, como é afirmado mais do que uma vez nas alegações de recurso, também em representação do marido da autora, FF, falecido em .../.../2019.

A questão essencial suscitada pela apelação é a de saber se o segmento acima indicado errou na apreciação da prova e na aplicação do direito, violando nomeadamente o disposto nos artigos 267.º e 269.º do Código civil, ao decidir que o réu abusou dos poderes de representativos que lhe haviam sido atribuídos pela autora, por procuração passada em 3 de Setembro de 2002.

A sentença sob recurso entendeu que o réu, ora recorrente, abusou dos seus poderes representativos, invocando, em sede de direito, o disposto no artigo 269.º do Código Civil e, em sede de facto, as seguintes circunstâncias: os negócios foram efectuados 16 anos depois da emissão das procurações; as vendas foram feitas pelo réu a favor da ré, sua filha e sobrinha da autora, já depois de a ré saber que a sua tia havia revogado o testamento feito a favor dela, ré; as vendas foram feitas por valores inferiores às do mercado e não houve recebimento do preço. Na interpretação do tribunal a quo, a circunstância de o réu ter vendido os imóveis por um preço inferior ao preço do mercado, quando a procuração apontava no sentido de ele os vender a tal preço (de mercado) e a circunstância de preço não ter sido entregue à autora revelavam que o réu, procurador, não havia agido com boa fé, no sentido de consciência ou convicção justificada de se adoptar um comportamento conforme ao direito e às respectivas exigências éticas.

Os recorrentes contestam esta fundamentação com a seguinte linha argumentativa:
· O tribunal a quo errou quando invocou o conhecimento, pela ré, da revogação do testamento, na medida em que esta conclusão contraria os factos provados discriminados sob os números 6 a 9 e 12 e 13, pois deles resulta que a ré só teve conhecimento da revogação do testamento no dia 30 de Setembro de 2019;
· A casa de ... e o apartamento da ... foram vendidos por preços correspondentes aos valores patrimoniais dos mesmos, pelo que era de concluir no sentido de ser atribuído aos imóveis um preço razoável;
· O réu tinha poderes para vender pelo preço e sob as cláusulas que entendesse convenientes;
· Ainda que assim se não entendesse, uma vez que as procurações não eram explícitas sobre o preço, seria a relação subjacente a definir os poderes e a modelar a actuação do procurador, ou seja, seria a relação subjacente a nortear a acção do procurador e a relação subjacente à procuração apontava no sentido de privilegiar esta sobrinha e afilhada;
· Que durante dezasseis anos após terem sido passadas as procurações, o interesse da autora e do marido foi sempre o de privilegiar a ré, como resulta do testamento e das procurações a favor da ré e a transmissão da casa acontece neste contexto: relação especial da autora e do marido relativamente à ré, dando-lhe poderes para administrar os bens, receber e dispor das contas bancárias e mesmo outorgando testamento em que a instituíram como sua única universal herdeira.

Apreciação:

Apesar de serem pertinentes algumas críticas, o recurso é de julgar improcedente.

Em primeiro lugar, cabe dizer que assiste razão aos recorrentes quando alegam que o tribunal a quo partiu de um pressuposto errado quando afirmou que as vendas foram efectuadas depois de a ré, ora recorrente, saber que a autora, sua tia, havia revogado o testamento lavrado no dia 5 de Dezembro de 2018, na qual a instituíra como sua única e universal herdeira no caso de o marido dela, autora, falecer antes dela, autora. Este pressuposto está errado porque, embora esteja provado que a autora revogou tal testamento no dia 20 de Setembro de 2019, antes pois da venda dos imóveis, não há prova da data em que a ré teve conhecimento de tal revogação.

Assinale-se, a propósito deste pressuposto, que os réus ora recorrentes também incorrem em erro quando alegam que a ré só teve conhecimento da revogação do testamento no dia 30 de Setembro de 2019. Na verdade, o facto de que a ré, ora recorrente, tomou conhecimento em tal data foi o da revogação da procuração com poderes especiais e não a revogação do testamento. É o que decorre do ponto n.º 13 dos factos julgados provados.

Em segundo lugar, este tribunal também entende que o facto de o réu, ora recorrente, ter exercido os poderes representativos cerca de 17 anos depois de eles lhe terem sido concedidos [e não 16 como se refere na sentença] não configura abuso de representação, para efeitos do disposto no artigo 269.º do Código Civil.

Vejamos.

O Código Civil refere-se ao abuso da representação no artigo 269.º do Código Civil, sem dar, no entanto, a noção de abuso da representação. Diz apenas que o disposto no artigo anterior (que versa sobre a representação sem poderes) é aplicável ao caso de o representante ter abusado dos seus poderes, se a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso.

A jurisprudência do STJ, de que se citam como exemplos o acórdão proferido em 15-03-2022, no processo n.º 2113/19.6T8LRS.L1 e o proferido em 15-09-2022 no processo n.º 573/15.3T8FAR.E1.S1, ambos publicados em www.dgsi.pt, tem afirmado de forma constante que “Há abuso de representação quando há o exercício da atividade representativa dentro dos limites formais dos poderes conferidos, embora de modo substancial ou materialmente contrário aos fins da representação ou às indicações do representado propósito do abuso de representação”.

Na doutrina vão no mesmo sentido, e a título de exemplo, Pires de Lima e Antunes Varela e Carlos Alberto da Mota Pinto. Os primeiros autores escrevem em anotação ao artigo 269.º: “Há abuso dos poderes de representação, quando o representante, actuando, embora dentro dos limites formais dos poderes que lhe foram outorgados, utiliza conscientemente esses poderes em sentido contrário ao seu fim ou às indicações do representado” [Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição revista e actualizada, Coimbra Editora, página 249]. Dão como exemplo de abuso de representação a seguinte situação: o representado encarregou o procurador de lhe comprar uma casa para a sua residência, e este, munido de uma procuração que lhe confere, genericamente, poderes para comprar, compra um prédio que não serve para aquele fim.

Carlos Alberto da Mota Pinto escreve: “Haverá abuso de representação quando o representante actuar dentro dos limites formais dos poderes conferidos, mas de modo substancialmente contrário aos fins de representação” [Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª Edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, página 550].

O exercício dos poderes de representação “em sentido contrário ao seu fim ou às indicações do representado” ou “de modo substancialmente contrário aos fins de representação” remete-nos para a relação jurídica subjacente à procuração, pois, em regra, é nesta relação que se colhem os fins da representação, a função da procuração e o modo de exercício dos poderes representativos.

Esta relação subjacente é mencionada expressamente no artigo 264.º do Código Civil, a propósito da substituição do procurador, como “relação que determina a procuração” e no artigo 265.º a propósito da extinção da procuração, como relação jurídica que serve de base à procuração. Socorrendo-nos das palavras de Pedro Pais Vasconcelos e Pedro Leitão de Vasconcelos, “Mesmo quando é estipulada autonomamente, a procuração não deixa de estar ligada a um outro negócio ou a uma outra situação jurídica ou relação jurídica que lhe dá fundamento – que constitui a sua causa – e que dá critério ao exercício dos poderes de representação dela emergentes [Teoria Geral do Direito Civil, 9.ª edição, Almedina, página 350].

Examinando a jurisprudência do STJ e alguma doutrina, podemos afirmar que, além da relação subjacente à procuração, o exercício dos poderes representativos tem ainda como guia o dever de boa fé. Vale aqui, com as devidas adaptações, o que prescreve o n.º 2 do artigo 762.º do Código Civil sobre o cumprimento da obrigação e o exercício do direito, ou seja, no exercício dos poderes representativos o procurador deve proceder de boa fé para com o representado.

Esta ideia está presente, por exemplo, não só no acórdão acima citado proferido em 15-09-2022, mas também no acórdão do STJ proferido em 6-07-2021, no processo n.º 20954/15.1T8LSB.L1.S1, também publicado em www.dgsi.pt. ao incluir no seio do abuso da representação as “atuações desleais, quando o representante utiliza ou aproveita os seus poderes para alcançar interesses próprios ou alheios ou, mais em geral, de modo contrário à boa fé”.

Na doutrina, Raul Gucihard, Catarina Brandão Proença e Ana Teresa Ribeiro, também trazem para o seio do abuso da representação precisamente “as atuações desleais, quando o representante utiliza ou aproveita os seus pdoeres para alcançar interesses próprios ou alheios ou, mais em geral, de modo contrário à boa fé” [Comentário ao Código civil, Parte geral, Universidade Católica Editora, página 658].

Interpretado o artigo 269.º do Código Civil com o sentido exposto, estamos agora em condições de indicar as razões pelas quais o facto de o réu ter exercido os poderes representativos cerca de 17 anos depois de eles lhe terem sido concedidos pela autora não cai nas malhas do abuso da representação. Razões que não são as alegadas pelos recorrentes.

O uso da procuração passados cerca de 17 anos configuraria abuso da representação se resultasse da matéria de facto que tal uso, ao fim de tão longo período, contrariava a relação jurídica que serviu de causa à procuração, desrespeitava indicações da autora sobre o tempo do exercício dos poderes de representação ou atentasse contra a boa fé, o que não sucede.

Não se pode afirmar que o uso da procuração ao fim de tão longo período contrariava a relação jurídica que serviu de causa à procuração pois não está provada tal relação. Com efeito, a alegação da autora, ora recorrida, respeitante à relação que justificava a concessão de poderes representativos ao réu foi julgada não provada. Apesar de ter existido, seguramente, uma ou várias razões para que a autora e o marido, no distante ano de 2002, numa altura em que aquela tinha 57 e este tinha 61 anos de idade, tivessem concedido ao réu, poderes para vender pelo preço e sob as cláusulas que entendesse por convenientes qualquer bem imóvel da propriedade deles, à luz da matéria de facto, a situação em que se encontra o tribunal é a de ignorância sobre tais razões.

Não se pode afirmar que o uso da procuração em 2019 contrariou instruções da autora porque não há prova de quaisquer instruções dadas por esta ao réu sobre a vigência dos poderes de representação.

E também não se pode afirmar que o uso dos poderes representativos ao fim de 17 anos após a respectiva concessão é por si só um procedimento contrário à boa fé, no sentido de procedimento que atenta contra a lealdade e a correcção que o representante deve ao representado.

Já quanto às razões alegadas pelos recorrentes, elas não são de acolher. Vejamos.  

Os recorrentes rejeitaram a tese de que o exercício dos poderes representativos ao fim de tão longo período era abusivo com a alegação de que, durante todo este período, o interesse da autora e do marido foi sempre o de privilegiar a ré, e que houve uma relação especial da ré compradora com a autora e o seu marido, como o testemunhavam o testamento instituído a favor da ré e a procuração com poderes especiais para administrar o património da autora e do seu marido e o facto de esta ter cuidado do marido da autora durante os seis meses em que este esteve gravemente doente até à data da sua morte em .../.../2019.

É certo que está provado que a autora, ora recorrida, instituiu a ré a sua única e universal herdeira, no caso de o marido dela, autora, falecer antes de si e que, no mesmo dia, a autora e o seu marido constituíram a ora ré sua bastante procuradora com amplos poderes de administração dos bens de que eles fossem proprietários. Mas também é certo que, passados cerca de nove meses sobre a instituição da ré como única e universal herdeira da autora, nas condições atrás indicadas, e sobre a passagem a favor da ré da procuração com amplos poderes de administração, o testamento e a procuração foram revogados.

Se o testamento e a procuração são sinais de uma relação de confiança entre a autora e a ré, a respectiva revogação indicia a perda de tal confiança. Visto que a revogação do testamento e da procuração foi efectuada em 20 de Setembro de 2019 e que a venda dos imóveis à ré deu-se em 26 de Setembro do mesmo ano, a ilação a retirar é a de que, quando o réu, ora recorrente, usou da procuração, já se havia quebrado a relação de confiança entre a autora e a ré.

A verdade é que o testamento e a procuração com amplos poderes de administração nada nos dizem sobre os fins, sobre a função da procuração e sobre o modo como o réu devia exercer os poderes representativos que lhe foram concedidos pela autora. E nada nos dizem porque nem testamento nem a procuração configuram relações entre a autora e o réu capazes de explicar a procuração, ou seja, a relação de representação.

Se alguma ilação se pode deduzir de tais instrumentos, quanto ao exercício dos poderes de representação por parte do réu, é o de que este não os devia usar quando os usou. Na verdade, a procuração com poderes especiais para administrar os bens da autora, combinada com o testamento, apontava no sentido de a autora confiar à ré a administração dos bens que esta herdaria por morte daquela. Assim sendo, é de presumir que a autora não quisesse que o procurador usasse dos poderes de venda que lhe fossem conferidos, mas antes que os bens continuassem na esfera jurídica dela até à sua morte, a fim de que a ré os herdasse.

Prosseguindo na apreciação dos argumentos dos recorrentes, cabe dizer, agora, que não vale contra a sentença a alegação de que a venda dos imóveis por preços inferiores aos do mercado não traduzia abuso da representação.

Como se escreveu acima, a sentença viu neste este facto e no não recebimento do preço da venda por parte do réu sinais de que este não exerceu de boa fé os poderes representativos que lhe foram concedidos.

Os recorrentes opuseram-se com a seguinte linha argumentativa:
· Que os dois imóveis em questão (casa de ...) e o apartamento da ... foram vendidos por um preço razoável pois preço era próximo do respectivo valor patrimonial;
· Que a procuração conferia poderes ao réu para vender pelo preço e pelas cláusulas que entendesse por convenientes, o que na sua interpretação legitimava a venda pelos indicados preços;
· Que caso assim se não entendesse, a relação subjacente ás procurações apontava no sentido de privilegiar a ré, sobrinha e afilhada, porque era desejo da autora e do seu marido.

Sobre esta argumentação cabe dizer o seguinte.

Em primeiro lugar, não colhe a alegação de que a declaração da autora constante da procuração segundo a qual concedia poderes ao réu para vender, pelo preço e sob as cláusulas que entendesse por convenientes, qualquer bem da propriedade dela, atribuía, a este último, poderes para vender os imóveis pelos preços por que foram vendidos. Com efeito, a declaração em questão é de interpretar no sentido que lhe foi dado pela decisão recorrida, ou seja, caso os imóveis fossem vendidos, deveriam sê-lo pelo respectivo preço de mercado, o que claramente não sucedeu.

Vejamos. Uma vez que não sabemos qual foi a vontade real da autora ao conceder ao réu poderes para vender pelo preço que entendesse por conveniente, caso em que seria de acordo com essa vontade real que valeria a declaração (n.º 2 do artigo 236.º do Código Civil), é de atribuir a tal declaração o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, ou seja, colocado na posição do réu, pudesse deduzir de tal declaração (artigo 236.º do Código Civil). Por declaratário normal entende-se, usando as palavras de Carlos Alberto da Mota Pinto, na obra supracitada, página 444, “pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do destinatário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até onde podia conhecer”.

Deste modo, a questão a que importa responder é a de saber que sentido daria à referida declaração uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente.

A questão não é nova nos tribunais. O Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão proferido em 16-11-1988, publicado no BMJ, n.º 381, páginas 640, pronunciando-se sobre o sentido a dar por um delcaratário normal a uma declaração de idêntico conteúdo, entendeu que ele interpretaria tal declaração “no sentido de preço equilibrado e justo, dado que ninguém de boa fé pode entender como conveniente”, uma venda ao desbarato”. No mesmo sentido se pronunciou o acórdão do STJ proferido em 25-06-2013, no processo n.º 532/2001.L1.S1., publicado em www.dgsi.pt. ao afirmar que “o facto da procuração autorizar, tão latamente, a procuradora a alienar a fracção pelo preço, condições e cláusulas que achasse por convenientes não pode valer como carta branca para um negócio que descurasse o interesse do representado que, naturalmente, pretenderia que o imóvel fosse vendido pelo valor real e corrente, pelo preço de mercado como é usual nos negócios imobiliários. Em data mais recente o acórdão do STJ, proferido em 21-04-2022, no processo n.º 2180/19.2T8PTM.E1.S1, publicado em www.dgsi.pt, perante uma cláusula de teor idêntico à da procuração em causa nestes autos, também entendeu que ela implicava para o procurador o dever de vender o imóvel pelo valor corrente de mercado. Por fim, o STJ, em acórdão proferido em 5 de Março de 1996, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano IV, Tomo I, 1996, páginas 111 a 115, num caso em que a procuração atributiva de poderes especiais para vender era omissa quanto ao preço da venda, entendeu, com relevância para a questão ora em apreciação, que “… só a venda pelo preço real do mercado garante a lealdade de comportamento que o representante tem de ter, para poder, de boa fé, gerir a conflitualidade dos interesses em presença – representado e terceiro – de forma a estabelecer o necessário equilíbrio”.   

Não vemos razões para nos afastarmos deste entendimento. Em consequência do exposto, não merece censura a decisão recorrida na parte em que interpretou a declaração da autora no sentido de que concedeu poderes ao réu para vender os imóveis pelo preço de mercado.

Como não merece censura a conclusão de que o réu, ao vender o imóvel sito em ... por 67 000 euros e o sito na ... por 45 00 euros, afastou-se dos valores de mercado de tais imóveis, que eram, respectivamente, de 142 000,00 e 85 000 euros. E afastou-se largamente. Com efeito, o preço de venda do imóvel sito em ... correspondeu a menos de metade do respectivo preço de mercado (cerca de 47%) e o preço de venda do imóvel sito na ... representa pouco mais de metade de tal preço (cerca de 53%).

Os recorrentes contrapõem que, caso se entendesse que o réu não estava legitimado para vender os imóveis pelo preço por que os vendeu, sempre seria de afastar o abuso da representação por a relação subjacente às procurações apontar no sentido de privilegiar a ré, sobrinha e afilhada da autora, como o atestavam os testamentos feitos em 5 de Dezembro de 2018 a instituir a ré única e universal herdeira da autora e do marido.

Esta alegação não colhe. Como já se escreveu acima, tanto a alegação da autora como a dos réus respeitante à relação subjacente à procuração foi julgada não provada. Em segundo lugar, a instituição da ré como herdeira única e universal da autora, nas condições também já expostas acima, ocorrida cerca de 16 anos depois da passagem da procuração ao réu, não explica a passagem desta, nem o uso, pelo réu dos poderes representativos.

Pelo exposto, considerando a interpretação do artigo 269.º do Código Civil acima exposta, não merece censura a decisão recorrida quando entendeu que a venda dos dois imóveis por preços substancialmente inferiores ao respectivo valor de mercado traduziu-se num uso abusivo dos poderes de representação que foram concedidos pela autora ao réu.

A constatação de que o procurador abusou das suas funções não é, no entanto, suficiente, para que o negócio seja ineficaz em relação ao representado. A segunda parte do artigo 269.º do Código Civil exige ainda que a outra parte conhecesse ou devesse conhecer o abuso. Conhecer o abuso é conhecer os factos que o caracterizam. No caso, conhecer o abuso é saber ou dever saber que o procurador tinha poderes para vender pelo preço de mercado e saber ou dever saber que os imóveis foram vendidos por preço substancialmente inferior a tal preço.

Há factos que apontam no sentido que a ré tinha conhecimento ou estava em condições de saber de tais realidades.

A ré sabia que o réu, seu pai, vendeu os imóveis na qualidade de procuradora da autora. E tinha este conhecimento não só porque a procuração é mencionada nos documentos que formalizaram as vendas, mas também porque o réu, seu pai, já havia feito uso de tal procuração em 2004 para lhe vender a ela o prédio sito na ...; prédio que, cerca de 3 anos, regressou à esfera jurídica da autora. Estes factos apontam, assim, no sentido de que a ré tinha conhecimento do conteúdo da procuração. 

Por sua vez, o facto de a ré ter arrendado, em 2004, o prédio sito na ..., o facto de lhe ter sido passada pela autora, em Dezembro de 2018, isto é, cerca de nove meses antes das vendas, uma procuração com poderes para, além do mais, administrar os bens dela, autora, o facto de a ré ter arrendado o imóvel sito em .../... e o facto de ter realizado obras neste imóvel, apontam claramente no sentido de que a ré estava em condições de saber, ainda que de modo aproximado, o preço de mercado dos imóveis que lhe foram transmitidos. 

Por fim importa dizer ainda o seguinte sobre a sentença e o recurso.

Um dos factos que levou a sentença a reputar de abusivo o uso dos poderes de representação por parte do réu consistiu no facto de este ter declarado que havia recebido o preço e que dava quitação, quando, na realidade, a compradora não lhe pagou qualquer preço pela compra dos imóveis.

Os recorrentes não disseram nada na sua alegação sobre este facto.

A verdade é que este facto também é relevante para a decisão sobre a questão do abuso da representação. Vejamos. Se é de admitir, face ao texto da procuração e à sua interpretação segundo o critério do n.º 1 do artigo 236.º do Código Civil, que tivessem sido atribuídos ao réu poderes para receber o preço e dar quitação, já não é de admitir, face a esse mesmo texto e a tal critério interpretativo, que lhe tivessem sido concedidos poderes para declarar que recebeu o preço, quando, na realidade, não o recebeu, ou seja, não é de admitir que o réu dispusesse de poderes para emitir uma declaração que não correspondia à verdade.

Tal declaração, além de não ser eficaz em relação à autora, por o réu não ter poderes para a emitir (n.º 1 do artigo 268.º, do CPC), revela falta de lealdade deste (representante) para com a aquela (representante) e o propósito de beneficiar a ré, que adquiria dois imóveis no valor de cerca de 227 mil euros sem pagar qualquer preço por tal aquisição.

Como escrevemos acima, a jurisprudência do STJ tem entendido que a actuação desleal do representante para com o representado, com o propósito de beneficiar terceiros, cai nas malhas do abuso de representação.

E, no caso, a ré não podia ignorar nem a deslealdade do réu nem que era ela a beneficiária directa de tal deslealdade. Na verdade, ela sabia que o réu vendia os imóveis na qualidade de procurador da autora, sabia que o réu declarava na escritura que tinha recebido o preço, do qual dava quitação e que tal declaração não correspondia à realidade e sabia que não havia pago qualquer preço pela aquisição dos imóveis.

Por todo o exposto, e respondendo à questão suscitada pelo recurso, é de afirmar que, ao declarar ineficazes em relação à autora, a compra e venda da casa de ... e do “apartamento da ...”, a sentença sob recurso não violou o disposto nos artigos 267.º e 269.º, ambos do Código Civil. De resto não era pertinente imputar à decisão recorrida a violação do artigo 267.º, pois resulta das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC que só tem sentido imputar à decisão recorrida a violação das normas que tenham constituído fundamento jurídico da decisão recorrida e o citado artigo não constitui fundamento da decisão de julgar ineficazes em relação à autora a venda dos dois imóveis.


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Decisão:

Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.


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Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de os recorrentes terem ficado vencido no recurso, condenam-se os mesmos nas respectivas custas.

Coimbra, 12 de Abril de 2023