Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
152/13.0TBMIR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSAÇÃO ANTECIPADA
REVOGAÇÃO
Data do Acordão: 11/22/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - O.HOSPITAL - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.235, 239, 243, 244, 246 CIRE
Sumário: 1.No procedimento de exoneração do passivo restante, enquanto decorre o período da cessão, o insolvente está obrigado a cumprir as obrigações enumeradas no art.º 239º, nº 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).

2.A violação destas obrigações pode determinar a cessação antecipada daquele procedimento.

3.Nos termos do art.243º, nº1, a), do CIRE, aquela cessação ocorre quando o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma daquelas obrigações e, com isso, prejudicar a satisfação dos créditos sobre a insolvência.

4.Diferentemente da revogação da exoneração já concedida (art.246º daquela lei), em que se exige o dolo do devedor e um prejuízo relevante, no caso da cessação antecipada do procedimento admite-se, além do dolo, a negligência grave e o prejuízo não tem de ser relevante.

Decisão Texto Integral:


           

            Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Nos autos em que é Insolvente J (…), este pediu a exoneração do seu passivo restante.

O incidente foi admitido, estabelecendo-se que nos cinco anos posteriores ao encerramento do processo, o devedor deveria ceder à fiduciária todo o seu rendimento disponível, que se considerou corresponder a tudo o que excedesse uma vez e meia o salário mínimo nacional.

O processo foi encerrado a 20 de janeiro de 2014, tendo nessa data tido início o período de cessão.

Entretanto, a Sra. Administradora informou que, desde o início do período de cessão, o devedor deveria ter cedido a quantia de € 955,25 e não o fez.

O credor C (…) veio requerer a cessação antecipada do incidente, em virtude de o devedor estar a incumprir culposamente os seus deveres.

O devedor foi notificado e não se pronunciou, não tendo justificado aquela omissão.

Foi então proferida decisão, ao abrigo do disposto no art. 243.º, n.º 1, al. a), e 239.º, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a recusar a exoneração e a declarar antecipadamente cessado o respetivo procedimento.


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Inconformado, veio o Insolvente recorrer e apresentar as seguintes conclusões:

I. Com a devida vénia e consideração pelo Mmo. Tribunal a quo, o douto despacho violou as as disposições conjugadas dos artigos 243.º, n.º 1, alínea a) do CIRE e artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

II. Nos termos do artigo 243.º, n.º 1, alínea a) do CIRE, é necessário verificarem-se dois pressupostos cumulativos, para que seja recusada a exoneração por violação das obrigações impostas pelo artigo 239.º do CIRE: a) que o devedor tenha actuado com dolo ou negligência grave; b) que a sua actuação cause um prejuízo para os credores.

III. O Insolvente enfrentou sérias dificuldades financeiras, que se agravaram devido à instabilidade familiar nos últimos anos, tendo sendo obrigado a mudar de residência, mas prestando sempre as informações que lhe foram solicitadas, não tendo actuado com dolo ou negligencia grave.

IV. O prejuízo para os Credores, deve ser um prejuízo relevante, por equiparação com o regime previsto no artigo 246.º do CIRE, pois quer a cessação antecipada quer a revogação da exoneração, geram a mesma consequência na esfera jurídica do Insolvente.

V. A actuação do Insolvente não causou um prejuízo relevante, que coloque em causa a satisfação dos créditos sobre a insolvência, dado ao valor diminuto do rendimento disponível não entregue ao Fiduciário, em comparação com o valor total do seu passivo.

VI. A decisão do Tribunal a quo tem-se como uma consequência demasiado gravosa para o Insolvente, quando comparada com o prejuízo mínimo causado aos Credores, violando o princípio da proporcionalidade, constitucionalmente regulado no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.


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            Não foram apresentadas contra-alegações.

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            A questão a decidir consiste em saber se é justificada a cessação antecipada do procedimento de exoneração, prevista pela norma do art.243º, nº1, a), do CIRE.

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            Os factos a considerar são os que resultam do relatório supra exarado e os seguintes (documentados):

Em 19.6.2013 foi declarado o estado de insolvência de J (…);

Em 7.1.2014 foi proferido o despacho inicial de admissão do pedido de exoneração do passivo restante, declarando-se que a exoneração será concedida uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no artigo 239º do CIRE durante cinco anos, posteriores ao encerramento do processo de insolvência.

Neste despacho foi determinado que, durante os 5 anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão), o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir e que exceda o correspondente a uma vez e meia o salário mínimo nacional, se considerava cedido ao fiduciário.

O insolvente foi ali advertido de que, durante o período de cessão, ficava sujeito aos deveres previstos no nº 4 do artigo 239º do C.I.R.E.

O processo foi encerrado a 20 de janeiro de 2014, iniciando-se o período da cessão.

Desde o início deste período, durante os anos de 2014 e 2015, em cinco situações mensais, o devedor não cedeu ao fiduciário o total de € 955,25.

O devedor foi notificado desta falta e não se pronunciou, não tendo justificado aquela omissão.


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Nos termos do art. 235º do CIRE, “se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo”.

            Conforme o preâmbulo deste código, o legislador pretendeu conjugar o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares da possibilidade de se libertarem de algumas dívidas com vista à sua reabilitação económica.

            Não havendo motivo para o indeferimento liminar do pedido de exoneração, o juiz profere um despacho inicial determinando que, durante os cinco anos posteriores àquele encerramento, o rendimento disponível do devedor se considera cedido ao fiduciário, com vista ao pagamento dos credores da insolvência, sujeitando aquele devedor às obrigações previstas no art.239º, nº4, da lei em análise.

Este despacho inicial coloca o devedor numa espécie de período de prova.

Esgotado o prazo da cessão, profere-se então decisão a conceder ou a recusar a exoneração (artº 244, nº 1, do CIRE).

O rendimento disponível do devedor, objeto de cessão ao fiduciário, é integrado por todos os rendimentos que naquele período advenham, por qualquer título, ao devedor (artº 239, nº 3, corpo, do CIRE).

Exclui-se do rendimento disponível o “sustento digno do devedor e do seu agregado familiar”.

A concessão deste benefício pressupõe uma conduta recta e de boa fé do insolvente, quer no período anterior à insolvência quer no período posterior (artigos 239º e 243º do CIRE).

Uma das obrigações impostas ao insolvente é a de entregar imediatamente ao fiduciário, quando a receba, a parte dos seus rendimentos objeto da cessão (artº 239º, nº 4, c), do CIRE).

A violação desta obrigação, como demonstrado no caso, pode ser causa da cessação antecipada do procedimento em curso.

De acordo com o disposto no art. 243.º, n.º 1, al. a), do CIRE, antes de terminado o período de cessão, deve o juiz recusar a exoneração do passivo restante, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se ainda estiver em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando este tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo art. 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.

Diferentemente do caso da revogação da exoneração já concedida (art.246º do CIRE), em que a lei é mais exigente, exigindo o dolo do devedor e um prejuízo relevante, no caso da cessação antecipada do procedimento a lei basta-se com uma violação gravemente negligente de qualquer obrigação do insolvente, da qual resulte um prejuízo para a satisfação dos créditos sobre aquele (não precisando de ser relevante).

“A razão de ser da diferença reside, por certo, no facto de a revogação ser mais grave, nas suas consequências, por fazer cessar efeitos jurídicos já produzidos.” (C. Fernandes, J. Labareda, CIRE Anotado, Quid Juris, 2009, página 802.)

Portanto, ao contrário do que defende o Recorrente (conclusão 4ª), também por estar numa espécie de período de prova, no caso não se exige um prejuízo relevante.

Como vimos, o regime previsto no artigo 246.º do CIRE não parte dos mesmos pressupostos e considera uma consequência mais grave.

Ora, o insolvente incumpriu o dever de entregar à fiduciária a parte dos seus rendimentos objeto de cessão, durante um período de 2 anos, em 5 situações distintas.

Aquele não apresentou, quando ouvido sobre a violação, qualquer justificação para a sua omissão.

Não se pode deixar de concluir pelo dolo do insolvente.

O dolo comporta um elemento cognitivo e um elemento volitivo.

O insolvente atua com dolo quando representa um facto que preenche a tipicidade dos deveres a que está obrigado.

Ele atua dolosamente desde que tenha a intenção de realizar, ainda que não diretamente, a violação de um daqueles deveres, quando se decidiu pela atuação contrária ao direito.

Se a violação do dever constitui intenção específica do insolvente, há dolo directo; se essa violação não é diretamente querida, mas é desejada como efeito necessário da conduta, o dolo é necessário; finalmente, se a violação não é diretamente desejada, mas é aceite como efeito eventual, mesmo que acessório, daquela conduta, há dolo eventual.

Depois, ocorre um prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência.

Este prejuízo não é irrelevante; ocorre num período de 2 anos, quando o período da cessão é de 5 anos, e ocorre em 5 situações distintas, num total eventual (seguindo a potencial regularidade dos tempos dos subsídios) de cerca de 11, nesses 5 anos.

Entende o Recorrente que “a decisão do Tribunal a quo tem-se como uma consequência demasiado gravosa para o Insolvente, quando comparada com o prejuízo mínimo causado aos Credores, violando o princípio da proporcionalidade, constitucionalmente regulado no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.”

Não nos parece que assim seja.

Como o Recorrente sabe, a concessão deste benefício pressupõe uma conduta recta e de boa fé dele no período da cessão, que funciona como uma espécie de período de prova.

O procedimento em análise constitui já um limite ponderado no equilíbrio entre o ressarcimento dos credores e a atribuição aos devedores singulares da possibilidade de se libertarem de algumas dívidas, com vista à sua reabilitação económica.

Conhecedor das suas obrigações e sujeito a prova, o insolvente não quis entregar os valores referidos, rompendo aquele equilíbrio.

Neste período de prova, a lei ponderou que uma violação do tipo em análise, menos intensa que a prevista para a revogação de uma exoneração já concedida, é suficiente e adequada a concluir que o insolvente não é merecedor do benefício, travando logo ali o procedimento.

Esta ponderação legal, no contexto referido, que o insolvente, num momento inicial, desejou e a que se comprometeu, não é desproporcionada.

O prejuízo concreto não é irrelevante; ocorre num período de 2 anos, quando o período da cessão é de 5 anos, e ocorre em 5 situações mensais distintas, espaçadas nesses dois anos, num total eventual de cerca de 11 situações, nos 5 anos referidos.

Por tudo isto, não merece censura a decisão recorrida.


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            Decisão.

            Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas a cargo do Recorrente.

            Coimbra, 2016-11-22

Fernando Monteiro ( Relator)

António Carvalho Martins

 Carlos Moreira