Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
240/19.9T8LRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
CÚMULO JURÍDICO
TRIBUNAL TERRITORIALMENTE COMPETENTE
TRIBUNAL DA ÚLTIMA CONDENAÇÃO
Data do Acordão: 10/16/2020
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
Decisão: ATRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA
Legislação Nacional: ARTS. 78.º E 79.º DO CP; ARTS. 471.º E 472.º DO CPP
Sumário: Perante a previsão normativa dos artigos 471.º, n.º 2, e 472.º, ambos do CPP, o tribunal competente para a realização de cúmulo jurídico de diversas penas (parcelares) em concurso é o da última condenação, mesmo que esta seja uma decisão cumulatória.
Decisão Texto Integral:







I. Relatório:

O Sr. Juiz do Juízo Central Criminal de Leiria – J3 suscitou a resolução de conflito negativo de competência relativo à realização de cúmulo jurídico de penas impostas a J. - com os sinais identificativos dos autos - em diversos processos, em devido tempo devidamente individualizados.

Apenas o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação apresentou alegações, no sentido de a competência para o fim acima indicado pertencer ao outro tribunal em conflito, ou seja, ao Juízo Central Criminal de Coimbra – J4.


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II. Fundamentação:

Elementos processuais relevantes para o conhecimento do conflito:

A) De acordo com os elementos documentais constantes destes autos, ao arguido J. foram impostas, inter alia, as seguintes penas:

1. No proc. n.º 310/13.7GCPBL, do Juízo Local Criminal de Pombal, por sentença de 11-02-2016, transitada em julgado em 14-03-2016, cujos factos ilícitos ocorreram em 13-10-2013, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 120 dias de multa, à razão diária de 6,00 €.

2. No proc. n.º 34/14.8PEFIG, do Juízo Criminal da Figueira da Foz, por sentença proferida em 02-03-2016, transitada em 04-04-2016, relativa a factos de 24-06-2014, pela autoria material de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 4 (quatro) meses de prisão, substituída por 120 dias de multa, substituição que foi posteriormente revogada;

3. No proc. n.º 17/14.8PEFIG, do Juízo Local Criminal da Figueira da foz – sentença de 12-03-2015, com data de trânsito de 14-01-2016, alusiva a factos de 30/05/2013, 14-08-2013, 12-03-2014, 12-03-2014 e 12-03-2014, pela prática, em autoria material, de (i) um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 4 (quatro) meses de prisão; (ii) um crime de igual natureza, na pena de 4 (quatro) meses de prisão; (iii) um crime também tipificado no artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do DL 2/98, de 03-01, na pena de 6 (seis) meses de prisão; (iv) um crime de resistência e coacção sobre funcionário, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão; (V) um crime de falsificação de documento, na pena de 1 (um) ano de prisão;

4. No proc. n.º 185/13.6GCPBL, do Juízo Local Criminal de Pombal, por sentença datada de 29-06-2016, transitada em 21-09-2016, pela prática, em autoria material, no dia 08-06-2013, de: (i) um crime de condução sem habilitação legal, na pena na pena (principal) de 120 dias de multa, à razão diária de 5,00 €; (ii) um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, na pena de 120 dias de multa, à mesma razão diária;

5. No proc. n.º 20/15.0GBFR, do Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira, por sentença de 23-10-2015, transitada no dia 11-01-2016, pela prática, em 07-01-2015, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 4 (quatro) meses de prisão;

6. No proc. 365/13.4GBPBL, do Juízo Local Criminal de Pombal, por sentença lavrada em 29-11-2015, transitada em 13-01-2016, pela prática, em 22-07-2013, de: (i) um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de 5,00 €; (ii) um crime de furto simples, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à mesma taxa;

7. No proc. n.º 32/14.1GcPBL, do Juízo Local Criminal da Figueira da Foz, por sentença de 09-05-2014, transitada em 08-06-2016, pela prática, em 26-01-2014, de um crime de coacção agravado, na pena de 2 (dois) anos de prisão;

8. No proc. 874/15.0PBLRA, do Juízo Local Criminal de Leiria – J1, por sentença proferida em 08-06-2017, transitada em julgado no dia 10-07-2017, pela prática, 28-11-2014, de: (i) um crime de resistência e coacção sobre funcionário, na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão; (ii) um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, na pena (principal) de um 1 (um) ano de prisão e na pena (acessória) de 2 (dois) anos de proibição de conduzir veículos como motor de qualquer categoria; (iii) um crime de falsificação de documento, na pena de 4 (quatro) meses de prisão; (iv) um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena de 1 (um) ano de prisão;

9. No proc. n.º 475/14.0GAPMS (que deu origem ao proc. 240/19..9T8LRA), do Juízo Local Criminal de Porto de Mós, por sentença de 16-03-2018, transitada em julgado em 24-04-2018, pela prática, em autoria material, em 28 e 29 de Dezembro de 2014, de: (i) um crime de furto qualificado, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão; (ii) um crime de falsificação de documento, na pena de 2 (dois) anos de prisão; (iii) um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, na pena (principal) de 1 (um) ano e 11 (onze) meses de prisão e na pena (acessória) de proibição de conduzir quaisquer veículos motorizados por um período de 2 (dois) anos; (iv) um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão.

B) Em cúmulo jurídico proferido no proc. indicado no ponto 9. (n.º 240/19.9T8LRA, a correr termos no Juízo Central Criminal de Leiria – J3), por acórdão do dia 12-06-2019, transitado em julgado em 12-07-2019, foi o arguido J. condenado nas seguintes penas únicas:

1. 9 (nove) anos de prisão, englobando as penas parcelares impostas nos processos individualizados nos pontos A)2. (n.º 34/14.8PEFIG), A)3. (n.º 17/14.8PEFIG), A)5. (n.º 20/15.0GBVFR), A)7. (n.º 32/14.1GCPBL), A)8. (n.º 874/15.8PBLRA) e A)9. (n.º 475/14.0GAPMS);

2. 280 (duzentos e oitenta) dias de multa, englobando as penas parcelares referidas nos pontos A)1. (n.º 310/13.7GCPBL), A)4. (n.º 185/13.6GCPBL) e A)6. (n.º 365/13.4GBPBL);

3. 3 (três) anos de proibição de conduzir veículos como motor de qualquer natureza.

C. No âmbito do proc. 9/14.7PEFIG, do Juízo Central Criminal de Coimbra – J4, por sentença de 28-03-2019, transitada em julgado em 06-05-2019, o arguido J. foi condenado, pela prática, em autoria material, no dia 20-02-2014, de um crime de furto qualificado, na pena 3 (três) anos de prisão.

 

D) São do seguinte teor os dois despachos em conflito:

1. O proferido, em 16-01-2010, no proc. n.º 9/14.7PEFIG, do Juízo Central Criminal de Coimbra (transcrição parcial):

«(…) como claramente se percebe e decorre do conteúdo da decisão cumulatória acabada de aludir [a proferida no proc. n.º 240/19.9T8LRA], não tomou a mesma em conta a factualidade em causa nos presentes autos 9/14.7PEFIG e, segundo os critérios definidos nos arts. 77.º e 78.º do Código Penal (…) encontra-se tal factualidade (…) [numa] relação de concurso com a demais matéria fáctica pela qual foi o apontado arguido condenado, em termos cumulatórios, no processo n.º 240/19.9T8LRA.

Segundo a directriz geral expressa no art. 471.º/n.º 2 do Código de Processo Penal (…), é competente para a realização da operação de cúmulo jurídico o foro da última decisão condenatória.

Crê-se (…) que a última condenação a considerar não é, in casu, a determinada nestes autos n.º 9/14.7PEFIG, mas sim a decisão cumulatória tomada no referido processo n.º 240/19.9T8LRA.

Efectivamente, apesar de se tratar de uma operação cumulatória, a determinada no processo n.º 240/19.9T8LRA integra a noção de “tribunal da última condenação” contida no art. 471.º/n.º 2 C.P.P., pois é posterior à ocorrida no presente processo n.º (…) e corporiza, assim, o conjunto de elementos de cognição mais actualizados quanto à situação do arguido (…).

(…).

Ou seja, e resumindo a questão, é o Juízo Central Criminal de Leiria – juiz 3 o competente para a realização da reformulação do cúmulo jurídico das penas aplicadas e a aplicar, por via de tal reformulação do cúmulo, com o [englobamento] da pena parcelar definida no presente processo (…), por serem os autos n.º 240/19.9T8LRA os da última condenação sobre o mesmo arguido incidente.

Face ao exposto (…) declara-se a incompetência territorial deste Juízo Central Criminal de Coimbra – Juiz 4 para a realização da reformulação do cúmulo jurídico referente ao arguido J., por tal competência caber aos autos n.º 240/19.9T8LRA, do Juízo Central Criminal de Leiria – Juiz 3.

2. O elaborado, em 16-06-2020, no âmbito do processo n.º 240/19.9T8LRA (transcrição parcial):

 (…).

Da análise do teor do CRC, junto aos autos a 10-12-2019, resulta que a última condenação imposta ao arguido ocorreu no processo n.º 9/14.7PEFIG (pág. 44 do CRC).

Não ignorando que a questão da competência do Tribunal para proceder ao cúmulo jurídico, no caso de já ter existido um acórdão cumulatório, não tem tido entendimento uniforme, a posição seguida por este Tribunal é a de que para os efeitos da norma do ar. 471.º n.º 2 do CPP, o «tribunal da última condenação», competente para efectuar o cúmulo jurídico, é o que tiver proferido a mais recente das penas parcelares que integram o concurso.

Salvaguardando-se o devido respeito por posição contrária, cremos que o entendimento seguido por este Tribunal é o que conceitualmente melhor se harmoniza com o sistema de pena única conjunta adotado pela nossa lei penal.

A solução deve ser encontrada na conjugação dos arts. 471 e 472 do CPP com o regime do art. 78 do CP, o qual, aliás, é expressamente referido nos dois mencionados artigos do CPP.


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2. Apreciação:

O cerne do dissídio existente entre os dois Juízes conflituantes consiste em saber o que se deve entender por «tribunal da última condenação», nos termos e para os efeitos consagrados no n.º 2 do artigo 471.º do Código de Processo Penal (doravante apenas designado de CPP) e, decorrente da correcta hermenêutica, qual o tribunal competente para reformular o cúmulo jurídico de penas, integrando as penas parcelares elencadas no relatório do presente despacho; se o Juízo Central Criminal de Leiria – J3 ou, ao invés, o Juízo Central Criminal de Coimbra – J4.

Concretizando ainda melhor a questão decidenda, tudo está em determinar se o «tribunal da última condenação» é, como professa o Sr. Juiz do Juízo Criminal de Leiria, o tribunal que impôs a mais recente das penas parcelares que deve integrar o concurso de crimes ou, em contrário, na senda da posição partilhada pelo Juiz do Juízo Central Criminal de Coimbra, corresponde também ao tribunal que procedeu, segundo as regras definidas nos artigos 78.º e 79.º do Código Penal, ao cúmulo jurídico (decisão mais recente) das penas parcelares.

Embora a jurisprudência dos nossos tribunais superiores não esteja absolutamente estabilizada, tem, no entanto, manifestado tendência pela orientação de considerar que o tribunal da última condenação tanto pode ser o que condenou por um dos crimes em concurso, como aquele que tenha proferido uma decisão cumulatória (desde que, como é bem de ver, as penas não integradas no cúmulo estejam numa relação de concurso, justificando-se, deste modo, a sua reformulação).

Neste sentido, e sem a preocupação de exaustividade, vejam-se: os acórdãos do STJ de 08-11-2001, proferido no proc. n.º 2664/01 – 5.ª Secção, publicado nos Sumários do Gabinete de Assessoria do STJ; de 02-10-2004 (proc. n.º 3417/04), in Colectânea, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 179, Ano XII, Tomo III/2004, págs. 240/1; o despacho de 06-01-2010, exarado no proc. n.º 98/04.2GCVRM-A.S1, pelo Sr. Presidente da 3.ª Secção Criminal do STJ, a consultar em www.dgsi.pt; os despachos de 15-07-2009 e 31-10-2011, dos Srs. Presidentes das 3.ª e 9.ª Secções da Relação de Lisboa (procs. 1323/05.8PEAMD-A.L1.3 e 160/10.2TCLS-A.L1-9, respectivamente), in www.dgsi.pt; o Ac. da Relação da Relação de Évora de 20-01-2004 (proc. n.º 2361/03-1) e despacho do dia 27-04-2018, do Sr. Presidente da Secção Criminal da mesma Relação, ambas as decisões também publicadas em www.dgsi.pt.

A par, partilhado a mesma posição, veja-se ainda Tiago Calado Malheiro, na obra “Cúmulo Jurídico Superveniente, Noções Fundamentais”, Edições Almedina, 2016, pág. 35.

Seguindo o outro entendimento, após consulta exaustiva, demos conta dos despachos decisores de conflitos negativos de competência dos Srs. Presidentes da Secção Criminal da Relação de Guimarães (proc. n.º 238/17.1YRGMR) e da 3.ª Secção da Relação de Lisboa (proc. n.º 137/16.4PBSNT-A.L1-3), datados, respectivamente, de 22-01-2018 e de 25-06-2019, a consultar em www.dgsi.pt.     

Tudo visto e ponderado, o subscritor do presente despacho adere à orientação largamente maioritária da nossa jurisprudência, revendo-se nos fundamentos que a determinaram.

Assim:

Dispõe o art. 471.º do CPP, sob a epígrafe “Conhecimento superveniente do concurso”:

«1 – Para o efeito do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 78.º do Código Penal é competente, conforme os casos, o tribunal colectivo ou o tribunal singular. É correspondentemente aplicável a alínea b) do n.º 2 do artigo 14.º.

2 – Sem prejuízo do disposto no número anterior, é territorialmente competente o tribunal da última condenação».

Por sua vez, prescreve o art. 472.º do mesmo diploma:

«1 – Para o efeito do disposto no n.º 2 do artigo 78.º do Código Penal, o tribunal designa dia para a realização da audiência ordenando, oficiosamente ou a requerimento, as diligências que se lhe afigurem necessárias para a decisão.

2 – É obrigatória a presença do defensor e do Ministério Público, a quem são concedidos quinze minutos para alegações finais. O tribunal determina os casos em que o arguido deve estar presente».

A determinação da pena única conjunta há-de efectuar-se, pois, através de uma nova sentença, que realize o cúmulo jurídico com observância dos critérios enunciados nos artigos 78.º e 79.º do Código Penal, após a realização de audiência de julgamento, onde são realizadas as diligências de prova tidas pelo tribunal como necessárias à justiça do caso concreto, sendo competente para tanto o tribunal da última condenação, o qual dispõe de melhores condições para proferir uma decisão actualizada, quer quanto aos factos, quer quanto à personalidade do agente condenado.

Parafraseando, numa parte, e citando, noutra, os referidos Ac. do STJ de 02-04-2004 e despacho de 06-01-2010, da disposição do artigo 472.º do CPP pode seguramente concluir-se que, se o tribunal tem de designar dia para a realização da audiência é porque o cúmulo a realizar em virtude do conhecimento superveniente do concurso de crimes constitui um novo julgamento. Até que, para o referido efeito, a lei exige a intervenção na audiência do Ministério Público e do defensor do arguido, podendo o arguido sê-lo também, e possibilita, mais não seja através de alegações finais, a intervenção efectiva do Ministério Público e do defensor.

Sendo assim, «não se vê como sustentar a tese restritiva» do Sr. Juiz do Juízo Central Criminal de Leiria – J1, já que, só com algum «artificio de interpretação» é detectável a distinção entre «condenação por factos ilícitos típicos» e condenação decorrente de cúmulo de penas parcelares impostas ao arguido.

«Primeiro, porque a lei não procede a uma tal distinção e não lhe confere na sua expressão literal qualquer ponto de apoio.

Depois, porque não há razão válida para que a ela se deva proceder.

Bem pelo contrário».

De facto, «não é o tribunal da condenação no termo do processo correspondente ao último julgamento (…) que está em melhores condições para avaliar em conjunto os factos e a personalidade do arguido».

Em verdade, «- e é aqui que reside a chave da questão – quando o legislador impõe a tarefa do novo julgamento ao foro da “última condenação”, tem em mente implicar nele o tribunal que, justamente por ser o último a intervir no tempo e na cadeia das condenações, dispõe dos elementos mais completos e actualizados, nomeadamente, quanto aos factos (e nestes não pode ser esquecido o papel que tem para a determinação [da] medida pena, por exemplo, a conduta posterior – art. 71.º, n.º 2, e), do Código Penal) e que, portanto, a todas as luzes, é o que está em melhor plano para colher a visão que se quer de panorâmica completa e actual do trajecto de vida do arguido, circunstância que, manifestamente, arreda aquela interpretação restritiva».

Na mesma linha de raciocínio, escreveu Tiago Calado Malheiro (ob. acima citada):

«A competência é do tribunal da última condenação, mesmo que se trate de uma decisão cumulatória, já que a mesmo pressupõe a realização de um verdadeiro julgamento, com presença de defensor, por vezes audição do arguido e com realização de todas as diligências para proferir uma pena justa atentos os factos e a personalidade do agente. É o tribunal com a informação mais actualizada para proferir nova decisão de cúmulo, anulando a anterior, e englobando as penas que estão em concurso e que não foram tidas em consideração».


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O regime legal de punição do concurso de crimes está fixado nos artigos 78.º e 79.º do Código Penal: quando alguém tiver praticado vários crimes, antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa pena única, tendo em conta na determinação da medida da pena, conjuntamente, os factos e a personalidade do arguido.

Mas, mesmo “se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior” – n.º 1 do artigo 78.º.

Para que o regime geral da punição do concurso se comunique aos casos de conhecimento superveniente, ou seja, às situações em que o conhecimento do concurso não é contemporâneo da condenação por qualquer um dos crimes, é indispensável que os vários crimes tenham sido praticados antes de transitada em julgado a condenação por qualquer deles.

Conforme entendimento estabilizado da nossa jurisprudência, com predominância para um vasto universo de acórdãos do STJ, o momento temporal decisivo para o estabelecimento da relação de concurso (ou a sua exclusão) é a data do trânsito em julgado de qualquer uma das decisões.

Parafraseando o Ac. do STJ de 14-05-2009 - Proc. n.º 09P0606, in www.dgsi.pt -, o trânsito em julgado de uma condenação penal é um limite temporal intransponível, no âmbito do concurso de crimes, à determinação da pena única, excluindo desta os crimes cometidos depois.

Foi, assim, definitivamente abandonado o comummente designado “cúmulo por arrastamento” ou, dito por outras palavras de maior compreensibilidade, a acumulação de todas as penas quando existe uma “pena-charneira” – expressão usada no Ac. do STJ de 23-06-2010 (proc. n.º 124/05.8GEBNV.L1.S1) – entre dois concursos de penas, porquanto, ao mesmo tempo, contraria os pressupostos substantivos previstos no art. 77.º, n.º 1, do CP, e ignora a relevância de uma condenação transitada em julgado como solene advertência ao arguido para o não cometimento de novos ilícitos penais, não podendo o condenado beneficiar da violação desse juízo de censura.

“A consideração de uma pena única de penas aplicada pela prática de crimes cometidos após o trânsito de uma das condenações em confronto parece contender com o próprio fundamento da figura do cúmulo jurídico, para cuja avaliação se faz uma análise conjunta dos factos praticados pelo agente antes de sofrer uma solene advertência.

Concretizada a admonição na condenação transitada, encerrado o ciclo de vida, impõe-se que o arguido a interiorize, repense e analise de forma crítica o seu comportamento anterior, e projecte o futuro em moldes mais conformes com o direito, de tal modo que, a sucumbir, iniciando um ciclo novo, reincidirá” – Ac. do STJ de 27-01-2009, proc. n.º 08P4032.

Chamado a pronunciar-se sobre se o referido limite tinha como horizonte a data da condenação ou a data do trânsito em julgado, o STJ, no ainda recente Ac. n.º 9/2016, de 28-04-2016 (proc. n.º 330/13.1PJPRT-A.S1 – II) fixou jurisprudência neste sentido:

“O momento temporal a ter em conta para a verificação dos pressupostos do concurso de crimes, com conhecimento superveniente, é o do trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer dos crimes em concurso”.

Tudo resumimos com este segmento textual do já referenciado Ac. do STJ de 14-05-2009:

“O limite, determinante e intransponível, da consideração da pluralidade de crimes para efeito de aplicação de uma pena única, é o trânsito em julgado da condenação que primeiramente tiver ocorrido por qualquer dos crimes praticados anteriormente; no caso de conhecimento superveniente aplicam-se as mesmas regras, devendo a última decisão, que condene por um crime anterior, ser considerada como se fosse tomada ao tempo do trânsito em julgado da primeira, se o tribunal, a esse tempo, tivesse conhecimento da prática do facto”.

Nos termos apontados, perante pluralidade de crimes e de condenações, a metodologia terá de ser esta: numa fase inicial, há que identificar a primeira condenação transitada em julgado em relação à qual o arguido tenha cometido anteriormente crime(s), operando-se então um primeiro cúmulo jurídico integrando as penas dessa condenação e as impostas em razão dos anteriores ilícitos; remanescendo outros crimes cometidos em fase temporal posterior àquela condenação, procede-se do mesmo modo, podendo ser todas as penas respectivas englobadas num segundo cúmulo, se, identificada a primeira deste segundo grupo de condenações, todos os crimes das restantes lhe forem anteriores; se assim não for, prosseguir-se-á para outro ou outros cúmulos, seguindo sempre as mesmas regras procedimentais.

De acordo com o entendimento uniforme dos nossos tribunais superiores, na efectivação de novo cúmulo decorrente do conhecimento superveniente do concurso de outros crimes entram todas as penas, readquirindo autonomia as penas parcelares aglutinadas no cúmulo anterior.

Com efeito, não transitam em julgado as sentenças que apliquem, de modo necessariamente sic stantibus, penas únicas, enquanto não for proferida a decisão final que integre a última das condenações, cuja pena esteja em concurso com outra ou outras (vejam-se, entre muitos, os Acs. do STJ de 14-05-2009, já citado, de 14-01-2009 e 02-05-2012 (procs. n.º 08P3772 e 218/03.4JASTB.S1, respectivamente).


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Volvendo ao caso concreto, devidamente considerados os dados descritos supra, o primeiro trânsito em julgado verificou-se, em 11-01-2016, no âmbito do processo comum colectivo n.º 20/15.0GBVFR, constituindo o elemento aglutinador de todos os crimes que estejam em relação de concurso e, assim, demarcando os limites do círculo de penas objecto de unificação.

Nesse círculo, integra-se, para além das penas decorrentes das condenações impostas ao arguido J. nos procs., 310/13.7GCPBL, 34/14.8PEFIG, 17/14.8PEFIG, 185/13.6GCPBL, 20/15.0GBVFR, 365/13.4GBPBL, 32/14.1GCPBL 874/15.8PBLRA e 475/14.0GAPMS e, englobadas no cúmulo jurídico efectuado no proc. 240/19.9T8LRA (anterior proc. 475/14.0GAPMS), a pena imposta no proc. 9/14.7PEFIG, relativa a crime ocorrido em 20-02-2014.

Por todo o exposto, para a reformulação do cúmulo jurídico, onde se integre a pena imposta ao arguido J. no proc. 9/14.7PEFIG, com observância dos critérios legais definidos nos artigos 77.º e 78.º do CP, no PCC n.º 79/14.8JAGRD, é competente o Juízo Central de Leiria, por ter proferido, em 12-06-2019 (data da última condenação) sentença cumulatória.

III. Dispositivo:

Termos em que se dirime o conflito negativo de competência territorial existente entre o Juízo Central Criminal de Leira – J3 e o Juízo Central Criminal de Coimbra – J4, declarando territorialmente competente, para os efeitos acima referidos, o primeiro destes dois tribunais.

Sem tributação.

Cumpra-se o disposto no art. 36.º, n.º 3, do CPP.


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Coimbra, 16 de Outubro de 2020

Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado electronicamente pelo signatário – art. 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)

Alberto Mira, Presidente da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra