Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1222/09.4T3AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RAMOS
Descritores: CRIME DE AMEAÇA AGRAVADO
Data do Acordão: 06/01/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA- AVEIRO- JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 153º Nº 1 E 155º Nº 1 A) CP
Sumário: O crime de ameaça agravado previsto pelos artigos 153º nº 1 e 155º nº 1 a), ambos do CP, tem natureza pública.
Decisão Texto Integral: Nos autos supra identificados, o tribunal proferiu o seguinte despacho:

“O arguido CC... vem acusado pela prática de um crime de ameaças previsto e punido pelo art. 153º n.º 1 e 155º n.º 1 a), ambos do Código Penal.
No decurso da audiência de julgamento o ofendido MM... veio desistir da queixa apresentada, havendo a concordância do arguido.
O Ministério Público opôs-se à desistência pois considera que o crime em apreço apresenta natureza pública.
Vejamos:
Actualmente o crime de ameaça vem previsto, na sua forma simples, no art, 153º n.º 1 do CP e quanto a este não existem dúvidas quanto ao seu carácter semi-público:
“Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de autodeterminação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias,
2 – O procedimento criminal depende de queixa”.
A lei prevê depois diversas agravações para este crime (bem como para o crime de coacção) no art. 155º n.º 1 do CP. Entre elas encontra-se a da alínea a).
“Quando os factos previstos nos arts. 153º e 154º forem realizados:
a)Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos (…) o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do art. 153º (….)
Não existe qualquer disposição legal a fazer depender o procedimento criminal de queixa.
A actual configuração do crime de ameaças foi dada pela Lei 59/2007 de 04 de Setembro.
Antes dessa redacção a agravação do crime de ameaça era feita nos mesmos termos. No entanto essa agravação constituía o n.º 2 do art. 153º do Código Penal que tinha a seguinte redacção:
“Se a ameaça for com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa”.
Existia depois um n.º 3 com a seguinte redacção:
“O procedimento criminal depende de queixa”
O crime de coacção aparecia totalmente autonomizado nos arts. 154º (coacção simples e 155º (coacção agravada)
Não existia, assim margem para dúvidas quanto à natureza semi-pública do crime de ameaça quer no que toca à sua forma simples, quer na forma agravada.
Aliás já antes da revisão do CP de 1995, o crime de ameaça tinha natureza semi-pública, natureza esta que transitou para a versão introduzida pelo DL 48/95 de 15 Março, malgrado terem existido outras alterações de fundo no que toca ao crime agora em apreço.
Assim a natureza deste crime manteve-se inalterada desde 1982 a 2007.
Face ao regime actual, essa clareza desvaneceu-se, no que se refere à forma agravada.
De facto, a letra da lei é indubitavelmente no sentido de se entender que, nessa forma, actualmente, o crime de ameaça tem natureza pública.
Atento o facto de actualmente o crime de ameaça ter em comum com o crime de coacção as agravações previstas no art. 155º do CP, interessa comparar a evolução legislativa relativamente a este tipo de crime.
Ora este, contrariamente ao que acontece com o crime de ameaça, sempre teve natureza pública quer estivéssemos perante um crime de coacção simples quer estivéssemos perante um crime a coacção grave, só tendo natureza semi-pública no caso de o crime ocorrer entre familiares próximos.
Ainda relevante quanto à evolução legislativa do crime de coacção é o facto de na reforma de 2007 ter desaparecido o antigo art. 155º com a epígrafe de coacção grave substituído pelo actual art. 155º com a epígrafe agravação, comum ao crime de ameaça.
Ora, perante esta evolução de ambos os crimes há que indagar se existe alguma razão de fundo que levasse o legislador a alterar a natureza semi-pública do crime de ameaça.
Ora, essas razões não existem.
Quanto ao crime de ameaça refere-se na Exposição de Motivos da proposta de Lei de alteração do CP:
“O crime de ameaça passa a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coacção grave. Por conseguinte, a ameaça é agravada quando se referir a crime punível com pena de prisão superior a três anos, for dirigida contra pessoa particularmente indefesa ou, por exemplo funcionário em exercício de funções ou for praticada por funcionário com grave abuso de autoridade. Esta qualificação abrange os crimes praticados contra agentes dos serviços ou forças de segurança, alargando uma solução contemplada para os casos de homicídio, ofensa à integridade física e coacção”
Daqui se retira que o legislador pretendeu apenas estender à ameaça todas as circunstâncias que já antes agravavam o crime de coacção, arrumando juntamente a circunstância que antes constituía o n.º 2 do art. 153º. Não pretendeu alterar a natureza do crime.
Aliás se fosse essa a sua intenção alguma explicação deveria constar dos trabalhos preparatórios, o que não acontece.
Acresce que:
- não existe hoje alguma razão que não existisse antes de 2007 que leve a que se prescinda agora da vontade da vítima para a perseguição penal pelo crime de ameaça;
- do ponto de vista ao ataque ao bem jurídico protegido – liberdade de decisão e de acção é mais grave o ataque feito através de um crime de coacção do que o ataque feito pelo crime de ameaça;
- a moldura penal do crime de ameaça é similar à de outros crime que envolvem um ofendido concreto e para cujo procedimento criminal é necessária queixa, constituindo juntamente com estes a pequena criminalidade;
Assim, conclui-se que o art. 155º não altera a natureza semi-pública do crime de ameaça mas tem sim de conjugar-se sempre com o crime base a que se refere – ameaça ou coacção, crimes esses que na forma agravada mantém a sua natureza semi-pública ou pública de acordo com o crime referência.
(Seguiu-se artigo da autoria de PP… “Por quem dobram os sinos? –A perseguição pelo crime de ameaça contra a vontade expressa do ofendido?! Um silêncio ruidoso” publicado na Revista Julgar, Edição da Associação Sindical dos Juízes Portugueses Janeiro/Abril de 2010)
Pelo exposto homologo a desistência apresentada pelo ofendido.
Sem custas.
No que toca ao pedido de indemnização civil, homologo a desistência de pedido por a mesma se referir a direitos disponíveis e ser apresentada por quem tem legitimidade, extinguindo-se o direito que se pretendia fazer valer – arts. 293º n.º 1, 295º n.º 1, 296º n.º 2, 299º e 300 ª n.º 1 do CPC.
(…).”

Inconformado com o decidido, o Ministério Público interpôs recurso no qual apresentou as seguintes conclusões (transcrição):

“1°
Com a alteração ao Código Penal introduzida pela entrada em vigor da L59/2007, de 4 de Setembro, foi criado um novo tipo de crime de ameaça - ameaça agravada, previsto e punível pelo art.º 155° do Código Penal.

“O artigo 155º não contém norma que estabeleça a natureza semipública dos tipos qualificados de ameaça e de coacção e também não se encontra norma autónoma que, referida ao artigo 155°, a estabeleça” (Ac. do TRP, de 1 de Julho de 2009, Proc. n.º 968/07.6PBVLG.P1 – 4ª Sec., disponível em www.trp.pt).

Pelo que, “tem natureza pública o tipo qualificado de ameaça, previsto e punido nos termos do art. o 1550 do Código Penal, na redacção resultante da Lei nº 59/2007” (Parecer da Procuradoria-geral Distrital do Porto, publicado em 11 de Outubro de 2010, via SIMP).

Tal opção legislativa denota um reforço da tutela penal no âmbito da protecção das pessoas particularmente indefesas, dos agentes das forças ou serviços de segurança e das demais pessoas elencadas na al. I) do n.º 2 do 132° do Código Penal, quando os factos sejam praticados contra estas no exercício das suas funções ou por causa delas - conforme resulta da Exposição de Motivos da PROPOSTA DE LEI N.º 98/X, disponível in www.mj-gov.pt.

Face à actual configuração do crime de ameaça agravada, a sua violação é susceptível de lesar, para além da liberdade pessoal, de cariz intrinsecamente privado, outros interesses de ordem pública, quando praticado contra aquelas pessoas.

Ao concluir que “o artº 155º não altera a natureza semi-pública do crime de ameaça” e homologar a desistência de queixa apresentada nos presentes autos pelo ofendido, o tribunal a quo fez uma incorrecta interpretação das disposições conjugadas dos artºs 153° e 155° do Código Penal e violou o disposto no art.º 48° do Código de Processo Penal.

Pelo que, deve ser revogado o despacho recorrido e ordenado o prosseguimento da acção penal contra o arguido pela prática do crime de ameaça agravada, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos art.ºs 153°, nº 1, e 155°, nº 1, al. a), do Código Penal, de que vinha acusado.
Termos em que,
Deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se o despacho recorrido e ordenar-se o prosseguimento da acção penal contra o arguido pela prática do crime de ameaça agravada de que vinha acusado”

Respondeu o arguido, que concluiu da seguinte forma:

1. O crime de ameaça, quer na sua forma simples, quer na forma agravada, tem natureza semi-pública desde a entrada em vigor do CP de 1982, natureza essa que se manteve com a revisão introduzida pelo DL 48/95. de 15 de Março.
2. Não houve qualquer razão para que o legislador, com a Lei 59/2007 de 04 de Setembro, tivesse propositadamente alterado a natureza semi-pública do crime de ameaça grave.
3. Com a Lei 59/2007, de 04 de Setembro, o legislador apenas pretendeu estender ao crime de ameaça todas as circunstâncias agravantes que já anteriormente se aplicavam ao crime de coacção e não alterar a natureza semi-pública do crime de ameaça grave, pelo que não deve ser concedido provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público.
Nestes termos e nos melhores de direito:
Não deve ser dado provimento ao recurso apresentado pelo Ministério Público, mantendo-se, em consequência, o despacho que homologa a desistência de queixa apresentada nos autos

O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.


Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu o douto parecer que parcialmente se transcreve:

“Acompanhamos integralmente o teor da bem estruturada motivação do recurso da nossa EX.ma Colega junto do Juízo de Média Instância Criminal - Juiz 1, de A veiro, Comarca do Baixo Vouga.
Em reforço da sua posição, no sentido de que reveste natureza pública o crime de ameaça qualificada pelas circunstâncias agravantes previstas no art. 155º do Cód. Penal, após a Reforma de 2007, pelo que é irrelevante a desistência de queixa apresentada pelo ofendido, acrescentamos ainda a doutrina, entre outros, dos acórdãos do TRP de 29/9/20101 (Relator o Senhor Desembargador Moisés Pereira) e de 15/9/20102 (Desembargadora Maria do Carmo Silva Dias), do TRL de 13/10/20103 (Des. Sérgio Corvacho) e do TRG de 15/11/20104 (Des. Maria Augusta), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Nesta conformidade, aderindo-se à tese sufragada pela recorrente, somos de parecer que o presente recurso merece provimento.”

No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal o arguido nada disse.


Os autos tiveram os legais vistos após o que se realizou a conferência.


Cumpre conhecer do recurso


Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos, excepto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso.


É dentro de tal âmbito que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras).


Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir.

Questão a decidir: natureza pública ou semi-pública do crime de ameaça previsto e punido pelo artº 153º n.º 1 e 155º n.º 1, alínea a. do Código Penal


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A única questão a decidir consiste em saber se andou bem o tribunal a quo ao homologar a desistência de queixa apresentada pelo queixoso por considerar que o crime de ameaça previsto e punido pelo artº 153º n.º 1 e 155º n.º 1, alínea a., do Código Penal é semi-público.
Diga-se desde já que é nosso entendimento que errou.
Explicando:
Na redacção do artº 153º do Código Penal, anterior à alteração introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, o procedimento criminal dependia sempre de queixa, tanto no caso de ameaça simples (nº 1) como no caso de ameaça agravada (nº 2).
Era o que claramente resultava do nº 3.
Na versão resultante da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, o crime de ameaça simples continua a estar previsto no artº 153º e mantém-se o procedimento criminal dependente de queixa (nº 2), mas o de ameaça agravada passou a estar previsto no artº 155º, o qual nada diz quanto ao procedimento criminal.
Ora, uma vez que a técnica do nosso legislador consiste em colocar a menção de que “o procedimento criminal depende de queixa” após a definição do tipo base e antes do qualificado, ou então em artigo autónomo quando pretende definir a natureza particular ou semi-pública de vários crimes da mesma espécie, parece-nos não haver qualquer razão para no caso em análise se entender que a técnica legislativa foi alterada.
Aliás, a jurisprudência é unânime em considerar que o crime de ameaça agravada previsto e punido pelo artº 155º do Código Penal tem natureza pública — Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de       (processo nº 1729/09.3PBAVR.C1), de 02 de Março de 2011, (processo n.º 550/09.3GCAVR.C1) e de 30 de Março de 2011 (processos nº 1596//08.4PBAVR.C1 e nº 400/09.0PBAVR.C1), do Tribunal da Relação de Lisboa de 13 de Outubro de 2010, (processo nº 36/09.6PBSRQ.L1-3), do Tribunal da Relação do Porto de 27 de Abril de 2011 (processo nº 53/09.6GBVNF.P1), de 01 de Julho de 2009 (processo n.º 968/07.6PBVLG.P1), de 15 de Setembro de 2010 (processo n.º 354/10.0PBVLG.P1) e de 29 de Setembro de 2010 (processo n.º 162/08.9GDGDM.P1), do Tribunal da Relação de Guimarães de 15 de Novembro de 2010 (processo n.º 343/09.8GBGMR.G1) e do Tribunal da Relação de Évora de 12 de Novembro de 2009 (processo n.º 2140/08.9PAPTM.E1)[ Todos em www.dgsi.pt].
Assim sendo, não deveria a Meritíssima Juíza ter homologado a desistência, continuando o processo os seus normais trâmites.
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Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso e, revogando o despacho recorrido, determina-se o normal prosseguimento do procedimento criminal relativo ao crime de ameaça agravado imputado ao arguido CC... .
Sem tributação.
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