Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
290/13.9TACNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: ACUSAÇÃO
DOLO
ELEMENTO INTELECTUAL DO DOLO
ELEMENTO VOLITIVO DO DOLO
Data do Acordão: 02/25/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (INSTÂNCIA LOCAL CRIMINAL DE CANTANHEDE - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 14.º DO CP; ART. 283.º, N.º 3, AL. B), E 285.º, N.º 3, DO CPP
Sumário: Não é admissível a presunção do dolo com recurso à factualidade objectiva descrita na acusação; a lei exige a narração, ainda que sintética, dos factos - de todos os factos - que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, não se contentando, pois, com “subentendimentos” ou “factos implícitos”.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                                                                                   


****

                                                                                             

            A - Relatório:

            1. Nos Autos de Processo Comum (tribunal singular) n.º 290/13.9TACNT, do Tribunal da Comarca de Coimbra, Cantanhede – Instância Local – Secção criminal – J1, foi proferido, em 6/10/2014, despacho a rejeitar a acusação particular deduzida nos autos pela assistente A....

            A referida assistente, em 27/5/2014, deduzira acusação particular contra a arguida, B..., imputando-lhe a prática de determinados factos, sendo certo que o Ministério Público, em 30/5/2014, nos termos do artigo 285.º, n.º 4, do CPP, acompanhou tal peça processual.

Na sequência de despacho proferido a fls. 58, o Ministério Público, em 24/9/2014, a fls. 61, veio aos autos trazer o seguinte:

O Ministério Público, junto deste tribunal, notificado do douto despacho de fls. 58, vem requerer a V. Ex.ª que se digne admitir, em aditamento à acusação particular de fls. 47 e ss, que acompanha a fls. 50, que seja aditado o seguinte:

1.º A arguida, entre Janeiro e Junho de 2013, no parque infantil junto da Escola CEB JI Sul de Cantanhede, estando presentes vários pais e avós de crianças que frequentavam o parque, disse, em número de vezes concretamente não apurado, de viva voz e em tom alto que os filhos da ofendida A...“não são seus netos”.

2.º A arguida, ao proferir tais expressões, quis ofender a honra e consideração da ofendida.

3.º A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

                                                           ****

2. Inconformado com a decisão de rejeição da referida acusação, em 31/10/2014, a Assistente veio recorrer da mesma, defendendo que o despacho judicial em causa deve ser revogado e substituído por outro que receba a acusação particular e ordene a prossecução dos termos processuais adequados, extraindo da Motivação as seguintes Conclusões:

1) A Assistente deduziu contra a arguida Acusação particular referente a um crime de difamação, a qual veio a ser acompanhada pelo Ministério Público.

2) A mesma Acusação foi rejeitada pelo douto Despacho recorrido com fundamento que a acusação se encontrava manifestamente infundada, por não ser “feita referência factual quanto ao elemento subjectivo do ilícito, mormente no que contende com o elemento intelectual do dolo”.

3) Ao constar da Acusação particular que “Com tais afirmações procurou a arguida atribuir à denunciante comportamentos de infidelidade que esta teria tido em relação ao filho da arguida no período em que viveram em união de facto e em que foi concebido o filho em causa da requerente, querendo objectivamente ofender a assistente na sua honra e reputação social, como de facto ofendeu”, está implícito que a arguida tinha, não só intenção dolosa (elemento subjectivo mais substancial para a prática do crime, e como tal apresentado em primeiro plano) mas também conhecimento da ilicitude.

4) A consciência da ilicitude em crimes como os da difamação ou da injúria é do conhecimento público e, como tal, à excepção de casos de incapacidade ou inimputabilidade, quem pratica os actos previstos nestes crimes tem consciência da ilicitude dos mesmos.

5) Como consta do sumário do Acórdão do TRG, de 21 de Outubro de 2013, proferido no Processo n.º 1311/08.9TAFLG-A.C1:

“I – A consciência da ilicitude respeita à culpa, não ao dolo do tipo;

II – A falta de narração na acusação de factos relativos à consciência da ilicitude só acarreta a não punibilidade da conduta relativamente a condutas cuja relevância axiológica é pouco significativa,

III – A alegação na acusação do conhecimento da proibição legal não é indispensável à condenação relativamente aos crimes cuja ilicitude é conhecida de todos, como o homicídio, as ofensas corporais, o furto ou as injúrias.”

6) E tendo igualmente em conta o sumário do Acórdão do TRE, de 5 de Março de 2013, proferido no Processo n.º 5689/11.2TDLSB.E1:

“I – A consciência da ilicitude não respeita ao dolo do tipo, mas antes à culpa. Enquanto facto psicológico de conteúdo positivo não tem que ser alegado e provado em cada caso, pelo menos nos chamados «crimes em si» do direito penal clássico onde se inserem os crimes de difamação e injúria.

II – Nos crimes de difamação e injúria é hoje pacífico não ser exigido um qualquer dolo específico ou elemento especial do tipo subjectivo que se traduzisse no especial propósito de atingir o visado na sua honra e consideração. Não distinguindo, os respectivos tipos legais admitem qualquer das formas de dolo previstas no artigo 14.º do CP, incluindo o dolo eventual.

III – (…).

7) decidindo, como decidiu, o douto Despacho recorrido VIOLOU por manifesto erro de interpretação e integração os factos constantes da Acusação particular deduzida, VIOLANDO igualmente, por manifesto erro de interpretação e aplicação, os preceitos legais contidos no artigo 180.º do CP e, bem assim, os artigos 283.º e seguintes, 311.º e outros do CPP, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que , respeitando os factos alegados na acusação particular e os preceitos legais citados, receba a acusação particular e ordene  a prossecução dos termos processuais adequados.

                                                           ****

3. O recurso, em 4/11/2014, foi admitido.

****

  4. O Ministério Público, em 21/11/2014, veio responder ao recurso, defendendo que o despacho que rejeitou a acusação particular deve ser revogado e substituído por outro que receba a acusação formulada contra o arguido, prosseguindo estes os seus legais trâmites, contra-alegando, em resumo, o seguinte:

1) O tribunal a quo, antes de rejeitar a acusação particular, notificou o MP e a assistente para se pronunciarem quanto à falta do elemento subjectivo na acusação particular (fls. 58), concedendo um prazo de 10 dias para esse efeito.

2) Cabia ao MP, por dever de ofício, suprir esta falta do elemento subjectivo, até porque existe jurisprudência vária que entende que o MP pode acrescentar o elemento subjectivo em falta na acusação particular.

3) O tribunal a quo permitiu ao MP que suprisse a falta da assistente, não havendo, por isso, fundamento para rejeição da acusação particular.

4) A acusação do MP, por crime particular, nos termos do artigo 283.º, n.º 5, do CPP, deve ser vista como complemento da acusação particular.

****
            5. A arguida, em 24/11/2014, respondeu ao recurso, defendendo que deve ser negado provimento ao mesmo, contra-alegando, em síntese, o seguinte:
            1) A acusação particular deduzida nos autos não contém referência ao elemento subjectivo do crime de difamação imputado à arguida, contendo apenas os elementos objectivos do tipo.
            2) A referida acusação é absoluta e totalmente omissa no tocante ao elemento emocional do dolo.
            3) Deve ser confirmado o despacho de rejeição da acusação particular.
                                                                      ****

            6. Instruídos os autos e remetidos a este Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 12/12/2014, emitiu douto parecer no qual defendeu a procedência do recurso, tendo em conta que “(…) descrevendo a acusação particular toda a factualidade que indiciariamente praticou o arguido, e identificando o tipo de crime, a intervenção do Ministério Público, ao acrescentar àquela acusação o elemento subjectivo, deve ser considerada admissível para ser considerada no despacho judicial que recaia sobre a acusação, no sentido de a mesma ser admitida.”

7. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º2, do Código de Processo Penal, não tendo sido exercido o direito de resposta.                                                                      

8. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.

                                                                       ****

            B – DECISÃO RECORRIDA:

“I) Da Acusação Particular, acompanhada pelo Ministério Público

Conforme se consignou no antecedente despacho, analisada a acusação particular deduzida, constatamos que nesta não é feita referência factual quanto ao elemento subjectivo do ilícito, mormente no que contende com o elemento intelectual do dolo.

            Por se considerar estar em causa questão prévia que poderia contender com o conhecimento do mérito, foi a mesma sujeita a exercício do contraditório.

            Pronunciando-se, o Ministério Público propugna pelo aditamento à acusação particular do seguinte:

            «1.º A arguida, entre Janeiro e Junho de 2013, no parque infantil junto da Escola CEB JI Sul de Cantanhede, estando presentes vários pais e avós de crianças que frequentavam o parque, disse, em número de vezes concretamente não apurado, de viva voz e em tom alto que os filhos da ofendida A... “não são seus netos”.

            2.º A arguida ao proferir tais expressões quis ofender a honra e consideração da ofendida.

            3.º A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.».

            Exercendo o contraditório, por seu turno, a assistente propugna pelo recebimento da acusação particular deduzida, alegando para o efeito, em síntese, que no requerimento enviado a juízo em 26 de Maio de 2014, foi descrita a conduta da arguida susceptível de integrar a prática de um crime de difamação, aí se descrevendo não só o comportamento danoso concretizado pela arguida, mas também o intento doloso (enquanto componente subjectiva do direito) que a mesma teve ao proferir as indicadas expressões (já por si objectivamente dolosas), referindo-se que “Com tais afirmações procurou a arguida atribuir à denunciante comportamentos de infidelidade que esta teria em relação ao filho da arguida no período em que viveram em união de facto e em que foi concebido o filho em causa da requerente, querendo objectivamente ofender a assistente na sua honra e reputação social”.

            Mais invoca que, tendo em conta os elementos que compõem o crime em causa, nos artigos 2.º, 3.º e 4.º do pedido de indemnização civil salientou-se a natureza pública da conduta levada a cabo pela arguida.

            Apreciando.

Compete em especial ao assistente deduzir acusação independente da do Ministério Público e, no caso de procedimento dependente de acusação particular, ainda que aquele a não deduza (cfr. artigo 69.º do Código de Processo Penal).

Assim, em se tratando de crime particular, a legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal depende da prévia apresentação de queixa, constituição de assistente e dedução de acusação particular (cfr. artigo 50.º do Código de Processo Penal), sendo certo que, uma vez deduzida acusação particular pelo assistente, o Ministério Público poderá, nos termos da lei, acusar o arguido pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles (cfr. artigo 285.º do Código de Processo Penal).

No que concerne ao conteúdo obrigatório da acusação, dispõe o artigo 283.º, n.º3 do Código de Processo Penal (aplicável ex vi artigo 284.º, n.º2 do mesmo diploma, que esta contém, sob pena de nulidade, além do mais, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.

Mais resulta de forma expressa do disposto no artigo 311.º, n.º2 do Código de Processo Penal que, se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada (al. a), sendo de considerar como tal, além do mais, a acusação que não contenha a narração dos factos (n.º3, al. b).

Estando em causa crime doloso – como sucede no caso em apreço – conforme se salienta no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 01 de Junho de 2011 (disponível para consulta em www.dgsi.pt):

«(…)da acusação há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade - o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).

O dolo como elemento subjectivo - enquanto vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objectivas - constitutivo do tipo legal, será, então, em definitivo, um dos elementos que o artigo 283º/3 C P Penal, impõe que seja incluído na acusação.».

Ao contrário do que parece ser o entendimento da assistente, a descrição dos factos atinentes ao elemento subjectivo não se basta com o elemento volitivo e portanto com a alegação de que o agente quis ofender a assistente na sua honra e reputação social, antes se impondo que se alegue que o agente actuou com consciência da ilicitude da sua conduta e portanto com conhecimento de que esta é proibida e punida por lei.

Ora, no caso dos autos, em momento algum da acusação particular deduzida é feita sequer referência a essa consciência da ilicitude e não se presumindo o conhecimento da lei incriminadora e sendo a consciência da ilicitude essencial para a punibilidade do facto, a existência dessa consciência tem de ser objecto de acusação e de prova e, portanto, terá que fazer parte do objecto do processo.

Acresce que, a acusação (particular ou pública) não é passível de aperfeiçoamento – seja na sequência de convite, seja, por via de requerimento de aditamento de factos, como propugna o Ministério Público no caso em apreço - não estando em causa manifesto lapso de escrita, tendo o legislador previsto, de forma expressa, o dever de rejeição, em situações como a presente (cfr. artigo 311.º, n.º2, al. a) do Código de Processo Penal).

Neste sentido vide, entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 9 de Maio de 2012, disponível para consulta em www.dgsi.pt.

Em face do exposto e com os fundamentos supra indefere-se o promovido aditamento de factos à acusação deduzida, por ausência de factos integradores do elemento intelectual do elemento subjectivo do ilícito, rejeitando-se a acusação particular deduzida pela assistente A..., acompanhada pelo Ministério Público.

Atento o facto de ter sido rejeitada a acusação deduzida pela assistente, seria esta responsável pelo pagamento de taxa de justiça (cfr. artigo 515.º, n.º1, alínea f), do Código de Processo Penal), a qual, atenta a complexidade dos autos e processado a que deu origem, se fixa em 2 UC’s (cfr. artigo 8.º e Tabela III Anexa ao RCP); estando contudo dispensado o seu pagamento, atento o apoio judiciário de que a assistente beneficia (cfr. fls.3 e 4).


*

II) Do Pedido Cível deduzido pela Assistente

            Por via do requerimento entrado em juízo a 26 de Maio de 2014, a assistente, para além de deduzir acusação particular, deduziu pedido de indemnização cível contra o arguido, propugnando pela condenação deste no pagamento da quantia de 1.000,00 euros, acrescida de juros à taxa legal,  a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais pelos danos sofridos e a sofrer em consequência da “criminosa conduta da arguida relatada na Acusação”.

No que respeita ao pedido cível deduzido pela assistente, além do mais, dando como reproduzidos os factos constantes da acusação particular ora rejeitada (cfr. artigo 1.º do pedido cível), cumpre desde logo dizer que atenta a ratio do principio da adesão e o facto de o pedido cível deduzido depender directa e imediatamente do crime objecto do processo em que se funda, verificando-se que não pode tal crime, por razões de ordem processual, ser objecto de julgamento, como sucede in casu, inexiste fundamento para tal dedução (cfr. artigo 71.º do Código de Processo Penal).

Em face do exposto e atenta a rejeição da acusação particular deduzida pela assistente A... por requerimento entrado em juízo a 27 de Maio de 2014, não se recebe, nessa medida, o pedido cível deduzido no mesmo articulado.

Sem custas cíveis, atento o valor do pedido (cfr. artigo 4.º, n.º1, al.n) do RCP).


*

            Rejeitada a acusação particular – a qual havia sido acompanhada pelo Ministério Público - e não sendo admitido o pedido cível deduzido, oportunamente, arquivem-se os autos.

*

            Notifique.”

****

C - Cumpre apreciar e decidir:

            De harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. –  Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).

            São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

            A questão a apreciar é a seguinte (os dois recursos visam atingir o mesmo fim):

- Saber se a acusação particular deduzida nos autos deve ser rejeitada em virtude de não fazer referência à consciência da ilicitude.

                                                                       ****

A acusação particular deduzida pela assistente foi rejeitada, em síntese, por ausência de factos integradores do elemento intelectual do elemento subjectivo do ilícito.

A recorrente pretende que os autos prossigam, tendo em conta que “ao constar da Acusação particular que “Com tais afirmações procurou a arguida atribuir à denunciante comportamentos de infidelidade que esta teria tido em relação ao filho da arguida no período em que viveram em união de facto e em que foi concebido o filho em causa da requerente, querendo objectivamente ofender a assistente na sua honra e reputação social, como de facto ofendeu”, está implícito que a arguida tinha, não só intenção dolosa (elemento subjectivo mais substancial para a prática do crime, e como tal apresentado em primeiro plano) mas também conhecimento da ilicitude”, da mesma forma que “a consciência da ilicitude em crimes como os da difamação ou da injúria é do conhecimento público e, como tal, à excepção de casos de incapacidade ou inimputabilidade, quem pratica os actos previstos nestes crimes tem consciência da ilicitude dos mesmos.

                                                           ****

            A situação que se nos depara tem sido objecto de divergência na jurisprudência dos tribunais superiores.

            Tal resulta, desde logo, evidente do confronto entre os acórdãos elencados pela recorrente e os que são citados no despacho ora em crise.

            Dito isto, podemos afirmar que, no caso em apreço, a acusação particular não descreve o dolo do tipo em toda a dimensão legalmente exigida.

Na verdade, falta, desde logo - como está referido no despacho recorrido -, a descrição do elemento intelectual, consubstanciado no conhecimento, pelo arguido, de as expressões proferidas serem adequadas a ofender a honra e consideração do visado.

Não esqueçamos que são precisamente os elementos subjectivos do crime, com referência ao momento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objectivo de ilícito) que permitem estabelecer o tipo subjectivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respectiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo directo, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira.

Como refere Figueiredo Dias, em Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª ed., pág. 379 “…também estes elementos cumprem a função de individualizar uma espécie de delito, de tal forma que, quando eles faltam, o tipo de ilícito daquela espécie de delito não se encontra verificado”.

Assim, os elementos objectivos, que constituem a materialidade do crime, traduzem a conduta, a acção, enquanto modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos e os elementos subjectivos traduzem a atitude interior do agente na sua relação com o facto material.

Num crime doloso – só esse está aqui em causa – da acusação há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).

Quanto ao elemento volitivo não se basta com a alegação isolada de uma actuação deliberada, mas antes com a descrição do que efectivamente foi querido pelo agente, ou seja, que a arguida quis ofender a honra e consideração do assistente ou que sabiam que as expressões utilizadas eram susceptíveis de ofender, nisso se traduzindo querer praticar um facto criminoso.

             Em resumo, em sede de recebimento de uma acusação, uma falha concernente ao elemento subjectivo tem de ser tratada do mesmo modo que a respeitante ao objectivo.

Por isso mesmo, o dolo como elemento subjectivo - enquanto vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objectivas – constitutivo do tipo legal, será, então, em definitivo, um dos elementos que o artigo 283º/3 C P Penal, impõe que seja incluído, na sua dimensão total, na acusação.

Nesta medida, afastamo-nos de jurisprudência existente no sentido de que a insuficiência de narração na acusação do elemento subjectivo não constitui fundamento para a sua rejeição.

Pretende a recorrente, de alguma forma, que se dê como implicitamente contido, nas expressões descritas a si dirigidas, o elemento subjectivo do crime, delas se inferindo que os mesmos agiram com dolo, em toda a sua extensão.

Não pode ser, salvo o devido respeito.

É que, por um lado, há muito se abandonou a ideia de um «dolus in re ipsa», ou seja, a presunção do dolo através dos actos materiais que constituem a infracção; a lei exige a narração, ainda que sintética, dos factos – de todos os factos, enfatize-se – que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, não se contentando, pois, com “subentendimentos” ou “factos implícitos” – ver, neste sentido, Acórdão deste TRC, de 1/6/2011, relatado pela Exma. Desembargadora Maria Pilar Oliveira, e em que o ora Relator foi Adjunto, Processo n.º 150/10.5T3OVR.C1, in www.dgsi.pt.

                                                           ****

Para terminar, diga-se que, admitindo-se que em julgamento ficaria provada a materialidade objectiva que consta da acusação, não teria o julgador qualquer meio legal de suprir o que ela não contém – o dito elemento subjectivo.

E mesmo que este fosse trazido à audiência, não poderia o juiz tê-lo em conta, precisamente porque tal lhe está vedado, em face da estrutura acusatória do processo criminal, conforme expresso em recente Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2015, de 20-11-2014, DR, 1.ª série, n.º 18, de 27-01-2015, onde foi decidido que “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.

Assim sendo, não merece reparo o despacho recorrido.

****

C - Decisão:

Nesta conformidade, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três UC.

                                                           ****

Coimbra, 25 de Fevereiro de 2015

(José Eduardo Martins -  relator)

(Maria José Nogueira - adjunta)