Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
923/14.0PBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: INQUÉRITO
DESPACHO DE ARQUIVAMENTO
DESISTÊNCIA DE QUEIXA RECURSO
TRÂNSITO EM JULGADO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
NATUREZA DO CRIME
NE BIS IN IDEM
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS DESCRITOS NA ACUSAÇÃO
RECURSO VERSANDO MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 12/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE VISEU – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 277.º, N.º 1, 279.º, 358.º, 379.º E 428.º DO CPP; ART. 152.º DO CP; ART. 29.º, N.º 5, DA CRP
Sumário: I – Não sendo uma decisão jurisdicional, o despacho de arquivamento do inquérito proferido pelo Ministério Público não é susceptível de recurso, nem de trânsito em julgado.

II – O tipo de crime de violência doméstica integra a categoria dos crimes de reiteração, exauridos, prolongados, ou de trato sucessivo, abrangendo uma multiplicidade de condutas – reiteradas ao longo de um determinado período de tempo (e não sucessivas), ainda que de natureza diversa, normalmente tipificadas como crimes (ofensa à integridade física, ameaça, injúria, etc.) –, valoradas de forma global.

III – A preclusão do direito de perseguição criminal decorrente do arquivamento do processo relativamente a diversas condutas - no caso, por força de desistência da queixa -, não invalida que outros comportamentos posteriores venham a ser valorados de forma independente daquelas, e preencham os elementos objectivos e subjectivos do crime de violência doméstica.

IV – Situamo-nos perante uma alteração não substancial quando os factos que são aditados à acusação se destinam a especificar e enquadrar outros factos já descritos naquela peça processual e não têm como efeito a imputação de crime diverso nem a agravação dos limites máximos das penas abstractamente aplicáveis.

V – A discordância quanto à não ponderação de determinado meio de prova, com o objectivo de provocar a alteração do decidido na dimensão factual, deve ser invocada em sede de impugnação da matéria de facto, e não de nulidade da sentença.

Decisão Texto Integral:






Acordam em Conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


I. RELATÓRIO

1. Sentença recorrida:

Por sentença de 21 de abril de 2021, proferida no processo comum n.º 923/14.0PBVIS, do Juízo Local Criminal de Viseu – J1, Comarca de Viseu, foi decidido:

1- Condenar o arguido A. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão;

2- Suspender a execução da referida pena de prisão, por igual período (2 anos e 6 meses), suspensão subordinada à obrigação de o arguido efetuar o pagamento à ofendida da indemnização fixada nesta sentença, no prazo de 1 ano a contar do trânsito em julgado da mesma, comprovando-o nos autos;

3- Julgar totalmente procedente o pedido de indemnização cível deduzido pela ofendida / demandante e, em consequência, condenar o arguido a pagar-lhe a quantia de € 7.500,00 a título de danos não patrimoniais;

 

2. Recurso do arguido (conclusões que se transcrevem integralmente):

1. O presente recurso tem por objeto, a matéria de direito e de facto, com a reapreciação da prova gravada, porque a sua discordância assentará quer na valoração da matéria de facto, para o que se requer a reapreciação dos depoimentos prestados em sede de audiência de discussão, quer na qualificação jurídica emergente da factualidade dada como provada e não provada, isto é, saber se os factos, ainda que dados como provados, se subsumem ou não subsumem ao crime de violência doméstica.

2. Entende o Arguido que o princípio “ne bis in idem”, com assento constitucional no artigo 29.º n.º 5 da CRP, foi violado por duas vezes nos presentes autos (processo n.º 923/14.0PBVIS).

3. A primeira vez ocorreu através da adição à acusação [deduzida em 11-09-2015] de factos já anteriormente apreciados, conhecidos e declarados arquivados nos despachos de 06-11-2014 (fls. 34) e de 27-11-2014 (fls. 41), traduzindo-se tal inclusão [na acusação publica] numa segunda perseguição penal do aqui Arguido quanto aos factos já anteriormente apreciados e julgados arquivados a fls. 34 e 41.

4. A segunda vez ocorre com a prolação da sentença recorrida [novo ato processual] que decide analisar e valorar novamente aqueles factos [condutas espácio-temporalmente determinadas] imputados ao Arguido, mas sobre os quais já havia recaído uma apreciação/declaração judicial de arquivamento por terem sido qualificados como crimes de ofensa à integridade física e de injúria e, quanto a eles, não ter sido recolhida prova da sua prática e ter havido também desistência de queixa.

5. Como vimos, 6 anos depois do supra referido despacho de arquivamento, já transitado em julgado, o Tribunal a quo voltou a debruçar-se sobre os factos constantes de fls. 5, fls. 15, fls. 17 e fls. 28, discordando da qualificação jurídica que havia sido anteriormente feita sobre eles nos despachos de 06-11-2014 (fls. 34) e 27-11-2014 (fls. 41 a 43), mas julgando, a final, verificada a exceção do caso julgado por violação do princípio “ne bis in idem” no que respeita aos factos descritos na acusação pública nos parágrafos 3º a 8º (sendo os parágrafos 3º e 4º por referência a data anterior a 27.11.2014).

6. Expurgados os factos descritos nos parágrafos 3º a 8º (de fls. 253 a 255) da acusação, conforme determinado na sentença recorrida por verificação do caso julgado, rapidamente verificamos que a demais factualidade ali vertida (acusação elaborada em 11-09-2015) é manifestamente insuficiente para preencher o tipo legal de crime de violência doméstica, p.p. no art. 152.º n.º 1 al. a) do CP.

7. Tais factos são insuficientes para preencherem ou integrarem o referido ilícito de violência doméstica porque, como ensina este Tribunal da Relação de Coimbra, «Nos crimes onde a reiteração e intensidade do agir humano está no centro da definição de um tipo penal muito amplo (maus tratos, violência doméstica, tráfico de estupefacientes) a precisa indicação e concretude dos factos necessários à integração no tipo é elemento essencial do julgamento.», vide, por exemplo, acórdão do TRP, de 15-06-2016, no processo 1170/14.6TAVFR.P1, in www.dgsi.pt

8. Por outro lado, os demais parágrafos vertidos na acusação pública – depois de expurgados os factos abrangidos pelo caso julgado – apresentam-se despidos de qualquer concretização espácio-temporal e genéricas, sem uma precisa especificação das condutas e do tempo e do lugar em que ocorreram.

9. Por conseguinte, a acusação elaborada em 11-09-2015, depois de purificada dos factos arquivados, não pode servir de suporte à qualificação do crime de violência doméstica, p.p. no art. 152.º n.º 1 al. a) do CP.

10.Acresce que a imputação de juízos de valor, de factos genéricos, vagos, que não permitem ao Arguido localizar, no tempo e espaço, as ações que lhe são concretamente atribuídas impedem-no do exercício contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado no art.º 32º n.º 1 da CRP, pelo que deviam aqueles factos ser tidos por não escritos, como é entendimento jurisprudencial generalizado.

11.Consequentemente, o arguido devia ter sido absolvido do crime de que vinha acusado, pelo que o Tribunal a quo violou o disposto no n.º3 alínea b) do artigo 283º, n.º 2 alínea a) e n.º 3 alíneas b) e d) do art. 311.º, todos do CPP, e violou ainda o disposto no art.º 32º n.º 1 da CRP.

12.Por outro lado, a fundamentação vertida na sentença recorrida a propósito da verificação da exceção do caso julgado contradiz a demais fundamentações na medida em que o Tribunal a quo não pode invocar a

impossibilidade de apreciação posterior e, simultaneamente, apreciar e concluir coisa diversa da que consta do despacho de arquivamento.

13.Ao fazê-lo, a decisão recorrida padece do vício a que alude o artº 410º, nº 2, b) do CPP.

14.Concluída a produção de prova e realizadas as alegações orais na sessão de julgamento do dia 24-10-2018, ficou agendada a leitura da sentença para o dia 7 de novembro de 2018, pelas 14:00 hora (vide ata com a referência 83013760)      

15.Surpreendentemente ou nem tanto, entre o términus da prova e a data agendada para a leitura da sentença, a ofendida (repare-se que nem assistente é) resolveu dirigir-se pessoalmente à Meritíssima Juíza através da carta manuscrita junta aos autos.

16.Apesar do Arguido, através do requerimento apresentado com a ref. 30745581, ter requerido que aquela carta fosse mandada desentranhar, o Tribunal não se pronunciou sobre a referida carta, nem sobre o requerimento/pedido do Arguido.

17.Durante a sessão realizada em 22-11-2018 (vide ata com a Referência: 83196419) e novamente em 21-04-2021, por força da repetição ordenada por acórdão do TRC proferido em 10-07-2019 (vide ata com a referência 87937720, o Tribunal a quo entendeu alterar a matéria de facto vertida na acusação pública nos termos constantes daquelas atas.

18.O Arguido opôs-se a essa alteração e considera que entre os factos constantes da acusação deduzida em 11-09-2015 [depois de expurgada dos parágrafos 3º a 8º] e os factos comunicados no dia 22-11-2018 e em 21-04-2021 há uma diferença abismal de acervo fáctico, a qual visou suprir e colmatara total ausência de factualidade acusatória integradora dos elementos do tipo de crime de que o arguido vinha causado.

19.Não se tratou apenas de descrever de forma diferente uma mesma realidade ou situação de facto ou a uma mera concretização de factos constantes da acusação pública, mas, sim, de um verdadeiro acrescento de realidades fácticas inovadoras, originais, novas, e sem as quais a acusação teria de ser julgada improcedente.

20.O Tribunal não podia ter tido em conta, para efeito de condenação no presente processo, aqueles novos factos e ao fazê-lo, inverteu e violou alguns dos mais elementares princípios estruturantes do processo penal, designadamente a violação do princípio da vinculação temática.    

21.O princípio do acusatório significa precisamente que só se pode ser julgado pela prática de um crime mediante prévia acusação que o contenha, deduzida por entidade distinta do julgador e constituindo ela, acusação, o limite desse julgamento.

22.Tendo sido tomados em conta pelo tribunal para condenar o Arguido nestes autos, os quais veio a verter nos factos dados por provados, temos de concluir que o Tribunal recorrido conheceu de factos diversos daqueles que constavam da acusação e consequente nulidade violou– art. 379.º n.º 1 b) do CPP

23.Embora o Tribunal a quo diga, na motivação da decisão de facto, que fundou a sua convicção na análise crítica do conjunto da prova produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento e da prova documental junta aos autos, de acordo com a sua livre convicção e as regras da experiência comum, a verdade é que a decisão padece do vicio de insuficiência de prova para a decisão da matéria de facto previsto no art. 410 n.º 2 do CPP.

24.Por um lado, porque o Tribunal deu especial relevo e credibilidade ao depoimento da ofendida M., tendo-o adjetivado de coerente, objetivo, sincero e circunstanciado, quando da prova produzida, conjugada entre si e conjugada com os demais documentos juntos aos autos, se verifica que a ofendida mentiu durante o inquérito [concretamente na queixa de fls. 7 e a fls. 130 e 131 do processo 120/15.7PBVIS] e mentiu durante o julgamento a instâncias da Sra. Procuradora, de seguida, a instâncias da sua Mandatária e posteriormente a instâncias da Mandatária do Arguido.

25.Voltou a mentir quando foi confrontada com a carta de fls. 250, junta aos autos pela própria ofendida, enviada em 05-08-2014, pelo Arguido.

26.Pelo que a versão da ofendida não merece qualquer credibilidade para dar como provados os factos vertidos nos pontos 5 a 12 dos factos provados.

27.O facto vertido no ponto n.º 4 não passa de uma afirmação genérica, vaga e não descreve qualquer comportamento integrador de alegado comportamento ofensivo, pelo que não tem qualquer dimensão e relevância penal e deve ser tido como não escrito.

28.Depois, verifica-se uma total falta de crítica por parte do Tribunal relativamente ao conteúdo da mensagem vertida no ponto 4, deixando perpassar a ideia de que, à luz das regras da experiência e do homem médio, é perfeitamente normal, regular e sensato que a ofendida envie para outro homem, às 3 horas da manhã, uma mensagem com aquele conteúdo sem que isso provoque ciúme ou desconfiança no marido.

29.O que não é verdade porque qualquer outro homem médio colocado no lugar do Arguido teria ciúmes e não aceitaria como normal que a sua esposa enviasse para outro homem, a altas horas da madrugada, diversas mensagens de conteúdo amoroso, a não ser que tivesse algum relacionamento com o mesmo.

30.O facto vertido no ponto n.º 5 insere na liberdade de expressão e pensamento do Arguido e não descreve qualquer comportamento integrador de alegado comportamento ofensivo, pelo que não tem qualquer dimensão e relevância penal e deve ser tido como não escrito.

31.Dizem-nos as regras da experiência comum que nenhum homem médio ou mulher média aceitaria como normal que o seu cônjuge se comportasse daquela maneira, enviando diversas mensagens com conteúdo amoroso para outro, razão pela qual pediu o divórcio (vide fls. 250) e apresentou queixa-crime contra a ofendida em 08-09-2014, conforme certidão da queixa junta a estes autos na sessão de audiência de julgamento de 17-09-2018, ata com a ref. 82748598

32.Resulta daquela queixa a versão do Arguido, designadamente que ofendida o chamou de paneleiro e lhe disse que não descansava enquanto não o metesse na prisão.

33.A própria ofendida corroborou, em sede de audiência julgamento, que naquele dia 19-07-2014, às 5 horas da manhã, atirou o telemóvel do marido ao chão e partiu-o (ipis verbis o que o Arguido diz no art. 10º da sua queixa – junta em sessão de audiência de julgamento de 17-09-2018, ata com a ref. 82748598]

34.Do depoimento prestado pela ofendida nos presentes autos, compaginado com o teor da queixa apresentada pelo arguido no processo n.º 155/14.7T9VIS, resulta que houve discussões entre o casal, que estes se insultaram pelas razões que se prendem com as mensagens – que a ofendida reconheceu ter enviado.

35.Posteriormente, na sessão da audiência de julgamento de 04-10-2018 [ata com a Ref. 82879063] foi a ofendida que veio juntar o despacho de arquivamento proferido naquele processo 155/14.7T9VIS que corrobora o que se disse no ponto anterior.

36.As expressões vertidas no ponto 6 proferidas no contexto de desentendimentos e discussões conjugais, em que a ofendida também utilizou palavras igualmente insultuosas, não revelam a crueldade, o desprezo, a particular vontade de humilhar de forma a enquadrá-las em maus-tratos, mas, sim, em crimes de ofensas à integridade simples e injúrias.

37.Mutatis mutandis para os factos descritos nos pontos 7 e 8 dos factos provados.

38.Além disso, a própria ofendida nunca disse que o arguido lhe disse que a matava!!

39.Do depoimento da ofendida resulta que existiam conflitos conjugais no seio de uma relação matrimonial gasta e em decadência, onde foram proferidas palavras que podem magoar, mas não existem factos verdadeiramente graves ou reiterados que permitam enquadrar as aludidas discussões e conflitos conjugais ou insinuações e insultos proferidos nesse contexto num crime de violência doméstica.

40.Os alegados insultos, as alegadas insinuações, os alegados empurrões, etc, etc, a serem verdadeiros, o que não se admite, são reprováveis, correspondem a violações de deveres entre cônjuges, podem preencher o crime de injúrias ou o crime de ofensas à integridade física, podem até dar lugar a um pedido de reparação dos danos causados pelo outro cônjuge, nos termos gerais da responsabilidade civil e ao abrigo do disposto no art. 1792º nº 1 do Código Civil, podem justificar a tutela geral da personalidade prevista no artigo 70º nº 1 do Código Civil, se forem atacados os direitos de personalidade do outro cônjuge, mas não consubstanciam seguramente o preenchimento do crime de violência doméstica.

41.Porque nenhum daqueles insultos ou ofensas, seja por ciúme, por desconfiança, ou por qualquer outra razão, no contexto em que constam dos factos provados, revelam a crueldade, o desprezo, a particular vontade de humilhar a ofendida de forma a concluir pela existência de maus tratos e pelo preenchimento do tipo legal em causa.

42.Conclui-se, pois, que a prova produzida não permite afirmar que o Arguido tenha de modo reiterado ou não, infligido maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais à ofendida, pelo que os factos constantes dos pontos 6, 7, 8, 11, 12 devem dar-se como não provados, quer porque os mesmos se apresentam em termos genéricos, quer porque os mesmos não podem ser considerados maus tratos.

43.Por tudo o exposto, o Tribunal a quo, ao dar total credibilidade às declarações da ofendida, do filho D. e da testemunha L., sem ter tido o cuidado de analisar criticamente toda a prova, nomeadamente sem ter valorado e ter tido em conta que existiam mentiras, contradições, incoerências e falta de individualização e contextualização dos factos, fez uma errada apreciação da prova produzida, devendo por isso, e pelos vícios supra apontados, ser alterada a matéria de facto demodo a dar como não provada a factualidade vertida nos pontos 6, 7, 8, 11, 12 dos factos provados.

44.Em consequência, entendemos que, alterada a matéria de facto nos termos aqui propostos, por errada subsunção, deve o Arguido ser absolvido do crime de violência doméstica em que foi condenado.

45.A decisão recorrida padece ainda da nulidade prevista no n.º 1 alínea c) do art. 379 do CPP na medida em que o Tribunal não se pronunciou, nem fez qualquer valoração de documentos analisados em audiência de julgamento como sejam: a carta de fls. 250, os documentos juntos pelo Arguido na sessão de julgamento do dia 17-09-2018 e na sessão de julgamento de 04-10-2018; os 4 documentos juntos pela ofendida na sessão de julgamento de 04-10-2018; o requerimento junto em 15-10-2018, com a ref. 30389994; a carta manuscrita pela ofendida e junta aos autos em 05-11-2018; o requerimento junto em 19-11-2018, com a ref. 30745581;

46.Tal omissão consubstancia a nulidade prevista no n.º 1 alínea c) do art. 379 do CPP que aqui se invoca porque o Tribunal deixou de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas e que tinha de abordar e resolver e, também por isso, fez uma errada apreciação da prova produzida, devendo por isso, e pelos vícios supra apontados, ser alterada a matéria de facto de modo a dar como não provada a factualidade vertida nos pontos 6, 7, 8, 11, 12 dos factos provados.

47.Pelo que se deixou supra alegado, o pedido de indemnização civil deveria ter sido julgado improcedente.

48.Seja como for, não se fez prova que a ofendida se tenha sentido efetivamente humilhada, mal tratada, desprezada, em grau e nível exigidos pelo crime de violência doméstica.

49.No entanto, sempre se dirá que o montante arbitrado é ilegal, desproporcional, desajustado e exageradamente elevado tendo em conta os critérios fixados na lei e os factos dados como provados.

50.A quantia de 7.500,00€ arbitrada na decisão recorrida viola o disposto no art. 496º do Código Civil por não ter tido em conta a gravidade dos danos não patrimoniais [foi a ofendida que deu origem à conflitualidade ao enviar as mensagens constantes dos artigos 5º e 6º da queixa crime 155/14], por não ter tido em conta que, segundo a decisão recorrida, estão em causa factos entre Dezembro de 2014 e 24 de Fevereiro de 2015, e por não ter sido fixada equitativamente tendo em atenção as circunstâncias referidas no artigo 494.º.

51.Em suma, na fixação da quantia de 7.500,00€, o tribunal não teve em conta a culpa do Arguido, a sua situação económica e a situação económica da ofendida, as especiais circunstâncias do caso (foi a ofendida que esteve na génese do conflito iniciado em 19-07-2014, a gravidade do dano, etc., ou seja, não teve em conta todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.

52.Termos em que deve revogar-se a douta sentença, nos termos sobreditos, julgando-se procedente o presente recurso, com todas as consequências legais.

3. Em resposta ao recurso, o Ministério Público formulou as seguintes conclusões:
1. Existe identidade naturalística entre os factos que constavam da acusação e os factos que foram dados como provados na sentença recorrida. A diferença de factualidade na sentença recorrida, relativamente à acusação, está apenas numa melhor explicitação ou pormenorização dos factos que, tendo por base o que constava da acusação, foram dados como provados e que resultaram da prova apurada em sede de julgamento.
2. Os factos que foram dados como provados na sentença recorrida, são aqueles pelos quais o arguido já se encontrava acusado, com as alterações que o tribunal a quo decidiu fazer, ao abrigo do disposto no ar. 358.º, nº 1 do Código de Processo Penal, correspondendo essas alterações a uma descrição de forma diferente da mesma realidade ou situação de facto ou a uma mera concretização de factos constantes da acusação pública, como resulta do mero confronto entre os factos que vinham imputados ao arguido na acusação pública e aqueles que constam como provados na sentença.
3. No caso presente, resulta que os factos provados na sentença recorrida, mais não são do que os que vinham já imputados ao arguido, com meras alterações de concretização daqueles factos, que não deixam de integrar, como já integravam, a prática do crime imputado ao arguido e pelo qual foi condenado na sentença recorrida. Não obstante o Tribunal a quo ter entendido que parte daqueles factos que vinham imputados ao arguido na acusação pública não poderiam ser conhecidos por violação do princípio ne bis in idem ou do caso julgado, o certo é que os factos que “ficaram” para além daqueles – e que não deixam de ser parte daqueles que vinham imputados ao arguido na acusação – já constavam da acusação pública e integram a prática do mesmo crime de violência doméstica.
4. Basta ler com atenção tanto a acusação, como a sentença, que reproduz com maior precisão e concretização os factos que eram imputados ao arguido na acusação pública, para perceber que se encontram perfeitamente balizados no tempo e no espaço e que se referem a factos concretos, dos quais o arguido se defendeu ao longo de todo o julgamento e não a conceitos vagos e genéricos, como aquele refere.

5. O arguido parece confundir o que a Mmª Juiz a quo refere quando conhece a exceção do caso julgado. Ali não se tecem quaisquer considerações sobre factos posteriores ao despacho de arquivamento que se menciona. Não padece, pois, a sentença recorrida do apontado vício de contradição da fundamentação.

6. A prova produzida em audiência de discussão e julgamento permite claramente concluir pela verificação dos factos dados como provados, não impondo decisão diversa da recorrida. A convicção formada quanto à matéria em causa mostra-se explicitada em termos perfeitamente percetíveis e assimiláveis, não se evidenciando qualquer afrontamento às regras da experiência comum, ou qualquer apreciação manifestamente incorreta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis, pelo que nenhuma censura pode merecer o juízo valorativo acolhido na decisão ora sob recurso. As provas indicadas pelo recorrente não impõem decisão diversa.

7. Os documentos/ escritos referidos pelo arguido que não foram referenciados pelo tribunal a quo são irrelevantes para a decisão a proferir, assim resultando da fundamentação da douta sentença, que não se encontra em oposição com os citados documentos/ escritos, donde se extrai não padecer a sentença do vício que lhe é apontado.

8. Deverá, pois, o recurso interposto pelo recorrente ser julgado improcedente, mantendo-se a douta sentença recorrida, condenando-se o arguido nos seus precisos termos, no que à parte criminal se refere.

4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-geral Adjunto aderiu à resposta ao recurso apresentada em primeira instância, no sentido do não provimento do recurso.


II.

II. - QUESTÕES A DECIDIR

O objeto do recurso está limitado às conclusões apresentadas pelo recorrente [cfr. Ac. do STJ, de 15/04/2010: “É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões(…)”], sem prejuízo da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I série-A, de 28/12/95).

São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso, e devem por isso ser concisas, precisas e claras. Se estas ficam aquém, a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal de recurso só pode considerar as conclusões, e se vão além da motivação também não devem ser consideradas, porque são um resumo da motivação e esta é inexistente (neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336).

Atentas as conclusões formuladas, e colocando uma ordem lógica de conhecimento nas matérias abordadas no recurso, são as seguintes as questões a decidir:

a) Violação do caso julgado / Vício de contradição insanável da decisão;

b) Nulidades da sentença;

c) Alteração da matéria de facto;

d) Não preenchimento dos elementos do crime de violência doméstica; e

e) Pedido de indemnização cível.

III. FUNDAMENTAÇÃO

1. Transcrição da sentença da primeira instância (parte relevante):

«(…) Do caso julgado

O princípio ne bis in idem, expresso no artigo 29, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa proíbe que os factos imputados a um cidadão, em processo penal, sejam avaliados mais do que uma vez.

Funda-se o caso julgado na garantia da certeza e segurança do direito – neste sentido, Frederico Isasca, in Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, 1992, pág. 226, dizendo: “… o caso julgado tem uma função de garantia do cidadão que se traduz na certeza, que se lhe assegura, de não poder voltar a ser incomodado pela prática do mesmo facto” - ou, como assinala Eduardo Correia, «verdadeiramente, pois, o fundamento central do caso julgado radica numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do direito. Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através dele aos cidadãos a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões contraditórias. Uma adesão à segurança com um eventual detrimento da verdade, eis assim o que está na base do instituto».

Nestes autos, foi proferido, em 27.11.2014, despacho de arquivamento nos termos do disposto no artigo 277º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na sequência de homologação de desistência de queixa apresentada pela ofendida em 5 de Novembro de 2014 (cfr. fls. 41 a 43). Analisado tal despacho, verifica-se que teve por objeto, não só a factualidade constante do auto de notícia de fls. 4 a 6 (agressão física e injúrias alegadamente cometidas pelo arguido em 19.07.2014 na pessoa da ora ofendida), mas também a factualidade descrita no aditamento àquele auto, de fls. 15 (episódio ocorrido em 30.07.2014), abrangendo ainda “factos ocorridos desde há alguns anos”, em que é atribuído ao arguido o exercício de “violência psicológica” sobre a ora ofendida, mediante um comportamento controlador e ciumento.

Afigura-se-nos que a factualidade objeto do despacho de arquivamento proferido nos autos integra um crime único de violência doméstica imputado ao arguido e cometido até àquela data.

Ora, “o objeto do processo é formado por todos os factos perpetrados pelo arguido até à decisão final que de forma direta se correlacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido. Os factos que não foram apreciados e que deviam tê-lo sido por fazerem parte integrante do mesmo “recorte de vida” não podem ser posteriormente apreciados, uma vez que essa apreciação constituiria flagrante violação do princípio ne bis in idem” – neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09-03-2016, processo n.º 48/15.0GBLSA.C1, disponível em www.dgsi, prosseguindo citando o acórdão do mesmo tribunal de 28-05-2008, relatado por Alberto Mira: “a expressão “mesmo crime” não deve ser interpretada, no discurso constitucional, no seu estrito sentido técnico-jurídico, «mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado de facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui um crime. Nestes termos, o que transita em julgado é o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação de um tribunal. Isto significa que todos os factos praticados pelo arguido até à decisão final que diretamente se relacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam a aludida unidade de sentido, ainda que efetivamente não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo tribunal, não podem ser posteriormente apreciados»- Frederico Isasca, idem, pág. 242 e 229”.

Assim, os factos que se reportam a situações de violência ocorridas pelo menos até 30 de Junho de 2014 constituem, sem qualquer dúvida, parte integrante da unidade criminosa descrita no auto de denúncia e aditamento de fls. 4 a 6 e 15 e, portanto, objeto de apreciação e decisão homologatória de desistência de queixa e arquivamento.

Efetivamente, “O termo “crime” não deve ser tomado ao pé-da-letra, mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado de facto ou um acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado facto julgado e não tanto de um crime que se quer evitar. O que o artigo 29º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, proíbe, é, no fundo, que um mesmo e concreto objeto do processo possa fundar um segundo processo penal. Deste modo, aquilo que, devendo tê-lo sido, não se decidiu diretamente, tem de considerar-se indiretamente resolvido; aquilo que se não resolveu por via expressa deve tomar-se como decidido tacitamente.” – neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-03-2006, relatado pelo Conselheiro Oliveira Mendes, disponível em www.dgsi.pt.

A extensão do caso julgado obedece ao princípio de evitar a renovação de processos relativamente a factos que já poderiam ter sido apreciados judicialmente, sendo que a lei é unívoca ao impedir nova apreciação dos mesmos factos, seja qual for a qualificação jurídica que lhes é atribuída.

Assim, os factos pelos quais o arguido vem acusado alegadamente praticados até ao aditamento ao auto de denúncia de 30.06.2014, formam uma unidade com aqueles que foram apreciados naquele despacho de arquivamento. Pelo que não pode deixar de se considerar, quanto aos mesmos, consumido o respetivo direito de acusação, pois a todos aqueles factos se deve ter por “estendido” o valor daquela decisão final.

Em conformidade, não podem aqueles factos ser agora apreciados, sob pena de violação do princípio ne bis in idem.

Não obstante, os demais factos alegadamente cometidos pelo arguido após o despacho de arquivamento exorbitam o seu objeto, integrando, por si só, um crime de violência doméstica, que é um crime único, ainda que de execução reiterada, cuja consumação ocorre com a prática do último ato de execução.

Assim, em face do exposto, julgo verificada a exceção do caso julgado por violação do princípio ne bis in idem no que respeita aos factos descritos na acusação pública nos parágrafos 3º a 8º (sendo os parágrafos 3º e 4º por referência a data anterior a 27.11.2014).
Em consequência, relativamente a tais factos, declara-se extinto o procedimento criminal contra o arguido.
(…)

- Factos Provados:

Observado o formalismo legal, procedeu-se à audiência de discussão e julgamento e, discutida a causa, emergiram provados os seguintes factos:

1. O arguido casou com M. no dia 27 de junho de 1987.

2. Do casamento nasceram dois filhos: D., nascido em 30 de janeiro de 1996, e AL., nascida em 7 de julho de 1991, esta deficiente profunda.

3. Em 27 de Novembro 2014, foi nestes autos proferido despacho de arquivamento nos termos do disposto no artigo 277º, n.º 1, do Código de Processo Penal, mediante a homologação de desistência de queixa apresentada pela ofendida em 5 de Novembro de 2014, relativamente a factos que, de acordo com tal despacho, consubstanciariam a prática pelo arguido dos crimes de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º, n.º 1, do Código Penal, e de injúria, previsto e punido pelo artigo 181º, n.º 1, do Código Penal.

4. Depois de proferido o referido despacho de arquivamento, o arguido manteve uma atitude de desconfiança em relação à ofendida, pautada pelo ciúme, assumindo com a mesma um comportamento ofensivo e controlador – o que sucedeu até 24 de fevereiro de 2015, data em que o arguido abandonou a residência.

Tal ciúme foi espoletado pelo conhecimento de um conjunto de mensagens de telemóvel enviadas pela ofendida a um médico, entre os dias 13.07.2014 e 19.07.2014, a maior parte delas de madrugada, de entre as quais uma com o seguinte teor (enviada no dia 19.07.2014, às 3h06): “Fofinho, hoje não senti o teu carinho… certamente fui em k o estraguei:. (tanto amor k te kis dar k te sufoquei! Será? Viras as costas sem hesitares, eu ali fikei sem saber o que fazer senti me a mais tal como no outro dia! Não falaste da tua flor, dakela que te bordei… afinal onde é K eu errei? Gostava que pelo menos uma vez fosses sincero comigo, pk estas triste? Fui eu? O k não fizeste k te arrependes? Em relação a mim? Tenho saudades de ti, muitas! Este não é seguramente o F., Dr do outro mundo k conheci! É este ou o outro o verdadeiro F.? Tenho tb saudades do teu atendimento ao telefone…Gostava so de conversar contigo fofinho! Adoro te loucamente”.

O ciúme manteve-se depois de o destinatário das mensagens, no Verão de 2014, ter falado de forma clara e calma com o arguido, explicando-lhe que não houve qualquer resposta positiva às mensagens enviadas pela ofendida, que não teve qualquer relação com ela, e que o seu comportamento se explicava pela situação de vulnerabilidade em que se encontrava.

5. Em data não apurada, mas durante o mês de dezembro de 2014, quando se encontravam no quarto, no decurso de um ato íntimo, o arguido disse à esposa “já tás a pensar no médico?”, insinuando que o andava atrair. Em outras ocasiões, perguntou-lhe se ia tomar banho para ir ter com o médico.

6. Desde então, praticamente todos os dias (entre Dezembro de 2014 e 24 de Fevereiro de 2015), à hora de jantar, na presença dos filhos, no decurso de discussões, o arguido apelidava a ofendida de “puta”, “prostituta psicológica”, “cabra”, “mentirosa” e gritava com ela, dizendo-lhe, designadamente, “não tens vergonha”, “um dia eu parto esta merda toda”.

7. Por diversas vezes e de forma reiterada, na sequência daquelas discussões, o arguido disse à ofendida que a matava, a ela e a quem estivesse com ela, que a empurrava das escadas abaixo e que ninguém saberia quem foi criando-lhe assim permanente receio de poder ver a sofrer algum mal na sua vida ou integridade física – o qual foi adensado pela circunstância de o arguido falar muito em armas.

8. Numa noite, depois de jantar, em dia não concretamente apurado (entre dezembro de 2014 e 24 de fevereiro de 2015), o arguido deu um encontrão à ofendida, sendo que esta por pouco não caiu pelas escadas abaixo. Em outra ocasião, também em data não concretamente apurada mas no referido lapso temporal, o arguido empurrou a ofendida contra a parede, tendo esta batido com a cabeça.

9. Os factos supra descritos aconteceram no interior da residência do casal, à data na Rua de (…), Bairro do (…), em (…).

10. O arguido ainda controlava a vida da ofendida, seguindo-a de carro e aparecendo constantemente nos locais que a mesma frequentava, nomeadamente nos hipermercados onde efetuava compras, como aconteceu no dia 31 de janeiro, e no hospital, como aconteceu no dia 5 de fevereiro de 2015.

11. Ao atuar como se descreve, fazendo-o de forma reiterada, o arguido violou os seus deveres de respeito para com a esposa, infligindo-lhe dessa forma maus tratos psicológicos e físicos contínuos e colocando em perigo a saúde daquela.

12. O arguido quis repetidamente molestar psicológica e fisicamente M., sua esposa, ofendendo-a na honra e consideração e no bem-estar físico e psíquico, e criando-lhe permanente receio de poder vir a sofrer ato atentatório da vida ou da integridade física, bem sabendo que a sua conduta era adequada a causar tal resultado, como efetivamente causou.

13. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, sabendo as suas condutas proibidas e punidas por lei como crime.

Mais se provou que:

14. Com a apurada conduta do arguido, a ofendida sentiu-se humilhada, vexada, envergonhada e desgostosa. Sentiu, também, medo de que o arguido concretizasse as suas ameaças.

15. A apurada conduta do arguido afetou o sono, o descanso e a alimentação da ofendida, tudo o que se refletiu na sua saúde.

Ainda se provou que:

(…).

- Motivação da Decisão de Facto

(…)

2. Da alegada violação do caso julgado

Ao longo de várias páginas, o recorrente descreve os atos processuais que foram tendo lugar ao longo do processado, insurge-se contra a “validade” da acusação deduzida, nomeadamente por ter sido anteriormente deduzido despacho de arquivamento e reaberto o processo sem que surgissem novos elementos de prova, nos termos do art. 279º do Código de Processo Penal.

Desde logo, incorre o recorrente num erro de base: é que o trânsito em julgado apenas se aplica às decisões judiciais, ou seja, proferidas pelo juiz, não tendo os despachos proferidos pelo Ministério Público a virtualidade de constituir caso julgado na fase de inquérito do processo penal – única fase processual da titularidade do Ministério Público. É precisamente por essa razão que na fase de inquérito intervém o juiz de instrução, enquanto garante dos direitos, liberdades e garantias do arguido.

Desta forma, o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público nunca pode constituir caso julgado no processo penal. O que justifica o regime legal estabelecido no art. 279º do Código de Processo Penal: surgindo novos elementos de prova após ter sido proferido o despacho de arquivamento, o Ministério Público deve reabrir o inquérito. Mais: uma determinada qualificação jurídica, efetuada numa fase preliminar do processo crime (nomeadamente num despacho final de arquivamento proferido pelo Ministério Público, por natureza sempre provisório) não vincula nem o Ministério Público, nem o juiz, num posterior processamento. Na verdade, é fácil que decorra dos novos elementos de prova uma distinta qualificação jurídica, decorrente dessas provas, que invalide a anteriormente efetuada; podendo o juiz sindicar a qualificação efetuada, desde logo na fase de saneamento do processo, pois a ela se não encontra vinculado – art. 311º do Código de Processo Penal.

Não sendo uma decisão jurisdicional, não é suscetível de recurso, nem de trânsito em julgado.

No caso dos autos, foi proferido despacho de arquivamento ao abrigo do art. 277º, n.º 1, do Código de Processo Penal – despacho que teve na sua base a apresentação de desistência de queixa da ofendida, uma qualificação dos factos então efetuada pelo Ministério Público que desaguaram em crimes de natureza semipública e particular, deixando, perante a desistência apresentada, de subsistir uma condição de procedibilidade do processo.

No entanto, a 16.5.2015 foi incorporado nos autos o processo de inquérito n.º 120/15.7PBVIS, na sequência do seguinte despacho, de 2.3.2015: “Atentas as declarações da vitima a fls. 7 de que havia desistido do procedimento criminal no inquérito agora apresentado por ter sofrido pressões por parte do seu marido, concretizando a utilização de expressões pelo mesmo com clara intenção de a intimidar, consideramos que existe conexão relevante de inquéritos, nos termos do disposto nos art.ºs 24, n.º 1, al. b) e 28.º, al. c) do CPP e que o inquérito apresentado deverá ser reaberto a fim de se proceder à investigação conjunta dos factos que consubstanciam a pratica do crime de violência doméstica, que se prolonga no tempo. Pelo exposto, determino a incorporação/apensação dos presentes autos no inquérito 923/14.0PBVIS.”

Naquele inquérito haviam sido denunciadas outras condutas do recorrente, distintas das que foram objeto de arquivamento, conforme consta de fls. 75-80, tendo ainda sido efetuados aditamentos a fls. 88, 91, 97 e 171.

O Ministério Público veio a deduzir acusação contra o arguido pela prática dos atos que haviam sido objeto de arquivamento e dos que foram posteriormente objeto de investigação, na sequência da referida incorporação, tendo após as novas diligências concluído que todos os factos integravam um único crime de violência doméstica.

Na sentença proferida, concordando embora com a qualificação dos factos efetuada na acusação, a Exma. Juíza a quo cindiu a acusação, abstendo-se de conhecer dos factos que haviam sido objeto de arquivamento.

Não tendo, por princípio, o despacho de arquivamento efeitos preclusivos, por poder ser reaberto nos termos do art. 279º, n.º 1, do Código de Processo Penal, não deixa, no entanto, de produzir efeitos extraprocessuais (contrariamente ao que sucede com a acusação, que produz efeitos endoprocessuais), uma vez que, decorridos os prazos para a sua impugnação, através da abertura de instrução ou de requerimento para intervenção hierárquica, passa a ter a força de caso decidido. Esta decisão apenas poderá ser alterada se surgirem novos elementos que coloquem em causa os fundamentos (não a bondade) da decisão de arquivamento.

Por esta razão, porque o Ministério Público optou por determinada qualificação jurídica dos factos objeto de queixa até àquela data (do arquivamento do processo), pese embora a obtenção de novos elementos probatórios relevantes, e que determinaram a alteração da qualificação jurídica anteriormente efetuada, encontrava-se vedado o direito de perseguir criminalmente o arguido por tais factos.

Na realidade, a regra ne bis in idem afirma que ninguém pode ser perseguido ou punido criminalmente pelos mesmos factos, em nome da equidade e da segurança jurídica, encontrando assento constitucional no art. 29º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.

Da regra mencionada resulta não apenas a proibição de o arguido ser julgado duas vezes pelos mesmos factos, mas ainda a de realizar uma pluralidade de julgamentos crime com base no mesmo facto delituoso. Apesar de não ter sido sujeito anteriormente a julgamento, o arguido foi confrontado com uma decisão posterior à apresentação de desistência de queixa, que qualificou os factos denunciados não como um crime de violência doméstica, mas como crimes de natureza semi-pública e particular, tendo homologado a desistência de queixa apresentada. Assim, no tocante a tal factualidade, o despacho de arquivamento proferido com estes fundamentos passou a ter a força de caso decidido, nos termos sobreditos.

De relevo, consta da decisão recorrida o seguinte: “Nestes autos, foi proferido, em 27.11.2014, despacho de arquivamento nos termos do disposto no artigo 277º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na sequência de homologação de desistência de queixa apresentada pela ofendida em 5 de Novembro de 2014 (cfr. fls. 41 a 43). Analisado tal despacho, verifica-se que teve por objeto, não só a factualidade constante do auto de notícia de fls. 4 a 6 (agressão física e injúrias alegadamente cometidas pelo arguido em 19.07.2014 na pessoa da ora ofendida), mas também a factualidade descrita no aditamento àquele auto, de fls. 15 (episódio ocorrido em 30.07.2014), abrangendo ainda “factos ocorridos desde há alguns anos”, em que é atribuído ao arguido o exercício de “violência psicológica” sobre a ora ofendida, mediante um comportamento controlador e ciumento.

Afigura-se-nos que a factualidade objeto do despacho de arquivamento proferido nos autos integra um crime único de violência doméstica imputado ao arguido e cometido até àquela data.”

A questão que agora importa equacionar é se aquele arquivamento precludiu o direito de acusar o arguido pela prática de factos integradores da mesma conduta criminosa - ou melhor, do mesmo crime de violência doméstica (qualificação jurídica adotada pelo Ministério Público no posterior despacho de acusação proferido).

Neste particular, a alegação do recorrente só se justifica com uma deficiente interpretação do crime de violência doméstica previsto no art. 152º do Código Penal, porquanto nunca a decisão de parte da atuação inclusa no mesmo crime pretere o conhecimento e procedimento criminal de outras condutas que, por si só, integrem o mesmo crime de violência doméstica.

Isto porque a unidade da ação típica não fica excluída pela realização repetida de atos parciais: o tipo legal de crime integra a categoria dos crimes de reiteração, exauridos, prolongados, ou de trato sucessivo, abrangendo uma multiplicidade de condutas, reiteradas ao longo de um determinado período de tempo (e não sucessivas), ainda que de natureza diversa. As condutas que integram o crime, individualmente consideradas, normalmente são tipificadas como crimes (ofensa à integridade física, ameaça, injúria, etc.), mas são valoradas de forma global.

Assim, a preclusão do direito de perseguição criminal decorrente do arquivamento de determinadas condutas, nos termos expostos (desistência de queixa), não invalida que outras condutas posteriores venham a ser valoradas de forma independente daquelas, e preencham os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime de violência doméstica (no mesmo sentido, v. Acórdãos da Relação de Guimarães de 26.2.2020, proc. 105/17.9GAMGD.G1, e da Relação de Lisboa de 17.4.2013, proc. 790/09.5GDALM.L1-3, em www.dgsi.pt).

Foram estas as razões que conduziram a que na sentença proferida o tribunal a quo se tenha abstido, e bem, de conhecer dos factos que foram objeto de arquivamento.

Os restantes factos, posteriores à data da declarada desistência de queixa por parte da ofendida, são daqueles independentes, tendo em conta a natureza do crime em causa nos autos, podendo, e devendo ser objeto de tratamento autónomo – como foram.

Não podendo formar as decisões do Ministério Público caso julgado, naturalmente que não cabe apreciar a invocada nulidade da acusação – que, aliás, nem foi atempadamente invocada -, mas sim, e exclusivamente, a decisão judicial que sobre a mesma incidiu. E que não merece reparo na conclusão extraída, como se viu.

Não se mostra, assim, violado o proclamado caso julgado.

A propósito da mesma matéria, invoca o recorrente padecer a sentença do vício de contradição insanável na fundamentação, nos termos do art. 410º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal.

Vejamos:

O art. 410º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal dispõe o seguinte: “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.

Refere-se, assim, este vício à contradição na própria matéria de facto fundamento da decisão de direito, seja entre os factos declarados provados e não provados, seja entre a fundamentação probatória da matéria de facto. Assim, “há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão ente os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente” (Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8ª ed., pág. 77-78);

Defende o recorrente que a invocada contradição reside no facto de o tribunal a quo ter declarado consumido o direito de acusação quanto aos factos objeto do despacho de arquivamento do Ministério Público, referido, e de ter conhecido aqueles factos integrantes do mesmo crime de violência doméstica, da seguinte forma: “a fundamentação vertida na sentença recorrida a propósito da verificação da exceção do caso julgado contradiz a demais fundamentação na medida em que o Tribunal a quo não pode invocar a impossibilidade de apreciação posterior e, simultaneamente, apreciar e concluir coisa diversa da que consta do despacho de arquivamento”.

Ora, com esta alegação o recorrente mais não pretende que discordar da cisão efetuada na sentença entre os factos anteriores e os posteriores à prolação do despacho de arquivamento do Ministério Público, questão que já apreciámos. Por outro lado, tendo em consideração a estrutura do crime de violência doméstica, exaurido ou prolongado, nunca se verificaria a pretendida contradição (sendo certo que o vício em causa respeita à matéria de facto e sua fundamentação, e não à fundamentação jurídica da causa, que deverá ser objeto de recurso stricto sendo).

Não tem, assim, qualquer cabimento a invocação do vício em causa, fundamento recursiva que sempre improcederia.

Quanto ao demais alegado na motivação (designadamente a páginas 18 a 20), não extraindo o recorrente qualquer consequência jurídico-processual, nem resultando do mesmo qualquer nulidade de conhecimento oficioso (tendo as verificadas sido já corrigidas na sequência do anterior Acórdão desta Relação proferido nos autos), é irrelevante para a decisão, pelo que nada há a referir.

3. Das invocadas nulidades da sentença

Invoca o recorrente padecer a sentença proferido pelo tribunal a quo da nulidade prevista no art. 379º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal (a saber, condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia fora dos casos e condições previstos nos arts. 358º e 359º do mesmo Código), por inadmissibilidade legal da alteração não substancial de factos efetuada no decurso da audiência de julgamento (não se alcançando a intenção do recorrente ao referir uma carta da ofendida junta aos autos relativamente à qual não houve pronúncia do tribunal…).

Alega o recorrente que a comunicação efetuada na audiência do julgamento que teve lugar a 22.11.2018, que se destinou, segundo o declarado pelo tribunal, a expurgar a acusação dos parágrafos 3º a 8º da acusação, contém um acervo fáctico totalmente distinto e novo do que constava da acusação, e que “visou suprir e colmatar a total ausência de factualidade acusatória e integradora dos elementos do tipo de crime de que o arguido vinha acusado”.
Ora, o objeto do processo penal é fixado na acusação (ou pronúncia, caso exista). É a acusação que fixa os limites da atividade cognitiva (thema probandum) e decisória (thema decidendum) do tribunal. Esta não pode ultrapassar os limites traçados pela acusação, sob pena de nulidade – art. 379º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal -, salvo em certas situações permitidas por lei em que, respeitadas certas condições, se pode proceder a uma alteração daqueles factos (arts. 303.º, 358.º e 359.º do Código de Processo Penal).

Dispõe o art. 358º do Código de Processo Penal.

 “1- Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.

2- Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa. (…)”

Ora, a alteração dos factos anteriormente descritos na acusação encontra-se prevista nos arts. 303º, 3548º e 359º do Código de Processo Penal, distinguindo-se a “alteração substancial” e a “alteração não substancial” de factos. Nos termos do art. 1º, al. f), do Código de Processo Penal, uma “alteração substancial de factos” é aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

Encontramo-nos perante uma alteração não substancial de factos quando os que são aditados à acusação (e comunicados ao arguido) se destinam a especificar e enquadrar outros factos já descritos da acusação, e que não têm como efeito a imputação de crime diverso do constante da acusação nem a agravação dos limites máximos das penas abstratamente aplicáveis.

Assim, a alteração não substancial de factos é na generalidade permitida, tendo como condição a comunicação e concessão do direito de defesa ao arguido, caso este o requeira – exceto se a alteração decorrer de factos alegados pela defesa (n.º 2), como sucedeu in casu.

No caso concreto, confrontando a acusação do Ministério Público e a alteração comunicada ao arguido em audiência de julgamento, facilmente se verifica que nenhuma nova conduta é imputada ao arguido para além das descritas na acusação, limitando-se o tribunal a quo a efetuar uma descrição concretizadora dos mesmos factos, sem em qualquer momento ultrapassar as concretas condutas ilícitas imputadas ao arguido na acusação.

Uma discordância em relação à existência dos indícios que conduziram à decisão do Ministério Público de proferir acusação, ou a discussão sobre as provas recolhidas em inquérito teria o momento próprio para ser colocada em sede de instrução, que o arguido não requereu.

Enredado na teia processual que longamente vai descrevendo e tecendo considerações na motivação recursiva, o recorrente efetua uma mescla pouco percetível dos institutos jurídicos do caso julgado, da vinculação temática, dos fundamentos de reabertura do inquérito, da (in)suficiência dos indícios recolhidos em inquérito, da nulidade da sentença, e até dos vícios da sentença (que abordaremos mais à frente). Salvo o devido respeito, o derrame descritivo dos atos processuais que tiveram lugar, sem qualquer ordem ou nexo lógico com os fundamentos de recurso de uma qualquer sentença, mais não constitui que uma tentativa de intricar e confundir o decisor – a quem o recorrente atribui a árdua tarefa de desenvencilhar e organizar a amálgama de argumentos que, de forma descuidada, “atirou” como um qualquer isco que tenta exasperadamente apanhar a sua presa.

Depois, pugna o recorrente pela nulidade da sentença de primeira instância por omissão de pronúncia, nos termos do art. 379º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal. Estabelece esta norma que é nula a sentença “Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Sanciona esta norma com a nulidade a violação, pelo tribunal, dos seus poderes/deveres de cognição, seja por omissão, seja por excesso.

A pronúncia em causa incide sobre questões sobre as quais o tribunal se deve pronunciar, cujo conhecimento lhe é solicitado pelos sujeitos processuais ou que seja de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art. 4º do Código de Processo Penal).

Referindo-se a lei a questões, naturalmente que a falta de pronúncia geradora de nulidade não incidesobre os motivos ou argumentos invocados pelos sujeitos processuais, ou seja, a omissão resulta da falta de pronúncia sobre as questões que cabe ao tribunal conhecer e não da falta de pronúncia sobre os motivos ou as razões que os sujeitos processuais alegam em sustentação das questões que submetem à apreciação do tribunal, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte em defesa da sua pretensão” (cf. Oliveira Mendes, na anotação ao art. 379º do Código de Processo Penal Comentado, 2ª ed., págs. 1132-1133, e Acórdãos do STJ de 24.10.2012, proc. 2965/06.0TBLLE.E1, e de 12.2.2009, proc. 131/11.1YFLSB em www.dgsi.pt).

No caso, entende o recorrente que integra a norma em causa o facto de não terem sido atendidos os meios de prova que indica, a saber, a carta de fls. 250, os documentos juntos pelo arguido e pela ofendida em audiência de julgamento, os requerimentos de 15.10.2018 e de 19.11.2018, e a carta manuscrita da ofendida junta aos autos em 5.11.2018.

Salvo o devido respeito, não integra a nulidade prevista no art. 379º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, por omissão de pronúncia, a falta de referência expressa, na sentença, a um qualquer meio de prova, não resultando de qualquer preceito legal a exigência de pronúncia sobre todos os meios de prova produzidos. Na verdade, as provas não consubstanciam qualquer “questão” de que o tribunal deva conhecer, antes eventual fundamento da decisão de facto a proferir – esta, sim, uma questão cuja decisão é imposta na sentença.

Nem se diga que a sentença incorre na nulidade prevista na al. a) do preceito citado, ou seja, que tenha sido violado o dever de fundamentação a que se refere o art. 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Nos termos daquele art. 374º, n.º 2, a fundamentação de facto da sentença crime divide-se em duas partes: a enumeração dos factos provados e não provados, e a exposição concisa dos motivos que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

Ou seja, a decisão tem de explicitar de forma expressa o porquê da opção tomada, dando a conhecer as razões pelas quais valorou ou não valorou as provas, a forma como a interpretou, e explicando os motivos que levaram o julgador a considerar uns meios de prova credíveis e outros não credíveis, numa exposição lógica e fundamentada dos critérios utilizados na apreciação que efetuou. Só desta forma se cumpre o imperativo constitucional constante do art. 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (dever de fundamentação das decisões judiciais), observando o dever de transparência dos tribunais, e permitindo a compreensão da decisão por parte da comunidade, que tem de perceber a apreciação e os juízos de valor efetuados pelo julgador.

Ora, a lei não impõe que a sentença se pronuncie sobre a totalidade das provas produzidas, podendo encontrar-se perfeitamente cumprido o dever de fundamentação, nos termos referidos, sem que se citem todos os meios de prova produzidos, v.g., por irrelevantes para a decisão da matéria de facto.

Não se exige que o julgador indique, de forma exaustiva, os elementos relevantes para a formação da convicção relativamente a cada um dos factos, mas que consigne as razões de ciência e os restantes elementos que o tribunal considerou relevantes, e que possibilitem conhecer o processo lógico ou racional que determinou que o tribunal concluísse pela ocorrência, ou não, dos factos objeto do processo, na sua globalidade.

Ora, compulsada a fundamentação de facto vertida na sentença recorrida, resultam perfeitamente claras e lógicas as razões pelas quais a Exma. Julgadora julgou provados e não provados os factos declarados. Na sentença são indicadas as provas que fundaram a convicção do julgador, encontrando-se ainda explanado o processo lógico-formal que determinou a atribuição de maior credibilidade a uns meios de prova em detrimento de outros, numa linha sequencial conforme às regras da experiência comum.

A discordância do recorrente quanto à não ponderação de determinado meio de prova, com o objetivo de alterar a factualidade declarada como provada e não provada na sentença proferida, terá de ser invocada e ponderada em sede de impugnação da matéria de facto, e não da nulidade da sentença (cf. o Ac. desta Relação de 14.1.2015, no proc. 72/11.2GDSRT.C1, em www.dgsi.pt).

Em suma, lendo a sentença proferida é perfeitamente percetível a razão pela qual o tribunal decidiu pela prova dos factos que assentou, encontrando-se explicitado o percurso e as razões da valoração efetuada de forma lógica, racional e crítica, bem como as regras da experiência em que se baseia, cumprindo integralmente as exigências de fundamentação contidas no art. 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Não enferma, pois, a sentença das pretendidas nulidades.

4. Da impugnação da matéria de facto

(…)

5. Do preenchimento do crime de violência doméstica

Pese embora a questão da qualificação jurídica se não encontre devidamente individualizada na peça recursiva, é colocada em causa quer na motivação, quer nas conclusões, da mesma forma desordenada com que apresenta outros fundamentos recursivos. Assim, consegue-se grimpar nas conclusões 6, 7, 36 e 41 que o recorrente coloca em causa a subsunção dos factos provados ao crime de violência doméstica, antes admitindo a prática sobre a ofendida de crimes de ofensa à integridade física e de injúria.

Vejamos:

Nos termos do artigo 152º, nº 1, alínea d), do Código Penal, comete o crime de violência doméstica quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdades e ofensas sexuais a pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite.

Trata-se de uma autêntica penalização da violência na família.

O bem jurídico tutelado pela norma é plural e complexo, visando no essencial a defesa da integridade pessoal (física e psíquica) e a proteção da dignidade humana, no âmbito de uma relação interpessoal.

O crime em causa é um crime específico, porquanto exige, para o seu preenchimento, que se verifique em concreto uma relação de proximidade entre o agente e a vítima, nos termos descritos na norma, atual ou entretanto terminada.

Para o preenchimento do tipo legal de crime poderá bastar uma só conduta, conforme expressamente resulta da letra da norma incriminadora, desde que revista gravidade suficiente para ser qualificada como de “maus tratos” – constituindo o preenchimento deste conceito o cerne da qualificação daquela conduta como “violência doméstica”. Assim, o crime de violência doméstica é uma forma especial do crime de maus tratos (v. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3ª ed., págs. 592 a 594).

Os maus tratos que consubstanciam violência doméstica podem ser físicos e/ou psíquicos, privações de liberdade e ofensas sexuais – ou seja, toda a lesão ou perturbação corporal ou psíquica, e todas as agressões à liberdade pessoal, à liberdade sexual, e à honra, constituindo estes os bens jurídicos protegidos pela norma incriminadora.

Os maus tratos físicos correspondem ao crime de ofensa à integridade física simples, e os maus tratos psíquicos aos crimes de ameaça simples ou agravada, coação simples, injúrias simples ou qualificadas.

Exige ainda o tipo legal de crime que os factos praticados (maus tratos), atento o circunstancialismo concreto da vida familiar e a sua repercussão sobre a mesma, transmitam um quadro de degradação da dignidade da vítima, que seja incompatível com a liberdade e dignidade da pessoa.

É esta envolvência específica que justifica que uma ou várias atuações que preencheriam os tipos legais de crime de ofensa à integridade física, ameaça, coação ou injúria sejam tratados como uma unidade, a justificar a qualificação da conduta como violência na família, bem como a tutela especial e reforçada concedida pelo crime de violência doméstica. É que o tipo legal de crime visa não só proteger a integridade pessoal da vítima (física ou psíquica), mas também a dignidade humana no âmbito de uma concreta relação interpessoal.

Na verdade, as relações pessoais descritas na norma têm a potencialidade de criar situações de vulnerabilidade, dependência ou sujeição que podem propiciar tratamentos humilhantes, degradantes, ou de amesquinhamento.

Assim, das ações concretas que se provem, mesmo que seja apenas uma, através do seu carácter violento ou pela sua configuração global, terá de resultar um desrespeito, desconsideração ou rebaixamento pela pessoa da vítima, ou um desejo de prevalência, de humilhação, vexame ou de cominação sobre a mesma, donde resulte um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da sua dignidade pessoal.

E é esta degradação que decorre da factualidade provada.

Na verdade, e conforme ficou expresso na sentença proferida, “o comportamento do arguido tal como apurado reconduz-se a um comportamento ofensivo da sua mulher que, na sua globalidade, pela reiteração e significado – ainda que desenvolvido num lapso de tempo relativamente curto -, assume uma dimensão manifestamente ofensiva da dignidade pessoal da ofendida. Efetivamente, o arguido atingiu fisicamente, injuriou, ameaçou e perseguiu a ofendida, atingindo, pois, a sua integridade, física e moral, bem como a sua liberdade, causando infelicidade e humilhação perante os filhos e, assim, uma situação global de desrespeito pela sua pessoa.”. Com razão.

Na verdade, as circunstâncias em os atos foram praticados pelo arguido, perspetivados em conjunto, traduzem um comportamento global que atinge, em concreto e em qualquer comum destinatário, a dignidade pessoal da vítima.

A conduta do arguido é denotadora de grande desrespeito pela ofendida, demonstrativa de forte desconsideração pela sua dignidade pessoal, suscetível, em termos de normalidade, de lhe causar forte humilhação, quer psíquica quer fisicamente.

A natureza dos atos isoladamente praticados, a potência ofensiva que adquirem no seu conjunto e com a sua reiteração e, sobretudo, os efeitos destrutivos que os mesmos provocaram na vivência global da ofendida (no seu mundo real, que comporta a gestão da liquidação da sua relação pessoal com a recorrente, mormente nos campos da afetividade e respeito), afetaram a dignidade e integridade física da mesma (compreendida na sua dimensão de ofensa da saúde física, psíquica e mental).

A atuação do recorrente preenche, assim, na sua plenitude, o conceito de maus tratos físicos e psíquicos consagrado no artigo 152º, nº1, do Código Penal, bem como as circunstâncias agravantes imputadas na sentença.

O elemento subjetivo do crime de violência doméstica, na forma de dolo direto (quer no tocante ao dolo genérico, quer ao dolo específico), encontra-se provado.

Conclui-se, assim, pelo acerto da decisão recorrida no tocante à qualificação jurídica dos factos apurados.

6. Do pedido de indemnização cível

O tribunal recorrido fixou a quantia de 7.500,00€ para reparação dos danos causados à ofendida, decisão contra a qual se insurge o Recorrente.

Como fundamento da sua discordância, alega o recorrente que o montante arbitrado é desproporcional e exageradamente elevado, tendo em conta os critérios fixados na lei e os factos dados como provados.

Não coloca em causa o recorrente merecerem os danos sofridos pela ofendida em virtude da sua conduta a tutela do direito, nos termos do art. 496º, n.º 1, do Código Civil.

Ora, nos termos do disposto no art. 496º, n.º 3, do Código Civil, o montante da indemnização por danos não patrimoniais é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em consideração as circunstâncias referidas no art. 494º do mesmo Código, a saber:

1- a gravidade e extensão dos prejuízos;

2- o grau de culpabilidade do lesante;

3- a situação económica deste e do lesado, e

4- as demais circunstâncias do caso.

Quanto ao primeiro ponto, temos como provado que a ofendida se sentiu humilhada, vexada, envergonhada e desgostosa, tendo sentido medo deque o arguido concretizasse as suas ameaças; e que a conduta do arguido lhe afetou o sono, o descanso e a alimentação, o que se refletiu na sua saúde (factos 14 e 15).

Tendo em consideração o período temporal em que ocorreram os factos, e ter o arguido/demandado emigrado para Espanha e depois para os EUA logo após a separação do casal, graduamos a gravidade e extensão dos danos como medianas.

Quanto ao grau de culpa, é elevado, tendo o recorrente atuado na forma mais grave de culpa: o dolo direto.

A situação económica do lesante/recorrente é razoável, ignorando-se a situação económica da lesada.

Considera-se ainda relevante o número e elevada gravidade e ilicitude das condutas ilícitas provadas, geradoras de danos de natureza psíquica muito importantes, como sucedeu em concreto.

Na sentença recorrida, mereceu a fixação do montante indemnizatório a seguinte fundamentação: “Ora, ponderando as referidas circunstâncias, designadamente a natureza do dano moral sofrido pela ofendida, atingida no seu bem-estar físico e psíquico por uma conduta reiterada e intensa – contemplando essencialmente injúrias, ameaças de morte, insinuações, perseguições – ainda que num lapso de tempo relativamente curto, o ponderoso grau de culpa do lesante (no decurso de um casamento de 27 anos, sendo a ofendida mãe de dois filhos do arguido), e a sua situação económica (subsistindo num país com um nível de vida mais elevado, onde se encontra a trabalhar), entende-se adequado condenar o arguido / demandado no pagamento da quantia de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros).

Sendo certo que não existe uma bitola indicativa do montante a fixar a título de indemnização através da equidade, tem cada vez mais sido afirmado pelos tribunais superiores a necessidade de adequar as indemnizações ao modo de vida atual, arredando as antigas indemnizações miserabilistas que eram fixadas. Essencial para o efeito será a consideração dos rendimentos de quem fica obrigado ao pagamento da quantia arbitrada, que deverá ser tão mais elevada quanto os danos causados no caso concreto.

Pelas razões apontadas, entende-se adequada a quantia fixada a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pela requerente cível.

V. DECISÃO

Pelas razões expostas, acordam os juízes desembargadores da 5ª Seção do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 5 UC’s (arts. 513º, n.º 1, do CPP, e tabela III anexa ao RCP).

Coimbra, 7 dezembro de 2021

Ana Carolina Cardoso (relatora – processei e revi)

João Novais (adjunto)