Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
593/11.7TBNZR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO
OBRAS
Data do Acordão: 05/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 5
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.1083, 1111 CC
Sumário:
1 - A censura da decisão sobre a matéria de facto exige, a montante, o cumprimento dos requisitos formais do artº 640º do CPC e, a jusante, o chamamento de meios de prova que, só por si, inequivocamente contrariem os aduzidos pelo julgador, ou, ao menos, a efectivação de uma análise discriminada, objetiva, crítica, logica e racional da prova, que claramente convença no sentido propugnado.

2 - Na substanciação do conceito indeterminado da inexigibilidade da manutenção do contrato de arrendamento, percussora da sua resolução, por virtude de obras do inquilino no locado - artº 1083º nº2 do CC -, têm sempre de ter-se em consideração princípios de proporcionalidade e adequação, atenta, vg., a natureza e finalidade das obras, a amplitude da afetação do locado e as expectativas das partes na manutenção/cessação do contrato atenta a sua curta ou longa duração.

3 – Em todo o caso, sobre o senhorio impende, liminarmente, o ónus de provar um dos requisitos do seu direito à resolução, qual seja, que as obras foram efectivadas sem o seu consentimento.

4 – Sendo que, se as obras forem exigidas, legal ou administrativamente, para assegurar o fim do contrato, o arrendatário pode realizá-las sem necessidade de autorização do senhorio – artº 1111º nº2 do CC.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.
B (…), instaurou contra A (…) acção declarativa, de condenação, sob aforma de processo ordinário.

Pediu:
a) Seja decretada a cessação por resolução do contrato de arrendamento referente ao imóvel que identifica;
b) A condenação do réu no despejo imediato do local arrendado e a sua entrega devoluto de pessoas e bens.
Para tanto alegou, em síntese:
É proprietária do imóvel inscrito na matriz da freguesia da … sob o artigo nº ....
No início do mês de Junho de 2010, o réu iniciou obras no locado, sem prévia comunicação e autorização da autora, obras que alteraram toda a estrutura do local arrendado.
Em 30.04.2010, o réu cessou a sua actividade, deixando de exercer qualquer actividade no locado, que passou a ser exercida por um filho seu.

O réu contestou e deduziu reconvenção.
Alegou:
Em 10.01.1986 tomou de trespasse o estabelecimento comercial de casa de pasto a funcionar
no imóvel.
No contrato de arrendamento celebrado com A (…) em Janeiro de 1986 não existe qualquer cláusula referente a obras.
Desde o ano de 1986 explorou o referido estabelecimento comercial, ininterruptamente e com a finalidade para que o tomou de trespasse e outorgou o arrendamento, isto é para casa de pasto, onde servia comidas e bebidas.
Em 04.12.2009, a ASAE encerrou o estabelecimento em causa o que a autora conhecia.
Teve que fazer obras, as quais se iniciaram em Junho de 2010 com conhecimento e autorização da autora.
Cessou a sua actividade por motivos de saúde, reiniciando-a em 25.01.2012, sendo que durante aquele período temporal, a actividade do estabelecimento sempre foi assegurada pela sua mulher e filho.
Pede a improcedência da acção.
Em reconvenção peticiona a condenação da autora no pagamento de € 50.000,00, montante que despendeu com as obras, as quais passaram a fazer parte integrante do edifício da autora e que igualmente a beneficiaram.

Replicou a autora alegando que as obras não foram por si autorizadas, e que o estabelecimento foi explorado por terceiros, nunca tendo dado autorização para o efeito.

2.
Prosseguiu o processo os seus termos tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:
«I- Julgo a acção improcedente e consequentemente, absolvo o réu dos pedidos contra si formulados.
II- Julgo improcedente o pedido reconvencional, absolvendo a autora do mesmo.
Custas da acção pela autora e da reconvenção pelo réu. (artº 527º nº 1 do CPC)»

3.
Inconformado recorreu a autora.
Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. A Recorrente é proprietária da fração “…” correspondente ao R/C Esq.º, destinado a casa de pasto, sito na Rua …, em ....
2. O R. é inquilino da Recorrente.
3. No ano de 2010, o R. fez várias obras no locado, sem qualquer autorização da senhoria para o efeito.
4. As obras executadas foram as constantes do ponto 13, dos factos dado como provados.
5. As quais, para a Recorrente e na sua modesta opinião, em nada beneficiaram o locado.
6. À sua revelia e violando o seu direito de propriedade, o R. alterou totalmente a configuração do imóvel.
7. Não consta no facto provado sob o nº 13, mas além das al. a) a h) e tal como consta do relatório pericial, foi feita pelo R. uma cozinha e uma copa que alteraram totalmente a configuração do imóvel.
8. A Recorrente, considera-se muito prejudicada com a realização dessas obras.
9. As obras realizadas pelo R. são ilícitas.
10. O Réu realizou obras, em claro desrespeito pelas condições previstas nos art.º 1036º - 1043º. nº 1, 1073º, nº 1 e 1074, nº 2, do Código Civil.
11. Logo o Senhorio, tem direito a resolver o contrato.
12. Pelos factos expostos, a Recorrente, não se conforma com a decisão proferida, pelo Tribunal a quo.
13. Da produção da prova, testemunhal e pericial, resultaram vários outros factos provados que foram ignorados pela Meritíssima Juiz a quo, quando há prova inequívoca dos mesmos, nomeadamente a construção da cozinha e da copa, que transformaram por completo o locado.
14. O R. para as realizar necessitava de consentimento escrito do Senhorio – art.º 1074º, nº 2, do Código Civil.
15. Pelo que, deverá ser substituída a decisão proferida, por outra que resolva o contrato de arrendamento.

Contra alegou o réu, pugnando pela manutenção do decidido, com os seguintes argumentos finais:
1 – Na nossa humilde opinião, a douta sentença recorrida é inatacável, tendo julgado com acerto e perfeita observância dos factos e da lei aplicável, não podendo o pleito, conscienciosamente, ser resolvido doutra maneira.
2 - Ainda que assim não se entendesse, e sem conceder, a verdade é que apesar de a Apelante ter interposto recurso e formulado as respectivas alegações (e conclusões), fê-lo em total desrespeito pelo regime jurídico respectivo e constante das normas dos artigos 639.º e 640.º, do CPC., pelo que, salvaguardando o devido respeito por melhor e douta opinião, o mesmo deveria desde logo ser rejeitado.
3 – Não obstante a Apelante ter invocado nas suas doutas Alegações que o Tribunal a quo não procedeu a uma correcta interpretação da prova produzida, testemunhal, documental e pericial, tendo proferido uma sentença em contradição com os factos considerados provados e ter feito presunções sem eco na prova produzida, originando uma decisão infundada e, ainda, nas conclusões ter afirmado que, “da produção da prova, testemunhal e pericial, resultaram vários outros factos provados que foram ignorados pela Mt.ª Juíza a quo, quando há prova inequívoca dos mesmos, nomeadamente a construção da cozinha e da copa, que transformaram por completo o locado.”, o que é certo é que não se consegue entender quais são os fundamentos do seu pedido de anulação da douta sentença recorrida.
4 – Na verdade, em parte alguma do seu douto recurso, a Apelante indica as normas jurídicas que fundamentaram a douta sentença e que considera terem sido violadas pela mesma, em que medida o foram e o sentido em que, no seu entender, deviam ter sido interpretadas e aplicadas; igualmente não especifica os concretos meios probatórios, constantes do processo e da gravação, com indicação exacta das passagens da mesma em que se fundou o seu recurso, bem como a decisão que considera dever ter sido proferida sobre as questões de fato impugnadas.
5 - Nas suas conclusões, a Apelante entra notoriamente em contradição flagrante e insanável relativamente à questão das obras efectuadas pelo Apelado, pois começa por afirmar (Ponto 3, das Conclusões) que as obras executadas foram as dadas como provadas pela Mt.ª Juíza a quo (aliás, com base na prova pericial e testemunhal, com especial relevo para o depoimento do Arquitecto responsável pela instrução do processo camarário de alvará de autorização de utilização) para, logo a seguir (Pontos 7 e 13, das Conclusões) alegar que, conforme consta no Relatório Pericial (o que até é totalmente falso, pois não consta nada disso!), o Apelado teria feito uma cozinha e uma copa que alteraram totalmente a configuração do imóvel e que a Mt.ª Juíza a quo teria ignorado este facto, na sua opinião, comprovado pela prova pericial e testemunhal.
6 – Sem indicar em que parte do Relatório Pericial consta esse facto e que testemunha (nomeadamente arrolada por si) o teria afirmado e em que parte da gravação do respectivo depoimento constará!...
7 – Motivo também bastante para de imediato dever ser rejeitado o presente recurso, salvo melhor e douta opinião.
8 – Respaldamos, portanto, aqui o teor do extracto do depoimento da referida testemunha, acima transcrito e o conteúdo do Relatório Pericial, mormente nas respostas dos Srs. Peritos aos Quesitos 3 e 4, onde inequívoca e unanimemente afirmam não terem sido realizadas obras estruturais e as que foram realizadas (Ponto 13, dos Factos Provados) terem melhorado e beneficiado o locado, também na sua funcionalidade e, além e por via disso, tendo aumentado o valor patrimonial do locado (Srs. Peritos do Tribunal e da Autora e Sr. Perito do Réu, respectivamente).
9 – A Apelante ousa inclusivamente alegar factos em sede deste recurso completamente ex nuovo, que não foram sequer articulados na sua douta Petição Inicial, tais como a construção, pelo Apelado, de uma cozinha e copa e “a Recorrente ter ficado muito prejudicada com estas obras” e que, obviamente, nem integraram o Objecto do Litígio e os Temas da Prova!
10 - Porém, nem concretiza nem especifica em que medida é que a Apelada teria ficado muito prejudicada com a alegada feitura da cozinha e da copa.
11 – Mau grado a Apelante não cumprir de todo com as obrigações legais decorrentes do regime processual dos recursos, o que de imediato deveria, salvo melhor e douta opinião, determinar a rejeição do recurso interposto, avocamos aqui, com a devida vénia, a fundamentação da douta decisão impugnada (cfr excerto já anteriormente transcrito), que, igualmente com o devido respeito, sufragamos na sua íntegra.
12 - Pelo exposto e pelo que doutamente for suprido, a douta sentença recorrida deve ser mantida, porque está elaborada em harmonia com a matéria fáctica dada como provada, em consonância com a prova produzida nos autos (pericial, documental e testemunhal) e em audiência de discussão e julgamento (por acordo das partes, pericial, documental e testemunhal), numa correcta interpretação e aplicação das normas em vigor, sem nenhuma contradição e com uma ampla e suficiente fundamentação, aliás, inatacável, e cuja impugnação por parte da Apelante, não cumpriu os requisitos legais, previstos nas normas dos artigos 639.º e 640.º, do CPCivil, rejeitando-se o presente recurso, ou, a não se entender como tal, negando-se provimento ao recurso, para se fazer a costumada JUSTIÇA!

4.
Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

1ª - Alteração da decisão sobre a matéria de facto.
2ª - Improcedência da ação.

5.
Apreciando.
5.1.
Primeira questão.
5.1.1.
No nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº607 nº5 do CPC.
Perante o estatuído neste artigo, exige-se ao juiz que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.
O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente; mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed. III, p.245.
Acresce que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.
Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.
Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, p.03B3893 dgsi.pt.
Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.
Nesta conformidade - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.
Mas tal é inelutável. O que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro.
O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.
E tendo-se presente que a imediação e a oralidade dão um crédito de fiabilidade acrescido, já que por virtude delas entram, na formação da convicção do julgador, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, e fatores que não são racionalmente demonstráveis.
Sendo que estes princípios permitem ainda uma apreciação ética dos depoimentos - saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade– a qual não está ao alcance do tribunal ad quem - Acs. do STJ de 19.05.2005 e de 23-04-2009 dgsi.pt., p.09P0114.
Nesta conformidade constitui jurisprudência sedimentada, que:
«Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela. – Ac. do STJ de.20.05.2010, dgsi.pt p. 73/2002.S1.
5.1.2.
Ademais:
«A reforma do Código de Processo Civil de 2013 não pretendeu alterar o sistema dos recursos cíveis…mas teve a preocupação de “conferir maior eficácia à segunda instância para o exame da matéria de facto”, como se pode ler na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XII apresentada à Assembleia da República…Essa maior eficácia traduziu-se no reforço e ampliação dos poderes da Relação, no que toca ao julgamento do recurso da decisão de facto; mas não trouxe consigo a eliminação ou, sequer, a atenuação do ónus de delimitação e fundamentação do recurso, introduzidos em 1995. Com efeito, o nº 1 do artigo 640º vigente, aplicável ao recurso de apelação que agora nos interessa:
– manteve a indicação obrigatória “dos concretos pontos de facto” que o recorrente “considera incorrectamente julgados” (al. a),
– manteve o ónus da especificação dos “concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos de facto impugnados diversa da recorrida” (al. b), – exigiu ao recorrente que especificasse “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” (al. c), sob pena de rejeição do recurso de facto. E à mesma rejeição imediata conduz a falta de indicação exacta “das passagens da gravação em que se funda” o recurso, se for o caso, sem prejuízo de poder optar pela apresentação da “transcrição dos excertos” relevantes.» - Ac. do STJ de 01.10.2015, sup. cit.
Assim, estatui o artº 640º do CPC:
“1 — Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; »
Por outro lado, como dimana do já supra referido, e como constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, o recorrente não pode limitar-se a invocar mais ou menos abstrata e genericamente, a prova que aduz em abono da alteração dos factos.
A lei exige que os meios probatórios invocados imponham decisão (não basta que sugiram) diversa da recorrida.
Ora tal imposição não pode advir, em termos mais ou menos apriorísticos, da sua, subjetiva, convicção sobre a prova.
Porque, afinal, quem tem o poder/dever de apreciar/julgar é o juiz.
Por conseguinte, para obter ganho de causa neste particular, deve ele efetivar uma análise concreta, discriminada, objetiva, crítica, logica e racional, de todo o acervo probatório produzido, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão.
A qual, como é outrossim comummente aceite, apenas pode proceder se se concluir que o julgador apreciou o acervo probatório com extrapolação manifesta dos cânones e das regras hermenêuticas, e para além da margem de álea em direito probatório permitida e que lhe é concedida.
E só quando se concluir que a natureza e a força da prova produzida é de tal ordem e magnitude que inequivocamente contraria ou infirma tal convicção, se podem censurar as respostas dadas.– cfr. neste sentido, os Acs. da RC de 29-02-2012, p. nº1324/09.7TBMGR.C1, de 10-02-2015, p. 2466/11.4TBFIG.C1, de 03-03-2015, p. 1381/12.9TBGRD.C1 e de 17.05.2016, p. 339/13.1TBSRT.C1; e do STJ de 15.09.2011, p. 1079/07.0TVPRT.P1.S1., todos in dgsi.pt;
5.1.3.
No caso vertente a autora parece – pontos 7 e 13 das conclusões - insurgir-se contra a não prova de certa factualidade, rectius de não ter sido dado como provado que o réu construiu no locado uma cozinha e uma copa que alteraram totalmente a configuração do imóvel.
A julgadora fundamentou a decisão fáctica nos elementos probatórios produzidos, como seja a prova documental e testemunhal, tendo operando uma concreta e concisa dilucidação e análise crítica de tais elementos.
Assim, para que tal análise e respectiva convicção pudessem ser censurados, a recorrente teria de aduzir elementos probatórios que, por si próprios, objectivamente considerados, ou, até, pela análise dos mesmos, fosse inequívoco, ou, no mínimo, acutilantemente provável, que os elementos considerados pela julgadora, ou a dilucidação por ela deles operada, teriam de ser postergados, aqueles, ou teria de ceder, esta.
Ora nada disto foi efectivado e se verifica.
Vistas e revistas as alegações recursivas, nem no seu corpo, nem nas suas conclusões a recorrente efectiva o chamamento dos concretos meios probatórios que poderiam obrigar/implicar a alteração dos factos.
E, muito menos, opera deles uma análise e interpretação com as exigíveis características supra referidas em 5.1.2.
Limitando-se, genericamente e quase en passant, a aludir à prova produzida, máxime a testemunhal.
Mas tal não basta, como se viu.
Ademais e no atinente à prova pessoal, deveria ela outrossim cumprir o requisito formal previsto na al. a) do nº2 do artº 640º, o que não fez.
O que, só por si, é o suficiente para a não admissão do recurso, pelo menos no que concerne à apreciação deste meio de prova.
Ora tendo ele tido particular relevância para a decisão, e inexistindo nos autos outra prova que, necessária e inelutavelmente, se lhe imponha, é evidente que toda esta sua – aliás nem sequer inequívoca mas apenas indiciada - pretensão tem de soçobrar.
5.1.4.
Nesta conformidade, os factos a considerar são os apurados na 1ª instância, a saber:
1- Encontra-se descrito a favor da autora na Conservatória do Registo Predial da ..., sob o nº … o prédio correspondente ao rés do chão esquerdo destinado a indústria similar de hotelaria (casa de pasto), com a área de 42,63 m2 com os números … e … de polícia da Rua … de polícia da Rua ….
2- Por escritura pública outorgada no dia 10.01.1986, no Cartório Notarial da ..., o réu tomou de trespasse a I (…) um estabelecimento comercial de casa de pasto instalado, a funcionar no rés do chão com entrada pelos números … e …., de polícia, do prédio urbano sito na …, da freguesia da ..., inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo …, abrangendo o mesmo a cedência da respectiva chave, alvarás, utensílios e mercadorias e demais bens ou direitos que o integravam.
3- Por documento particular assinado por A (…) e o réu, o primeiro deu de arrendamento ao segundo, o rés do chão do prédio sito na …, ..., inscrito na matriz urbana sob o artigo … da freguesia e concelho da ..., pelo prazo de um ano, com início em 01.01.1986, sucessivamente renovado pelo mesmo tempo e com as mesmas condições.
4- O arrendamento referido em 3 destinava-se a comércio.
5- Por documento particular assinado por A (…) e o réu, o primeiro deu de arrendamento ao segundo, o rés do chão do prédio sito na …, inscrito na matriz urbana sob o artigo … da freguesia e concelho da ..., pelo prazo de um ano, com início em 08.03.1989, sucessivamente renovado pelo mesmo tempo e com as mesmas condições.
6- O arrendamento referido em 5 destinava-se a taberna.
7- Na cláusula sexta dos documentos referidos em 3 e 5 ficou estabelecido que:
O inquilino obriga-se, sob pena de indemnização, em conservar em bom estado as canalizações de água, luz e esgotos e ainda as paredes, tectos, soalhos, portas e vidros, cujas despesas de reparação será da sua conta, deixando quando sair, tudo limpo e com todos os pertences em bom estado.
Em tudo o mais não expressamente previsto neste título sujeitam-se os contratantes às disposições legais em vigor, obrigando-se ao recíproco cumprimento deste contrato, que é feito em três exemplares iguais.
8- O estabelecimento comercial referido em 2 possuía alvará de licença sanitária para exploração de um estabelecimento de taberna.
9- Desde as datas referidas em 3 e 5 o réu sempre explorou o referido estabelecimento comercial, ininterruptamente até ao mês de Dezembro de 2009, onde servia bebidas e refeições.
10- Com data de 08.03.2010 foi efectuada acção inspectiva e levantado o respectivo auto de notícia no estabelecimento referido em 2, pela Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, por factos ocorridos em 04.12.2009, em virtude de falta de título de abertura, incumprimento das regras de higiene e formação e inexistência de processo baseado nos princípios HACCP, tendo o estabelecimento sido encerrado.
11- Por decisão proferida pela Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, no dia 15.04.2013, o réu foi absolvido da contraordenação correspondente à falta de título válido de abertura e condenado pela prática das seguintes contraordenações:
a) Produtos com falta de requisitos e mal acondicionados;
b) Incumprimento das regras de higiene e formação;
c) Inexistência de processos baseados nos princípios do HACCP.
12- Na sequência da acção inspectiva e respectivo auto de notícia mencionados em 10, o réu, em 2010, efectuou obras no locado mencionado em 3 e 5, com o propósito de colmatar as falhas aí apontadas e assim permitir a reabertura do estabelecimento.
13- As obras referidas em 12 consistiram:
a) Substituição do pavimento da cozinha;
b) Colocação de exaustão ligada à chaminé;
c) Demolição das instalações sanitárias existentes, situadas junto à porta de entrada, e construção de novas instalações noutro local do estabelecimento;
d) Remodelação da rede de águas e esgotos em virtude da alteração da localização das instalações sanitárias;
e) Substituição de revestimentos em tectos e paredes de todo o estabelecimento;
f) Substituição de pavimentos na sala de refeições, instalações sanitárias e zonas de circulação;
g) Substituição de vãos de portas interiores;
h) Substituição da rede de iluminação de todo o estabelecimento.
14- No decurso das obras referidas em 13, a autora teve conhecimento da realização das mesmas.
15- O custo das obras referidas em 13 ascende a uma quantia entre os € 15.000,00 e € 18.919,15.
16- Além das obras referidas em 13 e com o propósito mencionado em 12, o réu adquiriu diverso equipamento para o estabelecimento.
17- Por despacho emitido pelo Presidente da Câmara Municipal da ... de 19.08.2010 foi concedido o alvará de utilização nº … ao estabelecimento referido em 2, classificado como restauração.
18- Em 30 de Abril de 2010, na sequência de um acidente cardiovascular, o réu apresentou nas Finanças a cessação da sua actividade que, entretanto, já retomou.
19- No período referido em 18 e após a data mencionada em 17, o estabelecimento foi explorado pela mulher do réu, com auxílio ocasional dos filhos.
20- Actualmente o estabelecimento referido em 2 encontra-se em funcionamento, sendo explorado pelo réu e pela sua mulher, que nos meses de Verão e aos fins de semana, têm auxílio de terceiros.

5.2.
Segunda questão.
5.2.1.
A Srª Juíza decidiu respaldada no seguinte, essencial, discurso argumentativo/interpretativo:
«Dispõe o artº 1083º nº 1 que qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte.
O nº 2, por sua vez, dispõe que é fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, enunciando depois a título meramente exemplificativo, várias situações que conferem ao senhorio o direito de resolver o contrato.
…à luz do NRAU são requisitos gerais da resolução do contrato
a) O incumprimento da outra parte, que se presume culposo, nos termos do artº 799º;
b) Que tal incumprimento contratual seja grave e altere o equilíbrio da relação locatícia;
c) E que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento.
Verifica-se, deste modo, comparativamente ao regime do RAU que enumerava taxativamente as causas de resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio, que actualmente qualquer incumprimento, mesmo que não referido nas diversas alíneas do nº 2 do artº 1083º poderá ser causa da resolução do contrato…
Assim, e não obstante o artº 1083º nº 2 não fazer qualquer alusão à realização de obras não autorizadas por parte do locatário, tal não significa que tal comportamento não constitua causa de resolução pelo senhorio.
Importa ainda referir que à luz do NRAU a realização de obras como fundamento de resolução é até possível em termos mais latos do que no regime anterior.
Com efeito, preceituava o artº 64º nº 1 al. d) do RAU …Eram então permitido ao senhorio resolver o contrato de arrendamento se o inquilino efectuasse, sem o seu consentimento escrito:
- Obras que alterassem substancialmente a estrutura externa do prédio;
- Obras que alterassem substancialmente a disposição interna das suas divisões;
- Actos que causassem no prédio deteriorações consideráveis.
Actualmente, qualquer tipo de obras, mesmo que não alterem de forma relevante a estrutura externa do prédio ou a disposição interna das suas divisões ou nele causem deteriorações consideráveis podem ser fundamento de resolução do contrato, desde que:
a)Não possam ser integradas na previsão dos artºs 1036º, 1043º nº 1, 1073º nº 1 e 1074º nº 2;
b) Pela sua gravidade ou consequências tornem inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento.
Assim, desde já diga que não obstante a preocupação da autora em classificar as obras realizadas pelo réu como estruturais, o que, como resulta da alínea b) dos factos não provados, não ficou demonstrado, tal circunstância é, por si só, irrelevante para lhe conferir ou não o direito à resolução do contrato, pois que ainda que não tenham sido obras que tenham alterado a estrutura do locado, tal não significa que a autora não tenha direito a resolver o contrato.
Menezes Leitão defende mesmo uma posição mais radical, entendendo que basta a realização de quaisquer obras fora das condições previstas nos artºs 1036º, 1043º nº 1, 1073º nº 1 e 1074º nº 2 para que o senhorio possa resolver o contrato ao dizer que passaram a constituir fundamento de resolução do contrato, independentemente das suas características, uma vez que o arrendatário só limitadamente tem poderes de transformação da coisa locada, pelo que a sua realização pelo arrendatário constitui uma infracção contratual que determina a resolução do contrato, uma vez que nestes casos é manifestamente inexigível ao senhorio a sua manutenção.
Propendemos, porém, para uma tese mais moderada…segundo a qual não bastará a verificação objectiva das obras. Há que ponderar a sua dimensão e natureza, as circunstâncias em que foram feitas, a repercussão que têm na possibilidade de manutenção da relação contratual – enfim, fazê-las passar pelo crivo apertado da cláusula geral (indeterminada) resolutiva daquele nº 2 do artº 1083º do CC.
Quanto ao tipo de obras que é lícito ao arrendatário realizar, à luz do NRAU, dispõe o artº 1043º, que o locatário é obrigado a manter e a restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato.
Este artigo tem em vista as deteriorações provenientes do uso (bom ou mau, prudente ou imprudente) da coisa. Quanto às deteriorações provenientes de uma utilização normal da coisa, conforme aos fins do contrato, isenta-se o locatário de as reparar na altura em que restitui a coisa locada. Indirectamente prescreve-se o dever de reparar as deteriorações causadas por um uso imprudente…
Por outro lado, resulta do artº 1073º (correspondente ao artº 4º do RAU)) que o arrendatário pode efectuar pequenas deteriorações no locado, quando elas se tornem necessárias para assegurar o seu conforto ou comodidade, devendo, de todo o modo, as mesmas serem reparadas pelo arrendatário, antes da restituição do locado, salvo estipulação em contrário…
Para além destas obras, quaisquer outras feitas pelo arrendatário só serão lícitas:
a)As facultadas pelo contrato de arrendamento ou as autorizadas mediante escrito pelo senhorio (artº 1074º nº 2);
b) As reparações ou outras despesas urgentes (artº 1036º);
c) As necessárias para atingir o nível médio de conservação (nível 3) quando o senhorio, instado pelo Município a elas não proceda dentro do prazo, ou as suspenda e retome, no prazo de 90 dias a contar da suspensão, desde que intimado pelo arrendatário em prazo não superior a 30 dias ( artº 48º nºs 1 a 4 do Dec.Lei 157/2006 de 8 de Agosto e 5º nº 2 do Dec.Lei 156/2006 de 8 de Agosto).
Fora deste circunstacialismo, quaisquer outras obras efectuadas, sem autorização do senhorio não são lícitas, porque violadoras do direito de propriedade daquele. Com efeito… o arrendatário é apenas titular de um direito pessoal de gozo que lhe permite usar o prédio, mas não transformá-lo ou alterar-lhe a fisionomia, desfigurando-o ou descaracterizando-o.
Volvendo ao caso dos autos, encontra-se provado (cf. facto 13)...
É bom de ver que estas obras nada têm que ver com as deteriorações do locado, nem são obras destinadas a assegurar o conforto e comodidade do réu. Por outro lado, não se tratou de obras urgentes, nem exigidas pelo município, tratando-se sim de obras de transformação do locado, obras dotadas de alguma envergadura, e que, por isso não estão previstas nos normativos acima referidos.
Deste modo, para a sua realização o réu necessitava de consentimento escrito do senhorio, salvo se as mesmas estivessem previstas no contrato, como determina o artº 1074º nº 2.
Sabendo nós que a autora não autorizou a realização de quaisquer obras, percorrendo o contrato, poderemos concluir que as mesmas são enquadráveis no clausulado constante daquele documento?
Dispõe a cláusula sexta do contrato de arrendamento e melhor descrita no facto 7…
Em tudo o mais não expressamente previsto neste título sujeitam-se os contratantes às disposições legais em vigor, obrigando-se ao recíproco cumprimento deste contrato, que é feito em três exemplares iguais…
Entendemos que este segundo parágrafo remete senhorio e arrendatário para as disposições legais em vigor, a significar que ambos lhe devem obediência. Se assim é, posto que as normas legais o imponham, quaisquer obras estariam autorizadas pelo primeiro, desde que se tratassem de obras que visassem a prossecução do fim do arrendamento.
E com efeito, temos provado que as obras efectuadas pelo réu se destinaram a tornar o local conforme à legislação referente às condições de higiene e segurança a que devem obedecer os estabelecimentos de restauração...
Deste modo e porque as obras visaram adaptar o estabelecimento à legislação que regula o funcionamento da actividade ali desenvolvida estavam expressamente previstas no contrato, que impunha, como vimos, o seu respeito por ambas as partes, pelo que a sua realização não configura qualquer incumprimento contratual que justifique a resolução daquele pela autora.
Ainda que assim não se entendesse, isto é, ainda que se considerasse que as obras de adaptação ao fim a que se destina o locado careceriam de autorização do senhorio, e por aí que a realização das obras pelo réu constituem um ilícito contratual, nem assim consideramos que, no caso concreto, se justificasse a resolução do contrato pela autora.
Com efeito, como já bastas vezes aludimos supra, não é fundamento bastante da resolução contratual pelo senhorio a simples realização de obras pelo arrendatário. Necessário é que se possa concluir que a sua realização é de tal modo grave que torne inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento…(o que) há-de determinar-se, essencialmente, sob uma perspectiva de lesão dos interesses materiais do senhorio…
Ora…não vemos como possa ela (autora) ter sido prejudicada com a realização das obras. É certo que as mesmas assumem alguma envergadura, mas voltamos a sublinhar as mesmas mostravam-se necessárias à prossecução do fim do arrendamento, a significar que se não tivessem sido realizadas, o local em causa não teria qualquer utilidade locativa,…
Em suma, ainda que as obras em causa fossem ilícitas, a sua realização nunca seria de tal modo grave que tornasse inexigível à autora a manutenção do arrendamento.»
5.2.2.
Esta dilucidação apresenta-se, na sua essencialidade relevante, em tese, curial, e, para este nosso caso concreto, adequado, atentos os seus apurados contornos fáctico circunstanciais.
Em seu abono, e quiçá ad abundantiam, reitera-se que, efectivamente, as obras efectuadas se apresentam como lícitas, porque necessárias, já que foram impostas pela autoridade pertinente porque legalmente exigíveis para a consecução da finalidade locatícia.
Ou seja, as obras nem sequer são dimanantes de um ato voluntário do arrendatário, mas antes a este foram impostas, porventura contra a sua vontade.
E, tanto quanto se pode deduzir dos factos provados, as obras efectuadas foram apenas as necessárias e exigíveis para a finalidade locatícia consensualizada pois que não se apurou que outras, de motu próprio, tenham sido efectivadas para além daquelas.
Assim sendo, maior aquidade e relevância ganha a melhor teoria interpretativa dos preceitos convocáveis.
A saber: que para a substanciação do conceito indeterminado previsto no artº 1083º nº2 do CC, qual seja, a inexigibilidade na manutenção do contrato necessária à sua resolução, apenas advém se as obras - atento, vg., a sua natureza, finalidade, (i)rreversibilidade, maior ou menor amplitude de afectação do locado e considerando outras especificidades do caso, como seja a curta ou longa duração do contrato -, ferirem princípios de proporcionalidade e adequação, e frustem, ou não, as expectativas que as partes possam ter criado na sua manutenção ou cessação; e tudo, obviamente, temperado pelo magno princípio de atuação com razoabilidade e boa fé.
É este o entendimento do nosso mais Alto Tribunal quando, para um caso muito similar, decidiu:
«Não justifica a resolução de contrato de arrendamento, celebrado para o exercício de actividade comercial e em vigor há mais de 15 anos, a realização pelo locatário de obra de escasso relevo construtivo que – extravasando embora o estrito plano da mera conservação e adequação do locado ao fim do contrato – não afecta substancialmente e de forma relevante a estrutura e divisão interna do locado…
A ratio do preceito em análise…deve relacionar-se com um determinado equilíbrio contratual. ..não será justo impor-se ao senhorio, como proprietário do bem, que tenha de manter o ónus vinculístico sobre o objecto do seu direito, perante uma inobservância tão acentuada das obrigações que incumbem ao arrendatário (deveres que o art. 1038º do C.Civil referencia)...O abuso acentuado deve originar a sanção de resolução do contrato.
(mas)…o arrendatário…poderá efectuar as obras necessárias à adequação do arrendado ao fim do arrendamento. É que, neste caso, deve ter-se como autorizadas tais obras, porque decorrem da vinculação da vontade do senhorio à finalidade concedida para o arrendamento. ..De resto, no caso de um senhorio reagir a obras necessárias efectuadas pelo arrendatário de molde a adequar o locado ao fim do arrendamento, poder-se-á colocar até a situação de abuso de direito na modalidade de venire contra factum próprio…»
…seria perfeitamente desproporcionado à gravidade da violação contratual cometida o decretamento da extinção do arrendamento – traduzindo, nessas circunstâncias, tal extinção por iniciativa do senhorio manifesta violação das exigências da boa fé contratual.
A primeira circunstância a ponderar - e a que se atribui particular relevo - é a longa duração temporal da relação contratual em litígio, já que, conforme resulta da factualidade provada, estamos confrontados com contrato de arrendamento comercial que dura desde 1987 : na verdade, esta longa duração da relação de arrendamento – e a estabilidade que lhe vai associada, bem como a confiança das partes na sua provável subsistência…
Esta prolongada duração da relação contratual implica, aliás, que tenha de interpretar-se em termos razoáveis a expectativa do senhorio em reaver o locado no preciso estado em que o entregou ao inquilino…este interesse ou expectativa - que pode revelar-se razoável e proporcional em arrendamentos, reportados a imóveis entregues em perfeito estado conservação e que vigoraram por períodos temporais limitados – perde claramente consistência quando se trata de reaver prédio arrendado há muitos anos, em estado de deficiente conservação e no qual o senhorio não realizou, durante esse período, qualquer obra…
Tem ainda particular relevância e acuidade na avaliação da possível eficácia resolutiva do facto em apreciação a circunstância de o fim do arrendamento ser o exercício de actividade comercial, no ramo de comidas e bebidas: na realidade, nesta peculiar situação a ausência de obras no locado durante vários anos – porque o senhorio as não fez e o locatário cumpriu escrupulosamente o dever de manter a coisa no preciso estado em que a recebeu – acabaria seguramente por inviabilizar, em termos práticos, o fim do contrato, obstando a obsolescência e degradação das instalações ao exercício administrativa e economicamente viável de actividade naquele ramo, perante as crescentes exigências de adequação e salubridade das instalações, …nestes casos não pode sancionar-se a realização de obras pelo locatário do estabelecimento, ainda que não expressamente autorizadas, na medida em que estas se revelem imprescindíveis ao prosseguimento da actividade económica no locado, visando cumprir disposições legais ou regulamentares ou exigências formuladas pelas autoridades administrativas competentes para a fiscalização (cfr. Ac. de 8/4/10, proferido pelo STJ no P. 667/05.3TBCBT.G1.S1).» - Ac. do STJ de 20.11.2014, p. 1612/04.9TBFAF.G1.S, relator Cons. Lopes do Rego.
(sublinhado nosso)
Como se vislumbra, neste arresto deliberou-se para caso muito idêntico ao presente, quer, vg. na necessidade das obras para manutenção do fim do arrendamento - ele também de comidas e bebidas -, quer no atinente à prolongada duração do contrato.
Nesta conformidade, quer por virtude da realização da justiça material do presente caso concreto - naturalmente que atentos os factos provados e a postura hermenêutica que se tem como mais consentânea e adequada aos normativos pertinentes e a mais sufragada pela doutrina e jurisprudência -, quer por virtude da consecução da também almejada justiça relativa ou comparativa - e sendo certo que este caso não encerra qualquer particularidade que imponha ou aconselhe decisão diversa perante tal interpretação -, obvia e naturalmente que ele apenas pode ser decidido em conformidade com tal entendimento.
5.2.3.
Ademais, bem vistas as coisas – e, aqui, vamos mais longe do que a decisão recorrida -, mesmo que assim não fosse ou não se entenda, e mesmo que as obras fossem subjetivamente imputáveis ao arrendatário, a pretensão da demandante soçobraria desde logo, e ab initio, pela falência de um requisito constitutivo da pretensão da autora: a não prova da falta do consentimento para as mesmas por banda da locadora.
Na verdade, e para que o contrato de arrendamento seja declarado resolvido, este requisito é exigível.
E o ónus da sua prova impendia sobre a locadora, pois que ele faz parte dos elementos constitutivos da sua pretensão: a resolução do contrato – artº 342º nº1 do CC.
Ora, como se disse, ele não se provou.
Certo é que não se apurou que: « c) O réu solicitou à autora autorização para a realização das obras referidas em 13, tendo esta autorizado as mesmas;»
Mas, como é consabido, da não prova deste facto não se pode dar como provado o facto seu contrário, ou seja, que a autora não consentiu nas obras.
5.2.4.
Finalmente, e mesmo que também assim não fosse, urge atentar no disposto no artº 1111º do CC:
1 - As regras relativas à responsabilidade pela realização das obras de conservação ordinária ou extraordinária, requeridas por lei ou pelo fim do contrato, são livremente estabelecidas pelas partes.
2 - Se as partes nada convencionarem, cabe ao senhorio executar as obras de conservação, considerando-se o arrendatário autorizado a realizar as obras exigidas por lei ou requeridas pelo fim do contrato.
Assim sendo, no caso vertente, e dada a aludida exigibilidade administrativa das obras, estas revelaram-se necessárias para assegurar a finalidade económica do contrato acordada pelas partes, pelo que o réu poderia/deveria realizá-las.
E sendo que o consentimento da autora locadora, e considerando que no contrato os outorgantes nem sequer anuíram no contrário, não era exigível, porque, ope legis, dispensado. – neste sentido cfr. Ac. da RL de 21.10.2008, p. 8169/2008-7 in dgsi.pt.

Improcede o recurso.

6.
Sumariando- artº 663º nº7 do CPC.
I - A censura da decisão sobre a matéria de facto exige, a montante, o cumprimento dos requisitos formais do artº 640º do CPC e, a jusante, o chamamento de meios de prova que, só por si, inequivocamente contrariem os aduzidos pelo julgador, ou, ao menos, a efectivação de uma análise discriminada, objetiva, crítica, logica e racional da prova, que claramente convença no sentido propugnado.
II - Na substanciação do conceito indeterminado da inexigibilidade da manutenção do contrato de arrendamento, percussora da sua resolução, por virtude de obras do inquilino no locado - artº 1083º nº2 do CC -, têm sempre de ter-se em consideração princípios de proporcionalidade e adequação, atenta, vg., a natureza e finalidade das obras, a amplitude da afetação do locado e as expectativas das partes na manutenção/cessação do contrato atenta a sua curta ou longa duração.
III – Em todo o caso, sobre o senhorio impende, liminarmente, o ónus de provar um dos requisitos do seu direito à resolução, qual seja, que as obras foram efectivadas sem o seu consentimento.
IV – Sendo que, se as obras forem exigidas, legal ou administrativamente, para assegurar o fim do contrato, o arrendatário pode realizá-las sem necessidade de autorização do senhorio – artº 1111º nº2 do CC.

7.
Deliberação.
Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pela recorrente.

Coimbra, 2018.05.08.


Carlos Moreira ( Relator)
Moreira do Carmo
Fonte Ramos