Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2972/19.2TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: LEGATÁRIO
NUA PROPRIEDADE
ACEITAÇÃO
PARTILHA
Data do Acordão: 09/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JL CÍVEL - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.1468, 2024, 2030, 2101, 2265, 2279 CC
Sumário: 1.- Sucedendo o legatário em bens ou valores determinados, a transmissão para o mesmo dos direitos legados dá-se por simples aceitação do legatário e sem necessidade de recurso a qualquer procedimento, designadamente o da partilha, por acordo ou por inventário, sendo lícito ao legatário socorrer-se de uma acção declarativa comum para obter o reconhecimento judicial de tal posição jurídica.
2.- A eventual inoficiosidade do legado não obsta à transmissão para o legatário dos direitos sobre os bens legados sem necessidade de partilha.
Decisão Texto Integral:





Autora: R (…)

: A (…)

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

A autora propôs contra o réu a presente acção com a forma de processo comum, deduzindo o pedido seguidamente transcrito:
Termos em que e nos mais de direito, deve a presente acção ser julgada procedente por provada e, consequentemente, ser o Réu condenado a permitir a entrada nos imóveis e no cofre (bens melhor identificados nos artigos 1.º e 3.º da presente PI), de que é usufrutuário, por parte da Autora, devidamente acompanhada por perito avaliador..
Alegou, como fundamento da sua pretensão e em resumo, que é legatária da nua propriedade dos bens identificados na petição, sendo o réu seu usufrutuário, encontrando-se o réu na posse dos mesmos; pretende exigir do réu a prestação de caução, para o efeito do que tem de proceder a uma inventariação e avaliação dos citados bens, necessitando para tanto de aceder aos mesmos, acompanhada de perito especializado, sendo que o réu se recusa a facultar o referido acesso.
Citado, o réu contestou, pugnando pela improcedência da acção.
Alegou, muito em síntese, que estando o réu na posse dos bens identificados na petição não pode agora ser compelido à prestação de caução, posto que esta só é devida antes do usufrutuário entrar na referenciada posse.
Por outro lado, a autora tem livre acesso, sem necessidade de qualquer colaboração do réu, aos bens que pretende inventariar e avaliar, sendo falso que o réu tenha assumido a recusa de colaboração de que é acusado na petição.
Acresce que existem bens que foram legados à autora que o não poderiam ter sido, porque não pertenciam à legante, razão pela qual o réu proporá acção de anulação do testamento até a decisão final da qual deveria ser suspensa a presente acção.

No despacho saneador, conheceu-se do mérito da acção e proferiu-se decisão de cujo dispositivo consta, designadamente, o seguinte: “Pelo exposto, julgo a acção totalmente improcedente e consequentemente:
a) absolvo o R. A (…) do pedido nestes autos formulado por R(…)
c) Custas a cargo da A. (artigos 527º nº1 do CPC).”.
De notar que nesse despacho o tribunal recorrido apenas se pronunciou sobre os factos que infra se transcreverão em sede de factos provados, na base do entendimento de que a autora não é ainda proprietária dos bens que lhe foram legados, razão pela qual “Quanto aos restantes factos alegados pela A, mesmo a provaram-se todos eles, tornam-se insuficientes para a procedência dos pedidos, e como tal desnecessário se torna efectuar julgamento acerca dos mesmos o qual sempre se revelaria acto inútil.”.
Nesse mesmo despacho e na base desse mesmo entendimento, não se conheceu da questão da suspensão da instância da presente acção suscitada pelo réu na contestação.
Não se conformando com o assim decidido, apelou a autora, rematando as suas alegações com as conclusões seguidamente transcritas:
1. Vem o presente recurso interposto do douto Despacho Saneador/Sentença proferido que julgou a acção proposta pela Autora, aqui Recorrente, totalmente improcedente e, consequentemente, absolveu o Réu, aqui Recorrido, do pedido formulado pela primeira.
2. Ora, o Meritíssimo Juiz a quo baseou a sua decisão – a partir dos factos dados como provados – no pressuposto de que a Recorrente não é proprietária de qualquer bem.
3. Todavia, a Recorrente é proprietária dos bens, móveis e imóveis, em causa nos presentes autos.
4. Assim, salvo melhor opinião, o Meritíssimo Juiz a quo fez uma incorrecta interpretação e aplicação do direito aos factos.
5. Pelo que, deveria ter sido considerado que a Recorrente é proprietária dos bens imóveis e móveis (recheio dos imóveis e do cofre bancário) em causa nos autos e, por conseguinte, que a mesma poderia fazer uso do disposto no artigo 1468.º do Código Civil.
6. E, em consequência, deveria o Recorrido ter sido condenado a permitir a entrada nos imóveis e no cofre, de que é usufrutuário, por parte da ora Recorrente, devidamente acompanhada por perito avaliador. Porquanto:
7. Em primeiro lugar, quanto aos bens legados à Recorrente no primeiro testamento o Meritíssimo Sr. Juiz a quo menciona que o legado abrange quer a raiz ou nua propriedade dos bens imóveis aí referidos, quer o recheio dos mesmos – cfr. factos provados 1 e 2 da douta sentença recorrida.
8. Todavia, quanto aos bens legados à Recorrente no âmbito do segundo testamento, o Meritíssimo Juiz a quo conclui que do testamento não consta que o recheio dos mesmos lhe possa pertencer - cfr. Factos provados 3 e 4 da douta sentença recorrida.
9. A Recorrente discorda com tal entendimento, e isto porque, no segundo testamento pode ler-se que a indicada M (…) «lega a seu filho A (…) o usufruto dos seguintes bens por conta da quota disponível: a) fracção autónoma designada pela letra “P” (…), com o respectivo recheio; b) cofre na agência da C (…) com o número um (…).» e ainda «Que lega por conta da quota disponível à sua neta R (…) a raiz ou nua propriedade dos referidos bens [mencionados em a) e em b)]».
10. Por conseguinte, apenas se pode concluir que (no âmbito do segundo testamento) foi legado à Recorrente a nua propriedade dos bens referidos em a) e em b), ou seja, a citada fracção autónoma, com o respectivo recheio e os bens incluídos no indicado cofre, que se encontram devidamente discriminados no “Auto de Abertura, arrolamento e quitação do conteúdo do cofre n.º 000.95-66-9” (Doc.n.º 3 junto com a PI).
11. Portanto, não restam dúvidas de que à ora Recorrente foi legada a nua propriedade dos três imóveis acima melhor identificados, incluindo o recheio dos mesmos, bem como a nua propriedade dos bens existentes no referido cofre.
12. Em segundo lugar, e voltando à questão inicialmente aludida, ao não reconhecer que a Recorrente é a legítima proprietária dos bens que lhe foram legados pela testadora nos dois testamentos, o Tribunal a quo fez uma incorrecta subsunção dos factos ao Direito aplicável, incorrendo em lapso ao não admitir existir diferenciação no tratamento jurídico das duas espécies de sucessores, herdeiros e legatários. Atente-se.
13. Os sucessores são herdeiros ou legatários, sendo que, diz-se herdeiro o que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e legatário o que sucede em bens ou valores determinados (artigo 2030.º do Código Civil).
14. Neste sentido, o legatário, mesmo que a herança não haja ainda sido partilhada, sabe aquilo a que tem direito, conhece o objecto ou o valor com que foi contemplado pelo testador; ao invés, e no que respeita ao herdeiro, só pela partilha vê concretizado o seu direito, tendo até lá tem uma mera quota ideal do valor do acervo hereditário.
15. Portanto, o legado, porque incide sobre bens ou valores determinados, transmite-se ao seu beneficiário, com a sua aceitação, retroagindo os efeitos à data da abertura da sucessão, sem necessidade de se efectuar a partilha da herança.
Assim sendo, ao contrário do herdeiro, que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido, a especificar pela partilha, o legatário não carece desta para saber aquilo a que tem direito, por efeito da abertura da sucessão.
16. Destarte, dadas as características do legado (por exemplo, artigos 2265.º, n.º 1 e 2279.º, ambos do Código Civil), a sua transmissão não está dependente da formalização da partilha da herança (partilha que, aliás, o legatário não tem o direito de exigir – artigo 1085.º do Código de Processo Civil).
17. É entendimento doutrinário maioritário que no caso dos legados dispositivos, ou seja, os que implicam uma diminuição do activo da herança, o direito passa recta via do falecido para o legatário.
18. Tal-qualmente, os doutos tribunais superiores têm entendido que a transmissão do direito de propriedade sobre a coisa legada opera com a sua aceitação, sem necessidade da partilha da herança. Ora,
19. No caso em análise nos presentes autos estamos efectivamente perante um legado, uma vez que à ora Recorrente foram “legados” bens determinados. Sendo certo que os legados em causa são dispositivos, uma vez que os mesmos implicam uma diminuição do activo da herança.
20. Assim sendo, o direito de propriedade sobre os bens legados passou recta via da falecida para a legatária (ora Recorrente), com a sua aceitação – que foi imediata –, retroagindo os efeitos à data da abertura da sucessão, sem necessidade de se efectuar a partilha da herança.
21. Destarte, no caso sub judice, o Tribunal a quo errou ao desconsiderar a qualidade de legatária da Recorrente, equiparando indevidamente a condição jurídica do legatário à do herdeiro e, por conseguinte, errou ao considerar que «só após a partilha a efectuar entre os interessados na mesma (…) é que A. [Recorrente] poderá considerar-se proprietária dos bens que por testamento lhe foram legados.
22. Ao invés, o Tribunal a quo deveria ter tido em consideração que o legado da Recorrente incide sobre bens certos e determinados, operando-se, assim, a aquisição dos bens legados por efeito da aceitação do legado e em nada dependendo da efectivação da partilha da herança, não assistindo ao legatário sequer legitimidade para exigir a partilha da herança.
23. Salvo o devido respeito, o Meritíssimo Juiz a quo parece esquecer-se da existência da figura do legatário.
24. Por outro lado, na decisão recorrida pode ainda ler-se que «sempre haverá no inventário que averiguar da eventual inoficiosidade dos legados nos termos dos artigos 2168.º e 2169.º do CC, tanto mais que existe um herdeiro legitimário, o qual não pode ver a sua legítima ofendida (artigo 2159.º do CC). Vale por dizer, portanto, que neste momento a A. ainda não tem a propriedade de qualquer bem, podendo até aquando da partilha vir a receber menos do que aquilo com que a sua avó a contemplou no testamento».
25. Entendimento com o qual, mais uma vez se diga, não pode a Recorrente concordar. E isto porque, em entendimento jurisprudencial plasmado em Acórdão do Tribunal da Relação do Porto aludido nesta exposição, «a lei é clara no reconhecimento do direito que o legatário tem já sobre o seu legado, independentemente da efetivação da partilha e sem prejuízo da eventual redução do legado por inoficiosidade ou do acordo do legatário em que o bem legado entre na licitação em inventário (vejam-se os artigos 53º a 55º do Regime Jurídico do Processo de Inventário)».
26. Deve, assim, revogar-se o segmento impugnado da decisão recorrida que desconsiderou a qualidade de legatária da Recorrente, não reconhecendo a propriedade da mesma relativamente aos bens que lhe foram legados pela testadora, e substituir-se o mesmo pela declaração de que a Recorrente é proprietária dos bens que lhe foram legados.
27. O Tribunal a quo fez, pois, uma menos correcta interpretação e aplicação ao caso concreto, entre mais, do disposto nos artigos 2030.º, 2101.º, 2168.º, 2169.º, 2270.º, 2249.º e 2056.º, todos do Código Civil e artigo 1085.º do Código de Processo Civil.
28. Ora, em virtude de a Autora ser proprietária dos referidos bens imóveis e móveis (recheios dos imóveis e do cofre bancário), a lei confere-lhe determinados direitos, designadamente o direito de exigir a relação de bens e o direito de exigir a prestação de caução, ambos a ser exigidos ao usufrutuário dos bens (in casu, o Recorrido) – cfr. artigo 1468.º do Código Civil.
29. Direitos esses que a própria decisão recorrida reconhece que pertencem aos proprietários: «(..) Assim, não sendo proprietária não pode fazer uso do disposto no artigo 1468.º do CC o qual refere (…) Ou seja, apenas o proprietário pode fazer uso do disposto naquele normativo e não qualquer outra pessoa que não tenha essa qualidade».
30. Ou seja, sendo a Recorrente proprietária, a mesma pode fazer uso daquele normativo legal (artigo 1468.º do Código Civil).
31. Neste contexto, como forma de salvaguarda dos bens existentes nos imóveis e no cofre, em caso de extravio ou danificação dos mesmos, a Recorrente pretende instaurar contra o seu usufrutuário, ora Recorrido, um processo especial de prestação de caução, previsto nos artigos 906.º e seguintes do Código de Processo Civil (CPC).
32. Sendo que, para o fazer, a Recorrente tem de saber o valor que deve ser caucionado, tendo que o invocar logo na peça processual, o que apenas será possível mediante uma prévia avaliação realizada por perito qualificado.
33. Todavia, o Recorrido recusa-se a permitir a avaliação dos bens em causa nos presentes autos – bens de que, reitere-se, a Recorrente é proprietária e o Recorrido mero usufrutuário –, violando as suas obrigações enquanto usufrutuário, designadamente a obrigação de relacionar os bens e a obrigação de prestar garantia, no caso de esta ser exigida (cfr. artigos 1468.º e seguintes do Código Civil).
34. A confecção da citada relação de bens constitui objecto de uma autêntica obrigação, decorrendo da letra da lei que essa relação dos bens deverá ser feita com a assistência do proprietário, in casu, com a assistência da Recorrente.
35. Sem prescindir, uma vez que muitos dos objetos a relacionar são peças antigas de difícil avaliação, vislumbra-se ser necessária uma avaliação técnica rigorosa, feita por especialista que consiga proceder a uma análise pormenorizada dos bens em questão.
36. Deste modo, no caso sub judice, além da presença da Recorrente na realização da relação dos bens, impõe-se ainda a presença de perito avaliador, para uma justa determinação do valor inerente a cada bem.
37. Destarte, podendo a Recorrente (enquanto proprietária) fazer uso do disposto no artigo 1468.º do Código Civil, deveria o Recorrido ter sido condenado – como deve agora ser – a permitir a entrada nos imóveis e no cofre (bens melhor identificados nos factos provados, supra transcritos), de que é usufrutuário, por parte da ora Recorrente, devidamente acompanhada por perito avaliador.”.
Contra-alegou o réu, pugnando pela improcedência da apelação.
Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.

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II - Principais questões a decidir

Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013, de 26/6 – NCPC), integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, é a seguinte a questão a decidir: saber se o legatário só após a partilha pode considerar-se proprietário dos bens que lhe foram legados quanto à nua propriedade e se, por isso e dada a inexistência da partilha referente a M (...) , a autora não pode considerar-se proprietária dos bens que esta última lhe legou.
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III – Fundamentação

A) De facto

Factos provados

O tribunal recorrido descreveu como provados, apenas, os seguintes factos:

1- No dia 25 de Março de 2015 em Cartório Notarial de (...) , compareceu M (…), aí outorgando documento apelidado de “testamento”
2- Em tal documento a indicada M (…) referiu:
“(…)
Que teve dois filhos e é este o primeiro testamento que faz.
Que lega a seu filho A (…) o usufruto dos seguintes imóveis:
a) fracção autónoma designada pela letra “U” correspondente ao quinto andar do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Rua (…) concelho de (...) , inscrito na matriz sob o artigo 3898 com o respectivo recheio;
b) fracção autónoma designada pela letra “H” correspondente ao terceiro andar E do prédio em propriedade horizontal sito (…) concelho de (...) , inscrito na matriz sob o artigo 1358, com o respectivo recheio.
Que lega a sua neta R (…) a raiz ou nua propriedade dos referidos imóveis e recheio.
(…)”
3- No dia 24 de Maio de 2016 em Cartório Notarial de (...) , compareceu M (…), aí outorgando documento apelidado de “testamento”.
4-Em tal documento a indicada M (…) referiu:
“(…)
Que fez testamento a vinte e cinco de Março de dois mil e quinze, exarado a folhas 83 do livro de testamentos 15 do referido cartório, o qual mantém sem quaisquer alterações.
Que lega a seu filho A (…) o usufruto dos seguintes bens por conta da quota disponível:
a) fracção autónoma designada pela letra “P” correspondente ao sétimo direito do prédio em regime de propriedade horizontal sito (…) concelho de (...) , inscrito na matriz sob o artigo 543, com o respectivo recheio;
b) cofre na agência da C (…) em (...) com o número um cuja chave está na posse da sua neta R (…).
Que lega por conta da quota disponível a sua neta R (…) a raiz ou nua propriedade dos referidos bens.
(…)
5- A testadora M (…) faleceu no estado de viúva em 21 de Novembro de 2017.”.

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B) De direito

Questão única: saber se o legatário só após a partilha pode considerar-se proprietário dos bens que lhe foram legados quanto à nua propriedade e se, por isso e dada a inexistência da partilha referente a M (…) a autora não pode considerar-se proprietária dos bens que esta última lhe legou.

Recorde-se que o tribunal recorrido julgou improcedente a acção por entender que a autora não era ainda proprietária dos bens que lhe foram legados, razão pela qual, em qualquer circunstância e independentemente dos demais factos alegados pelas partes e da sua autenticidade ou não, sempre a acção teria que ser julgada improcedente, não devendo conhecer-se, também por isso: i) de outros factos para lá dos descritos como provados; ii) da questão da suspensão desta acção suscitada na contestação.
A significar que se a resposta à questão ora em apreciação for negativa, naufraga todo o pressuposto em que assentou a decisão recorrida que, assim, deverá ser substituída por outra que parta do pressuposto de que a autora já é proprietária dos bens legados, devendo pronunciar-se, em novo saneador, sobre a questão da suspensão suscitada pelo réu, assim como, em novo saneador-sentença ou na sentença final, sobre os demais factos alegados pelas partes e que se considerem com relevo para a decisão final a proferir nestes autos.
Diz-se sucessão o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam.” – art. 2024º do CC.
Os sucessores são herdeiros ou legatários.” – art. 2030º/1 do CC.
Diz-se herdeiro o que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e legatário o que sucede em bens ou valores determinados.” – art. 2030º/2 do CC.
Como decorrência da circunstância do direito de o legatário incidir sobre bens ou valores determinados, não lhe é reconhecido, ao contrário do que sucede com os co-herdeiros ou com o cônjuge meeiro, o direito de exigir a partilha (art. 2101º/1 do CC), direito esse que se exerce mediante acordo ou por meio de inventário.
Com efeito, na falta de disposição em contrário, o legatário tem o direito de exigir o cumprimento do legado aos herdeiros (artigo 2265º/1 do CC), podendo inclusivamente reivindicar de terceiro a coisa legada (artigo 2279º do CC).
Como ensina Galvão Telles (Direito das Sucessões, Noções Fundamentais, Coimbra Editora 1980, pp. 159 a 165) há que distinguir os legados dispositivos, dos obrigacionais.
Os primeiros implicam uma diminuição do activo da herança, ao passo que os segundos determinam o aumento do passivo da herança.
Por isso, e como ensina o mesmo autor e na mesma obra, no caso dos legados dispositivos “o direito passa recta via do falecido para o legatário” (p. 163), enquanto nos “legados obrigacionais a aquisição da propriedade a favor do legatário dá-se por efeito de acto do sucessor onerado que, em cumprimento da obrigação imposta, lha transmite ou contrata com terceiro transmitir-lha” (p. 164).
Assim sendo, sucedendo o legatário em bens ou valores determinados, a transmissão para o mesmo dos direitos legados dá-se por simples aceitação do legatário e sem necessidade de recurso a qualquer procedimento, designadamente o da partilha, por acordo ou por inventário, sendo lícito ao legatário socorrer-se de uma acção declarativa comum para obter o reconhecimento judicial de tal posição jurídica – neste sentido, entre outros, consultem-se os acórdãos do STJ de 3/3/1998[1], proferido no processo 160/98, do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/12/2019, proferido no processo 6441/16.4T8LSB-2[2], de 2/11/2006, proferido no processo 8566/2006-6[3], do Tribunal da Relação de Guimarães de 22/11/2018, proferido no processo 73/16.4BEMDL.G1[4], do Tribunal da Relação de Porto de 1/3/2007, proferido no processo 0636972[5], de 1/6/2006, proferido no processo 0633018[6].
Aliás, não assistindo ao legatário o direito a requerer o inventário, o reconhecimento pleno da posição jurídica do legatário ficaria na total dependência dos herdeiros que poderiam instaurar ou não e quando lhes aprouvesse o processo de inventário, convertendo-se o direito do legatário, na prática, a um direito desprovido da garantia judiciária, o que se mostra vedado, designadamente pelos artigos 20º/5 da CRP e 2º/2 do NCPC.
De todo o modo, afigura-se-nos claro o reconhecimento legal do direito que o legatário tem já sobre o seu legado por via da simples aceitação, independentemente da efectivação da partilha e sem prejuízo da eventual redução do legado por inoficiosidade (arts. 1118º e 1110º do NCPC) – no sentido de que a eventual inoficiosidade do legado não obsta à transmissão para o legatário dos direitos sobre os bens legados sem necessidade de partilha, consulte-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27/11/2017, proferido no processo 1372/17.3T8OAZ.P1.
Em face do exposto, não pode subsistir a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que reconheça, como pressuposto da decisão final a proferir nestes autos, que a autora é titular do direito de propriedade dos bens cuja nua propriedade lhe foi legada.
Subsequentemente e por consequência, o tribunal recorrido deve conhecer, em novo saneador, da questão da suspensão suscitada pelo réu na contestação, assim como, em novo saneador-sentença ou na sentença final, deve pronunciar-se sobre os demais factos alegados pelas partes e que se considerem com relevo para a decisão final a proferir nestes autos, conhecendo-se então do pedido formulado pela autora.
*
IV- DECISÃO


Acordam os juízes que integram esta segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida que deve ser substituída por outra que reconheça, como pressuposto da decisão final a proferir nestes autos, que a autora é titular do direito de propriedade dos bens cuja nua propriedade lhe foi legada.
Subsequentemente e por consequência, o tribunal recorrido deve conhecer, em novo saneador, da questão da suspensão suscitada pelo réu na contestação, assim como, em novo saneador-sentença ou na sentença final, deve pronunciar-se sobre os demais factos alegados pelas partes e que se considerem com relevo para a decisão final a proferir nestes autos, conhecendo-se então do pedido formulado pela autora.
Custas pelo apelado
Coimbra, 8/9/2020
Jorge Manuel Loureiro ( Relator )
Vítor Amaral
Luís Cravo




[1] Em cujo sumário pode ler-se o seguinte: “I - O legatário pode reivindicar de terceiro a coisa legada, contanto que seja certa e determinada, após a sua aceitação do legado, mas antes de o herdeiro lhe ter feito a entrega nos termos do art.º 2270, do CC.
II - Com a aceitação do legado adquire-se, com retroacção à data da abertura da sucessão, um direito real de propriedade sobre a coisa, tendo meros efeitos secundários, nomeadamente em matéria de aquisição da posse pelos legatários, a obrigação do herdeiro de entrega do legado.
III - Entre o momento da abertura da sucessão e a entrega da coisa legada os herdeiros não têm a posse da coisa legada, pois, nestes casos, tais coisas estão subtraídas, pela vontade do de cuius à transmissão da massa hereditária para os herdeiros, pelo que falta sempre o animus possidendi, a não ser que os herdeiros invertam o título da posse.
IV - Assim, procederá o pedido de reconhecimento do direito de propriedade, mas não o de restituição da coisa, na medida em que os herdeiros não têm a posse dos legados como se disse”.
[2] No qual pode ler-se, designadamente, que “…o legado, porque incide sobre bens ou valores determinados, transmite-se ao seu beneficiário, com a sua aceitação, retroagindo os efeitos à data da abertura da sucessão, sem necessidade de se efetuar a partilha da herança. Ao contrário do herdeiro, que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido, a “especificar pela partilha”, o legatário não carece da partilha da herança, em inventário (que, aliás, não tem legitimidade para requerer) para saber aquilo a quem tem direito, por efeito da abertura da sucessão.”.
[3] Em cujo sumário pode ler-se, designadamente, que “II. A transmissão do direito de propriedade sobre a coisa legada opera com a aceitação, sem necessidade da partilha da herança.
[4] Em cujo sumário pode ler-se, designadamente, que “Ocorrendo o óbito do testador, o direito real sobre o bem legado é transmitido ao legatário por força do testamento em que o legado foi instituído e logo que haja a sua aceitação, tácita ou expressa, reportando-se os seus efeitos à data da abertura da sucessão, isto é, do óbito do testador.”.
[5] Podendo ler-se no seu sumário, designadamente, que “Com a aceitação do legado, o legatário adquire a propriedade da coisa legada, com referência à data da abertura da herança, devendo aquela ser-lhe entregue, no prazo de um ano a contar da data da morte do testador, sob pena de o onerado com tal obrigação incorrer, em caso de mora e de o retardamento lhe ser imputável, na obrigação de indemnizar pelos danos causados ao legatário, que, até à entrega do legado, é um mero credor da herança.”.
[6] Em que pode ler-se, designadamente, que “Face a esta distinção, logo se vê que o que foi deixado ao apelado pelo falecido D….. foi um legado, pois o que lhe foi atribuído foi uma parte de um bem perfeitamente definido, não tendo sucedido na totalidade numa quota do património do de cuius, como sucederia se fosse herdeiro.
Assim sendo, independentemente de ter ou não havido partilha dos bens da herança, com a aceitação do legado adquire-se logo, com retroacção à data da abertura da sucessão, um direito de propriedade sobre a coisa legada.”.