Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | JORGE MANUEL LOUREIRO | ||
Descritores: | LEGATÁRIO NUA PROPRIEDADE ACEITAÇÃO PARTILHA | ||
Data do Acordão: | 09/08/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JL CÍVEL - JUIZ 3 | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS.1468, 2024, 2030, 2101, 2265, 2279 CC | ||
Sumário: | 1.- Sucedendo o legatário em bens ou valores determinados, a transmissão para o mesmo dos direitos legados dá-se por simples aceitação do legatário e sem necessidade de recurso a qualquer procedimento, designadamente o da partilha, por acordo ou por inventário, sendo lícito ao legatário socorrer-se de uma acção declarativa comum para obter o reconhecimento judicial de tal posição jurídica. 2.- A eventual inoficiosidade do legado não obsta à transmissão para o legatário dos direitos sobre os bens legados sem necessidade de partilha. | ||
Decisão Texto Integral: | Autora: R (…) Ré: A (…) Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra I – Relatório A autora propôs contra o réu a presente acção com a forma de processo comum, deduzindo o pedido seguidamente transcrito: “Termos em que e nos mais de direito, deve a presente acção ser julgada procedente por provada e, consequentemente, ser o Réu condenado a permitir a entrada nos imóveis e no cofre (bens melhor identificados nos artigos 1.º e 3.º da presente PI), de que é usufrutuário, por parte da Autora, devidamente acompanhada por perito avaliador.”. Alegou, como fundamento da sua pretensão e em resumo, que é legatária da nua propriedade dos bens identificados na petição, sendo o réu seu usufrutuário, encontrando-se o réu na posse dos mesmos; pretende exigir do réu a prestação de caução, para o efeito do que tem de proceder a uma inventariação e avaliação dos citados bens, necessitando para tanto de aceder aos mesmos, acompanhada de perito especializado, sendo que o réu se recusa a facultar o referido acesso. Citado, o réu contestou, pugnando pela improcedência da acção. Alegou, muito em síntese, que estando o réu na posse dos bens identificados na petição não pode agora ser compelido à prestação de caução, posto que esta só é devida antes do usufrutuário entrar na referenciada posse. Por outro lado, a autora tem livre acesso, sem necessidade de qualquer colaboração do réu, aos bens que pretende inventariar e avaliar, sendo falso que o réu tenha assumido a recusa de colaboração de que é acusado na petição. Acresce que existem bens que foram legados à autora que o não poderiam ter sido, porque não pertenciam à legante, razão pela qual o réu proporá acção de anulação do testamento até a decisão final da qual deveria ser suspensa a presente acção. No despacho saneador, conheceu-se do mérito da acção e proferiu-se decisão de cujo dispositivo consta, designadamente, o seguinte: “Pelo exposto, julgo a acção totalmente improcedente e consequentemente: * II - Principais questões a decidirSendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013, de 26/6 – NCPC), integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, é a seguinte a questão a decidir: saber se o legatário só após a partilha pode considerar-se proprietário dos bens que lhe foram legados quanto à nua propriedade e se, por isso e dada a inexistência da partilha referente a M (...) , a autora não pode considerar-se proprietária dos bens que esta última lhe legou. * III – FundamentaçãoA) De facto Factos provados O tribunal recorrido descreveu como provados, apenas, os seguintes factos: “1- No dia 25 de Março de 2015 em Cartório Notarial de (...) , compareceu M (…), aí outorgando documento apelidado de “testamento” * B) De direitoQuestão única: saber se o legatário só após a partilha pode considerar-se proprietário dos bens que lhe foram legados quanto à nua propriedade e se, por isso e dada a inexistência da partilha referente a M (…) a autora não pode considerar-se proprietária dos bens que esta última lhe legou. Recorde-se que o tribunal recorrido julgou improcedente a acção por entender que a autora não era ainda proprietária dos bens que lhe foram legados, razão pela qual, em qualquer circunstância e independentemente dos demais factos alegados pelas partes e da sua autenticidade ou não, sempre a acção teria que ser julgada improcedente, não devendo conhecer-se, também por isso: i) de outros factos para lá dos descritos como provados; ii) da questão da suspensão desta acção suscitada na contestação. A significar que se a resposta à questão ora em apreciação for negativa, naufraga todo o pressuposto em que assentou a decisão recorrida que, assim, deverá ser substituída por outra que parta do pressuposto de que a autora já é proprietária dos bens legados, devendo pronunciar-se, em novo saneador, sobre a questão da suspensão suscitada pelo réu, assim como, em novo saneador-sentença ou na sentença final, sobre os demais factos alegados pelas partes e que se considerem com relevo para a decisão final a proferir nestes autos. “Diz-se sucessão o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam.” – art. 2024º do CC. “Os sucessores são herdeiros ou legatários.” – art. 2030º/1 do CC. “Diz-se herdeiro o que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e legatário o que sucede em bens ou valores determinados.” – art. 2030º/2 do CC. Como decorrência da circunstância do direito de o legatário incidir sobre bens ou valores determinados, não lhe é reconhecido, ao contrário do que sucede com os co-herdeiros ou com o cônjuge meeiro, o direito de exigir a partilha (art. 2101º/1 do CC), direito esse que se exerce mediante acordo ou por meio de inventário. Com efeito, na falta de disposição em contrário, o legatário tem o direito de exigir o cumprimento do legado aos herdeiros (artigo 2265º/1 do CC), podendo inclusivamente reivindicar de terceiro a coisa legada (artigo 2279º do CC). Como ensina Galvão Telles (Direito das Sucessões, Noções Fundamentais, Coimbra Editora 1980, pp. 159 a 165) há que distinguir os legados dispositivos, dos obrigacionais. Os primeiros implicam uma diminuição do activo da herança, ao passo que os segundos determinam o aumento do passivo da herança. Por isso, e como ensina o mesmo autor e na mesma obra, no caso dos legados dispositivos “o direito passa recta via do falecido para o legatário” (p. 163), enquanto nos “legados obrigacionais a aquisição da propriedade a favor do legatário dá-se por efeito de acto do sucessor onerado que, em cumprimento da obrigação imposta, lha transmite ou contrata com terceiro transmitir-lha” (p. 164). Assim sendo, sucedendo o legatário em bens ou valores determinados, a transmissão para o mesmo dos direitos legados dá-se por simples aceitação do legatário e sem necessidade de recurso a qualquer procedimento, designadamente o da partilha, por acordo ou por inventário, sendo lícito ao legatário socorrer-se de uma acção declarativa comum para obter o reconhecimento judicial de tal posição jurídica – neste sentido, entre outros, consultem-se os acórdãos do STJ de 3/3/1998[1], proferido no processo 160/98, do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/12/2019, proferido no processo 6441/16.4T8LSB-2[2], de 2/11/2006, proferido no processo 8566/2006-6[3], do Tribunal da Relação de Guimarães de 22/11/2018, proferido no processo 73/16.4BEMDL.G1[4], do Tribunal da Relação de Porto de 1/3/2007, proferido no processo 0636972[5], de 1/6/2006, proferido no processo 0633018[6]. Aliás, não assistindo ao legatário o direito a requerer o inventário, o reconhecimento pleno da posição jurídica do legatário ficaria na total dependência dos herdeiros que poderiam instaurar ou não e quando lhes aprouvesse o processo de inventário, convertendo-se o direito do legatário, na prática, a um direito desprovido da garantia judiciária, o que se mostra vedado, designadamente pelos artigos 20º/5 da CRP e 2º/2 do NCPC. De todo o modo, afigura-se-nos claro o reconhecimento legal do direito que o legatário tem já sobre o seu legado por via da simples aceitação, independentemente da efectivação da partilha e sem prejuízo da eventual redução do legado por inoficiosidade (arts. 1118º e 1110º do NCPC) – no sentido de que a eventual inoficiosidade do legado não obsta à transmissão para o legatário dos direitos sobre os bens legados sem necessidade de partilha, consulte-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27/11/2017, proferido no processo 1372/17.3T8OAZ.P1. Em face do exposto, não pode subsistir a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que reconheça, como pressuposto da decisão final a proferir nestes autos, que a autora é titular do direito de propriedade dos bens cuja nua propriedade lhe foi legada. Subsequentemente e por consequência, o tribunal recorrido deve conhecer, em novo saneador, da questão da suspensão suscitada pelo réu na contestação, assim como, em novo saneador-sentença ou na sentença final, deve pronunciar-se sobre os demais factos alegados pelas partes e que se considerem com relevo para a decisão final a proferir nestes autos, conhecendo-se então do pedido formulado pela autora. * IV- DECISÃOAcordam os juízes que integram esta segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida que deve ser substituída por outra que reconheça, como pressuposto da decisão final a proferir nestes autos, que a autora é titular do direito de propriedade dos bens cuja nua propriedade lhe foi legada. Subsequentemente e por consequência, o tribunal recorrido deve conhecer, em novo saneador, da questão da suspensão suscitada pelo réu na contestação, assim como, em novo saneador-sentença ou na sentença final, deve pronunciar-se sobre os demais factos alegados pelas partes e que se considerem com relevo para a decisão final a proferir nestes autos, conhecendo-se então do pedido formulado pela autora. Custas pelo apelado Coimbra, 8/9/2020 Vítor Amaral Luís Cravo [1] Em cujo sumário pode ler-se o seguinte: “I - O legatário pode reivindicar de terceiro a coisa legada, contanto que seja certa e determinada, após a sua aceitação do legado, mas antes de o herdeiro lhe ter feito a entrega nos termos do art.º 2270, do CC. II - Com a aceitação do legado adquire-se, com retroacção à data da abertura da sucessão, um direito real de propriedade sobre a coisa, tendo meros efeitos secundários, nomeadamente em matéria de aquisição da posse pelos legatários, a obrigação do herdeiro de entrega do legado. III - Entre o momento da abertura da sucessão e a entrega da coisa legada os herdeiros não têm a posse da coisa legada, pois, nestes casos, tais coisas estão subtraídas, pela vontade do de cuius à transmissão da massa hereditária para os herdeiros, pelo que falta sempre o animus possidendi, a não ser que os herdeiros invertam o título da posse. IV - Assim, procederá o pedido de reconhecimento do direito de propriedade, mas não o de restituição da coisa, na medida em que os herdeiros não têm a posse dos legados como se disse”. [2] No qual pode ler-se, designadamente, que “…o legado, porque incide sobre bens ou valores determinados, transmite-se ao seu beneficiário, com a sua aceitação, retroagindo os efeitos à data da abertura da sucessão, sem necessidade de se efetuar a partilha da herança. Ao contrário do herdeiro, que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido, a “especificar pela partilha”, o legatário não carece da partilha da herança, em inventário (que, aliás, não tem legitimidade para requerer) para saber aquilo a quem tem direito, por efeito da abertura da sucessão.”. [3] Em cujo sumário pode ler-se, designadamente, que “II. A transmissão do direito de propriedade sobre a coisa legada opera com a aceitação, sem necessidade da partilha da herança.” [4] Em cujo sumário pode ler-se, designadamente, que “Ocorrendo o óbito do testador, o direito real sobre o bem legado é transmitido ao legatário por força do testamento em que o legado foi instituído e logo que haja a sua aceitação, tácita ou expressa, reportando-se os seus efeitos à data da abertura da sucessão, isto é, do óbito do testador.”. [5] Podendo ler-se no seu sumário, designadamente, que “Com a aceitação do legado, o legatário adquire a propriedade da coisa legada, com referência à data da abertura da herança, devendo aquela ser-lhe entregue, no prazo de um ano a contar da data da morte do testador, sob pena de o onerado com tal obrigação incorrer, em caso de mora e de o retardamento lhe ser imputável, na obrigação de indemnizar pelos danos causados ao legatário, que, até à entrega do legado, é um mero credor da herança.”. [6] Em que pode ler-se, designadamente, que “Face a esta distinção, logo se vê que o que foi deixado ao apelado pelo falecido D….. foi um legado, pois o que lhe foi atribuído foi uma parte de um bem perfeitamente definido, não tendo sucedido na totalidade numa quota do património do de cuius, como sucederia se fosse herdeiro. Assim sendo, independentemente de ter ou não havido partilha dos bens da herança, com a aceitação do legado adquire-se logo, com retroacção à data da abertura da sucessão, um direito de propriedade sobre a coisa legada.”. |