Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4284/09.0YYPRT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: LETRA EM BRANCO
LIVRANÇA EM BRANCO
CORDO DE PREENCHIMENTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
DESRESPEITO
ACORDO
Data do Acordão: 02/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA – JUÍZO DE EXECUÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 10º, 32º, 77º E 78º DA LULL
Sumário: 1 - Não é juridicamente compreensível a emissão (subscrição e entrega) voluntária duma letra/livrança objectivamente incompleta sem o cometimento, em certos termos, do seu preenchimento a outrem; sem que, concomitantemente, exista um acordo de preenchimento, seja ele escrito, meramente oral/informal ou porventura tão só implícito.

2 – Razão pela qual, para demonstrar o preenchimento abusivo, tem o seu subscritor que demonstrar (1.º) a existência de um acordo e (2.º) que o tomador/portador da letra/livrança, ao preenchê-la (ao completar o respectivo preenchimento), desrespeitou tal acordo.

3 – Assim, provando o subscritor duma letra/livrança em branco o pacto de preenchimento que gerou a sua subscrição/entrega e estar a mesma a ser utilizada fora do contexto de tal específico pacto de preenchimento, passa a ser o portador de tal letra/livrança, que a utilizou, que tem que demonstrar o pacto de preenchimento que legitima tal “nova” utilização.

4 – Demonstração essa que, em face do acordo de preenchimento provado pelo subscritor, não se pode ficar/fazer a partir da alegação/invocação dum acordo de preenchimento “implícito”.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A..., Lda., com sede em (...), Penacova, B...,C... e D..., todos residentes em (...), Penacova, E... , residente em lugar de (...), Penacova e F... , residente em (...), Penacova, por apenso à execução para pagamento de quantia certa que lhes moveu “G..., S.A., Sucursal em Portugal”, com sede na (...), Porto – para haver deles a quantia de € 401.570,82 (sendo € 395.732,23 de capital e o restante montante de juros vencidos e I. Selo) e juros vincendos – vieram deduzir oposição à execução, alegando, em síntese e no que aqui interessa:

Em meados de 1998, a 1.ª executada estabeleceu relações com a exequente com vista à concessão de um mútuo (de 70 mil contos) garantido por hipoteca; a determinada altura e em face da demora na formalização de tal mútuo, a 1.ª executada solicitou à exequente uma abertura de crédito (de 15 mil contos), por 30 dias, até à escritura de mútuo com hipoteca; o que (abertura de crédito) lhe foi concedido, exigindo a exequente (e sendo-lhe entregue) uma livrança em branco subscrita pela 1.ª executada e avalizada pelos restantes executados.

Entretanto, não tendo sido acordado que a exequente pudesse usar tal livrança para garantir/obter o pagamento de outro e diferente crédito, a exequente preencheu-a e executou-a pelo montante ainda em dívida no mútuo dos 70 mil contos.

Invocam pois a invalidade do título executivo por preenchimento abusivo de livrança em branco, a prescrição da acção cambiária e a caducidade do aval quanto aos segundo a quinto executados; assim como[1] a ilegal e abusiva propositura da execução (por violação do art. 835º do CPC, na medida em que se executa dívida assegurada por garantia real) e a litispendência (por já pender uma execução contra a 1.ª executada)

Concluem pois pela procedência da oposição e pela extinção da execução; e “pedem” a condenação da exequente como litigante de má fé.

Contestou a exequente, sustentando, em síntese, que, para conceder o mútuo, exigiu, além da hipoteca, a entrega duma livrança subscrita pela empresa e avalizada por todos os sócios, exigência que foi aceite pelos aqui executados; sendo tal livrança, subscrita em branco e preenchida, correcta e devidamente, que aqui “deu” à execução; opondo-se às diversas excepções suscitadas pelos executados e invocando que os mesmo é que litigam de má-fé.

Concluiu pois pela improcedência da oposição e “pede” a condenação dos executados como litigantes de má fé.

Foi proferido despacho saneador[2], que declarou a instância totalmente regular – estado em que se mantém – e em que se relegou para final o conhecimento das diversas questões suscitadas e ainda controvertidas.

Seleccionados os factos assentes e organizada a base instrutória, foi designado dia para a realização da audiência, após o que a Exma. Juíza proferiu sentença em que julgou “ (…) improcedente a presente oposição à execução, e, em consequência, ordeno o prosseguimento da execução” (absolvendo-se igualmente exequente e executados dos pedidos de litigância de má fé).

Inconformados com tal decisão, interpuseram os executados/oponentes recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que julgue a oposição totalmente procedente e a execução extinta.

Terminaram a sua alegação com “algo” (9 páginas) que designaram como conclusões – ao arrepio da “forma sintética” exigida pelo art. 639.º/1 do CPC – e que aqui transcrevemos até para se ver que são longas e que não são verdadeiras conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos autos, a 11 de Julho de 2014, que decidiu julgar a oposição à execução improcedente, ordenando o prosseguimento da execução.

2. Invoca-se, como questão prévia, a nulidade da sentença ora objecto de recurso.

3. Nesta sentença não estão especificadas as razões de Direito justificativas da decisão final, mormente ao nível das fontes doutrinais e jurisprudências que, a propósito de cada tema sob análise na primeira instância, porque controvertidos, mereciam uma fundamentação juridicamente detalhada, clara e coerente.

4. Para além de outras incongruências e insuficiências da sentença referidas nas presentes alegações, destaca-se que o tema verdadeiramente determinante para a decisão do caso sub judice, foi totalmente ignorado e ultrapassado sem justificação juridicamente sólida para tal.

5. Ao abrigo dos artigos 154.º e 615.º, n.º1, b) e c), e n.º 4 do CPC, e do artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa, a sentença ora objecto de recurso deve ser declarada nula.

6. O recurso interposto versa sobre a decisão proferida quanto à matéria de facto.

7. Com base na resposta à matéria da base instrutória, o Tribunal a quo procedeu ao seguinte silogismo:

Premissa maior – «A livrança junta como título executivo foi dada como garantia do pontual cumprimento das obrigações assumidas pela 1ª Executada no contrato de abertura de crédito, tendo sido assinada pelos Executados na data da assinatura do contrato de abertura de crédito.»

Premissa menor – «Não obstante, a Exequente, para a concessão do mútuo, não só exigiu a hipoteca do imóvel, como a entrega de uma livrança subscrita pela empresa e avalizada por todos os sócios, exigência essa que foi aceite pelos Opoentes, que nunca reclamaram a devolução da livrança.»

Conclusão – «Os Opoentes não demonstraram, como lhes competia, que a livrança foi entregue apenas para garantir o contrato de abertura de crédito.»

8. Porém, deveria ter sido dado como provado que:

o A livrança apresentada como título executivo à execução da qual ora se recorre, foi dada como garantia do pontual cumprimento das obrigações assumidas pela 1ª Executada no contrato de abertura de crédito, celebrado em 20 de Janeiro de 1999, pelo valor de Esc. 15.000,00/ € 75.000,00.

o Tendo a mesma sido assinada pelos Executados na data da assinatura do contrato

de abertura de crédito acima referido.

o Os Executados nunca receberam qualquer comunicação por parte da Exequente de que e em que termos iria proceder ao preenchimento da livrança.

o A presente execução causou a cada um dos Executados profunda angústia e inquietação.

o Para a concessão do mútuo, celebrado em 08 de Fevereiro de 1999, de um valor de Esc. 70.000.000,00/ € 349.158,53, a Exequente exigiu a hipoteca do imóvel com a entrega de uma livrança subscrita pela empresa e avalizada pelos sócios.

9. Bem como deveriam ter sido dados como factos não provados que

o Os Opoentes aceitaram a exigência de uma livrança subscrita pela empresa e avalizada pelos sócios, para a concessão do mútuo com hipoteca.

o Os Opoentes nunca reclamaram a devolução da livrança.

10. Por conseguinte, silogismo a adoptar deveria ter sido, correctamente, o seguinte:

Premissa Maior – A livrança junta como título executivo foi dada como garantia do pontual cumprimento das obrigações assumidas pela 1ª Executada no contrato de abertura de crédito, tendo sido assinada pelos Executados na data de assinatura deste mesmo contrato.

Premissa Menor – Não obstante, para a concessão do mútuo, a Exequente exigiu a hipoteca do imóvel com a entrega de uma livrança subscrita pela empresa e avalizada por todos os sócios, exigência essa que foi expressamente recusada pelos Opoentes, que reclamaram a devolução da livrança.

Conclusão – A livrança foi, comprovadamente, entregue apenas para garantir o contrato de abertura de crédito.

11. Este caminho não foi o adoptado pela Mma. Juiz que optou por seguir um outro – aparentemente mais simples mas totalmente contrário à verdade material – repleto de erros grosseiros na avaliação dos factos juridicamente relevantes para a decisão.

12. O primeiro erro manifestamente cometido consistiu na determinação dos primeiro e segundo quesitos da base instrutória, cujas respostas já tinham sido obtidas nos factos

assentes M), N), O), Y) e Z).

13. A decisão do Tribunal a quo sobre a matéria de facto, é absolutamente contraditória, não só com as respostas aos quesitos 1.º e 2.º, da base instrutória, como também com grande parte dos factos assentes, que como tais, não integram a matéria controvertida, isto é, não estão sujeitos a discussão em julgamento.

14. A resposta ao quesito 6.º, não se compagina minimamente com os factos assentes supra referidos e com os constantes das alíneas D), F) e J).

15. A Mma. Juiz a quo procedeu a um salto irracional abissal que inquinou toda a sentença, porque contaminou a operação silogística a que a mesma se quis submeter para solucionar o caso concreto.

16. Em suma, a resposta jurisdicional à matéria constante da base instrutória está desde logo viciada porque contradiz factos dados como assentes, não controvertidos.

17. A Mma. Juiz optou por uma simplificação radical do caso concreto, isto por iniciativa própria, mas também induzida por aquilo que a primeira testemunha qualificou de «prática corrente da Exequente»,

18. E fundiu duas negociações, dois contratos e duas garantias diferentes, numa única negociação, deduzido que, da mesma emergiram dois contratos com iguais condições contratuais, nomeadamente ao nível da garantia pessoal do capital em causa para cada um deles.

19. O depoimento verdadeira e exclusivamente determinante para o decidido em primeira instância foi erradamente o prestado pela primeira testemunha H....

20. Este primeiro depoimento foi apenas aproveitado naquilo que, salvo o devido respeito, se adaptava à pré-configuração fáctica do caso feita pelo Tribunal a quo, que fez tábua rasa de uma parte das declarações em que a testemunha confirma que as garantias e o pacto de preenchimento do contrato devem constar do mesmo.

21. A prova documental produzida pelos Executados não foi minimamente beliscada, pelo depoimento da primeira testemunha.

22. Não obstante esta evidência, a Mma. Juiz mantém a conclusão incongruente de que houve transposição da livrança para o segundo contrato, com base na cláusula nona do mesmo, que prevê o reforço futuro das garantias prestadas.

23. O reforço de garantias previsto nessa cláusula nona, diz respeito a um aumento futuro e incerto de garantias ainda não existentes aquando da celebração do contrato, nada tendo a ver, portanto, com o preenchimento de uma livrança, alegadamente transitada na celebração deste segundo contrato.

24. A testemunha I..., também confrontado com os documentos constantes dos autos, esclareceu que o contrato de mútuo com hipoteca nunca se referiu, em momento algum, a uma livrança como garantia pessoal pelo incumprimento das obrigações decorrentes desse contrato,

25. e confirmou que todos os contactos realizados por força do não cumprimento do mútuo com hipoteca, foram sempre mantidos entre a Exequente e a 1ª Executada, sociedade, mas nunca com os avalistas, que nunca foram informados de que e em que termos seria preenchida uma livrança, já extinta.

26. Lamenta-se que o Tribunal a quo, tenha entendido que a quantia mutuada pela Exequente é uma quantia elevada e que, nestas situações, é prática comum das instituições de crédito, salvaguardem-se com a exigência de garantias pessoais por parte dos sócios e gerentes, concluindo, sem nada que o fizesse prever, que tal sucedeu no caso em apreço.

27. Mais uma vez, denota-se o salto injustificado que a Mma. Juiz efectuou ao apelar preconcepções generalistas para o caso concreto.

28. Pelas provas documental e testemunhal, é patente que os Opoentes, ora Recorrentes,

RECUSARAM a subscrição da livrança e que, quer na subsequente correspondência trocada, quer nos próprios contratos celebrados, ficou claro que essa recusa foi ACEITE pela Exequente,

29. sendo que os Executados nunca receberam qualquer comunicação, por parte da Exequente, DE QUE e EM QUE TERMOS iria proceder ao preenchimento da livrança.

30. Destaca-se o importantíssimo depoimento da testemunha J..., embora não valorado como tal pelo Tribunal a quo, porque não interessava à tese que pretendia plasmar na decisão recorrida.

31. O facto de o pacto de preenchimento de uma livrança poder ser tacitamente negociado, tal não significa que o acordo – proposta/aceitação – acerca da subscrição da livrança possa ser tacitamente realizado.

32. Perante a proposta negocial manifestada pela Exequente, ora Recorrida, de lhe ser entregue uma livrança para garantir o mútuo “final”, o silêncio dos ora Recorrentes, não teve, nem poderia ter, valor de declaração negocial positiva, pelo que a Exequente nunca poderia ter razoavelmente contado com essa aceitação, ao abrigo do artigo 218.º do CC, a contrario sensu.

33. A terceira e última testemunha afirmou que o contrato de abertura de crédito foi sempre entendido como garantido com uma livrança e o contrato de mútuo posteriormente celebrado, como garantido com uma hipoteca sobre um imóvel da 1ª Executada, de valor significativamente superior ao capital mutuado,

34. e confirmou que o facto dado como provado, em resposta ao quesito 7.º da base instrutória, igualmente constante do ponto 22, da fundamentação de facto (III) da sentença em crise, não tem qualquer apoio probatório que o legitime.

35. A Mma. Juiz analisou a prova testemunhal e documental de um ponto de vista que já tinha pré-concebido, fazendo com que toda a verdade material revelada pela prova apresentada e produzida nos autos, se tornasse completamente invisível, negando-a e forçando o encaminhamento da lide para uma decisão tomada com base naquilo que (mal) préconcebeu.

36. O Tribunal a quo justifica – mal – a existência de um pacto de preenchimento, ao sabor do vento, fazendo alusão a uma imposição contratual, que não se verificou, indicando, subsequentemente, uma convenção entre as partes que não existiu, e vindo, finalmente, como última ratio, lançar mão da ideia de que, afinal, o acordo até podia ter sido tão só implícito, o que também não se comprovou.

37. É manifestamente ostensiva a gritante confusão e fusão que a primeira instância efectuou relativamente às condições contratuais realmente queridas e convencionadas em cada um dos contratos, na verdade autónomos e independentes.

38. Era de exigir todo o rigor e precisão, toda a cautela e diligência na averiguação dos factos que, efectivamente, podem ser dados como provados e não provados, de acordo com a prova testemunhal produzida e a prova documental apresentada, o que, valha a verdade, e com todo o respeito, não ressalta minimamente dos autos.

39. Cabe, doravante, apreciar as questões jurídicas abordadas na sentença.

40. Na oposição à execução foi invocado pelos Opoentes, ora Recorrentes, o antigo artigo 835.º, n.º1, correspondente ao actual artigo 752.º, n.º1 do CPC, que dispõe no sentido de que em caso de execução de uma dívida com garantia real que onere bens do devedor executado, a penhora inicia-se pelos bens sobre que incida a garantia e só pode recair noutros quando se reconheça a insuficiência deles para conseguir o fim da execução.

41. Aquando da instauração da acção executiva da qual se deduziu oposição, já corria termos uma acção executiva instaurada contra a 1ª Executada, ora Recorrentes, movida por um seu credor comum, a Caixa Geral de Depósitos – pelo valor de €54.160,16 – desde o ano de 2004, com o n.º166/04.0TBPCV, e em que a ora Recorrida, na qualidade de credora hipotecária, reclamou o crédito de €317.807,78, pelo incumprimento do contrato de mútuo com hipoteca, sendo que, em 01 de Fevereiro de 2007, a ora Recorrida requereu a prossecução da execução apenas quanto ao dito bem, já penhorado.

42. A Exequente, ora Recorrida, nunca logrou comprovar que a penhora do imóvel hipotecado, realizada na anterior execução comum, era objectivamente insuficiente para a satisfação da dívida exequenda da segunda execução, violando manifestamente a regra da subsidiariedade real.

43. A primeira instância situou a prova num campo radicalmente diferente, uma vez que julgou que a execução não era ilegal e abusiva, não obstante já terem sido efectivamente nomeados à penhora outros bens integrantes do património dos ora Recorrentes, não com o fundamento de que ficou provada a insuficiência do imóvel hipotecado já penhorado e à venda no anterior processo executivo, mas sim, pela razão de que os Recorrentes não conseguiram comprovar que a livrança apenas garantiu as obrigações emergentes do contrato de abertura de crédito.

44. Foi, ainda, invocada na oposição à execução, e erradamente julgada improcedente, a excepção dilatória de litispendência, pela razão de que corre termos, simultaneamente com esta execução, o processo executivo, instaurado em momento anterior, mais precisamente em 2004, supra mencionado.

45. Ora, é inegável que existe identidade subjectiva passiva entre as duas execuções, porquanto a 1ª Executada, ora Recorrente, é igualmente Executada no primeiro processo executivo,

46. e, contrariamente ao decidido a quo, também existe identidade subjectiva activa entre ambas, uma vez que a ora Recorrida, não obstante ter primeiramente assumido a qualidade de credora reclamante no primeiro processo executivo, passou a ter, em 01 de Fevereiro de 2007, no mesmo processo, a qualidade de Exequente, pois substituiu-se ao primitivo credor Exequente.

47. Mais, o efeito jurídico pretendido em ambas as acções executivas é idêntico, na medida em que o interesse processual da Recorrida era unicamente obter a satisfação do crédito emergente do incumprimento do contrato de mútuo com hipoteca.

48. Pelo que, os direitos de crédito invocados são igualmente idênticos.

49. Além disso, nota-se que, em boa verdade, as duas causas de pedir apresentadas nas duas execuções são indiscutivelmente idênticas, porquanto o crédito invocado em ambas as execuções é unicamente proveniente de um empréstimo de €349.158,53, com garantia hipotecária, efectuado nos termos e nas condições da escritura pública de 08 de Fevereiro de 1999, com a então Executada nos autos, ora Recorrente.

50. Consequentemente, verifica-se uma total identidade de sujeitos, pedidos e causa de pedir, nas duas execuções.

51. Lamenta-se que o Tribunal a quo tenha adoptado uma perspectiva marcadamente positivista e abstracta do conceito de «identidade», sem se debruçar sobre o caso sub judice, e sem proceder a uma análise esmiuçada daquilo que, in casu, no confronto das duas acções executivas, se podia considerar como idênticos pedidos, sujeitos e causas de pedir.

52. O Tribunal a quo julgou, também erradamente, que a livrança apresentada como título executivo, não foi abusivamente preenchida porquanto os ora Recorrentes, não lograram provar que o acordo de preenchimento foi violado.

53. Contudo, o único acordo de preenchimento efectivamente provado apenas atendeu ao incumprimento das obrigações decorrentes do contrato de abertura de crédito, sendo que a Exequente nunca logrou provar a existência, ainda que tácita, de um segundo pacto de preenchimento relativo às obrigações assumidas no contrato de mútuo com hipoteca.

54. Divergindo da primeira instância, é evidente que o artigo 10.º da LULL foi desrespeitado, uma vez que «os acordos realizados» eram apenas os constantes de prova documental, isto é, da cláusula 8ª do contrato de abertura de crédito.

55. A norma acima citada é fruto de apuros doutrinais e jurisprudenciais significativos.

56. Segundo uma concepção subjectiva do artigo 10.º da LULL, a livrança apresentada como título executivo nos autos, é incompleta e nula por vício de forma.

57. No seguimento de alguns autores partidários dessa concepção, o preenchimento da

livrança tal como consta do título executivo, viola os limites naturais derivados da relação fundamental que determinou a criação cambiária.

58. À luz de uma concepção objectiva do mesmo preceito legal, importa observar se houve desrespeito pelo limite temporal de preenchimento da livrança entregue em branco.

59. Na medida em que o artigo 10.º da LULL é omisso quanto a este ponto, a melhor doutrina e jurisprudência consideram que a questão do limite temporal para o preenchimento da livrança resolve-se através do instituto da prescrição, sendo certo que o prazo inscrito no artigo 70.º da LULL conta-se a partir da data de vencimento da livrança, desde que tal não implique uma violação do pacto de preenchimento.

60. Destaca-se o pensamento da Sra. Professora Doutora Carolinha Cunha, segundo a qual a questão fundamental sob apreciação resolve-se pela determinação da vontade do subscritor, tal como foi manifestada ou hermenêuticamente reconstituída,

61. sendo certo que, em caso de obtenção de um resultado hermenêutico anómalo, em termos de se encontrar uma desconformidade entre a vontade manifestada pelo subscritor e o conteúdo efectivamente inserido no título, deve concluir-se pelo preenchimento abusivo da livrança, que, quando extemporâneo ou não fundamentado, conduz à sua invalidade.

62. A autora sublinha que, nestes casos, o portador estará quase sempre de má-fé, pela razão de que, por regra, tem efectivo conhecimento da desconformidade supra referida.

63. Conhecimento esse que, in casu, é manifesto e demonstra, aliás, um flagrante um venire contra factum proprium da ora Recorrida.

64. No mesmo sentido, também os avalistas vinculam-se nos termos da vontade do subscritor retrospectivamente reconstruída.

65. Nenhum declaratário normalmente zeloso e prudente interpretaria a cláusula 8ª do contrato de abertura de crédito como a prestação de uma garantia pessoa ad aeternum, isto é, para assegurar o cumprimento das obrigações do mutuário emergentes do contrato onde a cláusula se insere, bem como para garantir todas as obrigações futuramente contraídas entre as mesmas partes negociais.

66. Diversamente, era normalmente expectável, previsível e atendível que aquela cláusula contratual, representativa do pacto de preenchimento da livrança em branco, significasse que a garantia pessoal naqueles termos prestada, APENAS assumia a finalidade de assegurar a satisfação, ainda que coerciva, da prestação pecuniária a cargo do mutuário – subscritor da mesma e ora Recorrente – emergente do contrato no qual aquela se insere.

67. Existe uma total discrepância entre a vontade dos Recorrentes – subscritor e avalistas, e o preenchimento efectivo da livrança realizado pela Recorrida,

68. geradora de um abusivo preenchimento da livrança pelo portador – ora Recorrida, que torna inválido e totalmente ineficaz o título de crédito, com título executivo.

69. O Tribunal a quo não decidiu nos termos supra expostos pela simples razão de que confundiu a matéria de facto e, seguidamente, subsumiu literalmente a lei ao caso concreto, sem valorizar as suas fragilidades e, por isso, sem percorrer as fontes de Direito idóneas para a resolução justa do mesmo.

Respondeu a exequente, defendendo a bondade do decidido e que a sentença deve ser mantida na íntegra.

Concluiu do seguinte modo:

A) A douta sentença apelada, deve manter-se pois não padece de qualquer nulidade e consubstancia uma solução que consagra a justa e rigorosa interpretação e aplicação ao caso sub judice das normas e princípios jurídicos competente, nomeadamente, não incorreu em qualquer erro na apreciação da prova, já que toda a prova produzida aponta para a decisão que, efectivamente, foi bem tomada em sede de julgamento de matéria de facto e,

B) Não é pelo facto de o Tribunal a quo ter decidido como decidiu – contrariamente ao que os Apelados pretendiam - que se poderá invocar a nulidade da douta sentença, ora em crise, sem qualquer fundamento, pois basta ler a mesma para se afirmar que não existe qualquer nulidade pois não só estão especificadas as razões de Direito justificativas da decisão final como consta uma fundamentação juridicamente detalhada, clara e coerente.

C) O Mme Juiz a quo julgou – e bem – ao dar como provados os seguintes factos:

- A livrança, mencionada em A) foi dada como garantia do pontual cumprimento das obrigações assumidas pela 1ª Executada no contrato de abertura de crédito mencionado em K) a o).

- A livrança foi assinada pelos executados na data da assinatura do contrato de abertura de crédito;

- A exequente, para a concessão do mútuo não só exigiu a hipoteca do imóvel como a entrega de uma livrança subscrita pela empresa e avalizada por todos os sócios.

- Essa exigência foi aceite pelos Opoentes;

- Os Opoentes nunca reclamaram a devolução da livrança.

D) E, dar como não provados que os executados nunca receberam qualquer comunicação por parte do Exequente de que e em que termos iria proceder ao preenchimento da livrança

mencionada em A);

E) A Exequente, no exercício da sua actividade financeira, encetou negociações com os ora Apelantes para a celebração de um contrato de mútuo no valor de € 349.158,53 (à data, Esc.70.000.000$00), desde que fossem dadas garantias reais e pessoais.

F) Como essas negociações foram-se protelando e não conseguiram rapidamente celebrar a escritura de mútuo com hipoteca, os Apelantes, necessitando de ter “liquidez financeira” para fazer face aos seus compromissos económicos celebraram com a aqui Apelada um contrato de abertura de crédito no valor de € 75.000,00 (15.000.000$00), e entregaram uma garantia pessoal (livrança).

G) O primeiro contrato foi assinado a 20 de Janeiro de 1999 e o segundo a 8 de Fevereiro de 1999.

H) Tais contratos estão umbilicalmente ligados e nunca poderão ser vistos como se tratassem de contratos autónomos e independentes sem qualquer relação entre ambos.

I) A livrança assinada e entregue no momento da celebração do primeiro contrato transitou para o segundo como muito bem entendeu o Tribunal a quo,

J) A livrança em causa, por acordo de ambas as partes e face à exigência da aqui Apelada, ficou a garantir o verdadeiro negócio – um mútuo no valor de € 349.158,53 (à data, Esc. 70.000.000$00).

K) Foi exigida essa garantia pessoal pela aqui Apelada pois, apesar de os Apelantes terem “dado” um imóvel de garantia (a ser hipotecado a favor da Apelada), sempre foi entendido que o produto da sua venda poderia, um dia, não ser suficiente para pagar as obrigações assumidas e não pagas.

L) Prática perfeitamente habitual neste tipo de contratos celebrados com Instituições Bancárias ou Financeiras, como o próprio Tribunal a quo reconheceu ao afirmar que” é ainda de evidenciar que a quantia mutuada pela exequente é uma quantia elevada, sendo prática comum das instituições de crédito que, no âmbito dos financiamentos concedidos às empresas se salvaguardem com a exigência de garantias pessoais por parte dos sócios e gerentes, como sucedeu no caso em apreço.” (cfr. fls. dos autos).

M) Os Apelantes nunca se recusaram a prestar essa garantia pessoal (avalizar a livrança) como não só concordaram com a manutenção da livrança na posse da Apelada e jamais solicitaram a devolução da mesma.

N) Tais conclusões são facilmente comprovadas através de toda a documentação junta aos autos como da análise dos depoimentos das testemunhas supra reproduzidos e que, aqui, por uma questão de economia processual, não se repetem.

O) Pelo que facilmente se compreende a razão pela qual o Tribunal a quo deu como provados os seguintes quesitos fundamentais da Base instrutória: 1º, 2º, 5º, 6º, 7º ,

P) Bem como deu como não provado o quesito nº 3 da Base Instrutória.

Q) Por outro lado, também se dirá que a execução em causa não é ilegal e abusiva pois não foi violado o disposto no art,. 835º do C.P.C. pelos motivos invocados na douta sentença ora em crise, com os quais, por uma questão de economia processual, se adere na íntegra.

R) Quanto à questão da litispendência invocada pelos Apelantes, pelo facto de existir uma acção executiva a correr termos no Tribunal Judicial de Penacova sob o nº 166/04.0TBPCV, também se dirá que estes não têm qualquer razão.

S) Na verdade, conforme dispõe o art. 498º do C.P.C. (corresponde actualmente ao art. 581º do C.P.C.) repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

T) Ora, como enquanto nestes autos a aqui Apelada instaurou uma acção executiva contra a A..., Lda B..., C..., D..., E... e F..., apresentando como título executivo uma livrança no valor de € 395.732,23, subscrita pela A... e avalizada pelos outros executados, na outra acção executiva, a Exequente era a Caixa Geral de Depósitos e executada a A..., Lda, e a aqui Apelada interveio na qualidade de credora hipotecária, reclamando um crédito no valor de € 317.807,78.

U) Assim, tendo em conta o conceito de litispendência definido no art. 498º do C.P.C. (actualmente art. 581º do C.P.C.), conclui-se que não estamos perante uma acção idêntica pois, os sujeitos, o pedido e a causa de pedir são diferentes nessas duas acções.

V) Por outro lado, também se conclui que não há inexistência do título executivo invocado pelos Apelantes pois estes não conseguiram provar que a livrança, junta aos autos, como título executivo, foi entregue apenas para garantir o contrato de abertura de crédito.

W) Pelo que, como esta não só, repita-se, foi dada como garantia do pontual cumprimento das obrigações assumidas no contrato de abertura de crédito bem como para o contrato de mútuo, conclui-se que a prestação constante do título executivo é certa, exigível e líquida.

X) Não existe qualquer vício de nulidade invocado pelos Apelantes pelo facto de a Apelada manter uma livrança em branco para a preencher quando assim o entendesse pois não estamos perante uma obrigação ad eternum pois a livrança foi entregue para garantir o contrato de mútuo enquanto este se mantivesse em vigor

Y) E esta, só foi preenchida quando a Apelada A... deixou de cumprir as suas obrigações.

Z Pelo que, a Oposição, como o Tribunal a quo decidiu, tem de ser julgada improcedente AA) Não existiu por parte da Apelada um preenchimento abusivo da livrança em causa pois apesar de os Apelantes afirmarem que a livrança foi apenas entregue para garantir o contrato de abertura de crédito, a verdade é que não conseguiram provar os argumentos que invocaram e,

AB) O ónus da prova recaia sobre os mesmos (cfr. nº 2 do art. 342º do C.C.).

AC) Ora, não é pelo facto de ser sido assinada e entregue em branco para ser, eventualmente (em caso de incumprimento definitivo), preenchida que se poderá entender estarmos perante qualquer violação do acordo efectuado.

AD) A livrança em causa foi assinada em branco e, nos termos do art. 10º da L.U.L.L., aplicável às livranças (ex vi do art. 77º do mesmo diploma legal), esta destina-se a ser preenchida de harmonia com o pacto de preenchimento convencionado que pode ser expresso ou tácito (de acordo com as cláusulas do negócio determinante da sua emissão).

AE) E, mesmo que não exista um pacto de preenchimento expresso, é pacífico que a autorização de preenchimento do título de crédito nem sequer necessita de constar de documento escrito pois, como se disse, tal pacto de preenchimento pode ser tácito.

AF) Já que, a subscritora e os avalistas (os ora Apelantes), ao aporem as suas assinaturas na livrança conferiram poderes de preenchimento ao seu portador, a aqui Apelada. (“quem emite uma letra (livrança) em branco atribui àquele a quem a entrega o direito de a preencher em certos e determinados termos. Ninguém subscreve um documento em branco para que a pessoa a quem o transmite faça dele o uso que lhe aprouver” – cfr. Ferrer Correia, in “Lições de Direito Comercial – Letra de Câmbio, vol. III, pág. 136)

AG) Nesse sentido, Vaz Serra, in “Estudos – Títulos de Crédito”, BMJ 61, pág. 2697, é de observar, contudo, que ficando em aberto algum elemento, por descuido de alguma das partes, corresponderá, em certas circunstâncias, à compreensível vontade dos interessados o conferimento tácito de poderes de preenchimento, que portanto, será de admitir…”

Conclui-se assim que “para se demonstrar o preenchimento abusivo, tem que se demonstrar (1.º) a existência de um acordo e (2.º) que o tomador/portador da letra/livrança, ao preenchê-la (ao completar o respectivo preenchimento), desrespeitou tal acordo; e, logicamente, quem apenas invoca que não há/subsiste convenção de preenchimento fica sem “quid” que sirva de suporte/reporte ao preenchimento abusivo (in Ac. Tribunal da Relação de Coimbra de 18/12/2013, in www.dgsi.pt)

AH) Pelo que, como já reiteradamente foi explicado, esta livrança destinou-se, em 1º lugar, a garantir esse contrato e, em 2º lugar, o “verdadeiro” contrato – o contrato de mútuo.

AI) Assim, o Tribunal a quo também decidiu, e bem, julgar a Oposição improcedente nessa parte.

AJ) Por outro lado, também se dirá que não estamos perante a excepção da prescrição cambiária invocada pelos Apelantes já que, conforme o disposto no art. 70º da L.U.L.L., aplicável às livranças ex vi do art. 77º do mesmo diploma legal, estas só prescrevem depois de decorridos três anos a contar do seu vencimento.

AK) Ora, como esta tinha como prazo de vencimento o dia 02.04.2009 e a acção executiva foi instaurada em 30.06.2009, pode concluir-se, sem qualquer margem para dúvidas, que tem de improceder a excepção da prescrição invocada.

AL) Finalmente também se dirá que não estamos perante a caducidade do aval quanto aos segundos e quinto executados (os avalistas), pois, apesar de os Apelantes defenderem que este foi, por eles, prestado para garantia do bom cumprimento das obrigações unicamente decorrentes do contrato de abertura de crédito celebrado, a verdade é que a livrança junta aos autos como título executivo destinou-se a servir de garantia, em 1º lugar, ao contrato de abertura de crédito e, em 2º lugar, ao contrato de mútuo.

AM) Pelo que, o aval concedido manteve-se plenamente válido e não caducou com a extinção do contrato de abertura de crédito.

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

II – Fundamentação de Facto

São os seguintes os factos com relevo para a decisão:

1. Em meados do ano de 1998, a Executada “ A..., Ldª” estabeleceu relações com o Exequente com vista à concessão de um mútuo, destinado ao financiamento da sua actividade comercial – alínea B) da matéria assente.

2. As negociações para fixação das condições contratuais mormente quanto a prazo, liquidação, comissões, garantias, decorreram durante vários meses, através de realização de reuniões, telefonemas e troca de faxes – conforme documentos juntos a fls. 45 a 49 e que aqui se dão por integralmente reproduzidos – alínea C) da matéria assente.

3. Para a garantia do bom cumprimento do valor supra referido, a conceder pelo mútuo, a Exequente exigiu à 1ª Executada “ A..., Ldª”, a constituição de hipoteca sobre um bem imóvel pertença da “ A..., Ldª”, o prédio misto composto de pavilhão industrial (fábrica de móveis e sala de exposições) e logradouro para parque de automóveis e de madeira – pinhal e mato, sito na Freguesia de Oliveira do Mondego, concelho de Penacova, inscrito na respectiva matriz sob o artigo urbano 804 e rústico 4189, descrito na Conservatória do Registo Predial de Penacova sob o nº 000067 – alínea D) da matéria assente.

4. A referida hipoteca encontra-se registada a favor da Exequente pela inscrição C-2 Ap. 09/170999 – alínea E) da matéria assente.

5. Em 8 de Fevereiro de 1999, Exequente e Executada outorgaram a respectiva escritura de Mútuo do valor de Esc. 70.000.000$00/€ 349.158,53 com hipoteca, nas exactas condições contratuais resultantes da Escritura Pública outorgada no Cartório Notarial do Porto, em 08/02/99, exarada, a fls. 53 a 55 do Livro de Notas 408-D, e documento particular, parte integrante da mesma – alínea F) da matéria assente.

6. Nos termos constantes da referida escritura pública, a 1ª Executada confessou ser devedora à Exequente da quantia de Esc. 70.000.000$00 (€ 349.158,53) – alínea G) da matéria assente.

7. Pela utilização do capital mutuado, comprometeu-se a 1ª Executada a pagar juros de acordo com o disposto no nº 4 da Cláusula Primeira do documento complementar anexo à referida escritura pública e que, em caso de mora, seriam acrescidos de uma sobretaxa de 4% - alínea H) da matéria assente.

8. Ficou, ainda, expressamente convencionado que o empréstimo era concedido pelo prazo de 10 anos e seria pago pela 1ª Executada em 120 prestações mensais – alínea I) da matéria assente.

9. Para garantia do capital mutuado, dos juros compensatórios e moratórios devidos no seu reembolso e das despesas judiciais e extrajudiciais fixando-se o montante máximo do capital e acessórios em Esc. 94.850.000$00, constituiu a executada “ A..., Ldª” a favor da Exequente, hipoteca sobre o prédio misto identificado em D) – alínea J) da matéria assente.

10. Em 15 de Janeiro de 1999, na “recta final” das negociações, a 1ª Executada, solicitou à Exequente uma abertura de crédito pelo valor de Esc. 15.000.000$00/€ 75.000,00, por “impossibilidade de formalização do contrato de mútuo antes de 19 de Janeiro de 1999” – alínea K) da matéria assente.

11. Exequente e 1ª Executada convencionaram que esta operação vigoraria pelo prazo de 30 dias e que o seu cancelamento se verificaria com a realização da escritura de mútuo com hipoteca – alínea L) da matéria assente.

12. Para garantia do bom cumprimento das obrigações assumidas pela 1ª Executada no mencionado contrato de abertura de crédito, a Exequente exigiu uma livrança a título de caução subscrita pela empresa e avalizada pelos sócios, entregue em branco, apenas devidamente subscrita e avalizada por todos os sócios gerentes da 1ª Executada – alínea M) da matéria assente.

13. Tendo sido estipulado o respectivo pacto de preenchimento no nº 2 da cláusula 8ª consubstanciado no preenchimento e accionamento da mesma em caso de incumprimento de algumas das obrigações decorrentes do contrato de abertura de crédito para a 1ª Executada, até ao limite do montante de capital e juros remuneratórios em dívida, para o qual a 1ª Executada deu, no contrato de abertura de crédito em causa, o respectivo assentimento – alínea N) da matéria assente.

14. Em 20 de Janeiro de 1999, entre a Exequente e a 1ª Executada foi celebrado o referido contrato de abertura de crédito, por escrito particular com reconhecimento de assinaturas – alínea O) da matéria assente.

15. Em 8 de Fevereiro de 1999, por ocasião da concessão do mútuo referido no ponto 5, foi deduzido ao montante de tal mútuo (70.000.000$00) o valor de 15.690.000$00, respeitantes ao reembolso (e demais encargos) da abertura de crédito referida nos pontos 10 a 14 (cfr. documento de fls. 168).

16. Encontra-se junta a fls. 6 e 7 da execução a que estes autos estão apensos uma livrança, no valor de € 395.732,23 (trezentos e noventa e cinco mil setecentos e trinta e dois euros e vinte e três cêntimos), constando como local e data de emissão “Porto 2009/03/18”, como tomador “ G...” e como subscritor “ A..., Ldª” e no verso, após menção “por aval ao subscritor”, as assinaturas de “ F..., C..., E..., D... e B...” – alínea A) da matéria assente.

17. A livrança mencionada em A) foi apenas assinada pelos executados, sem que tivessem na mesma aposto qualquer outro dado que não a respectiva assinatura – alínea Y) da matéria assente.

18. E foi a única livrança que Executada subscreveu e entregou à Exequente até à presente data – alínea Z) da matéria assente.

19. A livrança mencionada em A) foi dada como garantia do pontual cumprimento das obrigações assumidas pela 1ª Executada no Contrato de Abertura de Crédito mencionado em K) a O) – resposta ao artº 1º da base instrutória.

20. Tendo sido assinada pelos executados na data da assinatura do contrato de abertura de crédito – resposta ao artº 2º da base instrutória.

21. A exequente, para a concessão do mútuo referido em F), começou por exigir, além da hipoteca do imóvel, a entrega de uma livrança subscrita pela empresa e avalizada por todos os sócios – resposta ao artº 5º da base instrutória.

22. Os opoentes nunca reclamaram a devolução da livrança – resposta ao artº 7º da base instrutória.

23. Em Dezembro de 2002, a 1ª Executada deixou de cumprir pontualmente com as suas obrigações – alínea P) da matéria assente.

24. Em 4 de Abril de 2003, a 1ª Executada transmitiu à Exequente as dificuldades em cumprir o pagamento das prestações do contrato de mútuo com hipoteca, solicitando a sua reformulação, através de redução do valor das prestações – alínea Q) da matéria assente.

25. Situação reiterada em 14 de Maio de 2003, data na qual foi apresentada proposta de regularização do valor em dívida com plano de pagamento dos valores vencidos e reformulação do valor das prestações vincendas – alínea R) da matéria assente.

26. Na sequência destes contactos, a 1ª Executada foi visitada nas suas instalações pelo funcionário da Exequente, Dr. I..., que exigiu o pagamento imediato da dívida sob pena da sua execução – alínea S) da matéria assente.

27. Desde o ano de 2004, que corre termos no Tribunal Judicial de Penacova, a Execução Comum nº 166/04.0TBPCV, em que é Exequente “Caixa Geral de Depósitos” e Executada a aqui 1ª Executada, “ A..., Ldª”, pelo valor de € 54.160,16 – alínea T) da matéria assente.

28. A ora Exequente, na qualidade de credor hipotecário, reclamou nesta execução o seu crédito, de valor € 317.807,78, resultante do contrato de mútuo celebrado em 8 de Fevereiro de 1999, na qual foi já proferida sentença de graduação de créditos – alínea U da matéria assente.

29. Em 1 de Fevereiro de 2007, o Exequente na presente execução/credor reclamante na execução nº 166/04.0TBPCV, requereu face à inércia da Exequente “Caixa Geral de Depósitos” o prosseguimento da execução, apenas quanto ao bem de que é credor reclamante – alínea V) da matéria assente.

30. O valor base do bem em causa é de € 630.000,00 – alínea W) da matéria assente.

31. A execução encontra-se em fase de venda do bem penhorado, em relação ao qual é a ora Exequente credora hipotecária – alínea X) da matéria assente.

32. A presente execução causou a cada um dos executados profunda angústia e inquietação – resposta ao artº 4º da base instrutória.

*

III – Fundamentação de Direito

O âmbito do presente oposição – de cuja sentença os oponentes apelam – localiza-se, juridicamente, na vulgarmente designada “excepção de preenchimento”[3]; o que logo traz subentendido que se está perante uma subscrição (duma letra ou livrança) em branco e que, segundo os oponentes, o portador (aquele a quem o título foi entregue) a preencheu abusivamente.

É justamente o caso do litígio sob recurso.

Os oponentes escrevem muito, dizem a mesma coisa por repetidas e diversas maneiras, dão-lhe várias roupagens e invocam juridicamente “tudo e mais alguma coisa”, porém, no centro de tudo o que dizem e invocam juridicamente, acaba por estar sempre uma e a mesma questão: o preenchimento abusivo por parte da exequente da livrança dada à execução[4].

Quando se é muito loquaz – perdoe-se-nos a observação – há o risco da atenção e concentração do declaratário poder dispersar-se; do declaratário se “distrair” do essencial (enredado que fica a seguir o discurso do declarante e a responder “ponto por ponto” a todas as suas interpelações). É bem provável que tenha sido isto que aconteceu nos autos e por isso vamos tentar cingir-nos ao essencial.

E, antecipando desde já a solução final, começamos por afirmar que os oponentes/apelantes têm na questão do preenchimento abusivo razão; não têm razão em tudo o que dizem na sua alegação recursiva[5], mas no que é essencial para o objecto da oposição/apelação – que é o que interessa – assiste-lhes razão.

Basicamente pelo seguinte: a prova produzida não é de molde a dar aos quesitos 5.º e 6.º uma rotunda resposta positiva (como lhes foi dada na decisão a quo) e, a partir da modificação da resposta a tais quesitos, torna-se evidente que a livrança dada à execução foi indevidamente preenchida pela exequente[6].

Expliquemo-nos:

Parte significativa da divergência recursiva dos oponentes/recorrentes dirige-se, como resulta das suas conclusões supra transcritas, à decisão de facto.

Quando faz parte do objecto dum recurso a impugnação da decisão de facto, é naturalmente por aqui que, via de regra, começamos o seu conhecimento e apreciação.

No caso, porém, antes disso, vale a pena começar por expor a premissa maior que há-de guiar o desfecho do litígio; aliás, não será demais referi-lo, também o direito “está/paira” implícito quando se começa pela impugnação da decisão de facto (assim como em toda e qualquer peça processual), uma vez que é apelando ao direito (e apenas ao direito) que é feita a selecção dos factos reputados como relevantes e com interesse para a decisão dum litígio (seja ele qual for).

Vejamos, então[7]:

Tem a presente execução por base uma livrança que quando foi entregue à exequente/apelada – assinada/subscrita pelos oponentes/apelantes (como subscritora e como avalistas) – não tinha preenchidos os campos referentes à data de emissão, à data de vencimento e à importância[8], sendo certo que, quando foi “dada” à execução, tinha inscrita como datas de emissão e de vencimento os dia 18-03-2009 e 02-04-2009 e como importância o montante de € 395.732,23; localizando os oponentes/recorrentes o “abuso” cometido no preenchimento pela exequente/portadora, “grosso modo”, na circunstância da convenção válida para o preenchimento de tal livrança se circunscrever ao pagamento dum crédito há muito extinto/pago[9].

Não é – delimitando ainda o objecto da oposição e da apelação – o “abuso” que normal e recorrentemente é invocado.

Normal e recorrentemente, situa-se o abuso/violação do pacto de preenchimento do título “dado” à execução na não ocorrência da vicissitude/incumprimento da relação fundamental (em o devedor principal não ter incumprido e não se ter ainda verificado a constituição da obrigação pecuniária) e diz-se, por isso, que o título não podia ter sido preenchida ou que ainda o não podia ser ou, além disto, invoca-se que o título foi preenchido por uma quantia superior à que estava em dívida; ou seja, coloca-se em causa o “se”, o “quantum” e o “an” do preenchimento do título.

Aqui (oposição/apelação), diferentemente, é o estar “extinta/caduca” a convenção de preenchimento, o mesmo é dizer, inexistir no momento actual uma válida convenção de preenchimento (do título subscrito e entregue em branco); para o que se argumenta – estamos a repetir-nos – que a livrança em causa foi a única livrança, subscrita e avalizada, entregue à exequente e que a mesma “teve apenas como função o pagamento da quantia em dívida resultante do incumprimento do contrato de abertura de crédito” (art. 42.º da PI de oposição), que a mesma se destinava exclusivamente “à garantia do cumprimento das obrigações da 1.ª executada, no contrato de abertura de crédito” (art. 43.º da PI de oposição), tendo sido usada/preenchida, num momento em que estava há muito paga a dívida resultante do contrato de abertura de crédito, para obter o pagamento da quantia em dívida resultante de um contrato de mútuo com hipoteca celebrado entre a exequente e a 1.ª executada.

Importa pois não esquecer que temos “entre mãos” uma livrança integralmente preenchida, em que os oponentes/recorrentes são, como subscritora e como avalistas (cfr 78.º, 77.º e 32.º da LULL) e na sua “literalidade”, obrigados cambiários (vinculações cambiárias que não contestam ou discutem).

Aliás – não será despiciendo referi-lo – a mera qualificação, como excepção, da questão do preenchimento abusivo constitui um “indício” significativo sobre o cumprimento e repartição dos ónus alegatório e probatório; efectivamente, espelhando o título cambiário (na sua literalidade) uma obrigação[10], é a quem pretende destruir e/ou inutilizar tal força vinculativa do título que compete alegar e provar os respectivos factos (cfr. art. 342.º/2 do CC).

“Exceptio” que, dissecada, funcionará nos seguintes termos:

Não discutindo os oponentes/apelantes que são subscritora e avalistas na livrança, invocando a exceptio, compete-lhes alegar e provar que a livrança foi assinada em branco e que o seu preenchimento foi abusivo.

O 1º aspecto, ficou provado pela própria "confissão" (na contestação à oposição) da exequente/apelada.

O 2º aspecto, afirmando a exequente/apelada que efectuou o preenchimento de acordo com o convencionado, remete – à primeira vista – para os oponentes/recorrentes todo o ónus da alegação e prova do invocado preenchimento abusivo.

Efectivamente – também é o nosso de ponto de vista – não faz parte do elenco das alegações úteis e aproveitáveis, tendo em vista demonstrar o preenchimento abusivo duma livrança, dizer-se/invocar-se tão só que não existe/subsiste válida uma qualquer convenção de preenchimento.

A tal propósito, é sintomático o seguinte raciocínio e discurso:

“ (…) Será possível operar-se a emissão voluntária de um título conscientemente não preenchido sem que exista, concomitantemente, uma destinação de preenchimento? O facto de um sujeito assinar uma letra ou livrança, que, sabendo não preenchida, entrega por sua livre e espontânea vontade a outro indivíduo, só se compreende pela intenção de confiar o preenchimento a outrem. Como já foi dito, da subscrição e entrega de um título em branco deduz-se logicamente a vontade do emitente de fazer própria a declaração que um outro sujeito inserirá sucessivamente no título.

Naturalmente, tudo se torna mais simples e cristalino quando as partes (a que emite a que recebe o título) celebram, de modo expresso e directo, um pacto de preenchimento e mais ainda quando o revestem da forma escrita. Nesse contexto, torna-se possível determinar, sem dificuldades, que o subscritor pretendeu cometer o preenchimento do título a outrem; e torna-se ainda possível determinar (embora por vezes, com algumas dificuldades) em que termos pretendeu que o preenchimento viesse a ser feito. Mas é generalizadamente admitido que o acordo de preenchimento não tem que ser expresso; ora, ainda que tal admissão se dirija, normalmente, a permitir desentranhar da relação subjacente os termos ou condições em que a letra deve ser completada, leva pressuposto que a própria vontade de confiar o preenchimento a outrem se infere do facto concludente que é a subscrição e entrega voluntária do título. (…)”[11].

De facto, não é juridicamente compreensível a emissão voluntária duma letra ou livrança objectivamente incompleta – frisa-se, a emissão voluntária dum título incompleto – sem que concomitantemente exista um acordo de preenchimento, seja ele escrito, meramente oral/informal ou porventura tão só implícito[12].

Quando alguém emite uma letra ou livrança incompleta – quando alguém coloca conscientemente a sua assinatura num documento que contém elementos que remetem o documento sobre o qual está aposta a assinatura para a esfera cambiária – podem acontecer uma de duas coisas/hipóteses: ou esse alguém não tem consciência da incompletude e supõe que os elementos omissos estão, na realidade, preenchidos e com determinado conteúdo; ou tem consciência dessa incompletude e está a cometer, em certos termos, o preenchimento a outrem.

Esta 2.ª hipótese, que é a mais comum e vulgar, é a que cai sob a alçada do art. 10.º da LULL, é a dos autos e, naturalmente, é em relação a ela que inquestionavelmente vale a afirmação de não ser juridicamente compreensível a sua emissão sem um acordo de preenchimento.

E repetindo o que já se disse/transcreveu, vale a pena, voltando a socorrer-nos de Carolina Cunha[13], deixar aqui citado ainda:

“ (…) a subscrição e entrega voluntária do título (conscientemente) deixado em branco, através da qual se manifesta a intenção de deixar o preenchimento do título ao cuidado do receptor, é suficiente para permitir a aplicação do art. 10.º. Já os termos em que o complemento deve vir a ser efectuado tanto podem constar de documento escrito, como podem ter sido objecto de mero acordo verbal (com as dificuldades probatórias que acarreta em caso de posterior conflito). Podem, ainda, resultar implicitamente do próprio contrato que dá origem à letra, isto é, da relação jurídica fundamental, hipótese em que o acordo de preenchimento será tácito. Portanto, não vemos, por uma lado necessidade de afirmar enfaticamente, como faz alguma jurisprudência, que pode existir letra em branco sem ter havido contrato de preenchimento. Por outro lado, ressalvadas as hipóteses de incompletude proveniente de lapso, parece-nos que haverá sempre pelo menos um acordo tácito das partes quando aos termos do preenchimento, heremeneuticamente extraível do contexto negocial mais vasto em que a subscrição e entrega do título se inserem.

Não quer isto dizer que, na prática, não surjam dificuldades realcionadas com a reconstrução ou comprovação dos termos desse acordo. Em última análise, tais dificuldades resolvem-se por intermédio das regras relativas ao ónus da prova. Nunca é demais recordar que, em sede do art. 10.º da LULL, nos movemos no interior de um conflito aberto: cabe ao subscritor em branco demonstrar o quid com o qual o preenchimento é desconforme. Por conseguinte, se não lograr reconstruir em juízo os termos do acordo de preenchimento, o credor será admitido a exercer o seu direito cartular tal como o título o documenta.

O que é – a afirmação de não ser juridicamente compreensível a emissão voluntária dum título sem um acordo de preenchimento – totalmente inteligível se tivermos presentes as razões e interesses que, na prática, levam à emissão voluntária dum título incompleto.

Está em causa, “normalmente, uma relação fundamental que comporta um direito de crédito ainda não inteiramente definido (porque falta determinar o respectivo montante, ou vencimento), ou no seio da qual se prevê como apenas eventual a constituição de um direito de crédito. Aparece, sobretudo, no âmbito das relações duradouras com prestações pecuniárias como expediente para fazer face ao espectro do incumprimento. E apesar de alguma doutrina acentuar o carácter ilíquido da dívida como determinante da utilização da letra em branco, convém colocar no mesmo plano o seu carácter futuro e incerto; trata-se, em suma, da garantia de responsabilidades futuras e ilíquidas”[14].

Daí que geralmente surjam (a letra ou livrança em branco) como garantia de dívidas emergentes de contratos de abertura de crédito que os bancos celebram com os seus clientes empresariais[15]; ou como garantia de contratos de locação financeira e de contratos de crédito ao consumo[16].

Situando-se a vantagem/interesse prático do título em branco na segurança proporcionada ao credor, que, com o título em seu poder, chegado o momento, sem depender de qualquer manifestação de vontade/colaboração do devedor[17], o completa segundo o convencionado.

O que significa que os interesses envolvidos, merecedores de tutela jurídica, numa letra/livrança em branco são o interesse do portador que aponta no sentido do título valer conforme foi completado; e o interesse do subscritor que aponta para que a declaração cartular valha em conformidade com a vontade por si manifestada, ou seja – é onde se quer chegar – não há um interesse (merecedor de tutela jurídica) do subscritor que aponte para a hipótese da sua declaração cartular poder ficar vazia de conteúdo, que aponte para o título não poder, em caso algum, ser preenchido.

Enfim, na emissão voluntária dum título incompleto, há sempre um ajuste; e do mesmo modo que o portador não pode sustentar que o subscritor se obrigou cambiariamente por qualquer quantia, em condições de tempo e lugar que fiquem ao seu (do portador) inteiro arbítrio, também o subscritor (que não discute, como é o nosso caso, a sua intenção de se obrigar cambiariamente) não pode vir alegar[18] que não houve/há qualquer acordo de preenchimento (ou tão só que o existente não é válido) e que por isso o portador não está autorizado ao preenchimento do título (ou que o preenchimento não vale em relação a si).

Daí que tenhamos começado por observar que não faz parte do elenco das alegações úteis e aproveitáveis, tendo em vista demonstrar o preenchimento abusivo duma livrança, dizer-se/invocar-se tão só que não existe/subsiste válida uma qualquer convenção de preenchimento; ficar por aqui, sem a seguir se alegar/provar um qualquer acordo de preenchimento, não serve, processualmente, à defesa dum executado/subscritor dum título entregue em branco[19].

Ponto de vista este que é claramente sufragado no douto Ac. do STJ de 22/10/2013[20], relatado pelo Conselheiro Alves Velho, do qual, com a devida vénia, se reproduzem as seguintes asserções conclusivas:

Se o avalista opta por lançar mão da invalidade da cláusula que integra pacto de preenchimento em que interveio, com a respectiva exclusão do contrato, auto-exclui-se da intervenção no acordo de preenchimento e, consequentemente, do posicionamento que detinha no campo das relações imediatas com a beneficiária da livrança, a coberto das quais poderia invocar e fazer valer a excepção do preenchimento abusivo.

Para que se coloque uma questão de preenchimento abusivo, enquanto excepção pessoal do obrigado cambiário, é necessário que se demonstre a existência de um acordo, em cuja formação tenham intervindo o avalista e o tomador-portador do título, acordo que este último, ao completar o respectivo preenchimento tenha efectivamente desrespeitado.

Se, em substituição do pacto inválido e excluído nenhum outro se invoca, como obrigação desrespeitada no acto de preenchimento da livrança, então não há objecto sobre o qual possa ser alegado e discutido preenchimento abusivo, carecendo o avalista de fundamento para discutir uma eventual excepção, por isso que nenhuma violação de convenção consigo celebrada imputa aos demais signatários do título cambiário, por via da qual se mantivesse nas relações imediatas.

Assim sendo, sobra a posição jurídica de avalista, assumindo o aval a sua plena autonomia, mantendo-se aquele obrigado nos precisos termos resultantes da obrigação cambiária inerente ao aval dado.

Asserções estas que inclusivamente acabam por ir mais longe que o nosso ponto de vista supra exposto, uma vez que se sustenta que um avalista – como os 2.º a 5.º oponentes/recorrentes dos autos/recurso – com tal posicionamento/alegação se auto-exclui de poder invocar e fazer valer a excepção do preenchimento abusivo.

Efectivamente, não vemos razão, com o devido respeito, para ir tão longe, uma vez que, “ (…) mesmo nos casos em que o avalista não tem (ou não fica provado que tenha tido) qualquer contacto com o credor, nem celebrou com ele qualquer convenção de preenchimento, o credor não pode ou não deve ignorar o seguinte: o sujeito que avaliza ainda em branco o título que sabe destinado a suportar a obrigação cambiária do avalizado, a quem sem mais entrega o documento assinado, está a manifestar a vontade de que o preenchimento se faça nos mesmo termos que vieram a vigorar para a concretização da obrigação cambiária desse avalizado: nem mais, nem menos. É isso que resulta exactamente dos cânones hermenêuticos vigentes no nosso ordenamento jurídico – é esse o sentido que desse comportamento extrairia um declaratário normal, colocado na posição de credor. (…) Por conseguinte, os critérios a mobilizar para apurar se houve preenchimento abusivo – isto é, discrepância entre o preenchimento do título e a vontade manifestada pelo avalizado – serão os fixados no acordo de preenchimento celebrado entre o credor e o avalizado, quer o avalista nele tenha ou não participado”[21], [22].

Tudo isto para dizer que se está totalmente de acordo com o que a exequente/apelada sustenta nos autos sobre a questão da “excepção de preenchimento”[23] e para, a partir daqui, estabelecida tal concordância, enfatizar onde é que está e o porquê de, no caso, chegarmos a uma conclusão aparentemente diferente.

Insiste-se, não vale – não é útil e aproveitável – dizer-se tão só que não há/houve qualquer acordo de preenchimento e/ou que não existe uma válida convenção de preenchimento; tem que se alegar/provar algo com virtualidade suficiente para obstar ao funcionamento da abstracta vinculação cambiária.

Mas é justamente este último o caso dos autos/recurso.

É o que vamos explicar a partir dos contornos factuais dos autos.

Começando pela impugnação de facto:

Com relevo para o que está impugnado, alinhemos os elementos factuais e probatórios que são incontroversos e indiscutíveis:

Nos dois primeiros meses de 1999 (mais exactamente, em 20/01 e em 08/02) as partes (a exequente e a 1.ª executada) “fecharam/formalizaram” dois contratos; uma abertura de crédito de 15 mil contos (cujo clausulado consta de fls. 93 a 95) e um mútuo com hipoteca de 70 mil contos (cujo clausulado e o documento complementar constam de fls. 81 a 92).

Embora – em face do que consta dos pontos 10 e 11 – a abertura de crédito tenha tido um carácter instrumental e provisório (foi celebrado por “impossibilidade de formalização do contrato de mútuo antes de 19 de Janeiro de 1999”, tendo sido convencionado “que esta operação vigoraria pelo prazo de 30 dias e que o seu cancelamento se verificaria com a realização da escritura de mútuo com hipoteca”) o certo é que apresenta, olhando para o seu clausulado, uma completa autonomia e suficiência contratual.

Assim, lendo o clausulado de ambos os contratos (fls. 81 a 95), constatamos que apenas no contrato de abertura de crédito (na cláusula 8.ª) se estabelece a entrega duma livrança em branco a preencher “em caso de incumprimento de alguma das obrigações decorrentes, para a 2.ª contraente, do presente contrato”; é redundante acrescentá-lo, mas o contrato de mútuo não estabelece ou alude em alguma cláusula à entrega duma livrança em branco.

É isto (apenas isto) que consta dos meios de prova que fecharam a fase estipulativa; que formalizaram/documentaram os negócios celebrados; pelo que – é um elemento probatório que a exequente não discute – apenas uma livrança foi entregue à exequente/apelada.

Sendo justamente aqui – na explicação para só uma livrança ter sido entregue – que se pode dizer que começa a divergência entre as partes.

Sustentam os executados que só uma livrança foi entregue porque só um contrato (a abertura de crédito) estabelecia tal garantia pessoal.

Sustenta a executada que só uma livrança foi entregue porque quando o contrato de abertura de crédito ficou extinto (passados 16 dias sobre a sua assinatura, como se extrai de fls. 178) a livrança de tal contrato “passou” para o contrato de mútuo; acrescentando/justificando que não era preciso entregarem outra porque já tinham uma livrança em branco (devidamente assinada pela subscritora e avalistas) e as livranças em branco são todas iguais.

Que dizer?

Que a exequente “passou” a livrança para o contrato de mútuo, não há a menor dúvida; na verdade, só recebeu uma livrança e preencheu-a e está a executá-la pela dívida do contrato de mútuo (como resulta de fls. 168, repete-se, a dívida do contrato de abertura de crédito foi paga/deduzida ao capital do mútuo logo em 05/02/1999).

Mas, como é evidente, a questão não está em saber se “passou”, mas sim em saber se podia “passar”, o mesmo é dizer se combinaram por algum modo que a exequente ficava na posse da livrança e a podia passar a utilizar como garantia pessoal do mútuo (em caso de incumprimento do contrato de mútuo)[24].

Ora – é o ponto – a prova de tal acordo foi claramente insuficiente.

Em 1.º lugar – não é decisivo, mas não pode deixar de ser aqui verbalizado – a exequente não fez ouvir ninguém que referisse tal concreto e exacto acordo.

A exequente fez ouvir apenas o Dr. H..., seu Director de Operações, que começou por afirmar/admitir que não teve qualquer intervenção nas negociações e formalizações contratuais (a cargo, acrescentou, do Departamento Comercial); que revelou não ter o menor conhecimento directo e pessoal do que foi combinado com os executados.

O que disse então o Dr. H...? Apenas e só o que é do seu conhecimento ser normal acontecer: disse que “não se faz nenhum contrato sem livrança”; que “é assim que funciona e que se não houver livrança não é fechado o contrato”; que “tal (sem livrança) não tem sentido”; acrescentando sempre “posso falar do que se faz”, mas “não estou a ver o contrato”.

Ou seja, entrando na análise crítica de tal meio de prova (e não apenas no seu relato), podemos/devemos afirmar que o depoimento de tal testemunha nada trouxe, bem pelo contrário, à tese factual da exequente; não é compreensível, a nosso ver e com o devido respeito, que alguém com as responsabilidades da testemunha (na exequente) tenha vindo para a audiência sem previamente ler/conhecer os contratos[25], “recusando-se” verdadeiramente a falar dos concretos contratos dos autos, ficando-se por generalidades sobre o que é usual na exequente e na banca[26] e argumentando com as razões porque não foi exigida uma 2.ª livrança, com a circunstância dos executados nunca terem pedido a devolução da livrança[27] e com o facto de poderem “exigir outras garantias” (cláusula 9.ª do contrato de mútuo)[28].

Em 2.º lugar, os documentos juntos – da fase das negociações, da fase estática/estipulativa e da execução contratual – também não ajudam, no seu contexto e apreciação globais, na prova dum acordo, anterior, contemporâneo ou posterior à formalização dos contratos.

Começando pelo princípio:

A fls. 45 está efectivamente um telefax, datado de 26/10/98, da G..., em que, para conceder o mútuo de 70 mil contos, se pede também, como garantia, uma livrança em branco (subscrita pela empresa e avalizada pelos sócios)

Telefax a que a 1.ª executada respondeu (cfr. fls. 46), no mesmo dia, dizendo e explicando porque é que não concordava com a exigência do aval dos sócios.

O que aconteceu a seguir, nas negociações, não está documentalmente demonstrado nos autos, porém, há documentos (da G...) que suscitam e impõem ponderação/reflexão desfavorável (ou, no mínimo, não favorável) à tese da exequente

A fls. 153 está o fax em que a G... estabelece as condições para a abertura de crédito de 15 mil contos, encontrando-se, entre tais condições, “livrança caução subscrita pela empresa e avalizada pelos sócios e cônjuges”.

A fls. 79 está o fax em que a G... solicita um conjunto de elementos (bem detalhados) para “a marcação do acto notarial de formalização” do mútuo com hipoteca e nenhuma alusão há à exigência da livrança em branco.

Pelo que, em termos de apreciação crítica, temos que observar que, se no mútuo também tivesse sido acordado a livrança, a alusão a esta não teria sido (não poderia ter sido) omitida no fax de fls. 79.

A favor da tese da exequente, apenas o que I... escreveu em 11/06/2003 no documento junto a fls. 131.

Naquela ocasião, o I..., indicado como testemunha pelos executados, trabalhava na G... e veio à A... (que já estava em incumprimento e tendo em vista encontrar uma solução extrajudicial para a dívida), tendo escrito pelo seu punho, no documento junto a fls. 131, que comunicou aos gerentes “ (…) a decisão de não aceitar o plano de regularização proposto pela A..., bem como ir accionar de imediato as garantias (real e pessoal)”.

Mas, como é evidente, o que o I... escreveu só a ele o vincula e, quando muito, o que consta de fls. 131 apenas descredibiliza o que de diferente veio dizer em audiência (veio basicamente dizer que no mútuo não havia outras garantias além da hipoteca).

Em suma, o que consta do documento de fls. 131 é muito pouco ou mesmo nada: o I... pode ter escrito o que escreveu por a exequente o ter informado que tinha garantia pessoal[29].

Enfim, em face da prova produzida, é impossível afirmar, positivamente, que, a final, para conceder o mútuo, a exequente continuou a exigir uma livrança subscrita em branco[30]; e, consequentemente, que tal exigência foi aceite pelos oponentes[31].

E desta convicção, que acabámos de expor, irradiam, necessariamente, para os quesitos 5.º e 6.º (também colocados em crise pelos oponentes/apelantes), as seguintes respostas devidamente modificadas[32]:

Quesito 5.º: Provado, apenas, que a exequente, para a concessão do mútuo referido em F), começou por exigir, além da hipoteca do imóvel, a entrega de uma livrança subscrita pela empresa e avalizada por todos os sócios.

Quesito 6.º; Não provado.

É quanto há a dizer e concluir sobre o recurso de facto, que assim procede parcialmente, nos termos que acabam de ser referidos e estabelecidos.

*

Aqui chegados, limitando-nos a aplicar o direito já supra enunciado ao elenco factual, temos, em síntese, que o que ficou provado obsta ao funcionamento da abstracta vinculação cambiária que resulta, na sua literalidade, das obrigações incorporadas no título – livrança – “dada” à execução.

Efectivamente, resulta do elenco factual que a livrança “dada” à execução foi entregue em branco à exequente para garantir o “bom” pagamento da abertura de crédito referida no ponto 14; e com o explícito e escrito pacto de preenchimento constante da cláusula 8.ª do documento que formalizou tal contrato (ver ponto 13 dos factos).

Significa isto, naturalmente, tendo sido pagas/liquidadas todas as responsabilidades emergentes de tal contrato de abertura de crédito, que a livrança perdeu a sua utilidade/função; a sua validade caducou e, por conseguinte, o exequente não podia preenchê-la e executá-la por qualquer montante e fosse a que título fosse.

Indo ao ponto saliente da questão, os oponentes/recorrentes não dizem que nunca houve um qualquer acordo de preenchimento e/ou que nunca existiu uma válida convenção de preenchimento; dizem, diferentemente, que, neste momento e quando foi preenchida a livrança, já não existia/subsistia uma válida convenção de cheque; dizem/provam qual foi o acordo de preenchimento e dizem/provam que o mesmo não permitia preencher a livrança com relação a qualquer contrato e por qualquer valor em dívida (independentemente da fonte/causa de tal dívida).

O enredo factual no seu todo, chama-se a atenção, não nos coloca perante um único contrato entre a exequente e a 1.ª executada – cujo clausulado do documento formalizador (de tal único contrato) não alude à entrega duma livrança em branco – e perante a circunstância de existir uma livrança, entregue em branco, em poder de exequente[33]; hipótese essa em que, naturalmente, faria sentido argumentar/esgrimir com a ideia do acordo de preenchimento implícito e, em função disso, passar a fazer os executados arcar com o ónus de demonstrar o que foi efectivamente acordado sobre o preenchimento (da livrança existente em poder da exequente), para, a partir daí, chegarem à prova do desrespeito de tal acordo por parte do tomador/portador da livrança, ao preenchê-la[34].

Como já referimos e voltamos a repetir, não faz parte do elenco das alegações úteis e aproveitáveis/prestáveis, tendo em vista demonstrar o preenchimento abusivo duma livrança, dizer-se/invocar-se tão somente que não existe/subsiste válida uma qualquer convenção de preenchimento; uma vez que, insiste-se, se, em substituição do pacto inválido e excluído nenhum outro se invocar, então não há “quid” que sirva de suporte/reporte a um qualquer preenchimento abusivo.

Mas o caso dos autos/recurso não é subsumível a tal situação.

Os oponentes/recorrentes alegam e demonstram o “quid” com o qual o preenchimento é desconforme; demonstram o pacto de preenchimento que está na origem da emissão/entrega de tal livrança em branco e que, segundo o mesmo e nos termos do mesmo, a livrança já não poderia, em 2009, ser preenchida/completada e executada; razão pela qual era a portadora/exequente que tinha o ónus de demonstrar o “novo” pacto de preenchimento, segundo o qual teria passado a estar habilitada a preenchê-la e a executá-la do modo que o fez; pelo que – é a conclusão, última e final, uma vez que prejudica a apreciação das outras questões e argumentos – não tendo sido feita esta prova, não pode, embora formalmente portadora, a exequente ser admitida a exercer os direitos cartulares que a livrança incorpora quer/ou por se considerar que já não é, em substância, uma verdadeira e legítima portadora da livrança quer/ou por se considerar que a preencheu abusivamente.

Em conclusão, a apelação procede.

*

IV - Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida que se substitui por decisão a julgar procedente a oposição e a determinar a extinção da execução.

Custas, em ambas as instâncias, pela exequente.

*

Coimbra, 10/02/2015

 (Barateiro Martins - Relator)

 (Arlindo Oliveira)

 (Emídio Santos)

[1] Além da incompetência territorial e da litigância de má-fé da exequente.

[2] Após, decidida a excepção de incompetência territorial, ter sido determinada a remessa do processo ao Tribunal Judicial de Penacova, por ser o territorialmente competente.
[3] Embora, no fim da discussão, se possa dizer/concluir que a exequente já não era uma portadora legítima da livrança, porém, é só percorrendo a “excepção de preenchimento” que se pode chegar com limpidez a tal conclusão.

[4] Acaba por estar o que os oponentes, “em jeito de síntese”, dizem nos arts. 32.º e 33.º da PI de oposição.
[5] Não têm razão nas nulidades de sentença que excogitam (a de faltarem as fontes doutrinais e jurisprudenciais é certamente uma “inovação” jurídica), não têm razão em várias das excepções que suscitam (e cujo conhecimento/apreciação ficará prejudicado) e são desnecessária, injusta e gratuitamente incorrectos (esquecendo o disposto no art. 9.º do CPC) nalgumas das razões invocadas (como é o caso do que dizem nas conclusões 15.ª e 35.ª).
[6] Ou porventura mais exactamente, não devia ter sido preenchida e já devia ter sido devolvida aos executados.

[7] Seguindo de perto o que expusemos noutras e diferentes apelações sobre o assunto, designadamente no Ac. de 18/12/2013 (citado pela apelada na conclusão AG)), proferido na apelação n.º 1445/11.6TBCBR-A.C1.
[8] O que significa que estamos perante a chamada “dupla subscrição em branco”, que ocorre quando as assinaturas de avalista e avalizado foram ambas efectuadas numa letra ou livrança em branco.
[9] Deixemos os outros motivos invocado, designadamente, a invocação da actuação em abuso de direito da exequente.

[10] Embora o art. 76.º da LULL afirme que o escrito a que falte algum dos requisitos indicados no art. 75.º não produz efeitos como livrança (como era o caso da dos autos quando foi entregue à exequente), tal não significa senão que os requisitos do art. 75º são elementos de eficácia. De facto, quer o subscritor duma livrança quer o avalista duma livrança, ao assiná-la, constituem-se numa obrigação cambiária desde o início, mas que como tal não pode ser efectivada senão depois do preenchimento.
[11] Carolina Cunha, Letras e livranças, pág. 535.

[12]Ao fenómeno corresponde uma intenção (…) de deixar o preenchimento do título ao cuidado de outrem; (…) à manifestação dessa intenção não é imprescindível a celebração de um explícito acordo de preenchimento” – Carolina Cunha, obra citada, pág. 537.
[13] Carolina Cunha, obra citada, pág. 620/1.
[14] Carolina Cunha, obra citada, pág. 554.

[15] Em que as cláusulas do contrato de abertura de crédito prevêem os termos e condições de preenchimento, o qual tem como facto desencadeador o incumprimento do cliente e o subsequente vencimento da dívida correspondente ao saldo apresentado pela abertura de crédito.

[16] Em que o acordo de preenchimento se apresenta geralmente – chama-se a atenção – como cláusula do contrato escrito e em que, também aqui, é o incumprimento do cliente que tipicamente desencadeia o accionamento do título.

[17] Daí as teses que aproximam o poder de preencher um título em branco da figura do direito potestativo.
[18] Como se considerou no Ac. STJ de 11-02-2003 (in www.dgsi.pt) tal alegação constitui uma “atitude redutora”.

[19] E que a exequente/portadora preencheu e deu à execução com a totalidade dos requisitos essenciais preenchidos.
[20] Acessível in www.dgsi.pt.
[21] Carolina Cunha, in RLJ, ano 143, pág. 73, em comentário ao Ac. desta Relação de 19/02/2013

[22] Posição esta – do avalista ser sempre admitido a discutir o acordo de preenchimento (celebrado entre o credor/portador e o avalizado) quer tenha ou não tenha nele participado – que, reconhecemo-lo, não corresponde à actual posição da nossa jurisprudência; mas que – não será demasiado arrojado vaticinar, perdoe-se-nos – é a rota final da trajectória/evolução que vem sendo feita. Em que duma grande rigidez inicial, em que o avalista não era admitido a excepcionar o preenchimento abusivo, se evoluiu para o admitir em tal discussão, desde que também o tivesse subscrito e/ou desde que se estivesse nas relações imediatas – cfr., v. g., Ac. STJ de 24/01/2008, in CJ, Tomo I, pág. 59; Ac. STJ de 22/02/2011, in CJ, Tomo I, pág. 81; Ac. STJ de 22/05/2012, in CJ, Tomo II, pág. 87; sendo o passo lógico seguinte o de admitir, sempre, o avalista a discutir o acordo de preenchimento celebrado entre o credor/portador e o avalizado, quer tenha ou não tenha o avalista nele participado.

[23] O acordo de preenchimento, concorda-se, pode ser verbal ou mesmo tácito.

[24] É por tudo isto – fazendo um parêntesis na apreciação da decisão de facto – que o ónus da prova da “excepção” se torna, no caso, peculiar; é que os executados provam (cláusula 8.ª da abertura de crédito) a razão da entrega da livrança em branco, o respectivo pacto de preenchimento e o facto da livrança estar a ser utilizada fora do contexto de tal específico pacto de preenchimento, pelo que, em rigor, a partir de tal prova, o apelo à “ideia” e ao “racional” (supra desenvolvido) do acordo de preenchimento implícito perde força, ou seja, passa a ser a executada que tem que demonstrar “explicitamente” que não abusou da circunstância de ser portadora duma livrança que chegou ao seu poder destinada a garantir o reembolso da abertura de crédito.
[25] Não estamos evidentemente a pretender dizer, longe disso, que a testemunha não foi diligente ou que foi “irresponsável”; estamos apenas a pretender dizer que a testemunha pretendeu fugir ao que o clausulado dos contratos “incomoda” a tese factual da exequente.

[26] É público e notório que não é do capital próprio que provêm, na maior parte dos casos (maxime, nas sociedade por quotas, em face da subcapitalização destas sociedades), os meios financeiros para a sua actuação. Os sócios, as mais das vezes, fundam a sociedade com o capital mínimo legal, com o qual, sabem, não ser possível realizar o objecto da sociedade, sendo, depois, por meio de suprimentos e de financiamentos bancários, que procuram executar o objecto social. Se olharmos para o lado do passivo dum balanço social (lado em que se identificam a origem dos capitais com que a sociedade funciona), constatamos, via de regra, que sobressaem as dívidas (capitais alheios) da sociedade. Em face disto, é não só normal como é de elementar e sã prudência que a banca, quando financia sociedades por quotas subcapitalizadas, exija garantias pessoais (fianças e livranças em branco) dos sócios. Concorda-se pois (como não podia deixar de ser) com a “normalidade” referida pela testemunha, só que – é o ponto – esta não é a única a “normalidade” que o caso convoca: é identicamente normal os contratos bancários de financiamento (seja qual for a sua veste jurídica) apresentarem uma cláusula escrita prevendo a garantia pessoal (livrança), os termos e as condições precisas do seu preenchimento; ou então haver um documento autónomo sobre a livrança e o seu acordo de preenchimento. Não haver nada escrito sobre a livrança e o seu modo de preenchimento após a extinção do contrato de abertura de crédito é que, com o devido respeito, não é normal e usual.
[27] Deu-se efectivamente como provado na resposta ao quesito 7.º – e não há razões para modificar tal resposta – que os oponentes nunca reclamaram a devolução da livrança, porém, tal comportamento omissivo, só por si, não é concludente da sua anuência à “passagem” da livrança para outro (e qualquer) contrato; assim como é ainda menos concludente quanto a ter havido um acordo em tal passagem.
[28] Efectivamente, na cláusula 9.ª do documento complementar consta que “a mutuária, desde já, se declara ainda obrigada a reforçar a garantia prestada se e quando o mutuante o exigir”, porém, argumentar com tal cláusula não só não acrescenta nada à tese da exequente como é até algo “inconveniente”. Repare-se: a tese da exequente é a livrança ter passado para o contrato de mútuo a seguir ao fim do contrato de abertura de crédito, ou seja, numa data/momento/dia em que a quantia do mútuo tinha acabado de ser disponibilizada e em que, evidentemente, o funcionamento de tal cláusula estava por natureza excluído. Mas mais, tal cláusula – verdadeiramente, apenas de “estilo” – prevê uma faculdade cujo exercício tem que ser alegado/provado e não é/foi o caso; aliás, tal exercício – é onde se pretende chegar – é/seria factualmente contraditório com a tese da livrança ter passado para o contrato de mútuo a seguir ao fim do contrato de abertura de crédito (como é evidente, não se pede uma livrança/garantia que se diz já se ter).

[29] Em todo o caso, um observador atento não pode deixar de registar que o accionamento “imediato” da garantia pessoal demorou 6 anos.
[30] Assim como não é possível afirmar que num qualquer momento da fase executiva do mútuo a exequente exigiu a/uma livrança subscrita em branco; apenas se pode afirmar – é uma evidência – que ela a manteve em seu poder.

[31] Com o que, naturalmente, apenas estamos a querer dizer ser esta a “verdade” intra-processual; e não, longe disso, que o dado como provado, na decisão “a quo”, é uma hipótese impossível/inverosímil. Podemos até estar perante um lapso – um grave lapso – dos serviços da exequente: não terem redigido devidamente o contrato de mútuo (esquecendo a cláusula da garantia pessoal da livrança) e não terem tratado, depois, quando “passaram” a livrança para o outro contrato, de reparar tal lapso, elaborando e fazendo assinar o pacto de preenchimento respeitante ao mútuo. Ora, como todos sabemos, a correcção dos lapsos depende, não raras vezes, da contraparte.
[32] Modificação já devidamente tomada em conta quando supra se alinharam os factos provados. Alinhamento em que também se incluiu (ao abrigo do “exame crítico” referido no art. 607.º/4 do CPC, ex vi art. 663.º/2 do CPC) o facto que passou a constituir o ponto 15; facto este em que as partes estão de acordo, que reflecte o alegado e que consta do documento de fls. 168.
[33] Olhar, no caso, apenas para o clausulado do mútuo e para a existência duma livrança em branco em poder da executada, é/seria ver apenas metade dos factos; é/seria “fechar os olhos” ao modo como a livrança em branco chegou ao poder da exequente, o que, ainda que se procure retirar autonomia negocial à abertura de crédito, não pode acontecer.

[34] Enfim, só faz sentido apelar à ideia do acordo de preenchimento implícito quando não temos um acordo explícito; mais, existindo este e sendo escrito, não podemos ignorar, para o poder contrariar, os escolhos jurídicos colocados pelos art. 222.º e 394.º do C. Civil, o que também significa – ultrapassado o obstáculo do art. 222.º e consentindo que a manutenção da posse da livrança pode equivaler a um “princípio de prova por escrito” que permite admitir a prova testemunhal – que não se pode aceder “implicitamente” ao novo acordo (que irá contrariar/substituir o que foi escrito).