Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MOREIRA DO CARMO | ||
Descritores: | PROCURAÇÃO REVOGAÇÃO CONSENTIMENTO CÔNJUGE | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 01/19/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | ALCANENA | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA PARCIALMENTE | ||
Legislação Nacional: | ART.262, 265, 268, 1682-A, 1684 CC | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I – Constitui justa causa de revogação da procuração - ( outorgada no interesse do próprio mandatário e com poderes irrevogáveis, na qual se atribuiu poder para vender ou prometer vender a quem e pelo preço e sob condições tidas por convenientes)- , para efeitos do art.265 nº3 do CC, a venda de dois prédios por preços muito inferiores ao real, designadamente num caso por cerca de 1/6 e noutro de 1/3 do seu valor. II - O consentimento conjugal, nos termos do art.1682-A nº1 a)do CC, não pode ser dado em termos gerais, por se exigir a especificação do acto, mesmo por via indirecta, embora não seja indispensável a indicação de todos os elementos do negócio. | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | I - Relatório
1. A (…), casada, residente em X..., intentou contra B (…) e mulher C (…), residentes em X..., a presente acção com processo ordinário pedindo se decrete a revogação da procuração arquivada no Cartório Notarial de ..., onde a autora constituiu seu procurador o aqui réu, para o mesmo vender ou prometer vender, a quem e pelo preço e sob as cláusulas e condições que tiver por convenientes, o prédio urbano inscrito na matriz sob o art.º 1111..., bem como onze prédios rústicos que na mesma procuração se identificam, e seja anulada a compra e venda que teve por objecto o prédio urbano inscrito na matriz sob o art.º 2222....e consequente cancelamento da inscrição que o réu conseguiu a seu favor correspondente à G-3. Alega para tanto, que em 2 de Agosto de 2002 a autora, através da referida procuração constitui seu mandatário o réu, a quem conferiu poderes de vender ou prometer vender, a quem e pelo preço e sob as cláusulas e condições que tiver por convenientes, o prédio urbano inscrito na matriz sob o art.º 1111... da freguesia de .... e ainda 11 prédios rústicos, tudo conforme o documento junto a fls 7 a 9 dos autos. O marido da autora prestou consentimento a sua mulher para os actos previstos na procuração e para cuja validade o mesmo se mostrasse necessário. Acontece que o réu vendeu ambos os prédios a si mesmo, sendo que o correspondente ao art.º 2222....não constava da procuração, agindo com excesso de mandato, e fê-lo por preços muito inferiores ao respectivo valor real, lesando o património da A., pelo que há justa causa para a revogação da procuração. Os réus contestaram, dizendo, em resumo, que em finais de 1999 a autora e seu marido eram devedores ao réu marido da importância de cinco milhões de escudos, resultante de um empréstimo que este lhes havia feito, mas dada a impossibilidade de pagamento, a autora e seu marido propuseram ao réu a venda do prédio inscrito na matriz sob o art.º 2222...., no que o mesmo concordou. Porque era intenção do réu vender o prédio para realizar o dinheiro, foi outorgada procuração, em 4 de Fevereiro de 2000, para vender tal prédio. Mais tarde o réu voltou a apoiar financeiramente os autores comprometendo-se estes a reembolsá-lo, no valor de 94 252,85 €, mas como reconheceram a impossibilidade de pagar, propuseram a venda de diversos prédios ao réu. Foi na sequência destes factos e da referida procuração entretanto outorgada a 2 de Agosto de 2002, que foi celebrada a escritura de compra e venda de ambos os prédios. Aliás, já em 10 de Março de 2002, tais prédios tinham sido objecto de promessa de compra e venda, por parte da A. e marido, e mãe da A., ao réu marido. Quanto aos preços constantes da escritura não correspondem a valores reais porque o réu se preocupou em evitar despesas que as escrituras, sisas e registos implicavam, tanto mais que o valor do negócio estava à muito pago e corria agora no interesse exclusivo do réu, e então procurador. Concluíram pela improcedência da acção. * A autora replicou concluindo como na petição inicial. * Foi posteriormente apensada a estes autos a acção comum com processo ordinário nº 621/03.0TBACN onde D (…), marido da A., demanda a mesma e os ora RR, e onde pede se declare nula a venda do prédio urbano inscrito na matriz sob o art.º 1111 e se ordene o cancelamento da inscrição G-3 que sobre o mesmo incide, a favor do réu. Para tanto, o A. alegou que o consentimento que prestou na procuração de 2 de Agosto de 2002, acima referidos, foi genérico e não especial, como a lei exige. Os RR contestaram em termos similares à contestação da outra acção, defendendo que o consentimento do A. está bem concretizado. * Foi proferida decisão, nos seguintes termos: * 2.Os RR B (…) e C (…) interpuseram recurso, formulando as seguintes conclusões que se sintetizam: 1) A sentença recorrida padece de nulidade nos termos do art.º 668º, nº1, c), do CPC; 2) Dando como provada a existência da procuração outorgada em Fevereiro de 2000 e do contrato promessa de 10.3.2002, a dita sentença não relevou tal factualidade para apreciar a validade da escritura posta em causa nos autos, tendo tais elementos de prova sido “esquecidos” na prolação da decisão; 3) Na verdade, nesse contrato promessa, a A. e marido, e sua mãe, prometeram vender ao recorrente, os prédios em questão, pelo valor de 100.000 €, dos quais receberam a quantia de 95.000 €, tendo sido ademais estipulado que com a liquidação do preço acordado o promitente comprador poderá exigir dos promitentes vendedores uma procuração irrevogável com poderes para vender os prédios objecto deste contrato nas condições que entender, o que efectivamente ocorreu; 4) Não podendo concluir-se pela revogação da procuração, por A. e marido já haverem recebido valor superior ao valor que foi atribuído aos referidos prédios, não se verificando, assim, qualquer violação dos deveres contratuais do recorrente, que determine a inexigibilidade para o mandante da continuação da relação contratual; 5) Inexiste qualquer abuso de direito, por supostamente os prédios inscritos na matriz sob os arts.º 1111 e 2222....terem sido vendidos por preço inferior ao seu valor real, como decidido na sentença recorrida, pelas mesmas razões expendidas nas anteriores conclusões, pois não foi criado à A. uma situação lesiva; 6) A haver abuso de direito é da parte dos AA que receberam o dinheiro do recorrente, declararam obrigar-se a emitir a procuração de 2.8.2002, e agora vem invocar justa causa de revogação da mesma; 7) Se algum erro ocorreu na celebração da escritura de 25.2.2003, por não menção da procuração de Fevereiro de 2000, que conferia poderes para vender o prédio urbano 2222...., terá sido por lapso do Notário, e como tal a mesma deveria ser mandada rectificar, nos termos do art.º 249º, do Código Civil, pois a escritura correspondeu à vontade das partes; 8) Quanto à acção 621/03, verifica-se que a menção na aludida escritura de que o recorrente agia em representação do marido da A. se deveu a lapso do Notário, pois a mesma foi celebrada com a procuração conferida pela A., em 2.8.2002, e nesta menciona-se apenas o consentimento do A. marido; 9) O consentimento conjugal foi especificado, sabendo o A. marido que se referia ao individualizado prédio urbano 1111; 10) A decisão recorrida violou os artigos 249º, 261º, 262º, 293º, 334º, 1682º-A, 1684º, do CC, devendo ser revogada e substituída por acórdão que absolva os recorrentes do pedido. 3.Os AA contra-alegaram, afirmando, em resumo, que ao tempo da 1ª procuração de Fevereiro de 2000, ainda eram vivos os pais da A., sendo eles os proprietários do prédio urbano 2222...., indicado na dita procuração, e não a A. e marido, que o aludido contrato promessa se frustrou pois a mãe da A., já viúva, se recusou a passar um cheque no valor de 95.000 €, a favor do réu/recorrente, e exigido por este, para o compensar, valor que, depois, os promitentes vendedores iriam declarar haver dele recebido a título de sinal e princípio de pagamento, quando a final só deviam ao mesmo 5.000 contos, pelo que tais elementos não são relevantes para decidir a causa, não tendo sido “esquecidos” na decisão recorrida. Que se verifica o indicado abuso de direito, pois o réu não respeitou os interesses da A. mandante ao vender ambos os prédios por valor inferior ao real, que não há lugar a qualquer rectificação da escritura, pois nela não participaram a A. e seu marido, que o consentimento conjugal foi genérico e, finalmente, que a dita procuração de 2.8.2002, usada na escritura de 25.2.2003, não conferia poderes ao réu para o mesmo vender a si mesmo o prédio 2222..... Deve, pois, ser confirmada a sentença recorrida.
II - Factos Provados
Do processo nº 397/03.0TBACN Factos assentes: Da base instrutória: Do processo nº 621/03.0TBACN Factos assentes: Da base instrutória: 1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas (arts.º 684º, nº3 e 690º do CPC). Nesta conformidade as questões a decidir são as seguintes. -Nulidade da sentença.
2. (…)
Não houve impugnação da matéria de facto, pelo que a matéria a considerar é a acima elencada. * Consta da escritura de fls. 16/17 e do facto provado G), que o prédio urbano inscrito sob o art.º 1111, com o valor patrimonial de 4,94 €, foi vendido por 2 000 €, quando valia 12 565 €, e o prédio urbano inscrito sob o art.º 2222...., com o valor patrimonial de 15 263,22 €, foi vendido por 12 969 € quando valia 35 782 €. O interesse do mandante será, obviamente, o de que os prédios sejam vendidos pelo seu valor real de mercado. Na procuração até se menciona a venda pelo “preço conveniente”, e “conveniente” tem de o ser também para o mandante/representado. Certo é que os prédios foram vendidos por valores muito inferiores aos valores reais. O interesse do mandante que seria a venda pelo seu justo valor está posto em causa, ao serem vendidos como o foram, num caso por cerca de 1/6 do seu valor e noutro por cerca de 1/3 do seu valor, havendo de convir que, assim, existe justa causa para a revogação da procuração. A esta conclusão os recorrentes objectam que a decisão recorrida “esqueceu” a procuração de Fevereiro de 2000 e contrato promessa de Março de 2002, cuja existência foi dada como provada. Quanto ao contrato promessa de 10.3.2002, mencionado no facto provado G), do proc.621/03, e junto igualmente no proc.397/03 (sem impugnação do seu teor pela A.), é verdade que dele consta que a A. e marido, e sua mãe, prometeram vender ao recorrente os prédios em questão. E que a promessa era pelo valor de 100.000 €, dos quais os promitentes vendedores declararam receber a quantia de 95.000 €, a título de sinal. Todavia, os recorrentes afirmam facto que não é verdadeiro. Os aludidos promitentes vendedores não estavam a prometer vender só os referidos dois prédios urbanos 1111 e 2222..... Estavam a prometer vender mais 11 prédios rústicos, aí indicados, e o preço da promessa indicado e sinal recebido, a todos os prédios abarcava. Perante esta evidência, pergunta-se, porque em lado algum dos articulados de contestação dos réus isso foi alegado, qual é a parte do preço da promessa que corresponde aos dois apontados prédios ? E quanto ou qual a parte do sinal recebido correspondente aos mesmos ? E era importante que se soubesse para efectuar o confronto com os valores que foram declarados na aludida escritura, como valor de venda. Mas como não se sabe, não é possível os recorrentes afirmarem que a A. e marido já haviam recebido valor superior ao valor que foi atribuído aos referidos prédios !! E não há maneira de saber, pois como os recorrentes não alegaram tal factualidade, em devido tempo e lugar próprio, sendo a eles que cabia o ónus de alegação e prova (art.º 342º, nº 2, do CC), não é possível este tribunal, neste momento, mandar ampliar a matéria de facto, ao abrigo do art. 712º, nº 4, do CPC. Relembre-se, aliás, que todos os factos que os réus alegaram na contestação do proc.397/03, foram dados como não provados, entre os quais que a A. e marido tivessem proposto ao réu a venda do prédio urbano 2222...., para solver a divida existente de 5.000 contos, que lhe devessem cerca de 95.000 €, que se tivessem comprometido a reembolsar tal quantia em Fevereiro de 2002, que por incapacidade desse pagamento tivessem proposto a venda de diversos prédios ao réu, que este tivesse aceite ficar com diversas parcelas de terreno e o prédio urbano 1111, que o réu sugeriu ao marido da autora que tentasse arranjar o dinheiro porque não lhe convinha ficar com os prédios uma vez que estes não valiam o valor da dívida, que o réu não conseguindo revender tais prédios decidiu fazer a seu favor a escritura de compra e venda, que os preços declarados na escritura visavam evitar despesas com as mesmas, com os registos e sisas (respostas negativas aos quesitos 3º, 5º, 6º, 7º,9º, 10º, 16º). Ou seja, este acervo de factos, correspondente à versão dos réus, não ficou provado. De sorte que as objecções colocadas nas conclusões de recurso não procedem, improcedendo o mesmo, nesta parte. De modo que não se verifica qualquer situação de abuso de direito, inexistindo a apontada nulidade de tal venda, como se decidiu na sentença recorrida, que nesta parte tem de ser revogada. 5.Como acima se relatou, a A. pediu seja anulada a compra e venda que teve por objecto o prédio urbano inscrito na matriz sob o art.º 2222...., com fundamento que o mesmo não constava da mencionada procuração, agindo o réu com excesso de mandato. Os réus/recorrentes entendem que não há lugar a tal anulabilidade, que não se verifica tal excesso. O artigo 268º do CC ocupa-se da representação sem poderes, isto é, do acto praticado em nome e por conta de outra pessoa sem que, para tanto, existam os necessários poderes de representação (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Parte Geral, T. 4, pág. 109). Por outro lado, a representação sem poderes assume duas vertentes, a da falta de poderes e a de excesso de poderes (A. Varela, CC Anotado, Vol. 1, 3ª Ed., pág. 248, nota 5., e Mota Pinto, T. G. Direito Civil, 1ª Ed., pág. 416). Já vimos, como resulta dos factos provados, que assim foi, que a dita procuração, utilizada na escritura, não dava poderes para o réu vender aquele indicado prédio, em nome da A., apenas conferia poderes para vender outro prédio urbano e vários prédios rústicos. O réu agiu, por isso, como representante sem poderes, vendendo tal prédio urbano 2222...., em nome e por conta da A. Mas vendeu-o a si mesmo. O comprador foi o próprio réu. O negócio consigo mesmo, previsto no art.º 261º, nº1, do CC, é uma manifestação particular dos negócios celebrados por representante sem poderes, e está ferido de anulabilidade e não de ineficácia, como “prima facie” se poderia pensar e se teria de concluir, se o caso não estivesse expressamente hipotizado em norma especial (Mota Pinto, ob. cit., pág. 416/417). É portanto anulável, a não ser que o representado tenha especificadamente consentido na celebração. Ora, está comprovado que a A. não consentiu especificadamente nessa venda, com a emissão da procuração de 2.8.02, utilizada na referida escritura pelo réu, nem se provou que tivesse posteriormente consentido na mesma, confirmando-a, pelo que a mesma venda está ferida de anulabilidade. Que, necessariamente, terá de ser declarada a final. |