Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5632/17.5T8CBR. C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PROVA
GRAVAÇÃO
NULIDADE PROCESSUAL
INSPECÇÃO JUDICIAL
IMPUGNAÇÃO DE FACTO
VEÍCULO PESADO
MANOBRA DE ULTRAPASSAGEM
Data do Acordão: 12/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - CANTANHEDE - JL CÍVEL 
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.155 Nº3, 490, 607 CPC, 11, 18, 36, 38 CE
Sumário: 1 - Perante o disposto no artº 155º nºs 3 e 4, do qual se retira a derrogação tácita do artº 9º do DL 39/95 de 15.02, dimana que a nulidade por falta ou a deficiência da gravação deve ser invocada, na 1ª instancia, no prazo de dez dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada, que não posteriormente, vg. na fase do recurso; e devendo o arguente demonstrar que a falha pode prejudicar a boa decisão da causa.

2 -Se a parte não requereu a inspecção ao local, não pode - ademais porque diligência essencialmente decidida por critérios de oportunidade: artº 490º do CPC -, vir clamar a sua realização em sede recursiva, porque a tal obstam, vg., o dispositivo, a preclusão e a lealdade na litigância.

3 - Considerando algum grau de prudente discricionariedade atribuído ao julgador da 1ªinstância e certos benefícios, falhos no tribunal ad quem, para (i)relevar a prova produzida – vg. a imediação e a oralidade para a pessoal –, a decisão sobre a matéria de facto apenas pode ser censurada se a prova invocada pelo recorrente não apenas indicie, mas antes se mostre inequívoca no sentido de impor tal censura.

4 - As manobras de veículos pesados, como a ultrapassagem, devem - por virtude do seu potencial e acrescido perigo para o restante trafego, vg. veículos de menores dimensões como velocípedes e ciclomotores derivado, p.ex., do seu comprimento, volume, peso e força -, revestir-se de especiais e acrescidas cautelas.

5- Viola a lei estradal - vg. artºs 11º nº2, 18º nº2 e 36º e 38º do CE – o condutor de pesado, com atrelado de 2,5m de largura, que, sem sair da sua faixa de rodagem, aliás dividida da outra por linha contínua, ultrapassa motociclo que circulava junto à berma direita, deixando para este distância lateral não superior a 0,75 m, e em função do que o condutor deste se desequilibra, bate no atrelado e acaba por fenecer.

Decisão Texto Integral:





ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA.

1.

I (…), instaurou contra F (…) – Companhia de Seguros, SA,  acção declarativa, de condenação, com processo comum.

Pediu:

Ser a Ré condenada a pagar à Autora a quantia global de 18.634,11 € (Dezoito mil seiscentos e trinta e quatro euros e onze cêntimos) a título de indemnização pelos danos patrimoniais, bem como os juros à taxa legal vigente, que se venceram desde a citação até integral pagamento.

Alegou:

Na sequência do acidente de viação ocorrido no dia 22 de Outubro de 2015 entre o veículo pesado de mercadorias com a matrícula (...)XX, atrelando o reboque de matrícula C- 00 (...), conduzido por A (…) no exercício de funções da empresa Inova, sua proprietária, e o ciclomotor  com a matrícula (...) MF, A (…), condutor deste último, sofreu lesões que lhe causaram a morte.

O falecido, que para além da autora tem mais dois filhos, sofreu dores e  angústias entre o acidente e o dia do falecimento, tendo estado hospitalizado 7 dias.

Para ressarcimento do direito à vida peticiona a quantia de 30.000,00 € e para compensação dos danos não patrimoniais sofridos nos dias que antecederam a morte a quantia de 7.000,00 €, cabendo à autora 10.000,00 € e 2.334,00 € respectivamente.

A autora sofreu também danos não patrimoniais para cujo ressarcimento reputa adequada a quantia de 5.000,00 €.

Acresce que a autora teve despesas com o funeral do pai no valor de 730,00 € e com a reparação do ciclomotor que importou um custo de 570,11 €.

O veículo XX tinha a responsabilidade civil resultante da sua circulação transferida para a ré por contrato de seguro válido e eficaz.

O condutor do PR foi o único causador do acidente por não ter respeitado a distância de segurança do ciclomotor ao efectuar a manobra da sua ultrapassagem.

A ré contestou.

Imputando a culpa exclusiva pela sua produção ao condutor do ciclomotor por se ter desequilibrado e embatido na parte lateral traseira do reboque acoplado ao veículo pesado, desrespeitando o disposto no nº 2 do art. 3º, nº 1 do art. 13º e nº 1 do art. 17º do Código da Estrada.

Impetrando  a absolvição do pedido.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos tendo a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«julgar a acção procedente e, consequentemente:

A) Condenar a ré “F (…) SA” a pagar à autora a quantia de 18.064,00€ (dezoito mil e sessenta e quatro euros), acrescida de juros à taxa legal dos juros civis até integral pagamento, desde a data da citação relativamente ao montante de 730,00 € e desde da data da presente sentença quanto ao remanescente.

B) Absolver a ré do demais peticionado.»

3.

Inconformada recorreu a ré.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

Contra alegou a autora pugnando pela manutenção do decidido com os seguintes argumentos finais:

(…)

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º e 639º-A  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são, lógica e metodologicamente, as seguintes:

1ª- Nulidade  da sentença por deficiente gravação dos depoimentos.

2ª – Nulidade processual por preterição de diligência probatória.

3ª -  Alteração da decisão sobre a matéria de facto.

4ª-  Improcedência do pedido.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

No domínio do CPC, na sua redação pretérita, era entendido que a deficiência ou inexistência da gravação da prova  prevista no D.L. n.º 39/95 de 15/2  constituía nulidade processual secundária – artº 201º - a arguir mediante reclamação, perante o tribunal de 1ª instância, mantendo-se, porém, se indeferida, no âmbito do recurso para a Relação. – Acs. do STJ de 23-10-2008, dgsi.pt, p.08B2698  e de 13-01-2009, p. 08A3741.

Quanto à oportunidade de tal arguição entendia-se ser aplicável o disposto no artº 205º.

E no atinente à sua tempestividade, hoc sensu, existiam duas orientações no STJ.

Uma  defendia  «estar em tempo a arguição operada nas alegações de recurso de apelação» «pois é da normalidade da vida forense que as partes não vão pedir a audição de todo o material áudio para verificar da perfeição técnica da gravação, a não ser no momento da elaboração da sua alegação para dela fazerem constar os concretos meios probatórios em que fundam a sua discordância…» - cfr, entre outros, o AC do STJ de 29.04.2014, p. 1937/07.1TBVCD.P1.S1 (proferido em caso ainda no domínio de aplicação da lei anterior)

Para outra, o prazo de arguição do vício de deficiência de gravação era de dez dias  - art. 153º nº 1 do CPC - e iniciava-se imediatamente após o termo da audiência de discussão, ou, pelo menos, após a data de entrega à parte da cópia da gravação.

Pois que se entendia que a parte devia então diligenciar, dentro do aludido prazo, pela audição dos registos magnéticos, presumindo-se um comportamento negligente da mesma parte - ou do respetivo mandatário - caso não efetuasse esta audição.  – cfr. Ac. do STJ de 22-02-01 Revista nº 3678/00-7ª.

A lei atual veio  tomar o partido deste último entendimento.

Efetivamente estatui o  artº 155º nºs  e 4 do CPC:

3. A gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias a contar do respetivo ato.

4. A falta ou a deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de dez dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada»

Naturalmente que esta opção teve na sua génese o fito que enformou a reforma, qual seja, o de uma maior celeridade processual, vg. através da auto responsabilização das  partes, as quais, legitimamente, pugnam por uma justiça mais célere.

E sendo certo que, regra geral, de que o presente caso não constitui exceção, estamos perante processos onde se dilucidam direitos e interesses  apenas de cariz meramente privado, que não de índole pública, nos quais os princípios da substanciação e do dispositivo ganham relevância determinante, por contraponto,  vg., à atuação oficiosa do julgador.

Não tendo sido arguida atempadamente, nos termos sobreditos, a irregularidade ficou sanada.

Neste sentido se pronunciando a maioria da jurisprudência.

Assim:

«…A  falta ou a deficiência da gravação deve ser invocada no prazo de dez dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada - e não nas alegações -, sendo que tal nulidade atípica deve ser arguida logo na 1ª instancia, e devendo o arguente, para a sua concessão, demonstrar a sua essencialidade.» -  Ac. da RC de  14.10.2014, p.  477/03.2TBVNO.C3, relatado pelo presente e subscrito pelo aqui 1º adjunto.

« A invocação da nulidade atípica da falta ou vícios da gravação da prova  não pode ser efetivada  por via recursiva com pronuncia do tribunal ad quem, mas apenas, e preclusivamente, por via reclamatória para apreciação do juiz do tribunal a quo – artº 155º nºs 3 e 4, 195º e 630º nº2 do CPC.» - Ac. RC de 20.01.2015, p. 15/11.3TBFND.C1,  relatado pelo presente e subscrito pelo aqui 1º adjunto.

«Decorre dos nºs 3 e 4 do artigo 155º do nCPC que a falta ou deficiência da gravação dos depoimentos constitui uma irregularidade/nulidade processual (atípica ou secundária) prevista no artº 195º, nº 1 do nCPC, que só pode ser arguida (no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação for disponibilizada) e conhecida na 1ª instância, sob pena de se dever considerada sanada, não podendo dela conhecer oficiosamente o Tribunal da Relação.» - Ac. da RC de 12.12.2017, p. 320/15.0T8MGR.C1.

« A disponibilização, às partes, da gravação da audiência final de ações, incidentes e procedimentos cautelares, nos termos do artigo 155.º, n.º 3, do CPC, consiste na simples colocação, pela secretaria judicial, da referida gravação à disposição das partes para que estas possam obter cópia da mesma.

 Tal disponibilização não envolve a realização de qualquer notificação às partes, de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, nem se confunde com a efetiva entrega de suporte digital da mesma gravação às partes…

 Afronta a razão de ser da lei o entendimento de que o início da contagem do prazo para a invocação de eventual deficiência da gravação dos depoimentos fica dependente da livre iniciativa da parte quanto ao momento da obtenção da gravação, sem qualquer limitação temporal (para além da que decorreria do prazo de apresentação do recurso da decisão final).» - Ac. da RC de 25.09.2018, p. 7839/15.0TBLSB-A.C1; todos in dgsi.pt.

No caso vertente, tendo sido realizada a audiência em 26.02.2018, apenas no recurso a ré levanta a deficiência da gravação.

Em função do aludido, esta sua pretensão alcança-se como extemporânea.

Pretende ainda a insurgente a repetição da prova testemunhal.

Esta pretensão outrossim é de desatender.

Primus porque tal suporia que ela ainda está em tempo para se insurgir contra a deficiência da gravação, o que, como se viu, não se verifica.

Secundus porque ela não aduz qualquer fundamento legal para tal pretensão.

E se teve em mente o disposto no artº 9º do  citado D.L. n.º 39/95 de 15/2,  o qual estatui: «Se em qualquer momento se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra impercetível, proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade.», há que considerar que ele se encontra tácitamente revogado pelo artº 155º do NCPC.

Tertium, e mesmo que assim não fosse, urge ter presente que este preceito exige a essencialidade da parte da prova imperceptível para a descoberta da verdade.

E tendo de ser o arguente, desde logo, a invocar e provar tal requisito.

Na verdade: «importa saber se a parte imperceptível é essencial para o apuramento da verdade (de acordo com o citado artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95) havendo que considerar que esse pressuposto deve ser afirmado pelo recorrente, que tem de aduzir razões para de tal convencer o Tribunal» - Ac.do STJ de 02.02.2010, p. 1159/04.3TBACB.C1.

Ora nada disto a recorrente efectivou.

5.2.

Segunda questão.

A recorrente requer a nulidade dos subsequentes actos processuais após o julgamento, nos termos do disposto no n.º 1 do art. 195.º do C.P.C., uma vez que houve uma omissão clara de uma diligência probatória – inspecção ao local -  requerida, e «que poderia ter tido uma influência decisiva na decisão da causa».

Em primeiro lugar a diligência não foi impetrada pela ré recorrente mas pela autora recorrida.

Mais uma vez relevam aqui, nesta sede de dilucidação de direitos privados e meramente patrimoniais, os princípios da substanciação, do dispositivo, da auto responsabilidade e do pedido.

A recorrente não solicitou a diligência e, durante todas as fases precedentes, manteve-se queda e muda quanto à realização da mesma.

É assim, evidente, que esta sua pretensão se apresenta extemporânea e viola, inclusive, o princípio da preclusão dos atos processuais,  em função do qual eles têm de  ser praticados,  impreterivelmente, nos prazos e fases definidos por lei.

Não tendo a diligência sido ordenada no último ato possível para tal: a audiência de julgamento, e estando a ré presente no mesmo, era nele que deveria solicitar a sua realização -  artº 199º nº1 do CPC.

Esta sua posição indicia até um certo oportunismo e falta de lealdade na litigância, assumindo-se ainda como afectante do princípio da igualdade de armas, constituindo um pedido surpresa, pois que apenas agora, e certamente porque perdeu a acção, deita mão de uma pretensão probatória que – e independentemente da razão para tal – efectivamente, no momento adequado, silenciou ou postergou.

Acresce que, como bem frisa a recorrida, o artº 490º do CPC, com a expressão – «sempre que o julgue conveniente» -  configura esta diligência como ínsita no âmbito de uma faculdade, um poder discricionário – com o comedimento com que este termo deve ser entendido – do julgador.

Ou seja, a opção de o julgador realizar ou não realizar esta diligência apenas poderá ser censurada se, de um modo muito impressivo, em face dos elementos aduzidos e constantes nos autos, a parte demonstrar que, vg., perante a injustiça ou iniquidade das consequências que tal opção acarretou, ele não atuou com a sagacidade imposta para aferir da necessidade da mesma e, acima de tudo,  extrapolou a razoabilidade e  o bom senso que sempre devem estar subjacentes em qualquer decisão jurisdicional.

Não é o caso dos autos.

A decisão sobre a matéria de facto encontra-se alicerçada em vários meios de prova e a recorrente não invoca nem demonstra, se a diligência tivesse sido realizada, quais, como, e em que medida, os concretos factos dados como provados ou não provados por ela poderiam ser afectados.

5.3.

Terceira questão.

5.3.1.

Há que considerar que no nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº607º nº 5º do CPC.

Perante o estatuído neste artigo pode concluir-se, por um lado, que a lei não considera o juiz como um autómato que se limita a aplicar critérios legais apriorísticos de valoração.

Mas, por outro lado, também não lhe permite julgar apenas pela impressão que as provas produzidas pelos litigantes produziram no seu espírito.

 Antes lhe exigindo que julgue conforme a convicção que aquela prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.

Na verdade prova livre não quer dizer prova arbitrária, caprichosa  ou irracional.

Antes querendo dizer prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente, posto que em perfeita conformidade com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed.  III, p.245.

5.3.2.

Não obstante há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.

Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, dgsi.pt, p.03B3893.

 Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.

Nesta conformidade  - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade, e, até, falibilidade, vg. no que concerne á decisão sobre a matéria de facto.

Mas tal é inelutável e está ínsito nos próprios riscos decorrentes do simples facto de se viver em sociedade onde os conflitos de interesses e as contradições estão sempre, e por vezes exacerbadamente, presentes, havendo que conviver - se necessário até com laivos de algum estoicismo e abnegação - com esta inexorável álea de erro ou engano.

O que importa, é que se minimize o mais possível tal margem de erro.

O que passa, tendencialmente, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

5.3.3.

Nesta perspetiva importa atentar, na sequência de basta jurisprudência, que a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto não subverte, nem pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas, nem pode significar a desvalorização da sentença de 1ª instância, que passaria a ser uma espécie de "ensaio" do verdadeiro julgamento a efetuar pelo Tribunal da Relação.

Na verdade é da decisão recorrida que tem sempre de se  partir, porque, apesar de o tribunal de recurso operar uma apreciação autónoma e própria, ele, no rigor dos princípios, não julga, nesta matéria, ex novo, pois que não pode alicerçar-se em todas decorrências e benefícios oriundos da produção imediata e direta da prova, máxime a testemunhal.

Por conseguinte, e como dimana do DL 39/95 de 15.02: «A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto... Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido»

Isto porque tal constituiria quasi uma desconsideração, por suspeição e/ou incompetência, do julgador de 1ª instancia e ainda: «injustificada sobrecarga que adviria para o tribunal de recurso e, até, o indesejável surgimento de situações em que o meio impugnatório só é utilizado com intuito de mera dilação processual» - Ac. do STJ de  14.01.2009, p. 08S934.

Nesta conformidade, ao recorrente  não basta operar um uma divergência com o decidido (porque, afinal, quem julga é o juiz), mas antes invocar e convencer de um inadmissível erro judicial, oriundo da inaceitável apreciação probatória operada.

O que passa, não apenas pela referencia genérica aos meios probatórios produzidos, os quais, em tese e em abstrato, até podem apontar no sentido diverso do decidido, mas antes por uma análise e dilucidação  dos mesmos que, em concreto, possam convencer da bondade da sua pretensão – cfr. Ac. da RC de 29-02-2012, proc. nº 1324/09.7TBMGR.C1.

5.3.4.

O caso vertente.

(…)

No entanto, e  cumprindo-se o dever imposto pelo disposto no artº 662º nº1  do CPC, considerando os documentos juntos aos autos  - 17 e segs – e a própria admissão da ré, adita-se aos factos provados, o seguinte:

Na zona do embate as duas hemi faixas da via estão separadas por uma linha longitudinal contínua.

5.3.5.

Decorrentemente,  e na improcedência desta pretensão, os factos a considerar são os apurados na 1ª instância, com adição do oficiosamente considerado, indo este a negrito, a saber:

A) No dia 22 de Outubro de 2015, pelas 16:10, na Estrada Nacional n.º 234, em Ourentã, ocorreu um acidente de viação, em que foram intervenientes o pai da ora Autora A (…) enquanto condutor do ciclomotor com a matrícula (...) MF.

B) E A (…) enquanto condutor do veiculo pesado de mercadorias com a matricula (...)XX, atrelando o reboque de matricula C- 00 (...), propriedade da Empresa Inova, estando este no exercício de funções da referida empresa.

C) Do referido acidente resultou a morte de A (…)

D) A (…) faleceu no estado de viúvo, sem testamento ou qualquer disposição de última vontade, deixando a suceder-lhe os seus três filhos: a Autora, (…)

E) No local do acidente, a via, configura uma curva de boa visibilidade, com ligeiro declive ascendente atento o sentido dos veículos, com piso em alcatrão e encontrava-se em bom estado de conservação.

F) O piso estava seco e limpo.

G) A largura da faixa de rodagem é de 7,11 metros, sendo a largura da via direita de 3,75 m e a largura da via esquerda de 3,36 metros, sendo a largura da berma de 1,30m.

G 1 - Na zona do embate as duas hemi faixas da via estão separadas por uma linha longitudinal contínua.

H) A faixa de rodagem é ladeada de construções.

I) A viatura “XX” tem largura não concretamente apurada mas não inferior a 1,90 mts, sendo a largura do reboque de 2,5 mts.

J) O ciclomotor tem largura não concretamente apurada, mas não inferior a 50 cms.

K) A vítima mortal, pai da Autora circulava na EN 234, Km 19,340 no sentido Ourentã – Cantanhede.

L) Circulando junto ao limite direito da faixa de rodagem e a velocidade de cerca de 30 km/h.

M)No mesmo sentido da marcha, à retaguarda do referido ciclomotor e a velocidade de cerca de 30 Km/h, circulava o veículo (...)XX, que encetou manobra de ultrapassagem.

N) O veículo de matrícula “XX” não transpôs o eixo médio da via para passar pelo ciclomotor.

O) Aquando da ultrapassagem o condutor do veículo pesado deixou entre o seu veículo com reboque atrelado e o ciclomotor distância lateral não superior a 0,75 m.

P) Durante a manobra de ultrapassagem o condutor do ciclomotor desequilibrou-se e foi embater na parte lateral traseira do reboque  acoplado ao veículo XX, vindo a imobilizar-se na berma do lado direito da via atento o sentido da marcha de ambos os veículos.

Q) No dia e hora do acidente era conduzido por A (…), empregado da Empresa Inova proprietária do veículo, para quem trabalhava sob a autoridade e direcção e de quem recebia o seu vencimento.

R) Por contrato de seguro válido e eficaz, titulado pela Apólice (...), a proprietária do veículo transferiu a sua responsabilidade civil automóvel para a ora Ré, F (...), S.A.

S) Em consequência directa e necessária do acidente o pai da ora Autora veio a falecer, tendo sofrido as lesões que puderam ser-lhe observadas e descritas no relatório de autópsia médico-legal, emitido pelo Serviço de Clinica e Patologia Forense, Unidade Funcional de Patologia Forense, cujas conclusões ora se reproduzem;

1.º a morte de A (…) foi devida às lesões traumáticas meningo - encefálicas descritas.

2.º Tais lesões traumáticas constituem causa adequada de morte.

3.º Estas e restantes lesões traumáticas denotam haver sido produzidas por instrumento de natureza contundente ou atuando como tal, podendo ter sido devidas a acidente de viação, como consta da informação.

T) O falecido à data do acidente que o vitimou, tinha 82 anos de idade.

U) Era um homem respeitado, alegre e estimado.

V) Até ao dia seguinte permaneceu consciente, sofreu dores e as angústias inerentes à incerteza da gravidade das suas lesões, e períodos de agitação.

W)Foi transportado de urgência ao Hospital da Universidade de Coimbra onde lhe foi prestada a devida assistência.

X) Ai ficando hospitalizado por sete dias, até ao dia 29 de Outubro de 2015, data em que acabou por falecer.

Y) Durante os dias que precederam a morte sofreu um AVC na sequência das lesões provocadas pelo acidente.

Z) Acresce que, a ora Autora ao receber a notícia, entrou em choque emocional, em choro profundo e em convulsão nervosa, não queria acreditar nem aceitar que o seu pai fosse deste modo privado tão tragicamente da vida.

AA) Para além de que assistiu ao sofrimento do seu pai, e presenciou e vivenciou a cada dia o deteriorar das suas condições de saúde e apercebeu-se que ele iria falecer.

BB) Entre ambos existia uma relação de enorme carinho e afeto, assistência e cooperação, lealdade e compreensão.

CC) A Autora hoje sente uma grande carência afetiva pela perda desta forma trágica do seu pai.

DD) Acreditando a Autora que se não fosse o acidente que envolveu o pai, poderiam usufruir de mais anos de qualidade com mesmo.

EE) Uma vez que sempre foram família muito unida.

FF) Viu assim por este acidente, cerceado o convívio familiar, impedindo assim o falecido de ver crescer seus netos e de ver nascer bisnetos.

GG) A Autora teve ainda despesas com funeral do seu pai no qual despendeu a quantia de 1.580,00 € dos quais e após concessão de subsídio de funeral (850,00 €) liquidou a importância de 730,00 € (setecentos e trinta euros).

HH) Sob o nº 3339/15.7T9CBR da secção única do DIAP da Cantanhede da Comarca de Coimbra correu inquérito que culminou com  despacho de arquivamento datado de 30.11.2016 por se ter considerado não preenchido o tipo de ilícito do crime de homicídio por negligência.

5.3.

Terceira questão.

A julgadora decidiu a causa, de jure, alcandorada no seguinte, sinóptico-essencial, discurso argumentativo:

«Em sede de acidentes de viação, a negligência traduz-se, assim, as mais das vezes na violação das regras de circulação. Perante um acidente de viação existe negligência na condução quando ocorre uma infracção a uma regra de circulação rodoviária. Daí se extrai a culpa do condutor sob forma de negligência, desde que, pelo menos, estejamos perante uma contravenção causal. E a transgressão é causal do acidente quanto este ocorre na sequência de um processo dinâmico que a norma transgredida visa precisamente evitar ou tinha em mente com a sua estatuição ou motivação (nexo de causalidade entre essa e o embate…

De acordo com as regras estradais vigentes à data do acidente “as pessoas devem abster-se de atos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança, a visibilidade ou a comodidade dos utilizadores das  vias, tendo em especial atenção os utilizadores vulneráveis” (art. 3º, nº 2 do Código da Estrada – CE).

“Os condutores devem, durante a condução, abster-se da prática de quaisquer actos que sejam susceptíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança” (art. 11º, nº 2 do CE). “A posição de marcha dos veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem, conservando das bermas ou passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes”. E “quando necessário, pode ser utilizado o lado esquerdo da faixa de rodagem para ultrapassar ou mudar de direcção” (art. 13º, nºs 1 e 2 do CE).

“Os veículos só podem circular nas bermas ou nos passeios desde que o acesso aos prédios o exija, salvo as exceções previstas em regulamento local” (art. 17º, nº 1 do CE).

O art. 35º do CE dispõe, por sua vez, que “O condutor só pode efectuar as manobras de ultrapassagem, mudança de direção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha e marcha atrás em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito” (nº 1).

No que toca à distância lateral entre veículos prescreve o art. 18º do CE que “O condutor de um veículo em marcha deve manter distância lateral suficiente para evitar acidentes entre o seu veículo e os veículos que transitam na mesma faixa de rodagem, no mesmo sentido ou em sentido oposto” (nº 2). “O condutor de um veículo motorizado deve manter entre o seu veículo e um velocípede que transite na mesma faixa de rodagem uma distância lateral de pelo menos 1,5 m, para evitar acidentes” (nº 3).

Relativamente à manobra de ultrapassagem preceitua o art. 36º do CE que “a ultrapassagem deve efectuar-se pela esquerda”.

No que concerne à execução da manobra propriamente dita estabelece o art. 38º do CE que “o condutor de veículo não deve iniciar a ultrapassagem sem se certificar de que a  pode realizar sem perigo de colidir com veículo que transite no mesmo sentido ou em sentido contrário (nº 1).

“2 - O condutor deve, especialmente, certificar-se de que:

a) A faixa de rodagem se encontra livre na extensão e largura necessárias à realização da manobra com segurança;

b) Pode retomar a direita sem perigo para aqueles que aí transitam;

c) Nenhum condutor que siga na mesma via ou na que se situa imediatamente à esquerda iniciou manobra para o ultrapassar;

d) O condutor que o antecede na mesma via não assinalou a intenção de ultrapassar um terceiro veículo ou de contornar um obstáculo;

e) Na ultrapassagem de velocípedes ou à passagem de peões que circulem ou se encontrem na berma, guarda a distância lateral mínima de 1,5 m e abranda a velocidade”.

3 - Para a realização da manobra, o condutor deve ocupar o lado da faixa de rodagem destinado à circulação em sentido contrário ou, se existir mais que uma via de trânsito no mesmo sentido, a via de trânsito à esquerda daquela em que circula o veículo ultrapassado.

4 - O condutor deve retomar a direita logo que conclua a manobra e o possa fazer sem perigo.”

Do circunstancialismo apurado ressuma que foi o comportamento rodoviário do condutor do veículo pesado que deu azo ao acidente. É que para além de não ter respeitado as regras específicas da execução da manobra de ultrapassagem, ocupando o lado da faixa de rodagem destinada à circulação em sentido contrário e retomando a direita logo que concluísse a manobra e o pudesse fazer sem perigo [cfr. facto N)], infringiu as prescrições estradais referentes à distância lateral entre veículos.

 Com efeito, ficou provado que aquando a manobra de ultrapassagem o condutor do veículo pesado deixou entre o seu veículo com o reboque atrelado e o ciclomotor distância lateral não superior a 0,75 m e que foi durante tal manobra que o condutor do ciclomotor se desequilibrou e embateu no reboque. Atenta a desproporção de tamanhos de veículos e a diferente natureza dos mesmos, não pode deixar de se considerar a distância lateral de 0,75 m manifestamente insuficiente. Basta atentar na distância mínima legalmente imposta de 1,5 m quando em causa está a ultrapassagem de velocípedes, sendo que a vulnerabilidade do respectivo condutor, que determinou a concretização legal da distância mínima exigível, é equiparável à dos condutores e passageiros de um ciclomotor (cfr. arts. 18º, nº 3 e 38º, nº 2, al. e) do CE).

O condutor do veículo seguro na ré desrespeitou os comandos previstos nos arts. 11º, nº 2, 18º, nºs 2, 35º, nº 1 e 38º, nº s 3 e 4 do CE, visando as respectivas regras, devidamente conjugadas entre si, evitar justamente o tipo de acidente ora em apreço, ou seja que a proximidade entre veículos, seja devido à deslocação de ar que ocasiona a manobra seja devido à projecção de areias ou  objectos ou ainda qualquer outro motivo directamente relacionado com a contiguidade, ocasione o desequilíbrio e queda do condutor do veículo ultrapassado.

No caso concreto, foi a infracção das referidas normas que desencadeou toda a dinâmica do acidente, sendo que a colisão só ocorreu devido à proximidade entre os veículos. A transgressão do condutor do veículo pesado mostra-se pois causal ao sinistro pelo que a culpa efectiva pela produção do sinistro não pode deixar de ser atribuída ao condutor do veículo seguro na ré.

Ao contrário do defendido pela ré, não se vislumbra da apurada conduta estradal do autor qualquer infracção às regras de trânsito que tenha originado ou tão só contribuído para o acidente, designadamente que circulasse na berma conforme invocado [(cfr. facto provado 2)], ou que se tenha desequilibrado e colidido com o veículo pesado por razões alheias à proximidade desse veículo (o que de resto não foi sequer alegado). Assim, ainda que não fosse possível atribuir a culpa efectiva pela produção do acidente ao condutor do veículo pesado seguro na ré, sempre seria o mesmo responsabilizado por força da presunção de culpa decorrente do nº 3 do art. 503º, nº 3 do CC.»

Este discurso apresenta-se, na sua essência relevante, em tese, curial, e, considerando os contornos fáctico circunstancias deste caso concreto, adequado.

Apenas um reparo.

Não se pode equiparar e estender aos ciclomotores a previsão legal  atinente à  mínima distância lateral de ultrapassagem  de 1,5m,  relativa aos velocípedes – artº 18º nº3 e 38º nº2 al. e) do CE.

Primus porque a letra da lei não o permite.

Secundus porque é intoleravelmente arriscado concluir que os condutores de tais veículos estão numa situação semelhante e equiparável de vulnerabilidade.

O condutor do velocípede está mais vulnerável.

A simples existência de um motor num veículo atribui-lhe mais força, um melhor controlo da dinâmica de condução e, assim, permitindo ao seu condutor maior equilíbrio e manobras escapatórias mais expedidas e rápidas, as quais, ipso facto, podem evitar um sinistro.

O que, naturalmente, já não se verifica num velocípede, no qual o condutor apenas pode contar com a força dos seus músculos , com todos os handicaps, por comparação com o referido relativamente ao ciclomotor, os quais, assim, justificam uma maior protecção daquele.

Mas quanto ao mais, e determinantemente, bem a julgadora subsumiu e interpretou.

Reitera-se que a causa, matricial e genética, do sinistro foi a ilegal manobra de ultrapassagem do condutor do pesado.

Tal manobra, não apenas por virtude das regras estradais referidas na sentença, como, inclusive, pelos ditames da prudência e do bom senso, não deveria ter sido efectuada.

Efetivamente, a  hemi faixa direita, não obstante a sua razoável largura de 3,75m, tornava-se, e tornou-se, apertada, demasiado apertada, com os dois veículos lado a lado.

E sendo certo que no local do embate existe – como claramente ressuma de fls. 17 e vº e a ré admite -  uma linha contínua a separar as duas hemi faixas, a qual, não permitia efectuar a manobra de ultrapassagem com circulação pela hemi faixa contrária, como impõe a lei – artºs 36º e 38º do CE.

Sendo ainda de ter em consideração, o que devia ser ponderado pelo condutor do pesado, a enorme desproporção de volume, comprimento, força e equilíbrio entre este e o ciclomotor.

Sendo do senso comum que a (ultra)passagem lateral, próxima ou de rés-vés, de um pesado por um veículo de dimensões  acentuadamente menores, máxime se apenas de duas rodas, pode, com probabilidade não desprezável, provocar no condutor destes  consequências negativamente afectantes, quer a nível simplesmente material e físico, como seja a própria deslocação do ar, quer no aspeto psíquico emocional, como seja algum medo e atrapalhação; o que, tudo, de per se ou conjugado, pode acarretar uma alteração na,  normal e desejada, dinâmica da condução destes pequenos veículos, vg. desequilíbrio, que descambe no evento infortunístico.

Nesta conformidade, e para obviar a acidentes, as ultrapassagens por veículos aquele jaez devem revestir-se de especiais e acrescidas cautelas, apenas podendo ser efectivadas em locais da via cabalmente adequados para as mesmas, vg. com boa visibilidade, largura suficiente, possibilidade de uso da faixa contrária, e depois de devidamente assinaladas, quer via sinal luminoso, quer, se necessário – e  a ultrapassagem de um ciclomotor ou motociclo justifica tal, pois que melhor alerta o condutor – através de sinal sonoro.

In casu, o desequilíbrio foi o facto final do iter causante do embate.

Mas, repete-se, e perante o acervo factual apurado e devida e sagazmente interpretado, a normal conclusão a retirar é que o facto que originou aquele – e até porque outro não  se mostra alegado  pela ré - foi a ultrapassagem ilícita e  lateralmente muito próxima da vítima.

Ora neste particular urge não esquecer que  o nosso Código Civil  - artº 563º do CC - consagrou  a causalidade adequada em conformidade com a formulação negativa dos juristas germânicos  Enneccerus-Lehman.

  Segundo esta conceção «quer se trate de responsabilidade extracontratual, quer contratual…o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente para a verificação do mesmo, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercederam no caso concreto»

Ademais:

 «Esta doutrina … não pressupõe a exclusividade da condição, no sentido de que esta tenha só por si determinado o resultado».

« …nem exige que a causalidade tenha de ser directa e imediata, pelo que admite:

-- não só a ocorrência de outros factos condicionantes, contemporâneos ou não;

-- como ainda a causalidade indirecta, bastando que o facto condicionante desencadeie outro que directamente suscite o dano» -Cfr. entre outros, os Acs. do STJ de 06.11.2002, 29.06.04, 20.10.2005, 07.04.2005,  13-03-2008 e 17.06.2008 ps. 02B1750, 03B4474, 05B2286, 05B294,  08A369 e 08A1700, in dgsi.pt; e A. Varela, in Das Obrigações em Geral, 2ª ed. ps. 746/756. 

Por aqui se alcança que o condutor do pesado conduziu ilicitamente e mostrando-se a sua conduta, em abstracto e concretamente, legal e factualmente, causa adequada do evento infortunístico.

E improvada conduta censurável por banda do fenecido, unicamente àquele – e porque verificados os outros requisitos da responsabilidade aquiliana - e, por força do contrato de seguro, à ré, devem ser assacadas as consequências nefastas do mesmo e respectivos danos, aliás não colocada/os em crise pela recorrente.

Improcede o recurso.

6.

Sumariando- artº 663º nº7 do CPC.

I - Perante o disposto no artº 155º nºs 3 e 4, do qual se retira a derrogação tácita do artº 9º do DL 39/95 de 15.02, dimana que a nulidade por falta ou a deficiência da gravação deve ser invocada, na 1ª instancia, no prazo de dez dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada, que não posteriormente, vg. na fase do recurso; e devendo o arguente demonstrar que a falha pode prejudicar a boa decisão da causa.

II -Se a parte não requereu a inspecção ao local, não pode - ademais porque diligência essencialmente decidida por critérios de oportunidade: artº 490º do CPC -, vir clamar a sua realização   em sede recursiva,  porque a tal obstam, vg., o dispositivo, a preclusão e a lealdade na litigância.

III - Considerando algum grau de prudente discricionariedade atribuído ao julgador da 1ªinstância e certos benefícios, falhos no tribunal ad quem, para (i)relevar a prova produzida – vg. a imediação e a  oralidade para a pessoal –, a decisão sobre a matéria de facto apenas pode ser censurada se a prova invocada pelo recorrente não apenas indicie, mas antes se mostre inequívoca no sentido de impor tal censura.

IV - As manobras de veículos pesados, como a ultrapassagem, devem -  por virtude do seu potencial e acrescido perigo para o restante trafego, vg. veículos de menores dimensões como velocípedes e ciclomotores,  derivado, p.ex., do seu comprimento, volume, peso e força -,  revestir-se de especiais e acrescidas cautelas.

V - Viola a lei estradal - vg. artºs 11º nº2, 18º nº2 e 36º e 38º do CE – o condutor de pesado, com atrelado de 2,5m de largura, que, sem sair da sua faixa de rodagem, aliás dividida da outra por linha contínua, ultrapassa motociclo que circulava junto à berma direita, deixando para este distância lateral não superior a 0,75 m, e em função do que o condutor deste se desequilibra, bate no atrelado e acaba por fenecer.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pela recorrente.

Coimbra, 2018.12.19.

Carlos Moreira ( Relator )

Moreira Carmo

Fonte Ramos