Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1634/22.8T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: SUSPENSÃO DE TITULARES DE ÓRGÃOS SOCIAIS
FUNDADO RECEIO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
INDEFERIMENTO LIMINAR
Data do Acordão: 07/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1055.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E 257.º, N.º 4, DO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS
Sumário: I – A providência de suspensão de gerentes de sociedade – com natureza cautelar, a que alude o art.º 1055.º do CPCiv., visando garantir o efeito útil da destituição que venha a ser decretada – não depende da alegação e prova de factos demonstrativos do fundado receio de que a demora na resolução definitiva do litígio cause prejuízo irreparável ou de difícil reparação.

II – Uma vez alegados os factos que traduzam a existência de justa causa de destituição, não é exigível, para o efeito da suspensão do gerente, a alegação de factos demonstrativos dos concretos prejuízos decorrentes da sua atuação, visto que o justo receio resultará aqui da circunstância de ser demonstrada aquela justa causa.

Decisão Texto Integral:

Apelação nº 1634/22.8T8VIS.C1

Tribunal recorrido: Comarca de Viseu - Viseu - Juízo Comércio - Juiz 1

Des. Relatora: Maria Catarina Gonçalves

Des. Adjuntos: Maria João Areias

                               Paulo Correia

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

AA, residente na ...., ... ..., veio instaurar, nos termos do art.º 1055.º, n.º 1 e 2 do CPC e 257.º, n.º 4 do CSC, acção de destituição de titulares de órgãos sociais –  requerendo, cautelarmente a respectiva suspensão das funções – contra:

A..., Lda., com sede na Av. ..., ..., ...;

BB, residente em Estrada Nacional ...37, Quinta ..., ..., ..., ..., ...

CC, residente em ... ....

Para fundamentar a sua pretensão, alegou, em resumo:

- Que é sócio da sociedade A..., Lda sendo titular de duas quotas que representam 2/3 do respectivo capital social;

- Que, no âmbito de procedimentos cautelares que correram por apenso ao processo n.º 37/08...., a Requerida BB foi nomeada para assumir a representação da sociedade do processo n.º 37/08.... e a Requerida CC foi nomeada para exercer as suas funções junto da empresa até que se mostrasse a regularidade da mesma com a nomeação de novo gerente;

- Que a decisão que pôs termo ao referido processo foi proferida em 11/11/2021 e transitou em julgado em 20/12/2021, pelo que caducou a nomeação das Requeridas para o exercício dessas funções;

- Que, por essa razão, estão a exercer funções de gerente de forma irregular;

- Que a soma das quotas que se encontram registadas em nome das Requeridas correspondia à quota que foi titulada pelo falecido marido e pai das mesmas, ignorando o Requerente como foi feita a respectiva divisão e transmissão para as Requeridas e ignorando se as mesmas realizaram qualquer assembleia geral à revelia do Requerente (sócio maioritário);

- Que a sociedade não presta conta desde 1998, sendo certo que, desde então, os gerentes em exercício não elaboram nem submetem à assembleia o relatório de gestão e as contas do exercício da sociedade;

- Que esses actos são susceptíveis de provocar enormes prejuízos à sociedade, ainda que o Requerente não tenha conseguido, até à data, contabilizar esses prejuízos porque lhe é vedado o acesso e a consulta de informações da sociedade (contabilização que apenas conseguirá fazer quando tiver na sua posse todos os elementos contabilísticos da empresa, bem como, actas e informação sobre contas bancárias);

- Que o Requerente não tem conhecimento da situação de gestão da sociedade e suas contas, sua situação patrimonial e financeira, eventual atribuição de lucros e tratamento de prejuízos, sendo certo que as gerentes em funções o privam de toda e qualquer informação referente a essa matéria;

- Que as Requeridas violaram de forma sistemática, grosseira e lesiva dos interesses sociais, a vida e contas da sociedade, facto sancionado nos termos dos artigos 248.º, n.ºs 1 e 3, 259.º, 263.º, n.ºs 1 e 5, e 248.º, n.º 3, do CSC e ainda igualmente os artigos 65.º, n.º 5, 67.º, n.º 1, 246.º, n.º 1, e), e 248.º, n.º 3, do CSC, condutas que são também tipificadas nos artigos 515.º e 528.º do CSC como crime e contraordenação.

Termina pedindo:

a) que seja decretada, a título cautelar, a suspensão das Rés BB e CC do cargo de gerentes da sociedade A..., Lda., sem o contraditório prévio;

b) que se proceda e à nomeação provisória dos gerentes a seguir identificados, pessoas idóneas e competentes, devendo no seu empossamento ser-lhes transferido o domínio de todos os bens e documentos sociais com o respectivo arrolamento:

• DD, casado, empresário, residente no Largo ..., T/CH, ... ...;

• EE, casado, empresário residente na Av. ..., ..., ....

c) que seja julgada procedente, por provada, a acção de destituição das gerentes das suas funções.

Por decisão proferida em 21/05/2022, foi indeferido liminarmente o pedido de suspensão imediata das gerentes da sociedade Ré, BB e CC.

Inconformado com essa decisão de indeferimento liminar, o Requerente veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

1- Em causa nos presentes autos, está o facto de as gerentes da sociedade A..., Lda., nomeadas incidentalmente pelo Tribunal, não tenham apresentado, deliberado e publicado as contas da sociedade nos últimos 9 anos!

2- Esta situação configura, desde logo, justa causa de destituição das mesmas e, consequentemente, justifica a sua suspensão cautelar e imediata.

3- Porém, o Tribunal a quo entendeu indeferir liminarmente a providência cautelar por entender não estarem alegados os factos que consubstanciam os prejuízos causados à sociedade, decorrentes da má gestão das atuais gerentes.

4- Contudo, tal fundamento não encontra acolhimento legal.

5- Na verdade, em primeiro lugar nos termos do nº 4 e 6 do artigo 257º do CSC, a não apresentação de contas constituiu a violação de um dever dos gerentes e, assim, justa causa para a sua destituição, como é aliás o caso nos presentes autos.

6- Em segundo lugar, o nº 2 do artigo 1055º do CPC, não impõe que sejam alegados e provados os prejuízos decorrentes na violação do referido dever; Pois que,

7- A não apresentação de contas, ao longo de 9 anos, é sintomático de uma gestão ruinosa!

Ainda que assim não se entendesse

8- Sempre se dirá que a violação manifesta dos deveres das gerentes está suficientemente comprovada nos autos e traduz-se na omissão de elaboração e apresentação de contas desde ano de 2014,

9- Ao ter indeferido liminarmente o decretamento da providência cautelar de suspensão das requeridas das funções de gerentes, o Tribunal “a quo”, com base na fundamentação descrita, aplicou erradamente as disposições legais que justificam e acautelam a suspensão a título cautelar aos factos alegados pelo Recorrente.

10- O que configura uma nulidade da decisão nos termos e para os efeitos no disposto no art. 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC, nulidade que expressamente se invoca para e com todos os seus efeitos legais.

11- Ao inferir liminarmente o decretamento da providência requerida, o Tribunal recorrido violou o disposto nos arts. 65.º, 67.º, 214.ºn º1 e 257.º, n.º 6 do CSC, proferindo uma sentença ambígua e por isso nula, nos termos do art. 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC.

Nestes termos, deverá ser dado provimento ao presente recurso, com a consequente revogação da decisão proferida, ordenando-se o decretamento da providencia cautelar requerida.


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

· Saber se a decisão recorrida padece da nulidade que lhe é apontada pelo Apelante;

· Saber se há (ou não) fundamento para indeferir liminarmente o pedido de suspensão das Requeridas das suas funções de gerente pelo facto de não terem sido alegados factos concretos que consubstanciassem os prejuízos que as gerentes estão a causar à sociedade pela violação dos seus deveres legais.


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III.

Apreciemos então o recurso, começando pela nulidade da decisão que é invocada pelo Apelante.

O Apelante vem invocar a nulidade da decisão, ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, dizendo, para o efeito, que “Ao ter indeferido liminarmente o decretamento da providência cautelar de suspensão das requeridas das funções de gerentes, o Tribunal “a quo”, com base na fundamentação descrita, aplicou erradamente as disposições legais que justificam e acautelam a suspensão a título cautelar aos factos alegados pelo Recorrente”.

Salvo o devido respeito, é evidente a falta de razão do Apelante, uma vez que aquilo que imputa à decisão recorrida é (claramente) um erro de julgamento e não um vício de natureza formal que possa ser enquadrado na previsão contida na alínea c) do n.º 1 do citado art.º 615.º e que, como tal, seja susceptível de determinar a nulidade da decisão.

Nos termos da citada disposição legal, a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou quando ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

A oposição a que alude a referida disposição legal – geradora da dita nulidade – é uma oposição ou contradição entre os fundamentos e a decisão. Está em causa, portanto, a situação em que os fundamentos invocados conduzem, em termos lógicos, a uma decisão diferente daquela que ali foi proferida, de tal forma que seja possível afirmar a existência de um vício ou erro lógico no raciocínio do julgador. Como afirma Cardona Ferreira, in, Guia de Recursos em Processo Civil, o Novo Regime Recursório Civil, 4ª. Ed., pág. 56, «A hipótese da alínea c) reporta-se ao processo lógico de raciocínio e não a opção voluntária decisória, ou seja, jurídico-processualmente, nulidade não é o mesmo que erro de julgamento».

É evidente que, no caso em análise, não se verifica essa situação, pois é certo que nada se disse na fundamentação que apontasse para uma decisão que não fosse a decisão – efectivamente proferida – de indeferimento liminar do pedido de suspensão imediata das gerentes. Tal contradição existiria se a argumentação utilizada na fundamentação fosse no sentido do deferimento do pedido e se, depois disso, viesse a ser proferida (em termos ilógicos e incompreensíveis) uma decisão de indeferimento. Só nesse caso se poderia dizer que algum erro lógico havia sido cometido, de tal forma que ou o juiz se havia enganado na fundamentação ou se havia enganado na decisão, uma vez que uma não era compatível com a outra.

Como é evidente, tal não acontece na situação dos autos; a fundamentação utilizada está em perfeita conformidade lógica com a decisão (de indeferimento) que veio a ser proferida.

Além da referida oposição, a citada disposição legal prevê ainda, como causa de nulidade, a existência de qualquer ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, ou seja, a existência de algum excerto ou afirmação que, pela sua falta de clareza ou pela susceptibilidade de ser objecto de várias interpretações, impede ou compromete a exacta compreensão do sentido e alcance da decisão.

Também nada disso acontece com a decisão recorrida que é perfeitamente clara e inteligível.

Na verdade, reafirmamos, a alegação feita pelo Apelante para justificar a nulidade da decisão corresponde a um erro de julgamento e não a qualquer vício formal que determine a sua nulidade. O que o Apelante diz é que a decisão errou porque aplicou erradamente as disposições legais que justificam e acautelam a suspensão a título cautelar aos factos alegados pelo Recorrente e isso – caso tenha acontecido – corresponde a um erro de julgamento e não a nulidade da decisão.

Não existe, portanto, a apontada nulidade.

Resta saber se existiu erro de julgamento.

É o que passamos a analisar.

Estamos perante uma acção de destituição de titulares de órgãos sociais prevista no art.º 1055º do CPC que, na parte que aqui releva, dispõe, nos seguintes termos:

1 - O interessado que pretenda a destituição judicial de titulares de órgãos sociais, ou de representantes comuns de contitulares de participação social, nos casos em que a lei o admite, indica no requerimento os factos que justificam o pedido.

2 - Se for requerida a suspensão do cargo, o juiz decide imediatamente o pedido de suspensão, após realização das diligências necessárias.

3 - O requerido é citado para contestar, devendo o juiz ouvir, sempre que possível, os restantes sócios ou os administradores da sociedade.

(…)”.

Tal disposição legal está em perfeita conformidade com o art.º 257.º, n.º 4, do CSC onde se dispõe – relativamente às sociedades por quotas, como é o caso da sociedade em causa nos autos – que “Existindo justa causa, pode qualquer sócio requerer a suspensão e a destituição do gerente, em acção intentada contra a sociedade”.

Conforme resulta da lei, o processo para destituição de titulares de órgãos sociais configura-se como um processo de jurisdição voluntária que inclui dois procedimentos processuais: o procedimento principal que tem em vista a destituição do cargo e um procedimento de natureza cautelar que tem em vista a suspensão do cargo como forma de garantir a eficácia e efeito útil da destituição que venha a ser decretada.

O que está em causa no presente recurso não é o procedimento principal, ou seja, o procedimento que visa e tem como objectivo a destituição das Requeridas das suas funções de gerência. O que está aqui em causa é o procedimento cautelar por via do qual se pretendia a imediata suspensão das Requeridas daquelas funções, sendo certo que foi apenas este – e não aquele – que foi liminarmente indeferido pela decisão recorrida.

A decisão recorrida indeferiu liminarmente aquele pedido de suspensão por ter considerado que o Requerente não havia alegado factos concretos que consubstanciassem os prejuízos que as gerentes estão a causar à sociedade pela violação dos seus deveres legais (exercício da gerência sem título formal que o autorize, violação do direito à informação do sócio Autor, falta de apresentação anual de contas). Considerou, portanto, que aquela providência estava dependente de dois requisitos (a existência do direito à destituição e o justificado receio de que a demora na resolução definitiva do litígio cause prejuízo irreparável ou de difícil reparação) e que não haviam sido alegados factos que fossem susceptíveis de traduzir ou integrar o segundo requisito.

Em desacordo com essa decisão, argumenta o Apelante: que ela não tem acolhimento legal; que alegou factos suficientes para integrar a existência de justa causa para a destituição (porquanto alegou factos que traduzem a violação de deveres por parte das gerentes); que esses factos justificam, só por si a suspensão imediata e cautelar das funções de gerente; que a lei não impõe que sejam alegados e provados prejuízos decorrentes da violação desses deveres, sendo certo, além do mais, que, estando afastado da vida da sociedade (não tem acesso aos documentos e contas da sociedade e nunca foi convocado para qualquer assembleia), não tem possibilidade de ter conhecimento dos concretos prejuízos  e que, ainda que se entendesse ser necessária a alegação e prova de prejuízos (o que não se concebe, porquanto tal obrigação não deriva da qualquer disposição legal), tais prejuízos sempre resultariam da omissão da apresentação, deliberação e publicação de contas por parte das Requeridas.

Coloca-se, portanto, a questão de saber se a providência em causa (a suspensão dos gerentes) depende (ou não) da alegação e prova da existência de justificado receio de que a demora na resolução definitiva do litígio cause prejuízo irreparável ou de difícil reparação. A decisão recorrida entendeu que sim; o Apelante entende que não.

É evidente que a suspensão do cargo – expressamente prevista no citado art.º 1055.º - corresponde a um procedimento de natureza cautelar que visa garantir a eficácia e o efeito útil da destituição que venha a ser decretada. Está em causa, portanto, um procedimento cautelar – “enxertado” no próprio processo principal onde se pretende ver decretada a destituição – que, como tal e à semelhança do que acontece com os demais procedimentos dessa natureza, visa prevenir ou acautelar os prejuízos que possam advir da demora da tramitação do processo no sentido de assegurar a efectividade do direito até à decisão que, em definitivo, sobre ele se pronuncie.

Nessas circunstâncias, coloca-se a questão de saber se essa providência (cautelar) está (ou não) dependente da existência do fundado receio que é exigido para as demais providências em geral (cfr. art.º 362.º, n.º 1, do CPC), ou seja, o fundado receio de que, enquanto não for decidido o pedido principal e definitivo de destituição, possa ocorrer lesão grave e dificilmente reparável dos direitos da sociedade e/ou do sócio que vem requerer a suspensão e destituição dos titulares dos respectivos órgãos sociais (periculum in mora). Foi esse o requisito que a decisão recorrida entendeu estar em falta.

Há quem entenda que esse requisito não é aqui exigido, pelo menos de forma autónoma. É o caso do Acórdão da Relação de Guimarães de 08/10/2020[1] (onde se  considerou que o único requisito legal para a suspensão de gerente é a existência de justa causa e que o periculum in mora, em sede de incidente de suspensão, decorre da circunstância de se terem apurado indiciariamente factos que consubstanciam justa causa para a destituição da gerência) e é também o caso do Acórdão da mesma Relação de 21/04/2022[2] (onde se considerou que, no âmbito desta providência, o periculum in mora não é um requisito autónomo, uma vez que ele se presume e decorre da própria existência de justa causa a qual tem ínsita uma situação de inexigibilidade de manutenção do gerente em exercício de funções).

Embora a questão seja discutível, também nos inclinamos para solução próxima dessa.

O art.º 1055.º do CPC – onde se prevê a referida suspensão (de natureza cautelar) – nada diz a propósito; diz apenas que quem pede a destituição, pode pedir a suspensão, o que, de algum modo, dá a entender que a suspensão não depende de mais requisitos do que aqueles que são exigidos para a destituição. O mesmo acontece com o art.º 257.º do CSC onde estão previstas as circunstâncias em que o sócio pode pedir judicialmente a suspensão e a destituição do gerente; também aí não se prevê qualquer requisito para a suspensão que não seja aquele que é exigido para a destituição e este corresponde apenas à existência de justa causa (que, segundo disposto no n.º 6, ocorre, designadamente, quando há violação grave dos deveres do gerente ou quando existe uma incapacidade para o exercício normal das respectivas funções).

Poder-se-ia dizer – é certo – que, estando em causa uma providência cautelar, ela estaria submetida aos mesmos requisitos que, por regra, são inerentes a qualquer providência cautelar, ou seja, a existência de periculum in mora (cfr. art.º 362.º do CPC). A verdade é que tal providência não foi directa e expressamente submetida às normas que regulam os procedimentos cautelares comum (nada se diz nesse sentido, seja no art.º 1055.º do CPC, seja no art.º 257.º do CSC); por outro lado, se é certo que o periculum in mora é, por regra, um requisito das providências cautelares, a verdade é que há situações onde ele é dispensado – como acontece, designadamente, na restituição provisória de posse – e, tendo em conta os termos em que esta providência está prevista e regulada na lei, tudo aponta para que também em relação a esta aquele requisito esteja dispensado (pelo menos como requisito autónomo em relação aos factos que constituem fundamento para a destituição), presumindo o legislador, de algum modo – e compreensivelmente – que, uma vez demonstrada a existência de justa causa de destituição, isso implicará, necessariamente (sem necessidade de outra alegação e prova), que existe receio ou perigo de que a continuação do exercício das funções até à decisão definitiva determine sérios prejuízos para a sociedade e/ou para os sócios.

De qualquer modo, ainda que se entendesse que esse requisito era exigível, sempre se deveria considerar – como se considerou no Acórdão da Relação de Coimbra de 28/11/2018[3], que ele fica preenchido “…quando os fundamentos que justificam a destituição são graves e quando ficam fortemente consolidados no julgamento da decisão cautelar, uma vez que não se justifica que seja tolerado na sociedade, até ao trânsito em julgado da decisão de destituição, um administrador forte e consolidadamente incumpridor”, ou seja, “…quando os fundamentos que justificam a destituição estão/ficam fortemente consolidados no julgamento da decisão cautelar, fica justificada também, só por si, a suspensão provisória do administrador”.

Com efeito, continua dizendo o citado Acórdão, citando Solange Jesus, In IDET, Miscelâneas, n.º 7, pág 184 e 186, “(…) a ser real a imputação dirigida ao administrador, fundada nas violações das normas de conduta e/ou dos deveres funcionais, é legítimo que surja no espírito do requerente o receio de dissipação dos meios de prova que fundamentam o pedido de destituição. Pode inclusive assistir-se à paralisação da sociedade ou à irrecuperável dissipação do seu património; sendo ainda vulgar a subtracção efectiva de documentação contabilística, em prejuízo da prova do litígio e bem assim do direito que o requerente pretende fazer valer em juízo (…) Quanto mais grave for a factualidade alegada pelo requerente e mais forte o juízo de verosimilhança que daí resulte mais facilmente se demonstrará o perigo de afectação do fim ou a perda de eficácia do procedimento”.

Concluimos, portanto, em face do exposto, que, uma vez alegados os factos que traduzam a existência de justa causa de destituição, não é exigível, para efeitos do pedido de suspensão do gerente, a alegação de factos que traduzam os concretos prejuízos que a actuação do gerente está a causar – ou que se receia poder vir a causar – à sociedade e/ou aos sócios. A alegação e prova desses prejuízos não é legalmente exigida para efeitos de destituição do gerente (bastando para o efeito a alegação e prova de factos que traduzam justa causa de destituição – cfr. art.º 257.º do CSC) e nada na lei aponta para o facto de a alegação desses prejuízos ser necessária para efeitos da providência (cautelar) de suspensão do gerente. O periculum in mora – que, por regra, é inerente às providências cautelares (sendo certo que é a prevenção desse perigo que justifica a necessidade dessas providências) – resultará aqui da mera circunstância de ser demonstrada a existência de justa causa para a destituição. Na verdade, a justa causa de destituição pressupõe, de acordo com o disposto no art.º 257.º do CSC, uma violação grave dos deveres do gerente ou a incapacidade para o exercício normal das funções e a verificação de uma situação dessas já é, só por si, bastante para concluir que a manutenção das funções – designadamente durante a pendência do processo e até à decisão que aprecie a destituição – representa um risco efectivo de má gestão, de prática de novos actos em prejuízo da sociedade ou dos sócios ou até o risco – a partir do momento em que tem conhecimento do pedido de destituição contra ele dirigido – de dissipação ou ocultação de elementos ou documentos contabilísticos com o objectivo de impossibilitar ou dificultar a prova dos factos invocados para fundamentar a destituição, com os consequentes e inerentes prejuízos para a sociedade e/ou para os sócios, em termos de justificar, sem dependência de outros requisitos, a imediata suspensão das funções a título cautelar.

Assim, considerando-se – como se considerou na decisão recorrida – que haviam sido alegados factos suficientes no que toca aos fundamentos para a destituição (questão que não está em apreciação no presente recurso), não encontramos razões para indeferir liminarmente o pedido de suspensão das Requeridas das suas funções de gerência; se os factos alegados pelo Requerente vierem a ficar provados (ainda que em termos indiciários, como é próprio das providências cautelares, mas com a consistência necessária) e caso se considere que eles traduzem uma violação dos deveres das gerentes (as Requeridas) com a gravidade necessária para justificar a sua destituição, tanto bastará para decretar a suspensão das suas funções, sem necessidade de efectiva alegação e prova de concretos prejuízos que resultem ou possam resultar da sua actuação, tendo em conta que as situações que integram a justa causa de destituição – designadamente, a violação grave de deveres inerentes ao cargo – já são, só por si, idóneas para concluir pela existência de periculum in mora e para justificar uma medida cautelar.

Revoga-se, portanto, a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento dos autos para apreciação do pedido de suspensão das gerentes, após a realização das diligências e da produção de prova que se entenda ser necessária em conformidade com o disposto no art.º 1055.º, n.º 2, do CPC.


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IV.
Pelo exposto, concede-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento dos autos para apreciação do pedido de suspensão das gerentes, após a realização das diligências e da produção de prova que se entenda ser necessária em conformidade com o disposto no art.º 1055.º, n.º 2, do CPC.
Custas a cargo do Apelante, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe seja concedido e tendo em conta o disposto no art.º 539.º, n.º 2, do CPC.
Notifique.

                              Coimbra,

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                                  (Maria João Areias)

                                                      (Paulo Correia)                     


[1] Proferido no processo n.º 2641/19.3T8VNF.G1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[2] Proferido no processo n.º 4509/21.4T8GMR-A.G1, disponível em http://www.dgis.pt.
[3] Proferido no processo n.º 4039/17.9T8LRA-A.C1, disponível em http://www.dgsi.pt.