Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
811/12.4JACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: SENTENÇA
REQUISITOS
FUNDAMENTAÇÃO
FACTOS PROVADOS
FACTOS NÃO PROVADOS
Data do Acordão: 03/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SERTÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 374º Nº 2 CPP.
Sumário: 1.- A elencação dos factos provados e não provados refere-se apenas aos factos essenciais à caracterização do crime e circunstâncias relevantes para a determinação da pena e não aos factos inócuos, mesmo que descritos na contestação;

2.- O que importa é que da conjugação da matéria da acusação e da defesa, resulte claro que o tribunal apreciou os factos relevantes aduzidos por uma e por outra, relevantes para a decisão a proferir.

Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

Após audiência pública de discussão e julgamento, pelo tribunal de júri, foi proferida decisão final, de mérito, com o seguinte dispositivo:

- Absolver o arguido A... da prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alíneas e), in fine, i) e j), do Código Penal, de que vinha acusado;

- Condenar o arguido A... pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio, p. e p. pelo art. 131º do Código Penal, na pena de 12 (doze) anos de prisão;

- Julgar procedente o pedido de indemnização civil formulado pelos demandantes B... , C.... e D... contra o demandado A..., e, em consequência, condenar este a pagar àqueles a quantia de 90.000,00 € (noventa mil euros), acrescida de juros, à taxa legal, desde a presente data.

*

Inconformado com o acórdão, dele recorre o arguido, formulando as seguintes Conclusões:

1) Foi incorrectamente julgado provado o facto identificado com o número "3)", que dá como assente que o arguido tenha trazido de casa faca de cozinha "com a finalidade a poder utilizar".

2) Apenas as declarações do arguido poderiam provar tal facto, quanto à finalidade do Recorrente em trazer consigo uma faca, as quais se encontram gravadas na aplicação informática em uso no Tribunal, de 00:00:00 a 00:02:24, 00:00:00 a 03: 19:33 e 00:00:00 a 00:03:33, com início das suas declarações às 09:29:23 e termo pelas 11: 18: 11 na aplicação informática em uso no Tribunal, de 00:00:00 a 00:02:24, 00:00:00 a 03: 19:33 e 00:00:00 a 00:03:33, conforme acta de julgamento de 26.0.9.2013.

3) As mesmas não confirmam que a sua finalidade fosse poder utilizá-la, pelo que, na ausência de prova, tal facto não poderia nessa parte ser dado como provado.

4) O Recorrente afirmou em audiência de julgamento, cujo depoimento o tribunal teve na globalidade por credível - até face à sua confissão, postura e modo como colaborou com o tribunal respondendo a tudo o que foi perguntado, sem contradições ou hesitações - que trouxera a faca para se sentir mais seguro, atendendo à situação anteriormente ocorrida, atento o antes ocorrido e constante dos factos provados 1), 4), 15), 16) e 17).

5. Por isso, a escondeu e sequer a transportou para o interior do bar, deixando-a debaixo de tapete de entrada de prédio sito a 30 metros de distância do Bar onde ocorreram posteriormente os factos, por isso o fez a título preventivo.

6. Pelo que, assim, também foram incorrectamente julgados NÃO PROVADOS os factos, enunciados em B 1) alínea "( i)" da acusação e em B2, da contestação, alíneas “(viii)” e “(ix)”, ou seja que:

- A finalidade referida em 3) fosse para o caso de surgirem novamente desentendimentos relacionados com o assunto mencionado em l);

- Fosse por causa de L... o ter agredido 2/3 horas antes do evento fatídico e por este lhe ter mostrado e ostentado um canivete, que levou o arguido a subir e descer do andar que no local habitava e a trazer a faca com a qual mais tarde atingiu a vítima;

- A tenha Trazido para se defender, sem que fosse seu propósito utilizá-la e/ou sequer atingir a vitima, até por não ter receio ou temor desta.

7) Os quais deveriam ter sido dados como assentes, provados atendendo ás declarações do arguido que nesta parte também se mostram credíveis, conjugadas com os factos provados em factos 1), 4), 15), 16) e 17) e de acordo com as regras da experiência comum.

8) Foi erradamente julgado provado o facto descrito em 7), ou seja, que o arguido se dirigiu para o local onde se encontrava a vítima, num recanto existente junto às casas de banho, de forma lenta e pela retaguarda, com vista a evitar que a vítima se apercebesse da sua presença ou se pudesse defender. Acerca deste facto apenas valem as declarações do arguido gravadas como referido acima, já que nenhuma testemunha o presenciou.

9) E este apenas reconhece que se dirigiu à vítima pela retaguarda porque esta se encontrava de costas para a porta de entrada do Bar, contudo, nenhuma prova se produziu que pudesse dar como provado que o arguido se dirigiu de forma lenta com vista a evitar que a vitima se apercebesse da sua presença ou se pudesse defender, pelo que ausência de outra prova o tribunal a quo não poderia dar tal facto como provado.

10) Apenas poderia dar como provado que o arguido dirigiu-se para o local onde se encontrava a vítima, num recanto existente junto às casas de banho, pela retaguarda.

11) O tribunal a quo julgou erradamente o facto da Acusação provado em 11), isto é, Ao actuar da forma descrita, o arguido A...agiu com o propósito concretizado de retirar a vida a E....

12) No entender do Recorrente o tribunal a quo julgou erradamente este facto dando-o por provado e do mesmo modo e conexos com este erradamente deu como não provados os seguintes factos: Que o arguido:

(iv) Jamais tenha tido o propósito e/ou tivesse intenção e menos deliberada e pretendida de pôr em causa ou de pôr cobro à vida de E...

(v) Desconhecesse que no local a que dirigiu a faca existem e passam vaso arterial e vaso venoso fundamentais à passagem e circulação de sangue, que se atingidos levariam à morte da vítima ou que sequer poderiam pôr em causa a vida desta.

(vi) Jamais tenha tido consciência e menos pretendido atentar e/ou pôr em causa a vida da vítima.

13) Tais factos deveriam ser decididos em sentido diverso atendendo às declarações do arguido acima referenciadas e ainda às declarações do perito médico Q..., perito médico a exercer funções no Gabinete Médico-Legal de Castelo Branco - Serviço de Patologia Forense, cujo depoimento foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, de 00:00:00 a 00:30:20, tendo iniciado o seu depoimento às 11:20:05 e terminado às 11:50:25, conforme Acta de Julgamento de 2006.2013;

14) Tendo ainda em conta as declarações das testemunhas:

-N.... casado, empresário de construção civil e hoteleiro, residente em ..., Sertã, cujo depoimento foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, encontrando-se o seu depoimento gravado de 00:00:00 a 00:26:49, tendo iniciado o depoimento às 14:07:24 e terminado às 14:42:07 conforme Acta de Julgamento de 26.09.2013;

- O... , solteira, bombeira voluntária, residente em Rua ..., Sertã.

Cujo depoimento foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, encontrando-se o seu depoimento gravado de 00:00:00 a 00:20:13, tendo iniciado o depoimento às 15:51:30 e terminado às 15:51:18, conforme Acta de Julgamento de 26.09.2013.

15) É que destes depoimentos resulta que ao desferir o único golpe referido em 8) do douto Acórdão, o arguido não pretendeu causar a morte ao E..., até porque se o tivesse atingido 2 cms. ao lado não teria ocorrido a morte, disse o senhor perito.

16) A vítima, E..., após a actuação do arguido ficou de pé e dirigiu-se para o exterior do Bar pelo seu pé, onde deambulou também pelo próprio pé, até se ter encostado a pilar exterior do imóvel, aguardando a chegada de socorro por alguns minutos.

17) Acabou por ser transportado ao hospital em automóvel particular pela testemunha R... ainda com vida.

18) Que os factos acima descritos foram presenciados pelo arguido que permaneceu no local como provado em 24) do douto Acórdão Recorrido.

19) O tribunal deveria ter dado por não provado o facto provado em 11) da matéria da Acusação, e deveria ter dado como provados os factos constantes das alíneas (i) e (iii), (iv), (v), vi) - com correcção para um golpe em vez de dois, dos factos NÃO PROVADOS, respectivamente da Acusação e da Contestação.

20) O tribunal a quo decidiu de modo errado quando conclui pela intenção de matar por parte do Recorrente, porquanto, se o arguido quisesse, tirar a vida ao inditoso E..., teria persistido no seu propósito até o conseguir, não teria desferido um só golpe, nada o impedindo de levar adiante o seu intento, se esse fosse o de tirar a vida do E....

21) O Recorrente actuou como referido, saiu para a rua, foi agredido pelo L..., e ficou no local a aguardar a chegada das autoridades, avistando a vítima sair do local ainda com vida.

22) Estes factos eram relevantes para apurar do propósito do arguido na actuação havida e da sua conduta imediatamente posterior aos factos por si confessados e praticados, para assim excluir a sua intenção ele tirar a vida à inditosa vítima.

23) Os quais os o tribunal a quo não deu como provados contudo, resultavam em abono do arguido, afastando objectivamente a intenção de matar e reforçando o que o arguido sempre afirmou, que não quis matar E....

24) Deve, assim, a matéria de facto ser alterada por se tratarem de factos com relevo para a decisão da causa, que poderiam e deveriam ter sido convocados para a matéria de facto provada no termos do 358º do CPP e do art. 79°, n°1) alínea c) do CPP, que o douto Acórdão violou.

25) O que é causa de nulidade do Acórdão recorrido, devendo aditar-se aos factos provados os acima indicados e por consequência alterar-se a decisão de direito, condenando-se o arguido pelo crime de Ofensas à Integridade Física Grave, Agravada pelo Resultado nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 144°, al. d) e 147°, n°1 do Código Penal.

26) O tribunal a quo, para fundamentar a actuação livre e consciente do Recorrente, reporta-se a factos, que não estão reflectidos nos factos provados, onde inclui factos desfavoráveis para o arguido, que não constam da acusação, sobre alguns dos quais houve até despacho prévio de arquivamento pelo Ministério Público, nomeadamente os factos descritos a página 22 e 23 do douto Acórdão Recorrido.

27) Quais sejam:

- "Foi então buscar a faca e dirigiu-se de novo ao Bar sabendo o local onde a vítima se encontrava",

- "Quando se encontrava junto à vítima, junto das costas desta desferiu um golpe com a faca, levantando a mão onde a mesma se encontrava, e fazendo-o de cima para baixo e ligeiramente de trás para afrente (o que indica que então se encontrava pelas costas da vítima).

- Fê-lo no pescoço da vítima, local que todas as pessoas sabem ser um dos que mais probabilidades apresenta de causar a morte, sendo certo que é irrelevante que o golpe tenha sido pouco profundo, uma vez que a simples "degola", já com toda a probabilidade produziria o mesmo resultado fatal.

- Manteve li faca na mão, saindo com ela para o exterior, aí pretendendo dirigir-se à testemunha R..., do que foi impedido pela testemunha L....

- Não existia qualquer confronto que pudesse determinar um golpe acidental, pois a vítima encontrava-se distraída e não dera pela aproximação do arguido.”

28) O Tribunal ao considerá-los desta forma, valorando-os para concluir pela actuação consciente e voluntária do Recorrente, fê-lo em violação do disposto aos artigos 358º e 359º do C PP, o qt1e gera a NULIDADE DO ACORDÃO, nos termos do art. 379°, n°1, alínea b) do mesmo Código.

29) O que igualmente sucede quando considera que,

o arguido apontou a faca (de lâmina afiada e larga)...numa posição de baixo para cima e de trás para frente, a qual atenta a largura da lâmina, não deixaria de atingir esses órgãos vitais do corpo da vítima.

Ora para tanto o arguido teria de empunhar faca de forma determinada e escolher o direccionamento do golpe, o que teve tempo para fazer, dado que a vítima não dera pela sua presença. E se apenas pretendesse ferir, tinha á sua frente os braços e o tronco da vítima, bem como as pernas... em páginas 23 e 24 do Acórdão Recorrido.

30) Sendo que, o tribunal a quo caracteriza a faca como sendo de (lâmina afiada e larga)...numa posição de baixo para cima e de trás para frente,a qual atenta a largura da lâmina, não deixaria de atingir esses órgãos vitais do corpo da vitima... quando a largura da faca não encontra apurada na matéria de facto provada, apenas o comprimento (cerca de 10 cm), facto provado 3), o que constitui nulidade do Acórdão nos termos supra citados.

31) O tribunal a quo, para concluir pejo grau mais intenso de dolo, considera como circunstância desfavorável ao arguido... a persistência na ideia de não reconhecimento da gravidade da sua conduta... quando tal não resulta dos factos provados.

32) Por outro lado, com referência às circunstâncias que antecederam o momento do crime e á motivação do arguido, o Tribunal aprecia factos que no entender do Recorrente deveriam constar dos factos provados e não estão.

33) Assim o tribunal a quo ponderou, além dos factos provados que dentro do café R... e vítima continuaram a chamar-lhe mentiroso ao Recorrente enquanto sorriam troçando dele; quando chegou a namorada do arguido continuaram aqueles com os sorrisos, a chamá-lo de mentiroso e com designações de "puta" à namorada; que a R... e a vítima se dirigiram ao arguido e namorada dizendo "és uma grande puta - e tu, EE... és um grande corno"; que a testemunha L... disse ao arguido "és um preto, um corno, um filho da puta", que o L... se mostrava agressivo mostrando-lhe uma faca dizendo "com esta já cortei a orelha a um preto e não me importo de voltar a cortar".

34) Tal matéria de facto, de que o tribunal deveria conhecer, deveria constar dos factos provados e não estando, gera nulidade do Acórdão nos termos do art. 379º, n°1, alínea c), se outro vício do art. 410° o tribunal ad quem não lhe atribuir.

32) Sem prescindir, caso assim se não entenda o ora Recorrente entende que os factos, com as alterações acima indicadas, e até mesmo sem estas, configuram a prática do crime de Ofensa à integridade física agravada pelo resultado, pp. Pelos art.s 144°, al. d) e 147°, n°1 do Código Penal.

33) O Recorrente atingiu a vítima não pretendendo tirar-lhe a vida, apenas lhe desfere um golpe e cessa a sua actuação de imediato, deixando a vítima de pé, a deslocar-se pelo seu próprio pé, caso fosse sua vontade e agisse com tal propósito, o de tirar-lhe a vida teria persistido na sua actuação.

34) Pelo que, com o devido respeito, perante tal factualidade parece-nos que o mesmo deverá ser condenado pelo crime pp pelos artigos 144°, al. d) e 147°, nº1 do Código Penal, tendo o Acórdão Recorrido ao assim não decidir, violado o disposto no art. 131º do Código Penal

34) Caso também assim se não entenda, e se conclua que o Recorrente tenha praticado o crime de homicídio simples p.p. pelo art. 131° do Código Penal, deverá ser considerado ter este agido Dolo Eventual, pelo (que) o Acórdão recorrido viola o disposto no art. 14° n°3 de Código Penal, por ter o Recorrente agido "consciente de que o seu acto poderia causar a morte da vítima, ainda assim arriscando-se a produzir tal resultado ao invés de renunciar á prática do acto" - Simas Santos e Leal Henriques, Código renal anotado, acima referido

35) Devendo em todo o caso a pena ser reduzida para o limite mínimo previsto para o tipo legal de crime, tanto mais que, atendendo aos factos provados que depõem favoravelmente ao arguido, só ligeiramente aflorados na decisão sobre a escolha da pena, mas que constam de 18) a 40) do factos provados, muitas circunstâncias depõem a seu favor, atendendo, ainda ao circunstancialismo de provocações, injúrias e ofensa à integridade física reiteradas e persistentes de que foi alvo, por parte do vítima e/ou de terceiros que a acompanhavam previamente à prática dos factos.

36) De todo o modo sempre o segmento que condenou o Recorrente em indemnização civil deverá ele ser revogado em função da decisão que for proferida em matéria criminal.

Termos em que, deve ser dado provimento ao presente Recurso, conhecendo-se dos vícios invocados, reenviando os autos para novo julgamento, caso os mesmo não sejam supríveis, nos termos do art. 426° do C.P.P., ou, em alternativa, ser revogada a decisão que condenou o Recorrente pela prática do crime de homicídio simples p. e p. pelo art. 131°, n°1, do C.P., por outra que o condene pela prática do crime de ofensa integridade física grave agravada pelo resultado p. e p. pelos artigos 144°, al. d) e 147º do Código Penal em pena inferior à que lhe foi aplicada.

*

Respondeu o digno magistrado do MºPº junto do tribunal recorrido rebatendo ponto por ponto a motivação do recurso para concluir no sentido de deve improceder.

Corridos vistos, procedeu-se a julgamento, em audiência, na qual o recorrente sustentou os fundamentos do recurso e a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no mesmo sentido da resposta apresentada em 1ª instância.

Cumpre decidir.


***

II. Motivação

1. Vistas as conclusões, que delimitam o objecto do recurso, vêm suscitadas, em síntese, as seguintes questões, pela ordem que são invocadas: reapreciação da prova/matéria de facto; - nulidades do acórdão; - preenchimento, pela matéria provada, dos elementos tipo de crime; - aplicação do limite mínimo da moldura abstracta da pena; - insubsistência da indemnização civil arbitrada.

As questões suscitadas serão analisadas pela ordem de precedência lógica indicada nos artigos 368º/369º do CPP, por remissão do art. 424º, n.º2 do mesmo diploma.

Para o efeito, vejamos a decisão da matéria de facto.

2. A decisão da matéria de facto, com a motivação probatória / análise crítica da prova que a sustenta é a seguinte:
A. FACTOS PROVADOS

A1) DA ACUSAÇÃO

1) No dia 30 de Outubro de 2012, ao final da tarde, no interior e exterior do Bar denominado “ X...”, sito na Praceta Dr. ..., na Sertã, o arguido A..., também conhecido pela alcunha de “ AA...”, a vítima E..., mais conhecido por “ EE...”, R...., que na altura mantinha um relacionamento amoroso com a vítima, e L..., padrasto de R..., envolveram-se em discussão porquanto a vítima e R... afirmavam que o arguido lhes havia pedido para transmitirem a L... que, se este último quisesse falar com a mulher dele, que falasse primeiro com ele e não fosse cobarde, o que o arguido negava ter referido.

2) Após os factos referidos em 1), o arguido dirigiu-se para a sua residência, sita no mesmo imóvel do bar acima referido, e tomou banho.

3) Seguidamente, dirigiu-se novamente para o bar referido em 1), trazendo consigo uma faca de cozinha, constituída por uma lâmina de cerca de 10 cm de comprimento, a qual deixou escondida debaixo do tapete existente ao fim das escadas do prédio que dão acesso aos pisos superiores, com a finalidade de a poder utilizar.

4) Já pelas 00h30m do dia 31 de Outubro de 2012, quando o arguido se encontrava no interior do bar acima referido, ali surgiram a vítima E... e R.... , os quais apelidaram o arguido de mentiroso e esboçaram um sorriso que o arguido entendeu como trocista.

5) Posteriormente, R... passou pelo local onde o arguido se encontrava, tendo-lhe embatido no corpo com o ombro e, após, regressou novamente para junto do local onde se encontrava vitima E..., esboçando ambos novamente um sorriso para o arguido, postura que este entendeu novamente como trocista.

6) Acto contínuo, o arguido dirigiu-se ao local onde tinha deixado a faca e colocou-a no bolso traseiro das calças, do lado direito, regressando novamente ao interior do bar.

7) Após, dirigiu-se para o local onde se encontrava a vítima, num recanto existente junto às casas de banho, de forma lenta e pela retaguarda, com vista e evitar que a vítima se apercebesse da sua presença ou se pudesse defender.

8) Seguidamente, retirou a faca do bolso e, empunhando-a e usando da força física, desferiu com a mesma um golpe na zona lateral direita do pescoço da vítima.

9) Como consequência directa e necessária do golpe acima referido, a vítima sofreu as seguintes lesões no pescoço: ferida cortoperfurante, localizada na transição do terço médio, da região cervical lateral direita com a região cervical posterior, medindo 2 cm de comprimento, com ponta mais afilada posterior.

10) Tais lesões foram causa directa e necessária da morte de E....

11) Ao actuar da forma descrita, o arguido A...agiu com o propósito concretizado de retirar a vida a E....

12) O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua

conduta era proibida e punida pela lei penal.

A2) DA CONTESTAÇÃO

13) O arguido sentiu-se desrespeitado e desconsiderado por atitudes da vítima, agindo esta em concertação com a testemunha da acusação R..., atitudes que sentiu como atentatórias da sua dignidade.

14) Ao desferir o golpe que atingiu a vítima fê-lo devido a sorrisinhos, afirmações depreciativas e desonrosas, gestos e um encontrão que a vítima e a referida testemunha lhe dirigiram no período antecedente, tendo chegado a propagar que a pessoa com quem o arguido vivia lhe era infiel e que se encontrava com outros homens, apelidando-o de “corno”.

15) A vítima e a referida testemunha atribuíram ao arguido afirmações relativas a L..., segundo as quais lhe teria chamado “cobarde”, o que fez com que o arguido se dirigisse ao referido L... negando tais atitudes, procurando com este sanar a situação de tensão.

16) L..., horas antes dos factos, havia prostrado e manietado o arguido no solo, o que fez em reacção às afirmações do arguido referidas em 15), apesar das tentativas deste em negar aquelas afirmações, tendo L... também mostrado e ostentado ao arguido um canivete, quando ambos se encontravam ao balcão do BAR X....

17) Após descer do andar e residência e trazer a faca, o arguido deixou-a à entrada do prédio, mas dentro deste, a não menos de 30 metros do Bar X..., e deslocou-se para este, para tomar bebida.

18) O arguido sempre foi pessoa diligente, respeitadora, integrado e integrador dos grupos comunitários em que viveu e de que fez parte.

19) Como estudante da Escola Tecnológica e Profissional da Zona do Pinhal em Pedrógão Grande sempre foi um aluno respeitador de colegas, funcionários administrativos e de professores, sendo por eles reconhecido como pessoa cordata, pacífica e amiga.

20) Evitou sempre situações de conflito e tensão e agiu sempre por forma a minimizar aquelas ou obstar às mesmas, intercedendo para lhes pôr cobro, quando ocorriam.

21) Manteve sempre com os professores, orientadores e monitores que intervieram na sua formação, atitude de deferência e reconhecimento.

22) Participou em actividades lectivas, extra lectivas e de lazer, designadamente culturais e desportivas, integrando equipas mistas, incluindo de professores, sendo aí estimado e reconhecido como pessoa leal, com espírito de equipa e de partilha.

23) No contexto laboral, nas empresas e entidades em que trabalhou, sempre agiu de forma respeitosa, determinada e diligente no desempenho das tarefas e actividades, sendo considerado como pessoa responsável, empenhada e cumpridora.

24) Após os factos ficou no local sentado, a aguardar a chegada da GNR local, com a qual colaborou, o que também fez com os elementos da Polícia Judiciária que levaram a cabo as diligências investigatórias.

A3) – OUTROS FACTOS PROVADOS

Mais se provou que:

25) O processo de crescimento do arguido decorreu em Cabo Verde, ilha de Santo Antão, de onde é natural, até aos 18 anos, altura em que veio para Portugal, com vista a continuar estudos.

26) Tem dois irmãos mais novos e quatro mais velhos, estes fruto de relações anteriores de seu pai. O pai era funcionário público, e a mãe proprietária de uma pequena mercearia local, referindo-se ao ambiente familiar como harmonioso e afectuoso, com empenhamento dos pais no processo educativo dos filhos, que lhes transmitiam valores e regras sociais.

27) Frequentou a escola de Cabo Verde até aos 16 anos, tendo concluído o 9º ano, com razoável capacidade de aprendizagem. Já em Portugal, frequentou a escola tecnológica em Pedrógão Grande, na área da construção civil, vertente de topografia, com equivalência ao 12º ano, que concluiu aos 22 anos.

28) Integrou-se bem no ambiente escolar, aí conhecendo já alguns alunos seus conterrâneos. Um irmão seu veio algum tempo depois para a mesma escola, sendo o seu sustento, com alojamento e alimentação, assegurado pela Câmara Municipal da sua cidade de origem e pelos pais.

29) Após conclusão do curso efectuou alguns trabalhos como estagiário de topógrafo, acabando por enveredar pela construção civil, actividade mais fácil de conseguir e melhor remunerada, mantendo residência em Pedrógão Grande.

30) Em 2009/2010, iniciou uma relação marital com a namorada U....

31) À data dos factos, o arguido e a companheira residiam na Sertã há cerca de um ano, aí residindo também o seu irmão, sendo por razões laborais (procura de trabalho) que se deslocaram para esta localidade. Habitavam um espaço arrendado com condições suficientes.

32) O arguido trabalhava na construção civil de forma assídua e regular, auferindo um vencimento que conferia ao casal uma situação económica satisfatória.

33) O relacionamento entre o casal é referido por ambos como gratificante e afectuoso, dispondo o arguido do apoio da companheira, a qual tem duas filhas de relacionamento anterior, entregues judicialmente aos cuidados de uma tia materna, mas que conviviam com a mãe e com o arguido.

34) Após a reclusão do arguido, a companheira voltou para o agregado de seus pais, em ..., ajudando o pai na sua actividade de sucateiro e a mãe na sua problemática de saúde. Estes familiares, que têm uma situação económica estável, relacionam-se com o arguido, prestando-lhe apoio, e habitam uma moradia própria localizada em meio rural, com boas condições, pretendendo restaurar o sótão para alojamento do casal quando o arguido for libertado, podendo mesmo ser ele próprio a efectuar esse trabalho.

35) O arguido continua a manter o apoio da família de origem, havendo contactos sempre que possível, e recebe visitas do agregado da Sertã.

36) Não sendo conhecido na Sertã, o arguido é descrito em Pedrógão Grande, onde com frequência se deslocava, como sociável, pacato, responsável e educado, sem problemas de integração e com hábitos de trabalho, tendo causado surpresa a sua actual situação e os factos que a originaram.

37) Na comunidade onde os factos ocorreram, os mesmos tendem ao esquecimento, social, já que tanto a vítima como o arguido não eram daquela localidade.

38) A situação jurídico-penal do arguido está a ser sentida com sofrimento por ele e pela companheira, e os familiares, embora recriminem o seu comportamento, nunca deixaram de o apoiar.

39) O arguido poderá manter um modo de vida aparentemente não problemático, com normal integração familiar, social e profissional.

40) O arguido não tem antecedentes criminais.

A4) – DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL

41) Os factos provados da acusação.

42) O malogrado E... laborava na firma “V...., S.A., aí auferindo um salário base de € 656,00.

43) Este era o único rendimento de que o agregado familiar da vítima, constituído pela viúva e dois filhos, sendo um ainda menor, usufruía mensalmente, para fazer face às suas despesas e encargos.

44) À data da morte, o E... era um homem alegre, saudável, trabalhador e estimado, por amigos e familiares.

45) Mercê deste crime violento, a viúva e os filhos sofreram choque, desgosto e tristeza.

46) A vítima mantinha uma ligação afectiva com os filhos, sempre preocupado em que nada faltasse em termos de sustento.

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B. FACTOS NÃO PROVADOS

Não se provaram todos os demais factos [sendo que ao Tribunal, nesta sede, só compete ajuizar factos, e não juízos de valor jurídico ou conclusões – e que por isso não serão aqui indicados, devendo considerar-se terem essa natureza] que se não compaginam com a factualidade apurada, não se considerando também factos já contrariados por outros dados como provados, designadamente e no essencial que:

B1) – DA ACUSAÇÃO
i. A finalidade referida em 3) fosse para o caso de surgirem novamente desentendimentos relacionados com o assunto mencionado em 1).
ii. Tenham sido dois, os golpes desferidos com a faca na zona lateral direita do pescoço da vítima, bem como as consequências referidas em 9) tenham tido como causa dois golpes.

B2) – DA CONTESTAÇÃO


iii. jamais tenha tido o propósito e/ou tivesse intenção e menos deliberada e pretendida de pôr em causa ou de pôr cobro à vida de E....
iv. Desconhecesse que no local a que dirigiu a faca existem e passam vaso arterial e vaso venoso fundamentais à passagem e circulação de sangue, que se atingidos levariam à morte da vítima ou que sequer poderiam pôr em causa a vida desta.
v. Jamais tenha tido consciência e menos pretendido atentar e/ou pôr em causa a vida da vítima.
vi. Ao desferir os dois golpes na vítima, o que quis e anteviu foi atingir aquele ferindo-o, sem mais sequelas e consequências.
vii. A vítima e a testemunha R... tenham atribuído ao arguido o ter desafiado L....
viii. Fosse por causa de L... o ter agredido 2/ 3 horas antes do evento fatídico e por este lhe ter mostrado e ostentado um canivete, que levou o arguido a subir e descer do andar que no local habitava e a trazer a faca com a qual mais tarde atingiu a vítima.
ix. A tenha trazido para se defender, sem que fosse seu propósito utilizá-la e/ou sequer atingir a vítima, até por não ter receio ou temor desta.
x. Ao agir nas condições e do modo referido em 15) dos factos provados não tenha posto a hipótese de tirar a vida à vítima, não a tenha concebido e não a tenha colocado como resultado possível da sua acção.
xi. Tenha sido sempre um aluno exemplar.
xii. Tenha participado em todas as actividades escolares.
xiii. Na comunidade da Sertã tenha sido tido e havido por todos como pessoa séria e honesta, respeitadora e cumpridora.

B3) – DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL


xiv. Factos dados como não provados da acusação.
xv. A vítima mantivesse uma ligação muito afectiva com a sua mulher.


C. MOTIVAÇÃO DE FACTO

A convicção do Tribunal alicerçou-se na inteligibilidade e análise crítica e ponderada do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente na prova de natureza pericial e demais prova documental existente nos autos, nos depoimentos das testemunhas e nas declarações do arguido.

O nosso sistema processual em sede probatória acolheu o sistema da prova livre ou livre convicção do julgador, o que de modo algum significa arbitrariedade mas antes “uma liberdade de acordo com um dever (…) de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo (Castanheira Neves, Sumários de processo Criminal, Coimbra, João Abrantes, 1968, pág. 50), como decorre do disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal. Este princípio da livre convicção do julgador é aplicável não só quanto à prova produzida oralmente em audiência, proveniente do arguido, dos assistentes, das partes civis e das testemunhas, mas também quanto à apreciação da prova documental, com excepção dos documentos autênticos, em que se aplica o critério legal plasmado no artigo 169º do Código de Processo Penal e a prova pericial, como decorre do nº 1 do artigo 163º do mesmo diploma legal.

Das declarações do arguido e da generalidade dos depoimentos prestados em audiência, resulta que houve dois períodos distintos a ter em conta no seguimento dos factos, um deles ao fim da tarde, estando presentes o arguido, a vítima e as testemunhas R..., L... (padrasto de R...) e M.... (mãe da testemunha R... e esposa da testemunha L...).

No local encontravam-se também as testemunhas N... e S.... (casal que detinha a exploração do Bar X..., onde decorriam, em sala separada, espectáculos de Karaoke), bem como as testemunhas O...,( bombeira voluntária que ali se encontrava para assistir ao Karaoke), T.... (que ali estava com idêntico fim, sendo certo que já fora empregada do Bar X...). Ali presente esteve também, nesse período, a testemunha P... (irmão da testemunha O..., que se encontrava, segundo disse, ao balcão a beber), tendo estado presente ainda a testemunha U.... (companheira do arguido, que ali foi chamada por telefone por este, por causa de imputações que eram feitas pelas testemunhas R..., M... e L..., como adiante melhor se concretizará)

As declarações do arguido mostraram-se credíveis, sendo compatíveis, na sua maior parte, com as “reconstituições” dos factos que se encontram a fls. 25 e seguintes e a fls. 232/253, aliás elaboradas de acordo com as indicações do próprio arguido.

Mas deve salientar-se, relativamente às declarações em audiência, e no que concerne ao modo como se aproximou da vítima e em que posição se encontrava ele e a vítima quando desferiu a facada, que nas aludidas reconstituições referiu encontrar-se sempre por detrás da vítima, incluindo no momento em que desferiu a facada, enquanto na audiência acabou por declarar que se colocou ao lado da vítima, sendo nessa posição que acabou por desferir o golpe da faca. E tal discrepância não é inócua, pois no primeiro caso a vítima sofre a facada sem sequer avistar o arguido, que e desfere estando atrás, e no segundo tem ainda a possibilidade de avistar o agressor antes de sofrer o golpe.

De qualquer modo, foi convicção do Tribunal de Júri que o arguido agiu conforme consta das reconstituições, já que estas resultam de declarações espontâneas, logo após os factos, merecendo a acrescida credibilidade decorrente dessa circunstância, e sendo certo que o acto, verdadeiramente subreptício, não foi presenciado por qualquer das testemunhas ouvidas em audiência. E a isto acresce o facto de resultar da perícia constante do relatório da autópsia (como adiante melhor se referirá), que o golpe foi desferido ligeiramente de trás para a frente.

Mas voltando ao período anterior, não há razões para duvidar das declarações do arguido relativamente ao então ocorrido, sendo certo que a conjugação dos depoimentos das testemunhas referidas (apesar de compreensivelmente omissivos no que respeita às testemunhas R..., L... e M..., quanto a provocações destes) com as declarações do arguido, acabam por confirmar a credibilidade destas, no essencial.

Assim, segundo o arguido, L... abordou-o, interpelando-o, sobre o facto de o arguido ter dito à R... e E... (vítima) que aquele ( L...) era cobarde. A tal interpretação, o arguido respondeu ao L... que não era verdade ter dito isso. Saíram então do café para falar cá fora, (o que foi confirmado pela testemunha N..., que até referiu ter dito a ambos para não fazerem barulho, e que se quisessem discutir que fossem para a rua), tendo logo aparecido no local a R..., a vítima e a mãe da R..., a testemunha M..., que logo disseram (todos) que o arguido era mentiroso, pois efectivamente chamara “cobarde” a L..., tendo-se então envolvido fisicamente (ele e o L...), agarrando-se ( o que foi confirmado pelo L... e tendo R... confirmado ter havido discussão e briga), sendo que o L... o prostrou no chão, manietando-o (o que L... confirmou), e largando-o quando surgiu um empregado do café que interveio. Entraram de novo no café, onde a R... e a vítima continuaram a chamar-lhe mentiroso (como também confirmou o L...), bem como a mulher do L... ( M...), enquanto iam sorrindo, troçando dele. Isto ocorreu antes da chegada da namorada dele ( U...), sendo certo que chegou pouco depois, mas entretanto continuavam os sorrisos, a palavra “mentiroso”(o que foi confirmado pela testemunha M...) e designações de “puta” à namorada.

Chegada a namorada dele, pois ele contactou-a telefonicamente nesse sentido (dizendo-lhe que estavam de novo a dizer mal dela e chamando-lhe “corno”), acabou por discutir com ela (o que a R... e a mãe confirmaram).

Entretanto as coisas continuaram com insultos e troças.

A namorada do arguido, U..., confirmou ter-se deslocado ao Bar, onde estava o arguido, por este a ter chamado. Quando chegou, o arguido disse-lhe, à frente de todos, que a R..., a vítima e o L... tinham acabado de dizer que ela era uma “puta” e ele um “corno”, sendo que então começaram a vítima e a R... a rir-se, e, dirigindo-se a eles (ela e o arguido), disseram “És uma grande puta – e tu, EE..., és um grande corno”.

A testemunha O..., que disse ter assistido aos factos nesta altura, confirmou que a U... lá se encontrava, e que foram dirigidos insultos ao arguido e o seu irmão, a testemunha P..., que segundo disse assistiu a esta parte dos factos, confirmando lá estar a namorada do arguido, a U..., tendo visto o L... provocar o arguido com expressões tais como “és um preto, és um corno, filho da puta”, e sendo certo que o L... se mostrava agressivo, e tendo chegado a apontar-lhe uma faca (circunstância que o arguido também referiu, dizendo no entanto tratar-se de uma navalha), tendo dito “com esta já cortei a orelha a um preto e não me importo de voltar a cortar” (frase esta que o arguido também referiu).

Conforme se referiu, a conjugação destes elementos de prova foi a principal base da prova do facto 1) da acusação, bem como dos factos 13) a 16) da contestação.

As declarações do arguido quanto aos factos 2) a 5) da acusação, igualmente se mostraram credíveis, (sendo de resto confirmadas pela companheira U... quanto ao facto 2), salvo no que se refere à finalidade de trazer a faca, pois não foi feita qualquer prova de que tal acontecesse por causa do receio de novos desentendimentos, já que se assim fosse o arguido não a deixaria escondida debaixo do tapete a vários metros do bar, visto que, a verificar-se tal hipótese, teria de ter a faca consigo. Na verdade, não se descortina a razão pela qual o arguido “guardou” a faca longe do bar, a menos que fosse pelo facto de a mesma lhe não ser vista no bolso… o que, sendo plausível, todavia não se mostra sustentado por qualquer meio de prova. O certo é que é indubitável que pretendia utilizá-la, ou pelo menos admitia ter de a utilizar, de outro modo não a teria trazido. E o certo é que a utilizou, como ele próprio admitiu e confessou, nos termos referidos nos factos 6) (bem como 17) da contestação), 7) e 8) com as consequências descritas nos factos 9) e 10).

De salientar que a credibilidade das declarações do arguido quanto à materialidade dos factos, é reforçada pelo teor do relatório pericial de fls. 264 e seguintes, que foi determinante como elemento de prova, pois aí se refere, confirmativamente, que da análise dos vestígios, designadamente o vestígio nº 1 (pingos de sangue), se pode concluir ser aquele o exacto local onde ocorreu a agressão (perto da casa de banho), justamente como o arguido indicara.

Quanto aos factos 9) e 10) relevou também o Relatório pericial da autópsia de fls. 212/215, bem como os exames periciais de fls. 128/139 e 144/149. Relevantes quanto ao relatório da autópsia, foram também os esclarecimentos do Sr. Perito médico, Dr. Q..., que mais adiante melhor serão enquadrados, a propósito do elemento subjectivo do crime.

Das declarações do arguido e dos depoimentos das testemunhas R..., L... e M..., resultou também que o arguido pretendeu falar com L..., tendo-se mesmo dirigido à sua residência, isto já após ter ocultado a faca debaixo do tapete. Nessa altura encontrou a vítima e a testemunha R... nas escadas, tendo estes seguido no seu encalço na direcção da casa de L.... Quem abriu a porta foi a testemunha M..., que logo referiu ao arguido que o marido ( L...) o não iria atender, tendo surgido o próprio L..., que já se encontrava de pijama e recusou, por esse facto, acompanhar o arguido ao Bar, para onde o mesmo o convidara para conversar.

Mas verdadeiramente não se apurou que este convite pudesse ter algum significado, mesmo em face do ocorrido posteriormente, sem olvidar que o arguido já então ocultara a faca no rés-do-chão e foi de seguida que convidou a testemunha L... a descer para com ele conversar no bar…

Estando o arguido no Bar, aí chegaram de novo a vítima e a testemunha R..., que, segundo o arguido, continuaram com os sorrisinhos e ditos provocadores, tendo mesmo a R... dado um encontrão nele ao passar junto de si.

E foi então que o arguido decidiu ir buscar a faca, regressou ao Bar e dirigiu-se à vítima pelas costas desta, sem que esta se apercebesse da sua aproximação, pois se encontrava perto de uma coluna, encostada, e desferiu o golpe fatal, brandindo a faca de cima para baixo e ligeiramente da trás para a frente, como claramente resulta do relatório da autópsia de fls. 212/215, das fotos de fls. 520/523, do documento explicativo junto em audiência pelo Sr. Perito médico que procedeu à autópsia e dos esclarecimentos deste Sr. Perito, que não deixaram margem para qualquer dúvida sobre a intenção do arguido de matar a vítima.

E segundo as testemunhas R..., L... e M..., o arguido ainda se dirigiu na direcção da R..., com a faca na mão, tendo então sido prostrado e manietado pela testemunha L...

Não teve o Tribunal de Júri quaisquer dúvidas de que a actuação do arguido é, toda ela, livre voluntária e consciente, o que resulta evidenciado ante a concreta actuação e ante os incontornáveis dados objectivos que resultam dos autos e da discussão da causa.

É fora de dúvida que se encontra apurado que:

- O arguido trouxe a faca de sua casa, com intenção de a utilizar.

- Ocultou-a debaixo de um tapete do rés-do-chão do prédio da sua residência, que era o mesmo onde, num piso superior, vivia a namorada da vítima ( R...), o padrasto desta ( L...) e a sua mãe ( M...), sendo que a vítima também frequentava esta residência.

- Foi de novo provocado pela vítima e namorada quando se encontrava de novo no Bar e após a chegada daqueles.

- Foi então buscar a faca e dirigiu-se de novo ao Bar, sabendo o local onde a vítima se encontrava.

- Aproximou-se da vítima pelas costas desta, sem que a mesma se apercebesse dessa aproximação.

- Quando se encontrava junto à vítima, junto das costas desta, desferiu um golpe com a faca, levantando a mão onde a mesma se encontrava, e fazendo-o de cima para baixo e ligeiramente de trás para a frente (o que indica que então se encontrava pelas costas da vítima).

- Fê-lo no pescoço da vítima, local que todas as pessoas sabem ser um dos que mais probabilidades apresenta de causar a morte, sendo certo que é irrelevante que o golpe tenha sido pouco profundo, uma vez que a simples “degola”, já com toda a probabilidade produziria o mesmo resultado fatal.

- Manteve a faca na mão, saindo com ela para o exterior, aí pretendendo dirigir-se à testemunha R..., do que foi impedido pela testemunha L....

- Não existia qualquer confronto que pudesse determinar um golpe acidental, pois a vítima encontrava-se distraída e não dera pela aproximação do arguido.

Ora estes dados, verdadeiramente incontornáveis, porque apurados sem margem para dúvidas, permitem, atentas as regras da experiência, a ilacção da qual se infere, sem margem para qualquer dúvida razoável, que o arguido quis matar a vítima. De outro modo, em circunstâncias de não haver terceiros presentes, ou, como a que neste caso se verificou, em que ninguém parece ter “reparado” sequer no facto de a vítima ter sido atingida, ver-nos-íamos na inevitabilidade de que só a confissão do arguido pudesse levar à prova do facto, o que implicaria, na generalidade dos casos, a impossibilidade material de prova dos elementos subjectivos de todo e qualquer crime.

Para tanto, apontou a faca (de lâmina afiada e larga) a uma zona onde se encontram órgãos vitais (facto que é do conhecimento de qualquer pessoa, independentemente dos nomes desses órgãos ou das suas características de natureza anatómica) numa posição de baixo para cima e de trás para a frente, a qual, atenta a largura da lâmina, não deixaria de atingir esses órgãos vitais do corpo da vítima, como salientou o Sr. perito médico.

Ora, para tanto, o arguido teria de empunhar a faca de forma determinada e escolher o direccionamento do golpe, o que teve tempo para fazer, dado que a vítima não dera pela sua presença. E se apenas pretendesse ferir, tinha à sua frente os braços e o tronco da vítima, bem como as pernas.

Assim, estas constatações, de modo algum foram abaladas pelas declarações do arguido no sentido de que não quis matar a vítima, pois os dados objectivos são verdadeiramente incontornáveis e claramente reveladores da intenção de matar.

Não teve assim o Tribunal de Júri quaisquer dúvidas em considerar que o arguido quis matar E..., nas circunstâncias referidas nos factos em análise.

Os factos apurados, revelam também que o arguido estava concentrado em matar a vítima e que agiu em conformidade, pois direccionou o golpe no sentido mais apto a produzir aquele resultado.

Quanto aos factos da contestação incidentes sobre as características pessoais do arguido, foram determinantes, além do teor do Relatório Social de fls. 499/501, os depoimentos das testemunhas F.... e G...., professores da escola tecnológica de Pedrógão Grande, que evidenciaram as suas qualidades de humildade, obediência e respeito pelas regras, não deixando porém G... de salientar que o arguido tinha problemas de assiduidade (o que não faz dele um aluno exemplar – e daí a não consideração de provado neste segmento e no da participação em todas as actividades lectivas)

Foi também relevante o depoimento do padre H...., que realçou o carácter pacífico e humilde do arguido, bem como das testemunhas I... e J.... (que foram patrões do arguido), que salientaram as qualidades de trabalho e a apetência para ajudar quem precisa, por parte do arguido.

Todas estas testemunhas referiram ter sido com surpresa que tomaram conhecimento dos factos dos presentes autos, dado o carácter pacífico e avesso a conflitos que sempre manifestou.

No que concerne à ausência de antecedentes criminais, foi relevante o CRC de fls. 493.

Relevaram ainda, do ponto de vista documental, o auto de apreensão de fls. 48, o Boletim de entrada no Centro de Saúde de fls. 52, o exame pericial de inspecção de fls. 128/139, o Relatório pericial de fls. 144/149, e o auto de exame directo de fls. 150.

Quanto aos factos provados do pedido de indemnização civil, os mesmos resultam do conjunto da prova já mencionada (como também sucede no caso dos factos 124 a 128) e dos depoimentos das testemunhas W... (amigo da vítima desde crianças), K...(irmão da vítima), e Y... (irmã da esposa da vítima).

Certo é que estas testemunhas enfatizaram relações de especial carinho entre a vítima e a esposa, o que não parece resultar do facto de a vítima manter uma relação de “namoro” com a testemunha R..., e daí que esse segmento tenha sido considerado não provado, já que estas testemunhas, atentas as relações de amizade, de parentesco e de afinidade existentes, depuseram de forma visivelmente interessada e pouco isenta, contrariamente a factos objectivos que o Tribunal não podia descurar.

Mas mesmo considerando aquela constatação, não podia o Tribunal, tendo em conta as regras da experiência, deixar de considerar provada tristeza e desgosto que para os filhos e mulher representa a perda do pai e do marido, para mais nas circunstâncias ocorridas.

Documentalmente, foram relevantes o recibo de vencimento da vítima de fls. 356 e a escritura de habilitação de herdeiros de fls. 337.

Quanto aos factos não provados, ou não foi feita qualquer prova sobre os mesmos, ou resultaram provados factos divergentes ou contrários, sendo certo que, ao longo da motivação já foram explanadas, em relação à grande maioria dos mesmos, as razões da sua consideração como não provados.


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3. Apreciação

3.1. Nulidade do acórdão

O comando legal do art. 374º, n.º2 do CPP, obrigando à enumeração dos factos provados e não provados, refere logo a seguir, quanto aos fundamentos, que a exposição deve ser “tanto quanto possível completa, ainda que concisa”.

E, como tem decidido o STJ – v. entre outros: Ac. STJ de 15.01.1997, na CJ/STJ, tomo I/97, p. 181; Ac. STJ de 05.02.1998, publicado na CJ/STJ, tomo I/98, p. 189; Ac. STJ de 11.02.1998, BMJ 474º, p. 151; Ac. STJ de 02.12.1998, publicado na CJ/STJ, tomo III/98, p. 229 - a elencação dos factos provados e não provados refere-se apenas aos factos essenciais à caracterização do crime e circunstâncias relevantes para a determinação da pena e não aos factos inócuos, mesmo que descritos na contestação.

Daí que, como expressivamente, refere o Ac. STJ de 12.03.1998, BMJ 475º, p. 233, “o art. 374º, n.º2 do CPP não exige, relativamente aos factos não provados a mesma minúcia que preside à indicação dos factos provados, tendo o tribunal que deixar bem claro que foram por ele apreciados todos os factos alegados, maxime na contestação com interesse para a decisão”.

O que importa é que da conjugação da matéria da acusação e da defesa, resulte claro que o tribunal apreciou os factos relevantes aduzidos por uma e por outra relevantes para a decisão a proferir. Ou ainda que sejam a afirmação e a negação do mesmo “recorte de vida”, enquadrar a perspectiva da defesa, por referência à acusação que contesta, dentro do escopo do processo, o apuramento ou descaracterização dos pressupostos do crime imputado ao arguido.

No caso, tendo como pano de fundo a discordância manifestada quanto à decisão da matéria de facto relativa ao propósito com que o arguido trouxe a faca, de casa e a escondeu debaixo do tapete do prédio e à intenção com que ali a foi buscar, depois, e a utilizou, invoca o recorrente diversas Nulidades do acórdão recorrido.

Alega o recorrente (cfr. conclusão 25) que o acórdão não conheceu (devendo aditar-se aos factos provados) da matéria indicada nas conclusões precedentes - 20-23. Ou seja, em resumo, que “se quisesse tirar a vida não teria desferido um só golpe; saiu para a rua, foi agredido pelo L..., e ficou no local a aguardar a chegada das autoridades, avistando a vítima sair do local ainda com vida”.

Como emerge da sua motivação probatória, supra reproduzida, o acórdão recorrido procede não só ao enunciado, exaustivo, dos meios as provas que teve por relevantes, como procede ainda à sua apreciação crítica, em função da natureza objectiva da acção, da razão de ciência dos autores dos depoimentos prestados em audiência, do seu interesse objectivo no resultado do processo, enfim da credibilidade que mereceu cada um deles. Apreciando, nessa conformidade a questão da intenção de matar questionada pelo recorrente. Aliás, questionando-a, o recorrente evidencia que bem compreendeu essa motivação.

A restante matéria não constitui matéria de facto da acusação ou da contestação. Nem integra elementos do tipo de crime ou circunstâncias impeditivas ou modificativas – aliás trata-se de circunstâncias posteriores à prática do facto típico e não à fase de formação da vontade / propósito, anterior ao facto. Tratando-se, antes, de considerações sobre a valoração da prova a ponderar em sede própria.

Improcede, pois, manifestamente, a arguida nulidade por omissão de pronúncia sobre facto relevante.

Na conclusão 28 invoca a nulidade com fundamento nos artigos 358-359 do CPP alegando que “inclui factos desfavoráveis ao arguido que não constam da acusação”.

Os invocados factos desfavoráveis são os descritos nas conclusões 27 e 29, supra reproduzidos.

Ora, percorrendo a matéria de facto dada como provada, verifica-se que aquela matéria, ao contrário do alegado, não consta do elenco da matéria dada como provada.

Pelo contrário, trata-se de considerações tecidas na motivação probatória – cfr. páginas 22-24 do acórdão recorrido. O que acaba por ser reconhecido, aliás, pelo recorrente nas conclusões 26 e 29.

Por outro lado, a decisão recorrida aprecia apenas matéria da acusação e da contestação.

Inexistindo, assim, qualquer nulidade por excesso de pronúncia.

No que toca, especificamente, às referências efectuadas pelo recorrente à largura da lâmina da faca, cumpre salientar que a faca foi apreendida a fls. 48 dos autos e as suas características não foram questionadas em sede de discussão da prova.

Por outro lado, a largura da lâmina, ao contrário do que parece supor o enunciado da motivação do recurso, não constitui matéria que tenha sido dada como provada pela decisão recorrida. Trata-se, mais uma vez de meras considerações, abstractas, efectuadas na motivação probatória da decisão recorrida, a reapreciar em sede própria.

No que se refere à nulidade invocada na conclusão 33, verifica-se que, além de não constituir matéria constante nem da acusação ou da contestação, foi considerada expressamente no acórdão recorrido quando refere “(…)o facto de ter sido provocado por várias pessoas, designadamente a vítima”.

A nulidade invocada na conclusão 34 reporta-se à matéria descrita na conclusão 33.

Trata-se, mais uma vez, de matéria que não foi alegada nem na acusação nem na contestação nem é relativa ao facto ilícito, circunstâncias impeditivas ou modificativas. Constituindo, pelo contrário, meras referência - efectuadas na motivação probatória/análise crítica dos meios de prova - a meios probatórios produzidos, com relevo, aliás, para a matéria de facto favorável ao recorrente, dada como provada sob os pontos 13 a 16.

Improcedem assim as invocadas nulidades.

*

3.2. Recurso da matéria de facto

Os tribunais da relação conhecem de facto e de direito – art. 428º do CPP.

A decisão da matéria de facto pode ser impugnada/sindicada com fundamento nos vícios do art. 410º, n.º2 do CPP ou com base na efectiva reapreciação dos meios de prova, nos termos previstos nos artigos 431ºdo CPP.

Os vícios do art. 410º têm como campo de aplicação privilegiado os casos em que o tribunal de recurso carece de competência para a reapreciação da matéria de facto (“nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito” diz o corpo do n.º2 do preceito). Designadamente os casos em que, na versão originária do CPP havia recurso “per saltum” da decisão do tribunal colectivo para o Supremo Tribunal, no regime da chamada “revista alargada”.

Com efeito, nos casos previstos no n.º2 do art. 410º, não existe reapreciação da prova produzida. Trata-se de vícios que emergem da própria estrutura da decisão recorrida ou do mero confronto da mesma com as regras da experiência comum, sem necessidade de análise ou reapreciação dos meios de prova produzidos. Constituindo “vícios ao nível da lógica jurídica da matéria de facto, da confecção técnica do decidido, apreensíveis a partir do seu texto, a denunciar incoerência interna com os termos da decisão” – cfr. Ac. STJ de 07.12.2005, CJ-STJ, tomo III/2005, p. 224.Sendo, aliás, de conhecimento oficioso – cfr. Acórdão do STJ de para fixação de jurisprudência 19.10.1995, publicado no DR, I-A Série de 28.12.95.

Já no que toca ao recurso com base na reapreciação da prova, postula o art. 431º do CPP: Sem prejuízo do disposto no art. 410º, a decisão do tribunal e 1ªinstância sobre matéria de facto pode ser alterada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do art. 412º n.º3 do CPP.

No recurso com base na reapreciação dos meios de prova, ao contrário do que sucede com os vícios do art. 410º (aparentes, manifestos, de conhecimento oficioso) incide sobre o recorrente o ónus de identificar o erro apontado á decisão recorrida, como ainda o de o comprovar, especificando o conteúdo dos meios de prova tido por não valorado ou valorado erradamente pela decisão posta em crise, capaz de, numa apreciação conforme aos critérios legais em vigor, “impor” a revogação e/ou a substituição da decisão recorrida em conformidade com a pretensão formulada.

Com efeito, sobre a motivação do recurso com base na reapreciação da prova, dispõe o art. 412º do CPP (redacção introduzida pela Lei 48/2007 de 29.08):

(…)

3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

4. Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado em acta, nos termos do disposto no n.º2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.

O recurso não se confunde, como sucede na praxis diária, com um novo ou segundo julgamento da mesma coisa. Constituindo antes o instrumento para obter a correcção de erros de procedimento ou de julgamento – concretos, identificados e comprovados, com base numa argumentação minimamente persuasiva, na motivação do recurso – cometidos na decisão recorrida.

Com efeito, parafraseando Cunha Rodrigues (Jornadas de Direito Processual Penal, Centro de Estudos Judiciários, p. 387) “Como remédios jurídicos os recursos não podem ser utilizados com o único objectivo de melhor justiça. O recorrente tem que indicar expressamente os vícios da decisão recorrida. A motivação dos recursos consiste exactamente na indicação daqueles vícios que se traduzem em erros in operando ou in judicando. A pretensa injustiça imputada a um vício de julgamento só releva quando resulta de violação de direito material. Esta natureza dos recursos justifica, por outro lado, que se lhes aplique o princípio dispositivo e que se reconheça às partes um importante papel conformador”.

O recurso com base no disposto no art. 431º do CPP poderá ter como fundamento:

- a atribuição, pelo tribunal recorrido, aos meios de prova convocados como suporte da decisão, de conteúdo diverso daquele que efectivamente têm ou daquele que foi realmente produzido em audiência; ou

- a violação de critérios legais de valoração e apreciação da prova incorporada nos autos ou produzida oralmente em audiência): - pela valoração de meios de prova ilegais ou nulos; - pela violação de critérios de apreciação da prova vinculada (vg. prova documental e pericial) - pela violação de princípios gerais de apreciação da prova, designadamente o princípio da livre apreciação previsto no art. 127º do CPP e o princípio in dubio pro reo.

A reprodução da gravação dos depoimentos, no tribunal de recurso, como instrumento de garantia/comprovação da genuinidade dos mesmos e da eventual divergência entre o conteúdo material do depoimento prestado em audiência e o pressuposto na decisão recorrida, apenas tem sentido no caso de, segundo a motivação do recurso, a decisão recorrida ter atribuído, aos depoimentos prestados oralmente em audiência, conteúdo/afirmações relevantes, materialmente diversas daquelas que foram efectivamente produzido em audiência. Afinal quando o fundamento do recurso é o de que a testemunha ou o depoente afirmou em audiência “coisa” materialmente diversa daquela que é reportada/valorada como suporte da decisão recorrida e que, como tal, inquinou a decisão, impondo, por isso, a sua correcção pelo tribunal de recurso. Pois que, como instrumento de reprodução, apenas permite corrigir erros de “audição” do tribunal recorrido.

Competindo ao recorrente, em tal situação, especificar as “passagens” que confirmam a apontada desconformidade entre aquilo que foi dito em audiência e aquilo que foi valorado pelo tribunal recorrido como suporte da decisão impugnada.

A gravação (como instrumento de garantia da genuinidade dos depoimentos) nada adiantará quando o fundamento do recurso radica na violação de critérios de valoração – não reproduzidos pela gravação. Pois que, pela sua natureza, a gravação apenas reproduz e comprova o teor dos depoimentos gravados. Nada adiantando para efeito de apreciação da obediência aos critérios (legais) de ponderação/avaliação/valoração da prova - que resultam da lei e dos princípios gerais de direito processual penal.

Em termos de valoração material da prova, apesar da minuciosa regulamentação das provas efectuada pelo CPP, salvos os casos em que a lei define critérios legais de apreciação vinculada (vg. prova documental, prova pericial) vigora princípio geral de que a prova é apreciada de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador - art. 127º do Código de Processo Penal.

Liberdade de convicção não pode nem deve significar o impressionista-emocional arbítrio ou a decisão irracional “puramente assente num incondicional subjectivismo alheio à fundamentação e a comunicação” – cfr. Castanheira Neves, citado por Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 1, 43.

Pelo contrário, o princípio da livre apreciação da prova, conjugado com o dever de fundamentação das decisões dos tribunais, exige uma apreciação motivada, crítica e racional, fundada nas regras da experiência mas também nas da lógica e da ciência. Devendo ser objectivada e motivada, únicas características que lhe permitem impor-se a terceiros.

A livre convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque para a sua formação concorrem a actividade cognitiva e ainda elementos racionalmente não explicáveis como a própria intuição.

Esta operação intelectual, não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis) e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente — aqui relevando, de forma especialíssima, os princípios da oralidade e da imediação — e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo” - cfr. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss..

A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade: o juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o «agarrar» e, por outro, os limites que a ordem jurídica lhe marca - derivados da(s) finalidade(s) do processo (Cristina Libano Monteiro, “Perigosidade de inimputáveis e «in dubio pro reo»”, Coimbra, 1997, pág. 13).

Sendo certo que a certeza judicial não se confunde com a certeza absoluta, física ou matemática, sendo antes uma certeza empírica, moral, histórica – crf. Climent Durán, La Prueba Penal, ed. Tirant Blanch, p. 615.

O princípio in dubio pro reo constitui um princípio de direito relativo à apreciação da prova/decisão da matéria de facto. Princípio atinente ao direito probatório, como tal relevante em termos da apreciação da questão de facto e não na superação de qualquer questão suscitada em matéria de direito – cfr. entre outros Cavaleiro Ferreira, Direito Penal Português, 1982, vol. 1, 111, Figueiredo Dias Direito Processual Penal, p. 215, Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, 1967-1968, p. 58. Constituindo um princípio geral de direito (processual penal) cuja violação conforma uma autêntica questão-de-direito – Cfr. Medina Seiça, Liber Discipulorum, p. 1420; Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 1974, p. 217 e segs.), criticando o entendimento contrário do STJ.

A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, argumentada, coerente, razoável – neste sentido, Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (19966), p. 25.

De onde que o tribunal de recurso “só poderá censurar o uso feito desse princípio (in dubio) se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a esse estado escolheu a tese desfavorável ao arguido” – cfr. AC. STJ de 02.05.1996, CJ/STJ, tomo II/96, p. 177. Ou quando, após a análise crítica, motivada e exaustiva de todos os meios de prova validamente produzidos e a sua valoração em conformidade com os critérios legais, é de concluir que subsistem duas ou mais perspectivas probatórias igualmente verosímeis e razoáveis, havendo então que decidir por aquela que favorece o réu.

Assim, mais do que uma limitação da livre convicção pela dúvida razoável, o critério da livre apreciação e o critério da dúvida razoável é o mesmo, têm o mesmo cerne - que há-de orientar “o fio da navalha” da decisão judicial sobre a prova do facto: a livre apreciação exige a convicção para lá da dúvida razoável; e o princípio in dubio pro reo impede (limita) a formação da convicção em caso de dúvida razoável. Em ambos os casos, após a produção de toda a prova e da sua valoração em conformidade com os critérios de apreciação vinculada e, na falta deles, numa apreciação motivada, razoável, objectiva e racional.

No que toca especificamente à prova produzida oralmente em audiência – campo privilegiado de aplicação do critério do art. 127º do CPP - assume a maior relevância o princípio da oralidade e imediação, na plenitude da discussão cruzada, no exercício amplo do contraditório. Princípio que enfatiza a constatação de que o tribunal de recurso não procede a um novo julgamento mas apenas procede à sindicância de um julgamento previamente realizado em 1ª instância, na plenitude da audiência, nos termos supra identificados. Sabendo-se a voz apenas representa uma perspectiva parcelar do processo global da comunicação entre as pessoas.

Daí que “só os princípios da oralidade e da imediação permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. E só eles permitem uma plena audiência desses mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na declaração do direito do caso” – Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, p. 233-234.

Como pondera criteriosamente Germano Marques da Silva (in Revista Julgar, n.º1, Janeiro-Abril 2007 p.150) “Nem sequer parece importante o registo audiovisual da prova, porque no recurso não está em causa o princípio da livre convicção do julgador, mas apenas a correcção de julgamento em função das provas produzidas em audiência. Não se trata tanto da interpretação de provas produzidas, mas da comprovação de que o juízo se fundou nas provas produzidas ou examinadas em audiência”.

Assim, os julgadores do tribunal de recurso, a quem está vedada a oralidade e a imediação, apenas poderão afastar-se do juízo efectuado pelo julgador da 1ª instância, naquilo que não tiver origem naqueles dois princípios, ou seja quando a convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum, reconduzindo-se assim o problema, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o art. 347º, n.º2 do CPP – Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, p. 126 e 127, que por sua vez cita o Prof. Figueiredo Dias – jurisprudência uniforme desta Relação, designadamente acórdãos 19.06.2002 e de 04.02.2004, nos recursos penais 1770/02 e 3960/03; 18.09.2002, recurso penal 1580/02; 13.02.2008, recurso 76/05.4PATNV.C1 2º Juízo Torres Novas. Como decidiu, entre outros, o Acórdão da Relação de Coimbra de 06.03.2002, publicado na CJ, ano 2002, II, 44.... “quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face ás regras da experiência comum”.

No caso, como se vê da motivação probatória do acórdão recorrido, supra reproduzida, aquele procede não só à enunciação de todo o acervo probatório produzido, como ainda à sua apreciação crítica minuciosa e exaustiva – em obediência ao dever de motivação de toda a decisão judicial, em especial a sentença, cume e síntese de todo o procedimento.

Impondo-se, pois, para a revogação da decisão que repousa na aludida motivação, que seja demonstrada a ilegalidade de meio de prova convocado, o erro de algum dos seus pressupostos, ou a inconsistência material da sua valoração.

Alega o recorrente que foi incorrectamente julgado provado tenha trazido de casa e colocado debaixo do tapete do prédio a faca de cozinha "com a finalidade a poder utilizar", devendo antes ser dado como provado “que trouxera a faca para se sentir mais seguro, atendendo à situação anteriormente ocorrida.

Invocando como fundamento: “face à sua confissão”.

Na mesma perspectiva impugna parte da matéria descrita sob o ponto 7) com o fundamento de que o arguido apenas reconheceu que se dirigiu à vítima pela retaguarda e nenhuma prova foi feita de o fez de forma lenta e com vista a evitar que a vítima se apercebesse da sua presença ou se pudesse defender.

A perspectiva do recorrente pressupõe que os factos de natureza psicológica apenas pudessem ser provados pela “confissão” do próprio agente – o que, por absurdo, levaria a que, negando o visado, nunca pudessem ser provados.

No entanto, é conhecida a clássica distinção entre prova directa e prova indirecta ou indiciária – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Curso de Processo Penal, 3ª ed., II vol., p. 99.

A prova indirecta ou indiciária, incide sobre factos diversos do tema de prova mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar. Exigindo um particular cuidado na sua apreciação no sentido de que apenas se pode extrair o facto probando (no caso a intenção) do facto indiciário (no caso a facada no pescoço da vítima) quando sejam afastadas outras hipóteses igualmente possíveis – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 3ª ed., II vol., p. 100/1001.

Aliás a associação que a prova indiciária entre elementos de prova objectivos e regras objectivas da experiência leva alguns autores a afirmarem a sua superioridade perante outros tipos de provas, nomeadamente a prova directa testemunhal, onde também intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será mais perigoso de determinar, qual seja a credibilidade do testemunho – cfr. Mittermayer Tratado de Prueba em Processo Penal, p. 389.

Sendo a prova por concurso de circunstâncias absolutamente indispensável em processo Penal, posto que, se a mesma fosse excluída, ficariam na mais completa impunidade um sem fim de actividades criminais – cfr. FRANCISCO ALCOY, Prueba de Indicios, Credibilidad del Acusado y Presuncion de Inocencia, Editora Tirant Blanch, Valencia 2003, p. 25; CARLOS CLIMENT DURÁN, La Prueba Penal, ed. Tirant Blanch p. 626 e segs., em especial p. 633.

Ainda que às afirmações do recorrente fosse atribuído o valor de prova plena por “confissão”, as mesmas não tornam impossível a versão do facto dada como provada (sentir-se seguro nunca impede a utilização, pelo contrário, se a faca não estivesse em condições de ser utilizável seria inadequada a conferir qualquer sentimento de segurança). Do mesmo modo a aproximação de forma lenta para que a vitima dele não se apercebesse, não é infirmada pelas declarações do recorrente de que a aproximação à vítima foi feita pela retaguarda. Pelo contrário, em termos de normalidade e senso comum, quem se aproxima por trás, com uma faca na mão, em disposição de ofender, actua de forma cautelosa e não quer nem tem interesse em ser visto, para que a vítima não possa, de alguma forma, frustrar a acção em curso.

Por outro lado, o tribunal não está vinculado – logo pelo absurdo - a qualquer critério de ter que aceitar, como verdade suprema, todas as afirmações do arguido, em bloco.

No que toca à valoração do depoimento, como ensina o Prof. Enrico Altavilla (Psicologia Judiciária, vol. II, Coimbra, 3ª ed., pág. 12), "o interrogatório como qualquer testemunho, está sujeito à critica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras".

Ora, no caso, o arguido, quando foi buscar a faca a casa e a colocou debaixo do tapete de entrada do prédio, não podia deixar de ter uma qualquer finalidade de possível utilização – de outro modo não se tinha dado ao trabalho de levá-la de casa e guardá-la debaixo do tapete. E, quando foi retirá-la debaixo do tapete não podia deixar de ser para aquela finalidade com a qual a utilizou, logo de imediato.

A mesma fragilidade e insipiência enferma a pretensão do recorrente quanto à “intenção de se defender”, uma vez que não estava em curso qualquer acção, muito menos de ataque, que carecesse de defesa. Muito menos com necessidade ou adequação à utilização da faca - que nem sequer estava ao alcance da mão, tendo o recorrente que se afastar para ir buscá-la debaixo do tapete onde a tinha, preparada para a acção. Tanto mais que quer E... quer R... apenas tinham – no pretérito - dirigido palavras ao recorrente das quais nunca se poderia defender, muito menos com uma faca, menos ainda dirigida ao pescoço da vítima.

Aplicam-se no que toca à questionada “intenção de matar” as considerações tecidas acerca da “finalidade de poder utilizar” a faca.

Acrescentando-se que constitui conhecimento primitivo, intuitivo, que o pescoço – onde passam, quase “à flor da pele”, veias jugulares, artérias carótidas, de irrigação do cérebro, a traqueia - constitui uma das zonas mais vulneráveis do corpo. Sendo o ponto escolhido para o ataque por muitos dos predadores até das espécies animais irracionais. Ciência elementar que o arguido, que se deu ao cuidado de se prevenir com a faca e mantê-la por perto, a recato, para dela se prevalecer quando se revelasse oportuno, não podia deixar de ter.

Carece ainda de fundamento a asserção (conclusão 15) de que resulte ou possa resultar dos depoimentos referenciados nas conclusões 13 e 14 pudesse resultar “que ao desferir o único golpe referido em 8) do douto Acórdão, o arguido não pretendeu causar a morte ao E..., até porque se o tivesse atingido 2 cms. ao lado não teria ocorrido a morte, disse o senhor perito”.

Quer porque nenhuma das testemunhas nem o perito tinham qualquer possível razão de ciência do que pudesse ir no pensamento do arguido. Quer porque a afirmação é em si mesma capciosa -dependendo, desde logo da direcção em que se medissem os 2 cm. (na horizontal ou na vertical, ao alto ou ao lado?). Sendo certo que o movimento da mão a empunhar a faca e utilizá-la em disposição de atingir a vítima no pescoço é virtualmente impossível medir ao centímetro o ponto exacto de penetração. Além de que os grandes vasos sanguíneos seguem na vertical e o movimento da mão – de homem para homem, visando um o pescoço do outro – é, naturalmente, de sentido horizontal, a “varrer” o pescoço.

O mesmo se diga no que toca à conduta superveniente do arguido. Quer porque nenhuma atitude tomou que evidenciasse uma intencionalidade diversa daquela acabada de consumar quer porque, consumado o acto, não fazia sentido repeti-lo.

Assim, não só o recorrente os fundamentos invocados pelo recorrente não são adequados a impor decisão diferente da recorrida, como esta se mostra consonante com a actuação do recorrente, numa apreciação racional e objectiva, de acordo com o princípio enunciado no art. 127º do C.P.P.

Impondo-se, pois a improcedência do recurso em matéria de facto.

3.3. Em matéria de direito sustenta o recorrente, por um lado, a verificação, apenas, do crime de crime de ofensa à integridade física agravado pelo resultado não previsto pelo agente. Ou a imputação do crime de homicídio a título de mero dolo eventual.

E ainda a improcedência do pedido cível “em função da decisão que for proferida em matéria criminal”.

Tais perspectivas têm como pressuposto e fundamento a prévia modificação da matéria de facto provada nos termos invocados pelo recorrente (“com as alterações acima indicadas”, “em função da decisão que for proferida”).

No pressuposto de que não resultasse provada a intenção de matar, mas apenas a de ofender corporalmente a vítima e a morte tivesse sobrevindo, sendo não obstante imputável a título negligente -crime preterintencional. Ou que o agente não tivesse previsto a morte como consequência directa da sua conduta.

Ora nenhuma daquelas premissas se verifica, conforme apreciação já efectuada em sede própria.

Assim, a improcedência da premissa arrasta, inexoravelmente, a das conclusões que a têm como único e exclusivo pressuposto.

3.4. No âmbito da pena, sustenta o recorrente, em suma que “a pena ser reduzida para o limite mínimo previsto para o tipo legal de crime, tanto mais que, atendendo aos factos provados que depõem favoravelmente ao arguido, só ligeiramente aflorados na decisão sobre a escolha da pena, mas que constam de 18) a 40) do factos provados, muitas circunstâncias depõem a seu favor, atendendo, ainda ao circunstancialismo de provocações, injúrias e ofensa à integridade física reiteradas e persistentes de que foi alvo, por parte do vítima e/ou de terceiros que a acompanhavam previamente à prática dos factos”.

Ora, cumpre salientar que o recorrente não foi condenado por qualquer das 3 circunstâncias qualificativas do crime pelas quais vinha acusado, o que a motivação do recurso parece ignorar.

O recorrente vem condenado – apenas – pelo crime de homicídio (simples), p. pelo art. 131º do Código Penal.

Cuja moldura abstracta da pena aplicável é de prisão de 8 a 16 anos.

Depois de enunciar e aprofundar os critérios definidos pelo artigo 71º do C.P., pondera a decisão recorrida:

Na determinação da medida da pena deve o Tribunal tomar em conta, como directrizes fundamentais, conforme imposição legal do nº 1 do artigo 71º do Código Penal, a culpa do agente e as exigências de prevenção, mas sempre com observância plena do princípio da proibição da dupla valoração, devendo ainda tomar em consideração, entre outros, os diversos factores enunciados no nº 2 da norma acabada de enunciar.

Desfavoravelmente ao arguido impõe-se considerar:

- a sua actuação com dolo directo, que é o mais elevado grau de censura jurídico-penal;

- a intensidade do grau de ilicitude da sua conduta, acima do médio;

- o ter agido de modo insidioso e apanhado a vítima à “queima-roupa”, sem esta, que estava desprevenida, ter qualquer hipótese de reagir;

- a persistência na ideia de não reconhecimento da gravidade da sua conduta, no que concerne ao elemento subjectivo do crime;

Favoravelmente ao arguido deve considerar-se:

- a sua idade já superior a 35 anos;

- a ausência de antecedentes criminais;

- o facto de ter sido provocado por várias pessoas, incluindo pela vítima;

- ter normalmente uma personalidade de estrutura equilibrada, assente no seu carácter pacífico e ordeiro, avesso a conflitos;

- gozar de estima, consideração e respeito na comunidade, particularmente em Pedrógão Grande;

- os seus hábitos de trabalho manifestados em empresas;

- que é pessoa altruísta, amigo de ajudar quem de tal necessite.

- a confissão da materialidade dos factos e o arrependimento manifestado.

Assim, num juízo de ponderação global, sem olvidar a grande gravidade dos factos, traduzida numa actuação insidiosa, mas tendo em conta a personalidade do arguido, entende o Tribunal de Júri adequado aplicar-lhe a pena de 12 (doze) anos de prisão”.

Daqui decorre que as circunstâncias favoráveis invocadas pelo recorrente, anteriores à prática do facto, foram ponderadas na decisão recorrida.

O art. 71º do CP estabelece o critério geral segundo o qual a medida da pena deve fazer-se “em função da culpa do agente e das exigência de prevenção”. Critério que é precisado depois no nº2, que estabelece: na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do agente ou contra ele. As circunstância a ter em conta são exemplificadas (“nomeadamente”) nas várias alíneas do citado nº2. Reconduzindo-se a três grupos ou núcleos fundamentais: factores relativos à execução do facto {alíneas a), b) e c) – grau de ilicitude do facto, modo de execução, grau de violação dos deveres impostos ao agente, intensidade da culpa, sentimentos manifestados e fins determinantes da conduta}; factores relativos à personalidade do agente {alíneas d) e f) – condições pessoais do agente e sua condição económica, falta de preparação para manter uma conduta lícita manifestada no facto}; e factores relativos à conduta do agente anterior e posterior a facto {alínea e)}.

O modo como estes princípios regulativos irão influir no processo de determinação do quantum da pena é determinado ainda pelo programa político-criminal em matéria dos fins das penas, que se reconduz a dois princípios, enunciados no art. 40º do C. Penal (redacção introduzida pela Reforma de 95): 1 A aplicação da pena... visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. 2. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

Disposição que consagra o entendimento mais recente do Prof. Figueiredo Dias sobre os fins das penas (cfr. Liberdade, Culpa e Direito Penal, Coimbra editora, 2ª ed., e Direito Penal Português, As Consequência Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, p. 227, este tendo já por referência o projecto que veio a ser plasmado no art. 40º da redacção actual do Código Penal): “A justificação da pena arranca da função do direito penal de protecção dos bens jurídicos; mas esta função de exterioridade encontra-se institucionalmente limitada pela exigência de culpa e, assim, por uma função de retribuição como ressarcimento do dano social causado pelo crime e restabelecimento da paz jurídica violada; o que por sua vez implica a execução da pena com sentido ressocializador – só assim podendo esperar-se uma capaz protecção dos bens jurídicos”.

A prevenção geral, no Estado de Direito, por se apoiar no consenso dos cidadãos, traduz as convicções jurídicas fundamentais da colectividade, e coloca assim a pena ao serviço desse sentimento jurídico comum; isto significa que ela não pode ser aplicada apenas para intimidar os potenciais delinquentes mas que, acima de tudo, deve dar satisfação às exigências da consciência jurídica geral, estabilizando as suas expectativas na validade da norma violada.

A moldura penal aplicável ao caso concreto (“moldura de prevenção”) há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente; entre tais limites encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social.

No caso, o grau de ilicitude, apesar de a vítima ter apelidado de mentiroso e esboçado um sorriso trocista, surge como muito elevado, uma vez que aquela actuação tinha cessado, o arguido teve que se afastar para ir buscar a faca debaixo do tapete, aproximou-se da vítima pelas costas e atingiu-a com um golpe certeiro e preciso.

No âmbito da culpa, além de ter actuado com o grau mais intenso de dolo (directo), tinha-se preparado para o acto, já após um desentendimento com a vítima, teve tempo de reflexão enquanto tomou banho, regressou trazendo a faca que escondeu por perto, e manteve a resolução enquanto foi buscá-la e fez uso da mesma. Além de que o recorrente nunca assumiu uma postura de censura do facto – tentando, pelo contrário, negar a intenção ínsita na objectividade da facada cravada no pescoço, actuando o arguido em liberdade e estado de consciência.

Assim, em conclusão, mantendo-se os pressupostos fácticos da decisão recorrida e não sendo rebatidos os seus fundamentos jurídicos, atento o grau de ilicitude e de culpa, bem como as necessidades de protecção dos bens jurídicos tutelados, de restabelecimento da confiança da comunidade na protecção da norma violada, a pena concreta aplicada, a meio da moldura, a pecar pecaria seguramente por defeito que não por excesso.

Pelo que se impõe a improcedência do recurso, também neste ponto.

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III.

Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso, com a consequente manutenção integral do acórdão recorrido. ----

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UC

Belmiro Andrade (Relator)

Abílio Ramalho