Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
395/09.0TBLRA–C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
QUALIFICAÇÃO
Data do Acordão: 04/20/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS.185º, 186º E 189º DO CIRE
Sumário: I - A verificação, através dos correspondentes factos, das situações previstas no n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, determina a qualificação da insolvência como culposa, sem admissão de prova em contrário.

II - Já as situações do n.º 3 do mesmo artigo acarretam, tão-só, uma presunção juris tantum de culpa grave, passível, portanto, de ser ilidida mediante prova em contrário, de acordo com o disposto no artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil.

III - De qualquer forma, nestas hipóteses, a qualificação da insolvência como culposa depende da existência de um nexo de causalidade entre as situações previstas e a ocorrência da insolvência.

IV - O período de inibição para o exercício do comércio relativamente às pessoas afectadas pela qualificação da insolvência deve ser graduado em função da gravidade do seu comportamento e da sua relevância na verificação da situação de insolvência.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. Relatório:

            Declarada a insolvência de A (…), Lda., com sede na Rua (…) Leiria, e aberto o incidente de qualificação da insolvência com carácter pleno, veio o senhor administrador da insolvência juntar o parecer a que alude o n.º 2 do artigo 188.º do CIRE, onde concluiu pelo carácter culposo da insolvência, por violação do disposto na alínea i) do n.º 2 e da alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º do mesmo diploma, alegando, em síntese, que:

            Os gerentes da insolvente incumpriram de forma reiterada os deveres de apresentação e colaboração.

            Para recolha de elementos que lhe permitissem desenvolver o seu trabalho, nomeadamente para efeitos de apreensão de bens para a massa insolvente, procurou, por todos os meios ao seu alcance, comunicar com os gerentes da insolvente, sem qualquer resultado útil, excepção feita a um telefonema do gerente B (....).

            Os elementos que conseguiu recolher para elaboração do parecer foram prestados por terceiros, mormente pelo gabinete que processa a contabilidade, pelo serviço de finanças e por fornecedores.

            Os gerentes não requereram judicialmente a insolvência da sociedade, apesar de saberem que esta se achava nessa situação, até por ter contabilidade organizada.

            O ex.mo magistrado do MP declarou concordar com o parecer.

            Notificada a insolvente e citados os respectivos administradores, vieram (…) e (…) deduzir oposição nos termos seguintes:

            A situação de insolvência não foi criada ou agravada em consequência de actuação ou culpa grave sua, nem isso resulta dos pareceres do administrador da insolvência e do Ministério Público, que não contém factos nesse sentido.

            O único gerente de facto da insolvente foi sempre o oponente (…), sendo ele quem tomava as decisões de gestão, incluindo as relativas aos pagamentos, contactando, para o efeito, instituições bancárias, trabalhadores, fornecedores e credores em geral.

            A oponente (…) era apenas gerente de direito, sem intervenção efectiva na gerência da sociedade, limitando-se a assinar os documentos que o oponente (…), seu marido, lhe entregava, sem verificar o respectivo teor, dada a relação de confiança existente entre ambos.

            A insolvência deveu-se essencialmente à falta de pagamento de avultadas quantias por parte dos seus devedores, ao aumento dos custos de produção e dos custos financeiros e à descida de preços, imposta pela concorrência desenfreada.

            Por outro lado, foram instauradas algumas acções judiciais contra a insolvente, uma das quais implicou a penhora de vários bens, com a sua efectiva remoção.
Elaborado despachado saneador meramente tabelar, teve lugar a audiência de discussão e julgamento, após a qual foi proferida sentença que julgou improcedente a oposição deduzida, qualificou a insolvência como culposa, declarou os gerentes (…) e (…) afectados com a declaração da insolvência como culposa e decretou a sua inibição para o exercício do comércio por um período de cinco anos, bem como para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa.
Irresignados, os oponentes interpuseram recurso, alegaram e formularam as seguintes conclusões:
1) A sentença é nula, nos termos do artigo 668.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, por contradição entre os fundamentos e a decisão;
2) O n.º 3 do artigo 185.º do CIRE estabelece presunções de culpa na insolvência do devedor, ilidíveis mediante prova em contrário;
3) Os apelantes, no entanto, lograram ilidir essa presunção, com a prova produzida em audiência de discussão e julgamento;
4) Não existe nexo de causalidade entre o incumprimento das obrigações a que se refere o n.º 3 do artigo 186.º do CIRE e a situação de insolvência ou o seu agravamento;
5) Em face da prova testemunhal produzida, deveriam ter sido considerados provados os factos constantes dos pontos 7 a 13 da matéria de facto dada por não provada;
6) A inibição dos apelantes da prática de actos de comércio por um período de cinco anos não se compagina com a matéria de facto provada e não provada;
7) De todo o modo, tal período de tempo é manifestamente desproporcionado e excessivamente longo;
8) E não faz sentido igualar o tempo de inibição de ambos os gerentes, tendo em conta que a gerência de facto cabia, apenas, a um deles.

O ex.mo magistrado do MP respondeu à alegação dos recorrentes, rebatendo os respectivos argumentos e concluindo pelo acerto da sentença impugnada.
A ex.ma juiz indeferiu a arguição de nulidade da decisão.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
São estas as questões a requerer solução:
a) A nulidade da sentença.
b) A alteração da matéria de facto.
c) A qualificação da insolvência.
d) A duração do período de inibição do exercício do comércio.


II. É a seguinte a matéria de facto constante da sentença:

            A. Factos provados:

1) (…) requereu a declaração da insolvência da sociedade A (…) Lda., em 21 de Janeiro de 2009.

2) Por sentença datada de 3 de Março de 2009, foi declarada a insolvência de A (…) Lda.

3) A A (…), Lda é uma sociedade por quotas unipessoal que se dedica à construção civil e obras públicas; manutenção e limpeza de espaços verdes e jardins; instalação e comercialização de sistemas de rega e bombagem; limpeza de bermas e florestas; construção, implementação e tratamento de piscinas, lagoas e cascatas; e comércio, instalação e aluguer de equipamentos agrícolas e industriais.

4) A insolvente encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de (...) sob o nº (.....) O capital social da requerida e de € 30.000,00 (trinta mil euros), composto por uma única quota, de igual valor, titulada por (…), a quem compete a gerência.

5) A insolvente tem dívidas à Fazenda Nacional, de IVA, desde o ano de 2006, com o valor actual de cerca de € 283.280,29.

6) A insolvente tem contribuições à Segurança Social vencidas há mais de 12 meses, encontrando-se actualmente em dívida a quantia de € 80.227,32.

7) A insolvente tem uma dívida para com a sociedade (...), Lda., no montante de € 19.008,78, que remonta a 9 de Setembro de 2007.

8) A insolvente tem uma dívida para com o Banco (...), SA, no montante de € 42.289,54, que se encontra vencida desde 2 de Outubro de 2008.

9) A insolvente tem uma dívida para com a sociedade (...), Lda., no montante de € 8401,01, que remonta a Setembro de 2007.

10) (…) exercia a gerência de facto da sociedade insolvente.

11) O Senhor administrador da Insolvência deslocou-se à sede da sociedade insolvente e constatou que aí não havia qualquer pessoa e que as instalações estavam vazias e encerradas.

12) O Administrador da Insolvência endereçou a (…) uma carta registada com aviso de recepção, em 4 de Abril de 2009 com o seguinte conteúdo:

Como é do conhecimento de V. Excia, foi decretada a insolvência da empresa (…) da qual V. Excia era Gerente, no processo acima identificado em que fui nomeado para exercer as funções de Administrador da Insolvência.

Por essa razão, venho solicitar que, na qualidade apontada de Gerente da mesma, e ao abrigo do estipulado no nº 1, alínea c), do Art. 83º do C.I.R.E., entre em contacto comigo – pelos telefone, carta ou fax indicados no rodapé da presente carta – para prestar as informações necessárias ao desempenho das minhas funções e desenvolvimento do processo em causa, nomeadamente para a localização de bens e análise dos documentos da contabilidade.

Desde já agradeço a maior brevidade na resposta de V. Excia e fico ao dispor para qualquer esclarecimento que me seja possível prestar.

13) O Administrador da Insolvência dirigiu uma outra carta registada com aviso de recepção à administradora da insolvente (…) em 18 de Junho de 2009.

14) O senhor administrador de insolvência enviou para o gabinete do ilustre mandatário da insolvente uma carta, solicitando-lhe colaboração com vista a contactar a gerente (…), não tendo obtido qualquer informação.

15) Por intermédio do Serviço de Finanças de (...), o Senhor administrador da insolvência conseguiu obter a identificação da técnica de contas da insolvente e foi por intermédio dela que obteve algumas informações e teve acesso à contabilidade.

16) O Administrador da Insolvência recebeu apenas um telefonema de (…) a quem explicou a necessidade de obter informações sobre as causas da insolvência e sobre a localização dos bens para proceder à apreensão, mas sem que este lhe tenha prestado qualquer informação.

17) A administradora da insolvente (...) nunca entrou em contacto com o Senhor administrador de Insolvência nem nunca lhe forneceu qualquer informação.

18) O Tribunal notificou em 22/09/09 a administradora da insolvente e o gerente de facto da insolvente para, em cinco dias, informarem onde se encontravam os bens da insolvente, nomeadamente os que integram o seu imobilizado.

19) Na sequência da notificação que antecede, o ilustre mandatário da insolvente veio informar que a (…) e o (…) lhe transmitiram que os bens se encontravam nas instalações da sociedade.

20) Constam do balancete de imobilizado corpóreo da insolvente os seguintes bens: ferramenta Gueta 300kg monofásicas; uma máquina Komatsu; um reboque Safisal L-37514; tractor Fiat DP-31-86; Tractor David Brown; Plantador Wolf 2 linhas; Máquina de soldar MIG/MAGCLOSS C300; Gerador cmh-7; Lavradora Alto-Podeidon 5-54 ST; Gerador Petropwer 33 kwa; uma ferramenta Semi-Automatica 240 AH; um abre valas Teza M65R HONDA; uma máquina cortar relva MB655 KS; uma máquina cortar relva MB555 KS; um destroçador Agricom-Board 175; uma máquina Corte Asfalto-Mod.Cobra 405; uma máquina Corte Relva; uma roçadora STIHILL; um martelo Demolidor Wacker Série 1716891; uma retroescavadora Komatsu; uma viatura Lig. Mercadorias 79-BZ-24; uma viatura Lig. Mercadorias 61-BR-88; uma viatura Lig. Passageiros 10-BZ-63; uma viatura Ligeira Mista 27-92-QV; roçadoras FS 350; roçadora FS 45; podadora HS-45-450; soprador/Aspiradora SH55; frigorifico; computador TAITEC; programas Informáticos; software Office DBE 2003; computador Portatil ASUS A6JC; dois telemóveis; Kangu 55-22-PX; uma viatura Pesada PH-81-24; um martelo pneumático de 20kg; um afiador De Laminas AFC/850; um corta Relva Player Brigs; um depósito para gasóleo Drilbor; PC/DOM TAITEC 160 GB; mobiliário de escritório; telemóvel Nokia; telemóveis; aparelhos Som; software Contabilidade; abre roços 4 Corpos; aspirador Trip Soprador; cisterna C-500; empilhador Usado; ball de Maxilas; motor de rega COMAG; betoneira 260 LTS Monofásica; hidrossemeador T30; divisórias Alumínio e estantes.

21) Encontram-se registados a favor da insolvente os seguintes veículos: o tractor agrícola com a matrícula DP-00-00, marca Fiat, pesado com a matricula PH-00-00, marca Bedford, tractor com a matricula 00-00-ND, marca Mercedes Benz, ligeiro com matricula 00-00-PX, marca Renault, ligeiro com a matricula 00-00-QV e marca Nissan.

22) Os bens da insolvente, referidos em 20) e 21), ainda não foram localizados.



B. Factos não provados:

1) Que (…) tenha sido sempre o único gerente de facto da insolvente.

2) Que a oponente (…) fosse apenas gerente de direito da insolvente.

3) Que a oponente (…) nunca tenha tido qualquer intervenção na gerência da insolvente e que se limitasse a assinar os documentos, nomeadamente cheques, que o marido, oponente (…), lhe entregava para o efeito.

4) Que a oponente (…) desconhecesse o teor da maioria dos documentos que assinava dada a relação de confiança que tinha com o oponente (...).

5) Que fosse o oponente quem tomava todas as decisões de gestão, decidindo quais os pagamentos a efectuar, contactando para o efeito as instituições bancárias, os trabalhadores e os fornecedores, e de um modo geral todos os credores.

6) Que a oponente desconhecesse todos os movimentos e negócios da gerência, nomeadamente os pagamentos ao Estado, a instituições bancárias, a fornecedores e trabalhadores, limitando-se a assinar os documentos que o marido lhe entregava para o efeito.

7) Que a insolvência da sociedade tivesse sido causada por motivos económicos e de mercado.

8) Que a difícil situação económico-financeira em que se encontrava a sociedade estivesse intimamente relacionada com a conjuntura económica actual, nomeadamente com a grave crise que afecta o país.

9) Que o principal motivo que determinou a insolvência da sociedade se prendesse com o facto de vários clientes da mesma não terem procedido ao pagamento de elevadas quantias em dívida junto daquela.

10) Que para a situação de insolvência da sociedade tivesse sido determinante o facto de alguns clientes com os quais mantinha um relacionamento comercial não tivessem cumprido as suas obrigações vencidas, nomeadamente, pagando as suas dívidas.

11) Que se tenha verificado um aumento muito significativo dos custos de produção, bem como dos custos financeiros, provocado pelo aumento do prazo médio de recebimentos e pela diminuição do prazo de pagamentos a fornecedores.

12) Que o facto da concorrência ser cada mais feroz, obrigou a uma descida de preços e, por conseguinte, das margens de lucro, para além de ter implicado um acentuado decréscimo na actividade da sociedade.

13) Que tenham sido instauradas algumas acções judiciais contra a sociedade, uma das quais implicou a penhora, com efectiva remoção, de vários bens, nomeadamente dos relacionados nos documentos juntos com o parecer do ilustre administrador de insolvência.

III. O direito

a) A nulidade da sentença

Os recorrentes configuram a nulidade por duas vias:

– Contradição entre os fundamentos e a decisão, na medida em que naqueles se considerou verificado o circunstancialismo das alíneas a) e i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE e nesta se fez apelo, apenas, ao disposto no n.º 3, alínea a), do mesmo preceito;

– Contradição entre os factos provados e não provados, por um lado, e a fundamentação da decisão, por outro, bem como entre os factos e a própria decisão.

De acordo com o prescrito na alínea c) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.

Tal nulidade postula um vício real no raciocínio do julgador. A fundamentação aponta num sentido, mas a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente. Esta nulidade nada tem a ver, quer com o erro material (contradição aparente resultante de uma divergência entre a vontade declarada e a vontade real: escreveu-se uma coisa, quando se queria escrever outra), quer com o erro de julgamento: decisão errada, mas voluntária, quanto ao enquadramento legal ou quanto à interpretação da lei). O erro material e o erro de julgamento podem dar origem à rectificação (aquele) ou à eventual revogação da decisão em via de recurso (este), mas nunca à nulidade (Professores Alberto dos Reis – Código de Processo Civil Anotado, volume V, páginas 130 e 141/142 –, Antunes Varela – Manual de Processo Civil, páginas 689/690 – e Anselmo de Castro – Direito Processual Civil Declaratório, volume III, página 142).

Retomando a situação concreta, fácil é de ver que se não perfila a arguida nulidade, em qualquer dos planos em que os recorrentes a colocam.

Começando pelo primeiro, é verdade que na fundamentação de direito se considerou verificado o circunstancialismo das alíneas a) e i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE e que na parte decisória se lhe não fez qualquer referência.

Só que isso não gera irregularidade alguma, designadamente de natureza processual. Em primeiro lugar, porque a decisão, como resposta directa do tribunal às pretensões das partes (Prof. Antunes Varela, obra citada, página 667), ou como declaração do efeito jurídico que, no caso, cabe (Prof. Alberto dos Reis, obra citada, página 43), não tem que conter as disposições legais aplicáveis, mas, tão-somente, a declaração de procedência ou improcedência da acção e as respectivas consequências (condenação ou absolvição). Depois, e decisivamente, porque daí não resulta o vício real de raciocínio a que acima se aludiu; na fundamentação considerou-se que a conduta dos recorrentes preenchia os requisitos da insolvência culposa e a decisão seguiu o mesmo caminho, declarando culposa a insolvência e decretando a inibição daqueles para o exercício do comércio. Raciocínio mais lógico e escorreito, não há.

Passando ao segundo, convirá que se explane o fio discursivo dos recorrentes: o tribunal deu como não provado que o recorrente (…) tenha sido sempre o único gerente de facto da insolvente e que a recorrente (…) fosse, apenas, gerente de direito. Mas, nas considerações de direito, escreveu-se que “no caso em apreço, da leitura dos factos provados, facilmente se afere que a actuação da administradora da insolvente e do seu gerente de facto, integra a causa tipificada na alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º”. Ora, tendo em conta os factos provados e não provados acerca da gerência da recorrente (…), não se entende como, na fundamentação da decisão, se pode ter considerado que “da leitura dos factos provados, dúvidas não há que ambos os oponentes devem ser afectados pela qualificação da insolvência, uma vez que ambos incorreram nas condutas que lhe são imputadas nos factos provados”.

O mínimo que se pode dizer do seu raciocínio é que é prolixo, não logrando explicar onde esteja a contradição, como bem salienta o ex.mo magistrado do MP na sua contra-alegação.

Procuremos, então, situar o problema com os elementos disponíveis:

Por um lado, resultou provado que a recorrente (…) era titular de todo o capital social da insolvente e sua gerente e que o recorrente (…) exercia a gerência de facto; por outro, foi dado por não provado que o recorrente tivesse sido sempre o único gerente de facto da insolvente e que a recorrente fosse, apenas, gerente de direito.

Na fundamentação, por seu turno, referiu-se que, da leitura dos factos provados, se aferia que a actuação da recorrente e do gerente de facto da insolvente (o recorrente) integrava a causa tipificada na alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º.

E, mais adiante, escreveu-se que, perante os factos provados, não havia dúvidas de que ambos os oponentes deviam ser afectados pela qualificação da insolvência, por terem incorrido nas condutas qualificadoras da insolvência culposa.

Se os recorrentes pretendem ver contradição entre a circunstância provada de o recorrente exercer a gerência de facto e a circunstância não provada de a recorrente ser unicamente gerente de direito – embora o não aleguem expressamente –, é inútil o seu esforço, porque a gerência de facto de um não arreda a possibilidade de o outro o ser, também.

De todo o modo, a eventual contradição da decisão de facto não acarreta a nulidade da sentença, mas, sim, a reapreciação da matéria de facto pela Relação, caso disponha dos elementos probatórios necessários, ou a anulação do julgamento, na hipótese inversa.

Se entendem, como parece ser, que a contradição está entre a dita matéria de facto provada e não provada e a consideração de que da mesma resulta a verificação do circunstancialismo da alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º e a afectação de ambos os recorrentes pela qualificação da insolvência, continua o seu esforço a ser inglório, porque as considerações em questão se reportam à ocultação de bens, que ambos os recorrentes protagonizaram (foram ambos notificados para informar onde se encontravam os bens da insolvente e responderam que se achavam nas instalações da sociedade, quando tal não sucedia), não se vendo, nessa medida, como possa a fundamentação colidir com os factos. O facto é que a recorrente, gerente da insolvente, ocultou os bens, prestando informação não correspondente à realidade acerca do seu paradeiro; a conclusão, extraída em sede de fundamentação de direito, é que essa conduta integrava os pressupostos da alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º e afectava a recorrente. O que há é concordância e não contradição.

Mas, ainda que contradição houvesse, o vício daí resultante seria a o erro de julgamento (errada interpretação e aplicação do direito) e não a nulidade da sentença, que postula que a contradição seja entre os fundamentos e a decisão.

E esta não existe, manifestamente, pelo que já antes foi dito: a decisão, que julgou a insolvência culposa e declarou os recorrentes inibidos para o exercício do comércio, é o corolário lógico dos fundamentos, onde foram considerados verificados os requisitos (de facto e de direito) subjacentes à qualificação da insolvência.

Em suma, a arguição de nulidade da sentença improcede.

b) A alteração da matéria de facto

(…)

c) A qualificação da insolvência

 

Na sentença recorrida qualificou-se a insolvência de A (…) Lda. como culposa, com fundamento na verificação dos requisitos tipificados nas alíneas a) e i) do n.º 2 e na alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), diploma de que serão os demais preceitos s citar sem indicação de origem.

Os apelantes não questionaram a qualificação à luz das alíneas a) e i) do n.º 2 – neste particular arguíram, apenas, a nulidade da sentença, que, como se deixou claro, não ocorre –, tendo feito incidir a sua crítica sobre o outro fundamento, que, em seu entender, estaria fora de equação, por não existir nexo de causalidade entre a violação do dever em causa e a situação de insolvência ou seu agravamento.

O que quer dizer que a insolvência sempre haverá de ser qualificada como culposa.

Mas analisemos a posição dos recorrentes relativamente à circunstância prevista na alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º.

A insolvência, di-lo o artigo 185.º, pode ser culposa ou fortuita.

O artigo 186.º, para além de definir o conceito de insolvência culposa – segundo o n.º 1, “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência” –, estabelece um conjunto de factos típicos que conduzem, seja à consideração da insolvência como culposa (n.º 2), seja à presunção de culpa grave dos administradores do devedor que não seja uma pessoa singular (n.º 3).

O n.º 2 estabelece, em termos objectivos (desde que provada a matéria de facto vertida nas respectivas alíneas), uma presunção juris et de jure de insolvência culposa; já o n.º 3 só consagra uma presunção juris tantum de culpa grave dos administradores (neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª edição página 610, e Menezes Leitão, Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, página 175).

No primeiro caso (o do n.º 2), a verificação dos factos implica a qualificação da insolvência como culposa, independentemente de quaisquer outras considerações; no segundo (o do n.º 3), o incumprimento da obrigação legal conduzirá à declaração de culpa, se o visado a não ilidir, nos termos do disposto no artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil (cfr. o acórdão da Relação de Lisboa, de 27.11.2007, CJ, Ano XXXII, Tomo V, página 104).   

Mas, mesmo que a culpa grave não seja ilidida (nas hipóteses do n.º 3, é claro), daí não se segue, sem mais, a qualificação da insolvência como culposa; para que isso aconteça, é necessário, ainda, que fique demonstrada a existência de um nexo de causalidade entre a conduta incumpridora dos administradores da devedora e a situação de insolvência (neste sentido, por exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 14.06.2006, CJ, Ano XXXI, Tomo III, página 288, e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 20.10.2007, CJ, Ano XXXII, Tomo IV, página 189).

Assentes estas ideias, vejamos o caso concreto, tendo presente, em face das considerações supra expostas, que o incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência faz presumir a existência de culpa grave por parte dos administradores da empresa.
De acordo com o preceituado no artigo 18.º, a insolvência deve ser requerida nos 60 dias seguintes à data do conhecimento dessa situação, tal como vem descrita no artigo 3.º, n.º 1 (impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas), ou à data em que devesse conhecê-la, presumindo-se, inilidivelmente, o conhecimento da situação de insolvência decorridos três meses, pelo menos, sobre o incumprimento generalizado das obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do n.º 1 do artigo 20.º (artigo 3.º, n.º 1).
Na hipótese em apreço, a insolvente, apesar de estar em dívida com o IVA desde 2006 e com as contribuições para a segurança social desde há mais de um ano (dívidas que, actualmente, ascendem aos significativos valores de € 283.280,29 e de 80.227,32, respectivamente), nunca se apresentou à insolvência, que acabou por ser requerida por um dos seus vários credores em Janeiro de 2009.
O prazo legalmente imposto para requerer a declaração de insolvência há muito estava ultrapassado, em vista da falada presunção – iniludível – do conhecimento da situação.
É elementar, neste contexto, a configuração do quadro descrito na alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º.
Só que a presunção de culpa grave aí estabelecida não resolve definitivamente a questão, uma vez que, como se referiu, a qualificação da insolvência como culposa depende da existência de nexo de causalidade entre o incumprimento da obrigação de apresentação à insolvência o estado de insolvência em si (ou o agravamento deste).
Existirá tal nexo?
Na sentença entendeu-se que sim, na consideração, por um lado, de que as dívidas à Fazenda Nacional e à Segurança Social se foram agravando mensalmente com a falta do seu pagamento e, por outro, de que os débitos existentes continuaram a vencer juros, o que, tudo conjugado, fez disparar o passivo.
O raciocínio, obviamente correcto em termos teóricos, carece, todavia, de demonstração prática.
É certo, em tese, que, quando uma empresa deixa de saldar as dívidas mais prementes e de maior alcance social, como sucede com as respeitantes aos impostos e às contribuições para a segurança social, é porque está em apertada situação económica e financeira, da qual muito dificilmente logrará sair; as dívidas condicionam a capacidade de produzir, a falta de produção gera novas dívidas e o passivo engrossa até atingir o ponto de não retorno.
Só que isso não é uma verdade absoluta, havendo exemplos, admitindo-se que raros, de empresas que conseguiram sair do quadro negro em que caíram.
De qualquer sorte, não é possível estabelecer o mencionado nexo de causalidade sem o apuramento de factos que lhe dêem o necessário substrato. E que factos são esses? Naturalmente, os que respeitam à evolução da situação económica, financeira e produtiva da empresa, explicados pari passu.
E isso não está minimamente documentado nos autos.
Têm inteira razão os recorrentes quando dizem que não só se não provou facto algum nesse domínio, como nem sequer foi aduzido, nos pareceres do senhor administrador e do MP, o que quer que seja de onde se pudesse extrair a conclusão de que a insolvência foi criada ou agravada pela omissão de apresentação à insolvência.
Na realidade, o senhor administrador preocupou-se mais em realçar o passado do recorrente no mundo empresarial do que em trazer ao processo matéria que permitisse avaliar o desempenho dos gerentes da insolvente, designadamente no que tange à omissão do dever de requerer a declaração de insolvência.
Essas deficiências, por outro lado, não foram colmatadas pelo ex.mo magistrado do MP, que se limitou a secundar o parecer do senhor administrador.
A sentença não podia, como é evidente, reflectir aquilo que não foi alegado. Daí que seja muito parca em elementos de facto, tendo consignado, neste particular, apenas as dívidas da insolvente, o que é muito pouco, convenhamos, para se afirmar que a omissão de apresentação à insolvência foi causa adequada desta ou do seu agravamento.
Ficou, pois, por demonstrar o apontado nexo de causalidade, razão pela qual se não pode dar por adquirida a verificação dos requisitos da alínea a) do nº 3 do artigo 186.º, ao contrário do o tribunal decidiu.
Nesta parte, portanto, procederá o recurso, sem embargo de se haver de manter a qualificação da insolvência como culposa, por via do disposto nas alíneas a) e i) do n.º 2 do artigo 186.º, como acima se clarificou.

            d) A inibição para o exercício do comércio

            A sentença declarou a inibição dos ora recorrentes para o exercício do comércio, por um período de cinco anos, bem como para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa.
            Na óptica dos recorrentes, a decisão é incorrecta por três ordens de razões: 1) ter considerado a recorrente (…) afectada pela qualificação da insolvência, quando a mesma não era gerente de facto da insolvente; 2) ser o período de inibição de cinco anos excessivamente longo e desproporcionado; 3) não fazer sentido a imposição do mesmo período de inibição a ambos os recorrentes, tendo em conta que a gerência de facto cabia, apenas, ao recorrente.
            As razões indicadas sob os números 1) e 3) assentaram no pressuposto de ser provido o recurso relativo à alteração da matéria de facto, vindo a dar-se por assente que a recorrente (…) era, tão-somente, gerente de direito, sem qualquer intervenção nos negócios e destinos da empresa.
            Inalterado o julgamento de facto, é claro que o recurso não tem, neste segmento, viabilidade, ficando para apreciar, tão-só, o problema do período de inibição em si.
            De toda a maneira, sempre se esclarecerá que se não vê fundamento, seja para se não considerar a recorrente afectada pela qualificação da insolvência, seja para distinguir as condutas dos recorrentes.
A recorrente era gerente da insolvente e incumpriu de forma reiterada o dever de colaboração, já que nunca entrou em contacto com o administrador da insolvência, apesar dos vários avisos que este lhe dirigiu (pontos 12.º, 13.º, 14.º e 17.º da matéria de facto assente); mas não ficou por aqui a sua conduta remissa, uma vez que, notificada pelo tribunal para indicar o paradeiro dos bens, prestou informação errada a tal respeito (pontos 18.º a 22.º dos factos assentes).
Praticou, tal qual o recorrente, factos integrantes da qualificação da insolvência como culposa – alíneas a) e i) do n.º 2 do artigo 186.º –, não poderia, portanto, deixar de ser afectada por essa mesma qualificação.
Por outro lado, tendo os factos sido praticados por ambos os recorrentes, sem que se vislumbre diferença quantitativa ou qualitativa na sua actuação, não há motivos para que o período de inibição não seja igual para ambos.
No que concerne ao período concreto de inibição, prescreve a alínea c) do n.º 2 do artigo 189.º que o mesmo vai de dois a dez anos.
            A 1.ª instância fixou-o em cinco anos, na consideração de o comportamento dos recorrentes ter sido muito grave e lesivo dos credores da insolvente, por terem feito desaparecer os bens, e levado a cabo de forma dolosa.
            Na fixação do período de inibição, deve atender-se à gravidade da conduta das pessoas abrangidas e à sua relevância na verificação da situação de insolvência, ou no seu agravamento, segundo as circunstâncias do caso (Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, páginas 624/626).
            Concorda-se com a sentença impugnada quanto à gravidade do comportamento dos gerentes da insolvente, ora recorrentes. A sua actuação foi manifestamente dolosa, pois que, voluntariamente, se negaram a prestar colaboração ao administrador da insolvência e ocultaram o paradeiro dos bens.
            Mas é verdade, também, que a qualificação da insolvência como culposa assenta, apenas, nas alíneas a) e i) do n.º 2 do artigo 186.º, e não, também, na alínea a) do n.º 3 do mesmo normativo, como decidiu a 1.ª instância.
            Crê-se, nessa medida, que o período fixado se revela algo excessivo, julgando-se mais correcto o de três anos, um pouco superior, por conseguinte, ao do limite mínimo estabelecido por lei.

             
IV. Resumindo:

1) A nulidade da alínea c) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil assenta num vício real no raciocínio do julgador: a fundamentação aponta num sentido, mas a decisão segue caminho oposto ou direcção diferente.
2) A contradição entre os factos provados e não provados ou entre estes e a fundamentação de direito não geram a nulidade da sentença.
3) A matéria de facto só pode ser alterada pela Relação se houver erro flagrante na apreciação e valoração da prova.
4) A verificação, através dos correspondentes factos, das situações previstas no n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, determina a qualificação da insolvência como culposa, sem admissão de prova em contrário.
5) Já as situações do n.º 3 do mesmo artigo acarretam, tão-só, uma presunção juris tantum de culpa grave, passível, portanto, de ser ilidida mediante prova em contrário, de acordo com o disposto no artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil.
6) De qualquer forma, nestas hipóteses, a qualificação da insolvência como culposa depende da existência de um nexo de causalidade entre as situações previstas e a ocorrência da insolvência.
5) O período de inibição para o exercício do comércio relativamente às pessoas afectadas pela qualificação da insolvência deve ser graduado em função da gravidade do seu comportamento e da sua relevância na verificação da situação de insolvência.


V. Decisão:

Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente, em consequência do que:
a) Se revoga a sentença, na parte em que qualificou a insolvência como culposa ao abrigo da alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE.
b) Se confirma a sentença, na parte em que qualificou a insolvência como culposa, nos termos das alíneas a) e i) do n.º 2 do artigo 186.º do mesmo diploma.
c) Se confirma a sentença, na parte em que declarou os recorrentes afectados com a declaração da insolvência como culposa.
d) Se revoga a sentença, na parte em que declarou os recorrentes inibidos para o exercício do comércio, bem como para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de cinco anos.
e) Se declaram os recorrentes inibidos para as mesmas actividades pelo período de três anos.
Custas pelos recorrentes em ambas as instâncias na proporção de 75%.