Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2/16.5 PAMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRIZIDA MARTINS
Descritores: PROTEÇÃO DO DIREITO À IMAGEM
FOTOGRAFIA NÃO CONSENTIDA
Data do Acordão: 09/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (J L CRIMINAL – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 199.º DO CP; ART. 79.º DO CC
Sumário: I - O registo e divulgação arbitrárias da imagem configuram manifestações de danosidade social e atentados à dignidade e autonomia pessoais idênticos aos das gravações ilícitas.

II - No direito penal português vigente, o direito à imagem configura um bem jurídico-penal autónomo e como tal protegido, independentemente da sua valência do ponto de vista da privacidade/intimidade, conforme vem frisando a doutrina e a jurisprudência [Manuel Costa Andrade, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo I, pág. 821; Ac. da Relação de Lisboa de 15/2/89, CJ 1/89, pág. 154; Ac. do STJ de 24/5/89, BMJ n.º 387, pág. 531].

III - Para que o crime opere adequadamente, não se exige que a oposição de vontade seja expressa, pois para a conduta ser típica bastará que contrarie a vontade presumida do portador concreto do direito à imagem.

Decisão Texto Integral:




Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.


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I – Relatório.

1.1. O arguido A... , foi submetido a julgamento, sob a aludida forma de processo comum singular, porquanto acusado pelo Ministério da prática de factos que o instituiriam como autor material de um crime de fotografias ilícitas, p.p.p. art.º 199.º, n.º 2, al. a) do Código Penal.

B...., além de admitido a intervir como assistente nos autos, deduziu pedido de indemnização civil contra o visado arguido, atentos os factos vertidos na dita acusação pública, alegando ter sofrido danos não patrimoniais no montante de € 2.000,00, cujo ressarcimento reclamou; pedindo, ainda, a respectiva condenação deste na obrigação de se abster de utilizar as fotografias com a sua imagem, total ou parcialmente representada, nas suas cópias, reproduções e arquivos, nomeadamente, manipulando-as, divulgando-as, distribuindo-as e exibindo-as, directa ou indirectamente, por qualquer meio, em qualquer contexto e a quem quer que seja, e a pagar-lhe a quantia de € 250,00 a título de sanção pecuniária compulsória, por cada vez que violar tal restrição, bem como, também, na obrigação de destruir e de eliminar, total e definitivamente, as referidas fotografias, suas cópias, reproduções e arquivos.

Findo o contraditório, foi proferida sentença:

- Condenando o arguido como autor material do ilícito assacado, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros), o que perfaz o montante global de € 490,00 (quatrocentos e noventa euros) e, caso não pague a multa, em 46 (quarenta e seis) dias de prisão subsidiária;

- Julgando parcialmente provado e procedente o pedido de indemnização civil deduzido e, em consequência, condenando o arguido/demandado a pagar ao peticionante a quantia global de € 500,00 (quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais, absolvendo-o do demais peticionado;

- Condenando o arguido a abster-se de utilizar as fotografias com a imagem do ofendido, total ou parcialmente representada, nas suas cópias, reproduções e arquivos, nomeadamente, manipulando-as, divulgando-as, distribuindo-as e exibindo-as, directa ou indirectamente, por qualquer meio, em qualquer contexto e a quem quer que seja, e a pagar-lhe a quantia de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) a titulo de sanção pecuniária compulsória, por cada vez que violar tal restrição; e, ainda, na obrigação de destruir e de eliminar, total e definitivamente as referidas fotografias, suas cópias, reproduções e arquivos.

1.2. Porque desavindo com a condenação imposta, e no intuito de reverter o decidido, quer em sede penal, quanto cível, recorre agora o arguido/demandado, que, da motivação ofertada, extraiu a seguinte ordem de conclusões:

1.ª No presente processo foi discutido apenas um dos dois direitos autónomos de que fala o art.º 199.º do Código Penal.

2.ª Esse direito é o de uma pessoa não ser fotografado contra a sua vontade.

3.ª Neste caso, diferentemente do outro segmento do artigo, a lei estabelece a necessidade de que haja, da parte do visado, uma manifestação de vontade contrária, recusante, ao acto de ser fotografado.

4.ª No outro segmento a lei basta-se com a falta de consentimento do visado.

5.ª No segmento que ora nos ocupa a manifestação recusante pode ser expressa ou implícita, mas terá de ser inequívoca - mas não se fez prova dessa manifestação de vontade imediata (porque se o não for presume-se a autorização!).

6.ª Também não existe nos autos o elemento indispensável da prática do crime: a fotografia.

7.ª A tentativa de junção de uma fotografia no início da audiência de julgamento foi recusada pela Mma Juíza não só por inoportunidade processual como por a identificação do (s) fotografado ser impossível pela indefinição dos seus traços fisionómicos.

8.ª Na verdade, a fotocópia que correu era tão indistinta e nebulosa que dava até a impressão de ser uma senhora, que não o assistente, a pessoa primordialmente visada no papel.

9.ª O próprio assistente não conseguiu justificar, dar ao menos um motivo plausível de poder ser ele o fotografado já que ele e o arguido “nem sequer se conheciam” (sic nas suas declarações).

10.ª A foto, real ou presumida, concreta ou virtual, que o assistente diz ter sido tirada no interior de um café onde os clientes viam pela TV um jogo de futebol, era omissa a recheio adrede que não só se não lobrigava como parece que, a ter existido, se trataria de facto de local de acesso público...

11.ª Por outro lado, nota-se que o legislador tentou pôr um freio aos abusos

proporcionados pelos avanços tecnológicos postos ao serviço das pessoas – para o bem e para o mal.

12.ª Quando esses avanços são usados maliciosamente entram em antagonismo, senão em guerra, com a ratio legis do preceito.

13.ª As modernas tecnologias, levando à cabeça a Internet, têm sido utilizadas para o bem (e muitas vezes para a prática de crimes a que urge pôr fim) pelo que a lei e os tribunais terão de usar a máxima prudência e cautela, caso a caso, “não vá o tiro sair pela culatra” – releve-se a gíria.

14.ª Por fim: relativamente à indemnização arbitrada, parece que não há justificação pois o art.º 79.º, n.º 2, do Código Civil, permite a reprodução de imagens a não ser que com tal reprodução se ofenda a honra, reputação ou simples decoro da pessoa retratada – se a fotografia for obtida (pressuposto essencial) em local acessível ao público.

15.ª Porque o caso presente não preenche os pressupostos de facto deste tipo (quer objectivos: saber se o assistente foi efectivamente fotografado, e tendo-o sido se se encontra devidamente identificado na chapa fotográfica; se as fotografias, dados os pressupostos anteriores foram tiradas contra vontade, inequivocamente expressa no acto da recolha da fotografia; quer subjectivos: o dolo do arguido e a consciência da ilicitude - que são omissos, sem justificação na sentença recorrida, pois não se demonstra que o arguido pudesse ter essa consciência, atento o local da recolha, atento o desconhecimento do arguido e assistente entre si, e a falta de invocação de quaisquer razões já anteriormente existentes para a recolha de uma fotografia).

16.ª A sentença recorrida violou o disposto nos art.ºs 199.º, n.º 2, do Código Penal, e 72.º, n.º 2, do Código Civil.

1.3. Na 1.ª instância, quer o Ministério Público, quer o assistente/demandante cível responderam ao recurso, sustentando ambos a sua total improcedência.

1.4. Cumpridas as formalidades devidas, foram os autos remetidos a esta instância.

1.5. Aqui, com vista, nos termos do art.º 416.º do Código de Processo Penal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em sentido idêntico às proposições sufragadas pelos recorridos na 1.ª instância.

1.6. O arguido respondeu a tal parecer.

1.7. Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.


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II – Fundamentação.

2.1. A sentença recorrida, no que ora releva, tem o teor seguinte:

A. Da discussão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

1.º No dia 2 de janeiro de 2016, pelas 21h e10m, no café denominado “ X... ”, sito no n.º ... da Av.ª (...) em Leiria, o arguido A... , tirou uma fotografia com o seu telemóvel ao corpo do ofendido B... , sem autorização deste último.

2.º O arguido actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que não podia tirar uma fotografia ao corpo do ofendido, pois carecia de autorização deste último.

3.º Todavia, não obstante tal conhecimento, o arguido quis e agiu nos moldes descritos.

4.º Mais sabia o arguido que a sua conduta era proibida por lei.

5.º O arguido não tem antecedentes criminais.          

6.º O arguido aufere € 800,00 de reforma, vive sozinho em casa de renda, pela qual paga € 200,00.

7.º O arguido tem o 5.º ano do Liceu.

8.º Em consequência da conduta do arguido o demandante sentiu-se nervoso, ansioso e receoso por desconhecer qual o uso que o demandado poderia fazer com as fotografias que tinha na sua posse com a sua imagem.

B. Não se provaram outros factos com interesse para a boa decisão da causa, nomeadamente os constantes do pedido cível de fls. 117 a fls. 120.

C. Motivação:

O arguido, remeteu-se ao silêncio quanto aos factos, apenas esclareceu, com credibilidade, a sua situação sócio económica.

Sopesado o depoimento das testemunhas: B... , referiu que se encontrava no Café X... , na Av. (...) em Leiria, no dia 2.1.2016, acompanhado pela D. G... a tomar café, enquanto via futebol na televisão, quando, de repente, surge o arguido junto dele e lhe tirou uma fotografia com o telemóvel, fotografia que o arguido espalhou “por toda a Marinha Grande, através de caixas de correio”; esclareceu ainda não conhecer o arguido, tendo, no entanto, nessa altura, conhecimento que a D. G... tinha dois filhos de um anterior casamento com aquele. G... , esclareceu que foi casada durante três anos com o arguido e encontrava-se a tomar café com o ofendido quando aquele lhes tirou uma fotografia, sem autorização, com o telemóvel e acrescentou, não ter dúvidas que viu o flash; acrescentou que passado um dia, amigos seus, começaram a telefonar-lhe a dizer que tinham uma fotografia sua na caixa do correio. No depoimento das testemunhas: C... e D... , ambos filho do ofendido, esclareceram o Tribunal sobre a forma como o pai reagiu, mantendo-se durante uma semana sem sair de casa tal estava abalado e nervoso com a situação; e das testemunhas de defesa: E... e F... , que esclareceram o Tribunal sobre a personalidade do arguido.

Na análise do certificado de registo criminal de fls. 145.

Com efeito, o depoimento do ofendido, embora exagerado, uma vez que não convenceu a sua tese de que “toda a Marinha Grande” teve conhecimento da foto que o arguido lhe tirou, mostrou-se, apesar disso, consistente e logrou obter credibilidade por parte do Tribunal, sendo que tal depoimento foi corroborado pela testemunha G... ; no que tange aos factos provados sob 8, o Tribunal alicerçou a sua convicção no depoimento dos filhos do ofendido, com maior incidência na testemunha D... , embora, mais uma vez tenha considerado também tal depoimento exagerado.

2.2. Como é consabido, o âmbito do recurso define-se através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, mas sem prejuízo do conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, ainda que não invocados (as) ou arguidos (as) pelos sujeitos processuais [cfr. art.ºs 412.º, n.º 1; 403.º, n.º 1 e 410.º, n.º 2, als. a), b) e c), todos do Código de Processo Penal, bem como Acs. n.ºs 7/95 e 1/94, ambos do STJ, publicados no Diário da República, I.ª Série-A, de 28/12 e de 11/02, respectivamente].

In casu, lendo-se as conclusões apresentadas pelo recorrente – e visto não interceder uma qualquer nulidade e vícios mencionados –, decorre, então, que o thema decidendum se reconduz a aquilatarmos se não concorrem os pressupostos exigíveis à sua decretada condenação (penal e cível).

2.3. Neste processo está em causa [nas considerações seguintes atentaremos no exarado no Ac do TRP acessível in www.dgsi.pt/jtrp sob o n.º 0445068] a protecção do direito à imagem, bem jurídico que se pretende proteger com a norma incriminadora do citado art.º 199.º, um bem com carácter eminentemente pessoal e com a estrutura de uma liberdade fundamental, que reconhece à pessoa o domínio exclusivo sobre a sua própria imagem, numa dupla dimensão: - positiva, no sentido de que assiste ao seu portador concreto a legitimidade para, em total liberdade, autorizar o registo (em fotografia ou filme) e posterior divulgação da sua imagem; - negativa, na medida em que a pessoa tem a liberdade para, sem restrições, se recusar a ser fotografada ou filmada.

A maior parte dos bens jurídicos pessoais - entre os quais se contam a honra, o segredo, a privacidade/intimidade, a palavra e a imagem - configuram «expressões concretizadas e estabilizadas da liberdade geral de acção ou do direito ao livre desenvolvimento da personalidade.» [Manuel da Costa Andrade, “Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal - Uma Perspectiva Jurídico-Criminal”, Coimbra Editora, 1996, pág. 71]

São, no direito penal contemporâneo, “bens jurídico-penais autónomos e distintos entre si, cada um deles protegido em si e de per si, como referente típico da ilicitude penal material. Isto sem prejuízo de alguns e significativos momentos de comunicabilidade que medeiam entre eles e que perpetuam e assinalam a memória de uma matriz antropológico-cultural comum.

Na verdade, muitos destes bens jurídicos chegaram à luz do dia do reconhecimento como autónomos bens jurídico-penais no termo de um processo de gestação no seio de outros primeiramente decantados. Exemplar o processo de emergência do bem jurídico privacidade/intimidade no contexto da experiência legislativa, jurisprudencial e doutrinal da tutela penal da honra. Um processo que viria a repetir-se, praticamente com as mesmas vicissitudes e o mesmo ritmo na gestação de bens jurídicos como a palavra ou a imagem no seio da privacidade/intimidade. E que, tudo permite sugeri-lo, há-de continuar a verificar-se” [Idem, pág. 72].

Sendo tal evolução mais ou menos idêntica e generalizada nos vários países europeus continentais, o certo é que se verificam divergências mais ou menos pronunciadas ao nível da concreta regulamentação jurídico-positiva, havendo ordens jurídicas que fazem derivar alguns destes bens jurídicos para outros ramos do direito, como o direito civil, a cujo regime confiam a respectiva tutela. É o que, em geral, se passa com o direito à imagem.

Por não lhe reconhecerem dignidade penal ou a igualmente indispensável carência de tutela penal e louvando-se sobretudo nos princípios da subsidiariedade (ultima ratio) e fragmentaridade como tópicos nucleares do discurso de criminalização, a maioria das ordens jurídicas europeias não trata a imagem qua tale como um autónomo bem jurídico-penal, cometendo a sua tutela às sanções próprias do direito civil. Neste contexto, a utilização abusiva da imagem só configurará um ilícito penal se e na medida em que contenda com a privacidade/intimidade [Manuel da Costa Andrade, obra citada, pág. 74 e ainda na RPCC, 1993, pág. 487 e segs].

Embora nem sempre assim tenha sido, nem isso aconteça ainda hoje em todos os ordenamento jurídicos, mesmo a nível da Europa e dentro da própria União Europeia - exemplos disso podem encontrar-se, nomeadamente, no país vizinho [Em que a tese que denega à imagem uma autónoma dignidade de tutela penal colhe aplausos significativos entre os autores espanhóis] e ainda na Itália [Onde, face a um ordenamento jurídico lacunoso, se defende que o direito à imagem é uma mera emanação do direito à reserva da vida privada, com a consequência de a respectiva tutela penal se fazer por via das ofensas à privacidade/intimidade] - entre nós, é hoje um dado assente que o registo e divulgação arbitrárias da imagem configuram manifestações de danosidade social e atentados à dignidade e autonomia pessoais idênticos aos das gravações ilícitas (n.º 1 do art.º 199.º, do Código Penal).

Ou seja, no direito penal português vigente, o direito à imagem - com assento constitucional no art.º 26.º, n.º 1, da Constituição da República e igualmente tutelado pelo Código Civil, no seu art.º 79.º - configura um bem jurídico-penal autónomo e como tal protegido, independentemente da sua valência do ponto de vista da privacidade/intimidade, conforme vem frisando a doutrina e a jurisprudência [Manuel Costa Andrade, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo I, pág. 821; Ac. da Relação de Lisboa de 15/2/89, CJ 1/89, pág. 154; Ac. do STJ de 24/5/89, BMJ n.º 387, pág. 531].

A consagração do direito à imagem como autónomo bem jurídico-criminal não implica, porém e necessariamente, uma tutela penal global, uma protecção em todas as direcções, à custa da criminalização de todos os atentados, seja sob a forma de lesão ou de perigo.

Por isso, para além de a doutrina e a jurisprudência advogarem uma significativa redução do ilícito penal em matéria de tutela da imagem, em consonância com a maior exposição da imagem (em comparação com a palavra) no contexto da vida comunitária, avultam na respectiva tutela duas limitações particularmente óbvias: a) o direito à imagem só é penalmente protegido na direcção do poder de domínio reconhecido à pessoa, isto é, contra as formas de captação e reprodução arbitrárias, deixando a descoberto dimensões do direito à imagem tão relevantes como as exigências de integridade e de verdade; b) a imagem só é penalmente protegida contra os processos técnicos de captação ou divulgação como a fotografia e o filme, ficando fora da incriminação todos os demais meios (pintura, desenho, caricatura, máscara cénica, etc.).

Por outro lado, há que ter em conta, no nosso ordenamento jurídico, o disposto no art.º 31.º, n.º 1 do Código Penal, segundo o qual “O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade.”

Neste contexto, mostra-se decisivo, o mencionado art.º 79.º do Código Civil, que, após proibir que o retrato de uma pessoa seja exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela (n.º 1), dispõe no seu n.º 2: “Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente.”

A exacta determinação das circunstâncias atrás referidas variará de caso para caso, dependendo em grande parte do critério do julgador. Neste quadro haverá de apelar-se para o labor da doutrina e da jurisprudência, apostadas em identificar constelações típicas de casos como referentes paradigmáticos de soluções normativas relativamente estabilizadas. Em alternativa, na medida em que tal não seja possível, nada mais prudente (e mais consentâneo com os ditames constitucionais) do que a redução da mancha do punível - in dubio pro libertate [Costa Andrade, “Liberdade de imprensa…”, pág. 181/182].

2.4. Norteados por este enquadramento, vejamos das circunstâncias do caso presente e em que medida se não justificaria - tese própria - a condenação do recorrente.

O acervo factual a considerar é o constante da decisão recorrida, do qual sobressai que, com o seu telemóvel, o arguido tirou uma fotografia ao corpo do ofendido, sem autorização deste último; fê-lo de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que o não podia fazer, pois carecia de autorização deste último; não obstante tal conhecimento, o arguido quis e agiu nos moldes descritos.

Anota o Prof. Manuela da Costa Andrade [Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 832], que uma das modalidades em que se substancia a acção típica do ilícito em causa consiste em fotografar outrem contra a sua (do visado, naturalmente) vontade.

Ora, como vem provado, o arguido fotografou o ofendido (não está em causa a eventual utilização posterior dessa fotografia e a sua inerente existência, a consubstanciar outra das modalidades de acção em que pode desmultiplicar-se o tipo).

Por outro lado, e isto essência da impugnação do recorrente, fê-lo contra a vontade do ofendido.

Na decisão recorrida, consignou-se que o arguido fotografou o ofendido, sem consentimento deste. O recorrente alega, em seu favor, que a ter existido, sempre se impunha que a manifestação recusante tivesse sido expressa ou implícita, mas também inequívoca, já que à míngua destes requisitos se haveria então de presumir a autorização.

Ainda de acordo com o exarado pelo Prof. Costa Andrade [ob. cit. pág. 833], e para que opere adequadamente, não se exige que tal oposição de vontade seja expressa, pois para a conduta ser típica bastará que contrarie a vontade presumida do portador concreto do direito à imagem; vale por dizer que alicerçada numa análise conjectural que o julgador possa inferir das circunstâncias do caso.

A expressão utilizada na decisão recorrida mostra-se fiel à produção da prova que se verificou no decurso da audiência, e ao juízo que, no que concerne, era possível daí extrair, isto se atentarmos na sua descrição e na correspondente motivação probatória.

Com efeito, resulta dos factos 1.º a 3.º que o arguido captou uma fotografia do ofendido, sabendo que o não podia fazer, pois que carecia da sua autorização, mas, não obstante este conhecimento, quis agir, como o fez; ora, se o arguido não tinha autorização do assistente para captar uma fotografia deste, com recurso a telemóvel, e se sabia da inexistência dessa autorização, sem que haja alegado (ele arguido), nem, por conseguinte, comprovado, quaisquer motivos que justificassem/legitimassem a sua conduta, é das regras da experiência que a sua actuação decorreu contra a vontade do assistente [ainda que, por hipótese e no limite, presumida], pois, como bem retorquiu o lesado “qualquer pessoa colocada na posição do arguido e do assistente - no contexto das concretas circunstâncias dadas como provadas -, saberia, como está demonstrado que o arguido sabia, que não havendo autorização para a captação da fotografia, também não há vontade em ser-se fotografado, já que, avaliada a realidade de acordo com padrões comuns de normalidade e de convivialidade social, e de acordo com as regras da experiência, não é concebível que a vontade presumida do visado fosse no sentido de aceitar e de se conformar que com esse tipo de actos intrusivos, especialmente se estivermos - como sucede in casu - perante duas pessoas que não se conhecem, que não têm relações de amizade, que são estranhas entre si. Da mesma forma que, colocadas as coisas sob um outro prisma, não é concebível que o agente do acto, honestamente e de boa-fé, presumisse que a vítima se deixaria fotografar, abertamente e de livre vontade, de modo pacífico e tranquilo. Invertendo os papéis, seguramente que o arguido também não consentiria que o assistente lhe tirasse, inopinadamente, uma fotografia com o telemóvel. É evidente que não. Como ninguém gostaria.”

A conduta do arguido foi, assim e acertadamente, subsumida à citada al. a) do n.º 2 do art.º 199.º, cujo preenchimento não exige a impressão, reprodução, exibição, apresentação ou divulgação da fotografia, bastando que fique demonstrado, como ficou, o acto de fotografar, contra a vontade do titular do direito à imagem.

2.5. A coberto da previsão do art.º 79.º, n.ºs 2 e 3, do Código Civil [em cujos termos, respectivamente: “Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando… a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos”; “O retrato não pode, porém, ser reproduzido, exposto ou lançado no comércio, se do facto resultar prejuízo para a honra, reputação ou simples decoro da pessoa retratada”], e a pretexto de a pretensa fotografia ter sido recolhida em café aberto ao público, com vários espectadores de jogo de futebol através da TV, sem que daí tivesse advindo prejuízo para a honra ou decoro de algum deles, nomeadamente do demandante, sustenta o demandado que se não justifica a responsabilização civil imposta.

Também aqui é patente o infundado do alegado.

Na verdade, não estava em causa a captação de uma imagem de um local público no qual o ofendido se encontrasse ocasionalmente e desta forma sujeito a ser “interpelado” por um qualquer fotógrafo que lhe fosse alheio; ao invés, o que se nos depara, é que o ofendido foi deliberadamente surpreendido pelo arguido de forma inopinada, descarada e insidiosa, com o apontar directo e pessoal do respectivo equipamento/telemóvel (e accionamento do flash nele integrado), passando a ver a sua imagem disponível por forma para ele absolutamente incontrolável. Na sugestiva expressão do recorrido, tudo redundou em por tal forma ser atingido por um tiro, desconhecendo-se o destino da bala e as consequências que daí possam resultar. Tudo pois ao arrepio da previsão legal que não colhe in casu.

Por não ter sido suscitada qualquer outra questão, nada mais há a conhecer.


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III - Decisão:

Pelo exposto, julgando-se o recurso improcedente, decide-se manter integralmente a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três UCs.


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Coimbra, 20 de Setembro de 2017

(Brizida Martins – relator)

(Orlando Gonçalves – adjunto)