Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5547/16.4/8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: INSPEÇÃO JUDICIAL AO LOCAL – AUTO DA INSPEÇÃO.
NÃO ELABORAÇÃO DO AUTO – NULIDADE SECUNDÁRIA.
Data do Acordão: 09/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JL CÍVEL DE COIMBRA – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTºS 195º E 493º NCPC
Sumário:
I – O artº 493º do NCPC (que corresponde ao art.º 615º do pretérito CPC), determina que, procedendo-se a inspecção judicial, da diligência seja “lavrado auto em que se registem todos os elementos úteis para o exame e decisão da causa, podendo o juiz determinar que se tirem fotografias para serem juntas ao processo”.
II - Este registo serve para as partes ficarem cientes daquilo que, na perspectiva do julgador, se pode constatar, ou não, no local inspeccionado, servindo, ainda, para relembrar o julgador, na ocasião em que procede à elaboração da decisão relativa à matéria de facto, daquilo que constatou na diligência, para o correlacionar com os restantes elementos probatórios, sendo, ainda, em caso de recurso com impugnação da decisão relativa à matéria de facto, o elemento relativo a essa diligência que possibilita ao Tribunal “ad quem” aferir, em conjugação com os restantes elementos de prova, do acerto da valoração probatória de que resultou essa decisão.
III - A omissão do auto inspecção a que se reporta o art.º 493º do NCPC, ou dos elementos que esta disposição legal estabelece que nele fiquem registados, não tendo sanção especificamente expressa, integra a falta de observância de uma formalidade que a lei prescreve, consubstanciando, se tiver influência na decisão da causa, nulidade secundária submetida à regra geral do art. 195º do CPC.
IV - Sob pena da respectiva sanação, a nulidade prevista no art.º 195º, n.º 1, do CPC, deve ser arguida pelo interessado, na ocasião em que seja cometida, caso este esteja presente (por si, ou pelo seu mandatário), ou no prazo de 10 dias a contar da data em que interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificado para qualquer termo dele, mas neste último caso, só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência (artºs 195º, nº 1, 197º, nº 1, 199º, nº 1 e 149º, nº 1, do NCPC).
V - O entendimento acima expresso quanto à sanação da nulidade decorrente da falta de auto da inspecção judicial, que é, afinal, aquilo a que se reconduz a omissão, em auto, ou acta, do registo dos elementos a que se reporta o artº 493º, não significa que a ausência desse auto seja inconsequente, já que a inacção das partes ao deixarem de reclamar a referida nulidade perante o Tribunal onde esta foi cometida - para que aí fosse possível suprir a omissão -, conduz a que, posteriormente, a Relação se veja impedida de proceder à cabal reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
VI - O mais que a Relação pode fazer, não tendo a omissão sido arguida e sanada em devido tempo, é anular, nos termos do artigo 662.º, nº 2, alínea c), 1ª parte, do Código de Processo Civil, a decisão proferida pela 1ª instância com vista à repetição de tal meio de prova, quando reconhecer que, devido à falta de registo dos elementos observados e colhidos na diligência, a decisão sobre os pontos impugnados da matéria de facto é deficiente, obscura ou contraditória.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I - A) - 1) – A... e mulher, M..., residentes em ..., intentaram, em 19/07/2016, acção declarativa, de condenação, com processo comum, contra N..., solteiro, maior, residente em ..., E... e mulher, M..., residentes em ..., e J..., também residente em ..., terminando assim a respectiva petição inicial:
«[...] deve a presente acção ser julgada procedente por provada e, em consequência:
a)- declarar-se que os A.A. são legítimos possuidores e proprietários do prédio identificado no artº 1º desta P.I. e serem os R.R. condenados a reconhecer tal direito de propriedade e a abster-se de qualquer acto ofensivo do mesmo;
b)- serem os R.R., solidariamente, condenados a, no prazo de 7 dias, efectuarem as obras necessárias a repor o prédio dos A.A. no estado em que o mesmo se encontrava antes das intervenções que ali efectuaram, designadamente, retirando as cantoneiras e os tubos metálicos que instalaram, procedendo ao reboco e pintura da parede norte nas partes afectadas pelas suas intervenções, rebocando o topo do muro poente do prédio dos A.A. na parte em que o mesmo foi afectado e procedendo à alteração do escoamento das águas da parede norte do seu prédio de modo a que as mesmas deixem de escoar para o prédio dos A.A.
c)- Serem os R.R. condenados, nos termos do previsto no artº 829-A do C.C., em sanção pecuniárias compulsória, em montante diário de 50,00€, por cada dia que, uma vez ultrapassado o prazo para realização das obras em causa, as não realizem.
d)- Serem os R.R. solidariamente condenados a pagar aos A.A. indemnização, no valor de 750,00€, por cada um dos A.A., pelos danos não patrimoniais por estes sofridos, quantia a que devem acrescer juros moratórios à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento.[...]».
2) - O réu N..., contestando, defendeu-se por impugnação e pugnou pela improcedência da acção, peticionando, ainda, a condenação do AA. como litigantes de má fé, em multa e indemnização em montante a arbitrar pelo tribunal.
3) - Procedeu-se à audiência prévia, no âmbito da qual foi proferido despacho saneador, fixou-se o valor da causa em €7.500, identificou-se o objecto do litígio e elencaram-se os temas de prova.
4) - No âmbito das diligências instrutórias procedeu-se, entre o mais, a uma peritagem (relatório datado de 08/03/2017, com o complemento de 2/8/2017, ilustrado com fotografias) e, já no âmbito da audiência final, nas sessões de 29-06-2017 e de 24-10-2017, a inspecção ao local, vindo a consignar-se quanto a tal diligência:
a) - Na acta de audiência da sessão de 29-06-2017:
«[...] De seguida, o Tribunal deslocou-se ao local do litígio, sito na Rua ..., acompanhado pelos ilustres mandatários das partes, pelos autores e réus, e ainda pelo Sr. perito.
Ali chegados, pelas 10:50 horas, pelo Sr. perito foram prestados todos os esclarecimentos solicitados pelo Tribunal e pelos ilustres mandatários das partes, tendo a inspecção ao local sido dada por terminada às 11:25 horas.
(...)
Após, a Mmª. Juiz de Direito proferiu o seguinte:
DESPACHO
Tendo em conta que as partes indicam, por acordo, quem deve coadjuvar o Sr. Perito, determino que tal diligência seja levada a cabo pela pessoa indicada.
Dado que são agora requeridas declarações de parte de um dos autores e de um dos réus, determino que a audiência prossiga no dia 24 de Outubro de 2017, pelas 9,30 horas, sendo da parte da manhã feita, se necessário, nova inspecção judicial ao local e esclarecimentos do Sr. perito, bem como as declarações de parte do autor e do réu E...
[...]»;
b) - Na acta de audiência da sessão de 24-10-2017:
«[...] De seguida, o Tribunal deslocou-se ao local do litígio, sito na Rua ..., acompanhado pelos ilustres mandatários das partes, pelo autor e réus, e ainda pelo sr. perito.
Ali chegados, pelas 10:15 horas, pelo sr. perito foram prestados todos os esclarecimentos solicitados pelo Tribunal e pelos ilustres mandatários das partes, tendo a inspecção ao local sido dada por terminada às 10:28 horas. [...]»;
5) - Concluída que foi a audiência final, veio, a ser proferida sentença, em 12/03/2018, pelo Juízo Local Cível de Coimbra (J1), na parte dispositiva da qual se consignou:
«[…] decido julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência,
a) declara-se que os autores são legítimos possuidores e proprietários do prédio urbano composto de casa de habitação e pátio, sito na Rua ..., que se encontra inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo nº ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...
b) condenam-se os réus a reconhecer tal direito de propriedade e a abster-se de qualquer acto ofensivo do mesmo;
c) condenar os réus a proceder ao reboco e pintura da parede nas partes afectadas pelas suas referidas intervenções e a rebocar o topo do muro na parte em que o mesmo foi afectado.
No mais, absolvem-se os réus dos pedidos.
Custas a cargo de autores e réus, na proporção de 2/3 para os autores e 1/3 para os réus. […]».
B) - Inconformados com tal decisão, na parte que lhes foi desfavorável, dela Apelaram os Autores, que, a finalizar a sua alegação de recurso, apresentaram as seguintes conclusões:
...
Terminaram assim: «[...] Deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, ser a douta sentença recorrida revogada e substituída por decisão que julgue a acção totalmente procedente, condenando-se os Apelados na execução das obras necessárias à reposição do prédio dos Apelantes no estado em que o mesmo se encontrava antes das intervenções efectuadas por aqueles e condenando-se o igualmente os Apelados no pagamento de indemnização por danos não patrimoniais, tudo conforme peticionado [...]».
*
O Réu N..., respondendo à alegação de recurso, pugnou pela respectiva improcedência e pela confirmação da sentença ora impugnada.
*
C) - Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1, ambos do novo Código de Processo Civil - Aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho e aqui aplicável (doravante NCPC, para o distinguir do Código que o precedeu, que se passará a identificar como CPC), o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal.
Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que “questões”, para efeito do disposto no n.º 2 do artº 608º do NCPC, são apenas as que se reconduzem aos pedidos deduzidos, às causas de pedir, às excepções invocadas e às excepções de que oficiosamente cumpra conhecer, não podendo merecer tal classificação o que meramente são invocações, “considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes”- Acórdão do STJ de 06 de Julho de 2004, Revista nº 04A2070, embora versando a norma correspondente da legislação processual civil pretérita, à semelhança do que se pode constatar, entre outros, no Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e no Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586, arestos consultáveis em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase - e que o Tribunal, embora possa abordar para melhor esclarecer a sua decisão, não está obrigado a apreciar.
Numa primeira abordagem quanto à identificação das questões que o presente recurso suscita, dir-se-á, pois, que importará decidir:
- Se é de proceder à reapreciação da matéria de facto e, em caso afirmativo, à alteração que, nesse domínio, é peticionada pelos Apelantes;
- Se, em face da matéria de facto que se tenha por assente, está correcta a decisão de direito constante da sentença ora impugnada, ou seja, se foi acertada a parcial procedência da acção, nos termos decididos pelo Tribunal “a quo”.
II - Fundamentação:
A) - Na sentença da 1.ª Instância, no que concerne aos factos que aí se entenderam como provados e à factualidade que se considerou como não provada, consignou-se o que se passa a transcrever:
...
B) – De acordo com o artº 662º, nº 1, do NCPC a Relação “deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”.
No caso “sub judice” os Apelantes sustentam, em síntese, que os pontos dados como não provados na sentença recorrida deveriam ter sido considerados como provados.
Pretendem os Apelantes, pois, que esta Relação julgue tais factos como provados, assentando essa sua pretensão na correcta valoração dos elementos probatórios que apontam e cuja reapreciação pedem a esta Relação, entre os quais se contam:
- O relatório pericial (apresentado nos autos em 08/03/2017 e respectivo relatório de esclarecimento apresentado nos autos em 02/08/2017 e fotografias do local nestes incluídas) bem como os esclarecimentos que sobre eles recaíram, prestados em sede de audiência de julgamento pelo Sr. perito P...;
- Os depoimentos das testemunhas ...
Adiante-se, desde já, que tal como sucede quanto aos documentos - quer no que concerne aos documentos particulares (376º do CC, “a contrario”) quer relativamente àqueles que assumem a natureza de documentos autênticos - estes na parte desprovida de força probatória plena (artº 371º, nº 1, do CC) -, é o princípio da livre convicção do Tribunal, estatuído no art.º 607º, n.º 5, do NCPC, que também rege a valoração da prova testemunhal.
Por outro lado, o resultado da prova pericial, entendido este como compreendendo o relatório da perícia e eventuais complementos, também consubstancia um elemento de prova sujeito à livre apreciação do Tribunal (artº 389º do CC e 489º do NCPC) e o mesmo se diga do resultado da inspecção judicial (art.º 391º do CC).
Ora, a Mma. Juiz do Tribunal “a quo”, ao longo da fundamentação da decisão da matéria de facto, faz apelo, como elemento que concorreu para a formação da sua convicção quanto ao sentido dessa mesma decisão, à inspecção judicial, tendo, aliás, começado por dizer, no início de tal fundamentação, que “A convicção do Tribunal alicerçou-se nos factos admitidos por acordo das partes, no teor dos documentos juntos aos autos a fls. 9 vº a 17, 29 vº a 33 e 105 a 107, na inspecção judicial (cfr. auto a fls. 78 vº), no(s) relatório(s) pericial(ais) de fls. 47 a 57, 89 a 103, nos esclarecimentos do sr. perito, nas declarações de parte do autor e do réu e no depoimento das testemunhas.”, realçando, depois, a inspecção judicial como “...fundamental para apurar as características dos prédios.”.
Ora, a primeira observação que nos cumpre fazer tem a ver, precisamente, com a inspecção judicial, pois que, tendo esta tido lugar, como resulta do acima relatados, nas sessões da audiência final que tiveram lugar em 29-06-2017 e 24-10-2017, nas actas respectivas não se fez constar os elementos úteis que resultaram da inspecção.
Não se observou, pois, o disposto no artº 493º do NCPC (que corresponde ao art.º 615º do pretérito CPC), que determina que, procedendo-se a inspecção judicial, da diligência seja “lavrado auto em que se registem todos os elementos úteis para o exame e decisão da causa, podendo o juiz determinar que se tirem fotografias para serem juntas ao processo”.
Este registo serve para as partes ficarem cientes daquilo que, na perspectiva do julgador, se pode constatar, ou não, no local inspeccionado, servindo, ainda, para relembrar o julgador, na ocasião em que procede à elaboração da decisão relativa à matéria de facto, daquilo que constatou na diligência, para o correlacionar com os restantes elementos probatórios, sendo, ainda, em caso de recurso com impugnação da decisão relativa à matéria de facto, o elemento relativo a essa diligência que possibilita ao Tribunal “ad quem” aferir, em conjugação com os restantes elementos de prova, do acerto da valoração probatória de que resultou essa decisão.
A omissão do auto inspecção a que se reporta o art.º 493º do NCPC, ou dos elementos que esta disposição legal estabelece que nele fiquem registados, não tendo sanção especificamente expressa, integra a falta de observância de uma formalidade que a lei prescreve, consubstanciando, se tiver influência na decisão da causa, nulidade secundária submetida à regra geral do art. 195º do CPC.
Não há dúvida que, realizada, como dão nota as actas das sessões de julgamento de 29-06-2017 e de 24-10-2017, a inspecção judicial, não se consignaram nessas actas os elementos que se tiveram como úteis à decisão da causa. E também é inquestionável que a Mma. Juiz do Tribunal a quo” entendeu existirem tais elementos e que estes assumiram relevo na decisão que proferiu quanto da matéria de facto, pois que neles estribou também essa decisão, como resulta da respectiva fundamentação.
Como se infere do disposto no referido artº 493º, não substitui o “auto em que se registem todos os elementos úteis para o exame e decisão da causa” que a norma manda lavrar, as considerações que, sobre o observado na diligência, se teçam na motivação da decisão relativa à matéria de facto.
Concluindo-se, pois, que no caso em apreço, fundando, o observado através da inspecção, ainda que em conjugação com outras provas, a convicção que esteve na base da decisão proferida quanto à matéria de facto, a absoluta omissão do registo dos elementos a que se reporta o art.º 493º do NCPC, impossibilitando um cabal controlo da decisão de facto, assume clara influência na decisão da causa, consubstanciando, assim, como se disse já, a nulidade prevista no art.º 195º do NCPC.
Sob pena da respectiva sanação, a nulidade prevista no art.º 195º, n.º 1, do CPC, deve ser arguida pelo interessado, na ocasião em que seja cometida, caso este esteja presente (por si, ou pelo seu mandatário), ou no prazo de 10 dias a contar da data em que interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificado para qualquer termo dele, mas neste último caso, só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência (artºs 195º, nº 1, 197º, nº 1, 199º, nº 1 e 149º, nº 1, do NCPC).
Aceita-se que não sendo habitual elaborar o auto de inspecção logo que terminada a diligência, às partes não fosse exigível arguir, nessa altura, a nulidade decorrente da aludida omissão. Contudo, seria normal que no decêndio subsequente a sessão de 24-10-2017, em que foram produzidas as alegações, os ilustres Mandatários das partes estivessem já em condições de verificar a omissão da acta de inspecção e, por conseguinte, de argui-la no prazo de 10 dias a contar dessa ocasião.
Porém, nem mesmo após ser-lhe notificada a sentença veio a Apelante, no aludido prazo de 10 dias ou, sequer, nas alegações do presente recurso, invocar tal nulidade, pelo que esta se sanou, não podendo deixar de se concluir, assim, que nada obsta à validade do contributo probatório da inspecção em causa, o que não significa que a omissão do registo que o artº 493º manda fazer não deixe de ter repercussões processuais, como seja a da impossibilidade de esta Relação, por não ter acesso a todos os elementos de prova em que se fundou a convicção do Tribunal “a quo”, reapreciar o julgamento da matéria de facto.
Efectivamente, o entendimento acima expresso quanto à sanação da nulidade decorrente da falta de auto da inspecção judicial, que é, afinal, aquilo a que se reconduz a omissão, em auto, ou acta, do registo dos elementos a que se reporta o artº 493º, não significa que a ausência desse auto seja inconsequente, já que a inacção das partes ao deixarem de reclamar a referida nulidade perante o Tribunal onde esta foi cometida - para que aí fosse possível suprir a omissão -, conduz a que, posteriormente, a Relação se veja impedida de proceder à cabal reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Esta Relação, embora no contexto das normas do CPC que vigoravam anteriormente à reforma introduzida pelo DL n.º 329-A/95, de 12/12, proferiu Acórdão assim sumariado: “Procedendo o juiz a inspecção judicial sem que da mesma se tenha lavrado o competente auto, cometeu-se nulidade que influi na decisão da causa, pois fica impossibilitado o tribunal de recurso de proceder a exame crítico das provas para delas extrair as devidas conclusões.” (Cfr. BMJ n.º 296, pág. 342)- Acórdão de 5/2/1980, citado, sem discordância quanto ao respectivo entendimento, por Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, a págs. 590, nota 3, do "Manual de Processo Civil” - Coimbra Editora - 1984.
Com a redacção que foi introduzida pelo citado DL nº 329-A/95, a necessidade de elaboração de auto da inspecção judicial deixou de estar limitada aos casos em que a diligência é efectuada pelo Tribunal Singular. Explicitando esta alteração, diz-se no preâmbulo desse DL nº 329-A/95: «… Quanto à prova por inspecção judicial, além de se expressar o ónus de a parte requerente fornecer ao tribunal os meios de viabilizar a realização da diligência, consagrou-se a redução da mesma a auto, independentemente da estrutura colegial ou singular do órgão julgador, até para melhor e mais efectivo exercício dos poderes de controlo, em matéria de facto, em caso de recurso da respectiva matéria.».
Também Lopes do Rego, em anotação ao art.º 615º do pretérito CPC, afirma: “A inspecção é sempre reduzida a auto, independentemente da estrutura colegial ou singular do tribunal, com vista a permitir à Relação o efectivo exercício dos poderes de controlo da decisão sobre a matéria de facto que lhe são conferidos pelo art.º 712.º.” - Comentários ao Código de Processo Civil, I, 2.ª ed., pág. 511.
Já se sabe que a Relação se encontra, relativamente à 1.ª instância, limitada na apreciação dos depoimentos e declarações, designadamente, pela falta da imediação, o que não a impede, contudo, embora com esse “handicap”, conhecido do legislador e que este não considerou relevante para o efeito, de sindicar tal julgamento. Todavia, abstraindo-nos da falta de imediação, a sindicância da decisão sobre a matéria de facto por parte da Relação não pode dispensar, no que concerne ao exame das provas, da verificação de condições idênticas, no que concerne à disponibilidade dos elementos de prova, àquelas que habilitaram o tribunal “a quo” a proferir tal decisão.
Efectivamente, a apreciação da impugnação da decisão de facto, incluindo a que verse meios probatórios que hajam sido gravados, efectuada nos termos do art.º 640.º, nº 1 b) e n.º 2, a), do NCPC, não pode prescindir dessa identidade de condições, não se vislumbrando possível dá-la como verificada quando, elementos de prova em que a convicção do tribunal “a quo” também se escorou para proferir a decisão impugnada, escapam ao controlo do tribunal de recurso.
Escapam a esta conclusão, tão-só, as situações em que a impugnação da matéria de facto apela apenas à inobservância das regras relativas a factos sujeitos à chamada prova tarifada, ou seja, os casos em que se tenha desprezado um elemento que prova plenamente os factos (v.g., confissão judicial escrita), ou em que se tenham dado como provados factos sem que esteja nos autos a espécie de prova que a lei exige para o efeito (v.g., documento autêntico) – situações essas em que a mera constatação da apontada inobservância impõe, “per se”, o êxito dessa impugnação.
É isso, a nosso ver, que ocorre no caso “sub judice”, ao estar vedada a esta Relação a possibilidade de sindicar, por falta de qualquer registo em auto ou em acta, dos elementos constatados na inspecção judicial, o que impossibilita a reapreciação da prova.
A semelhante conclusão se chegou no Acórdão da Relação do Porto de 3 de Julho de 2014 (Apelação nº 1548/10.4TBVCD.P1)7, onde, entre o mais, se escreveu:
«[…] o processo enferma de uma adversidade não anotada pelos recorrentes, nem pelos recorridos, e que consiste em se ter realizado inspecção judicial ao local mas não se ter lavrado o necessário auto de inspecção, conforme exigido pelo artigo 615.º do Código de Processo Civil em vigor à data da realização da inspecção e que corresponde sem modificações ao artigo 493.º do novo Código de Processo Civil, vindo apesar disso a dar-se especial relevo a este meio de prova na motivação da decisão da matéria de facto.
O auto de inspecção que a norma citada determina que seja elaborado, para além de ter de ser ditado pelo Mmo. Juiz que procede à inspecção, deve conter o relato daquilo que ele observou nos locais e pontos que as partes lhe sugeriram que observasse ou que entendeu observar. O auto não serve para apenas dizer que se fez a diligência ou como ela foi conduzida, deve servir para documentar o resultado da observação feita, descrever os aspectos objectivos que foram constatados no local e percepcionados directamente pelo julgador. O objectivo da redacção do auto de inspecção é, como é fácil de intuir, o de permitir que em sede de recurso o tribunal “ad quem” possa, através da simples leitura do auto, ter ao menos uma ideia clara do que foi percepcionado pelo julgador em ordem a formular conclusões sobre essas observações que lhe permitam compreender e interpretar os outros meios de prova.
Isso mesmo resulta claro do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, no qual, a propósito da prova por inspecção judicial, se menciona que se consagrou a redução da mesma a auto, independentemente da estrutura colegial ou singular do órgão julgador, até para melhor e mais efectivo exercício dos poderes de controlo, em matéria de facto, em caso de recurso da respectiva matéria.
No caso, da acta da audiência consta apenas a menção de que a inspecção foi realizada, o que, evidentemente, não constitui a título algum um auto de inspecção ao local que pressupõe um mínimo de descrição do resultado da observação feita no local.
A omissão do auto integrava a nulidade secundária prevista então no nº 1 do artigo 201.º (hoje 195.º) do Código de Processo Civil, mas, em virtude do disposto no artigo 205.º (hoje 199.º), nº 1, 1ª parte, do mesmo diploma, tinha de ser arguida pelas partes no próprio acto, o que não foi feito.
Não o tendo sido, nem em devido tempo nem agora em sede de recurso, e não sendo a nulidade de conhecimento oficioso, o tribunal ad quem está impedido de a conhecer e declarar - nesse sentido Acórdãos da Relação do Porto de 12.06.2012, relatado por Ramos Lopes, e da Relação de Coimbra de 04.10.2005, relatado por Monteiro Casimiro, e de 27.03.2012, relatado por Carlos Querido, in www.dgsi.pt.
Em resultado desta vicissitude o tribunal “ad quem” encontra-se privado da totalidade dos elementos probatórios em que a primeira instância fundou a decisão relativamente a tais factos impugnados. E uma vez que a modificação da matéria de facto pela Relação apenas pode ter lugar se constarem do processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa, resta excluída a possibilidade de a Relação alterar a decisão da matéria de facto em relação a tal matéria - artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil -.
O mais que a Relação pode fazer, não tendo a omissão sido arguida e sanada em devido tempo, é anular, nos termos do artigo 662.º, nº 2, alínea c), 1ª parte, do Código de Processo Civil, a decisão proferida pela 1ª instância com vista à repetição de tal meio de prova, quando reconhecer que, devido à falta de registo dos elementos observados e colhidos na diligência, a decisão sobre os pontos impugnados da matéria de facto é deficiente, obscura ou contraditória.
Na motivação da decisão da matéria de facto a Mma. Juíza a quo afirmou que “estribou a sua convicção, fundamentalmente, com a inspecção realizada ao local, estando aliás juntas aos autos as fotografias - bem elucidativas - do mesmo - vide fls. 325 a 334.” Quanto ao relevo da inspecção, afirmou que “essa diligência, indiscutivelmente, auxiliou na percepção das questões de facto em discussão, e viabilizou deste modo a compreensão deste tribunal sobre a composição dos prédios em causa, e desde logo que estamos em presença de dois distintos prédios, a casa e a “I…”, separados por um muro alto de pedra de mais de dois metros de altura, e a ligá-las existe apenas uma porta com cerca de dois metros de largura.”
É assim evidente que neste caso concreto a inspecção judicial teve um relevo probatório decisivo e que as observações realizadas contribuíram para formação da convicção sobre a matéria de facto em discussão. Acresce que não se vislumbra nem vem acusada a existência de qualquer deficiência, obscuridade ou contradição na decisão relativa à matéria de facto. A mesma é perfeitamente perceptível, permitindo descortinar totalmente aquilo que a Mma. Juíza a quo quis decidir e decidiu efectivamente.
Em suma, face ao relevo da inspecção judicial para a decisão proferida, à inexistência do auto de inspecção judicial e à impossibilidade de este vício ser agora conhecido e produzir efeito em relação ao processado, o tribunal não dispõe efectivamente de todos os meios de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados e, como tal, nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, não pode alterar a decisão da matéria de facto que vem impugnada. […]» - Em sentido idêntico, no domínio do pretérito CPC, o Acórdão desta Relação de Coimbra, de 08 de Novembro de 2011 (Apelação nº 242/2000.C4) - não publicado, ao que se julga -, relatado pela ora 2ª Adjunta.
Esta conclusão alicerça-se, assim, “mutatis mutandis”, por identidade de razões, no fundamento subjacente à seguinte posição, expressa no Acórdão desta Relação, de 22/09/2015 (Apelação nº 198/10.0TBVLF.C1), consultável em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase, relatado pela aqui 2ª Adjunta: “...Convocando o Recorrente para as alterações pretendidas à matéria de facto o conteúdo do auto da inspecção judicial levada ao efeito ao local, além de prova testemunhal, documental e inspecção judicial, não se podendo apreciar um deles, não se pode, exceptuando os casos de modificação oficiosa da matéria de facto permitida pelo art.º 662º do Novo C. P. Civil, valorar somente um dos demais meios de prova convocados para a modificação pretendida.”.
Estando esta Relação, pelo que ficou exposto, impossibilitada, de proceder à requerida reapreciação da matéria de facto, os factos provados e os factos não provados a atender, são aqueles que assim foram considerados na sentença ora sob recurso.
Os pedidos em que os AA. decaíram assentavam no pressuposto de que a parede e o muro em questão eram, em exclusivo, sua pertença, estando abarcados pelo direito de propriedade que invocaram relativamente ao prédio identificado no artº 1º da petição inicial.
Ora os AA não lograram fazer a prova desse pressuposto, sendo certo que a mesma os onerava (artº 342º, nº 1, do CC), havendo a evidenciar, que, em nosso entender, a decisão proferida quanto à matéria de facto não habilita a dar como verificada a existência de qualquer das situações contempladas no nº 3 do artº 1371.º do Código Civil, pelo que não há que trazer à colação, salvo o devido respeito, um qualquer insucesso dos RR no ónus de provarem a compropriedade dessa parede e desse muro.
Assim, o que há a concluir é que, quedando-se inalterada a matéria de facto em que assentou a decisão recorrida, não se detecta, em face das normas legais aplicáveis, que mereça qualquer discordância a decisão de direito tomada pelo Tribunal “a quo”, já que em tal sentença - para a qual aqui se remete - enunciando-se devidamente as questões a resolver, foram estas solucionadas correctamente e com fundamentação adequada, nada mais restando senão confirmá-la e julgar a Apelação improcedente.
III - Decisão:
Em face de tudo o exposto, decidem os Juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra, julgar improcedente a Apelação e confirmar a sentença da 1.ª Instância.
Custas pelos Apelantes (artºs 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6, 663º, nº 2, todos do NCPC). Coimbra, 11/09/201810
(Luiz José Falcão de Magalhães)
(António Domingos Pires Robalo)
(Sílvia Maria Pereira Pires)