Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
755/16.0T8TMR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO DE MENORES EM PERIGO
EXAMES MÉDICOS
CONSENTIMENTO DOS PAIS
NÃO OPOSIÇÃO DA CRIANÇA OU JOVEM
Data do Acordão: 12/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JUÍZO FAM. MENORES - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 9º, 10º E 87º DA LPCJP.
Sumário: 1. No âmbito dos processos de promoção e proteção de menores em perigo, a realização de exames médicos à criança ou jovem depende do consentimento dos pais (ou do representante legal ou da pessoa que tenha a guarda de facto da criança ou do jovem), bem como da não oposição da própria criança ou jovem com idade igual ou superior a 12 anos, exceto nos casos em que exista perigo atual ou eminente para vida ou de grave comprometimento da integridade física ou psíquica da criança ou do jovem.

2. Não podem ser impostos exames médicos aos progenitores sem consentimento destes, por constituírem uma violação dos seus direitos de personalidade.

Decisão Texto Integral:








Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - RELATÓRIO

Nos presentes autos de processo judicial para promoção e proteção de jovens em perigo, instaurados pelo Ministério Público relativamente à menor B..., foi, a 17 de abril de 2020, pelo juiz a quo proferido o seguinte Despacho, com a referência...:

Face à posição (reiterada) da Segurança Social no sentido da importância da diligência (cfr. referências ...), determino, tal como sugerido e promovido, a realização de perícia psicológica e psiquiátrica aos pais e à criança, a fim de, por um lado, se apurarem as capacidades psico-emocionais dos pais, despistar eventual quadro psicopatológico e aferir da adequação das suas competências parentais/modelos educativos às necessidades da criança e, por outro, avaliar o funcionamento psicológico da criança, a qualidade das relações familiares e o impacto dos modelos educativos dos pais no seu desenvolvimento, bem como a eventual vitimação em contexto escolar.”

Por requerimento de 23 de abril de 2020 (referência ...), a menor B... veio manifestar a sua oposição à realização da ordenada perícia.

Por requerimento enviado por mail a 27 de abril de 2020 (referência ...), e em virtude de a patrona nomeada para ambos ter pedido escusa, os progenitores vêm, por email por si subscrito pessoalmente, comunicar a sua oposição à realização das ordenadas perícias à menor e aos progenitores.

 A 07.05.2020 foi pelo juiz proferido o seguinte despacho: “No mais (referências ...), vão os autos ao Ministério Público.

Aberta vista ao Ministério Público, este pronunciou-se nos seguintes termos: “No referente às perícias, as mesmas foram ordenadas por despacho não impugnado.

Donde, promovo que se mantenha o ordenado.”

Pelo Juiz a quo foi, então, a 13 de maio de 2020, proferido o seguinte despacho, com a referência ...:

Referências ...:

Relativamente às questões de natureza escolar, (...).

No tocante às perícias, as mesmas foram ordenadas por despacho não impugnado, pelo que se mantém o já ordenado.

Notifique.”

Quer a Menor (aqui representada pelo patrono nomeado), quer os seus progenitores, não concordando com o decidido relativamente à realização de perícias à menor e aos seus progenitores – decisão esta que consta dos dois referidos despachos, um primeiro a 17 de abril e um outro a 13 de maio, após a manifestação de oposição à realização da perícia por parte da menor e dos progenitores –, vieram interpor recursos de Apelação de tal decisão, cujos fundamentos são parcialmente coincidentes, pelo que, no despacho que os admitiu, se determinou a sua apreciação conjunta, a que agora procedemos.

A Menor B... (representada pelo patrono nomeado) veio interpor recurso de Apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões:

...

Pelo Ministério Público foram apresentadas contra-alegações, sintetizando a sua posição nas seguintes conclusões:

...

Não se conformando com a decisão que determinou a realização da perícia psiquiátrica aos progenitores e à menor, também os Progenitores dela interpõem recurso de Apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões:

...

Pelo Ministério Público foram apresentadas contra-alegações, sintetizando a sua posição nas seguintes conclusões:

...
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr. artigos 635º e 639º do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Legitimidade das técnicas da Segurança Social para requerer uma perícia à menor e aos progenitores.
2. Nulidade da decisão por ausência de fixação do objeto da perícia, em violação do disposto nos arts. 467º, ns. 1 e 3 e 477º, ambos do CPC.
3. Nulidade da decisão contida no despacho de 13 de maio por falta de fundamentação.
4. Relevância da oposição da menor e dos progenitores à realização das ordenadas Perícias.
5. Oportunidade de realização da ordenada perícia psicológica e psiquiátrica aos progenitores e à criança.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
A. Matéria de Facto
Da consulta dos autos temos por relevantes os seguintes factos para a apreciação do objeto de ambas as Apelações:
1. O processo de promoção e proteção relativamente à menor B... foi interposto por requerimento apresentado pelo Ministério Público a 06 de dezembro de 2019.
7. A 17 de abril de 2020 foi proferido o despacho sob impugnação, no qual foi determinada a realização da perícia aos progenitores e à criança.
...
B. Subsunção dos factos ao Direito
Cumpre apreciar cada uma das questões levantadas pela Menor e pelos Progenitores Apelantes nas respetivas alegações de recurso, começando pela invocada necessidade de determinação do objeto da perícia.
Segundo os apelantes, ao determinar a perícia o tribunal violou o disposto nos artigos 476º, nº 2, e 477º do CPC, não determinando o objeto da perícia de modo concreto e impedindo-a de desde modo de exercer o contraditório e de requerer a ampliação ou redução das questões.
Relativamente a tal questão não podemos dar razão aos Apelantes.
O artigo 475º do Código de Processo Civil (CPC) prevê a situação de perícia a requerimento de uma das partes, caso em que não só a parte que a requer deve indicar, desde logo, sob pena de rejeição, o respetivo objeto – enunciando as questões de facto que pretende ver esclarecidas através da diligência –, como a parte contrária é ouvida sobre o objeto proposto, facultando-lhe aderir a este ou propor a sua ampliação ou restrição (nº 1 do artigo 476º).
Em tal situação só após a audição de ambas as partes é determinada a realização da perícia e o respetivo objeto (nº 2 do artigo 476º).
Já quanto à “Perícia oficiosamente determinada”, a que se reporta o artigo 477º do CPC – segundo o qual, “Quando se trate de perícia oficiosamente ordenada, o juiz indica, no despacho em que determina a realização da diligência, o respetivo objeto, podendo as partes sugerir o alargamento a outra matéria” – resulta precisamente existir uma inversão na ordem de formação do objeto da diligência: enquanto na perícia de iniciativa da parte os quesitos do juiz vêm completar os formulados pelas partes, na oficiosa são as partes que vêm ampliar o objeto inicialmente determinado pelo juiz[1].
 No despacho que determinou a realização da perícia, o respetivo objeto encontra-se perfeitamente definido: “(…) determino, tal como sugerido e promovido, a realização de perícia psicológica e psiquiátrica aos pais e à criança, a fim de, por um lado, se apurarem as capacidades psico-emocionais dos pais, despistar eventual quadro psicopatológico e aferir da adequação das suas competências parentais/modelos educativos às necessidades da criança e, por outro, avaliar o funcionamento psicológico da criança, a qualidade das relações familiares e o impacto dos modelos educativos dos pais no seu desenvolvimento, bem como a eventual vitimação em contexto escolar.
E tratando-se de perícia oficiosamente determinada – foi determinada pelo juiz sem que a mesma tivesse sido requerida por qualquer uma das “partes”, tendo-se o juiz limitado previamente a ouvir o ISS.,I.P., de Leira, quanto à necessidade e oportunidade da realização de tal perícia –, o juiz não tinha a obrigação legal de ouvir previamente os intervenientes processuais (os progenitores, a criança e o Ministério Público), determinando o artigo 477º que a audição das partes quanto ao seu objeto ocorrerá em momento posterior ao despacho que a ordene, sendo que as “sugestões” que as partes possam fornecer nem sequer são vinculativas para o juiz[2].
Notificados de tal despacho, a menor e os seus pais poderiam, se assim o tivessem entendido, ter sugerido o alargamento da perícia a outras matérias para além das identificadas na decisão em apreço, em conformidade com a faculdade que lhe é concedida na parte final do citado artigo 477º, não se mostrando violado o contraditório.
Os Progenitores, podendo usufruir de tal faculdade de sugestão do alargamento de tal perícia, optaram por, pura e simplesmente, se oporem à sua realização, sem que tenham aproveitado, ainda que a título subsidiário, para sugerir o seu alargamento a outras questões que tivessem por pertinentes.
Concluindo, não se reconhece a verificação de uma invocada nulidade, seja por “indeterminação” do objeto da perícia, seja por violação do contraditório.
Segundo os Apelantes tal decisão sofre ainda de um outro vício relacionado com a ausência de legitimidade processual das técnicas da Segurança Social, que não são partes no processo, para requererem a realização da perícia, perícia esta que só poderia ter sido requerida pelo Ministério Público, pela menor ou pelos seus pais.
Com vista a auxiliar o tribunal no diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente, pode o juiz, oficiosamente[3] e durante a fase de instrução do processo – assim como também o pode a pedido da criança ou dos seus progenitores – determinar a realização das diligências que entender por necessárias e oportunas, entre as quais se incluem a realização de exames médicos.
Como tal, surge-nos como irrelevante que o tribunal tenha determinado a realização da perícia psicológica e psiquiátrica dos progenitores e da criança a sugestão do Instituto de Segurança Social ou se ter apoiado na sua opinião para aferir da sua necessidade e oportunidade.
De qualquer modo atentar-se-á em que o Instituo de Segurança Social, I.P. (ISS) inclui-se nas entidades “com competência em matéria de infância e juventude”, a que a lei atribui “legitimidade para intervir na promoção dos direitos e na proteção da criança e do jovem em perigo” (artigo 5º, al. d) da LPCJP)[4], incumbindo-lhe no âmbito das suas funções, “avaliar, diagnosticar e intervir em situações de risco e perigo”, “implementar estratégias de intervenção necessárias e adequadas à diminuição ou erradicação dos fatores de risco”, “acompanhar a criança, jovem e respetiva família em execução de plano de intervenção definido pela própria entidade, ou em colaboração com outras entidades congéneres” (artigo 7º, nº 4, als. a) a c), LPCJP).
A proposta de uma medida de apoio e proteção, bem como a sugestão de exames a realizar ou qualquer outro meio de prova, incluem-se, assim, dentro das competências que lhe são atribuídas por lei.
Improcedem, assim, as conclusões de ambas as apelações respeitantes à “ilegitimidade” das Técnicas da Segurança para requererem a realização das perícias em questão.
Quer a menor, quer os seus progenitores, se insurgem contra a decisão contida no despacho de 13 de maio que, face à dedução de oposição por parte da menor e dos seus progenitores à realização das perícias psicológicas e psiquiátricas, se limitou a considerar que “No tocante às perícias, as mesmas foram ordenadas por despacho não impugnado, pelo que se mantem o ordenado”: 
- alega a menor/Apelante que, apesar de atempadamente ter manifestado a sua oposição à realização das perícias, o tribunal manteve a sua posição de realização das perícias sem fundamentar em que se baseia para manter a realização de algo que vai contra a vontade da menor, violando o disposto nos arts. 607º, nº 3 e 615º, nº 1, al. b), ambos do CPC, e importando a nulidade do despacho recorrido (conclusões 6., 7. e 8. das suas Alegações de recurso);
- alegam os Progenitores/apelantes que quer os progenitores, quer a menor, manifestaram nos autos a sua oposição à realização de tal perícia e que o tribunal se limitou a não atender a tal oposição alegando que o despacho não fora impugnado;
- mais alegam os Progenitores que tais perícias são desnecessárias por constarem dos autos perícias psicológicas e psiquiátricas feitas à menor e as seus progenitores que se encontram válidas, que submeter a menor e os seus pais a novas perícias é um ato de intromissão na privacidade da menor e dos progenitores, violando o principio da proporcionalidade.
Vejamos, então, se o tribunal poderia ter mantido a decisão de realização da perícia após a menor e os seus progenitores terem vindo aos autos manifestar a sua oposição e se o despacho que a manteve – despacho proferido a 13 de maio de 2020 – carece da devida fundamentação.
E, nesta parte, teremos de dar razão aos Apelantes.
Tendo, quer a Menor, quer os Progenitores, em resposta à decisão – contida no despacho de 17 de abril – de determinar a realização da perícia aos pais e à menor, vindo manifestar a sua oposição a tal realização, o tribunal, nada dizendo sobre a relevância de tal manifestação de oposição, limita-se a proferir a seguinte decisão. “No tocante às perícias, as mesmas foram ordenadas por despacho não impugnado, pelo que se mantém o já ordenado.”
Do respetivo teor poderá, eventualmente, inferir-se que o juiz a quo possa ter entendido que, não tendo sido objeto de impugnação, a decisão teria transitado em julgado, o que nem sequer é confirmado pelos elementos constantes dos autos. Como já foi referido pela Relatora no despacho de admissão dos recursos, tendo a menor deduzido a sua oposição à realização de tal perícia dentro do prazo geral de 10 dias, o prazo para a impugnação de tal despacho ter-se-ia interrompido, pelo que se entende que, à data em que profere este segundo despacho, a decisão a determinar a realização do exame não transitara ainda em julgado[5].
De qualquer modo, a ser assim – caso tivesse entendido que a decisão a determinar o exame já transitara em julgado –, a decisão deveria ter sido no sentido de se abster de apreciar a oposição deduzida, nada ordenando.
O juiz a quo proferiu decisão a “manter” o já ordenado, sem qualquer alusão à manifestação de oposição por parte da menor e da eventual relevância de tal oposição na decisão de realização da perícia. Ora, mais do que a falta de fundamentação que é apontada a tal despacho, encontramo-nos aqui perante uma omissão de pronúncia. O tribunal não poderia ter “mantido” o já por si ordenado relativamente à realização de tal perícia sem que se pronunciasse expressamente sobre a relevância da oposição manifestada nos autos por parte da menor e as razões que a sustentavam.
A omissão de pronúncia constitui uma nulidade prevista na al. d) do nº 1 do artigo 615º do CPC – o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Reconhecido que a decisão recorrida se encontra ferida de nulidade, o tribunal ad quem deve conhecer do objeto da apelação, desde que disponha de elementos para tal (artigo 665º CPC), pelo que passamos a apreciar a questão da relevância da oposição por parte da criança e por parte dos Progenitores à realização da perícia psicológica e psiquiátrica.
Dispõe, a tal respeito, o artigo 87º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, sob a epigrafe, “Exames”:
1 – Os exames médicos que possam ofender o pudor da criança ou do jovem apenas são ordenados quando for julgado indispensável e o seu interesse o exigir e devem ser efetuados na presença de um dos progenitores ou de pessoa da confiança da criança ou do jovem, salvo se o examinado o não desejar ou o seu interesse assim o exigir.
(…)
3 – Aos exames médicos é correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 9º e 10º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, salvo nas situações de emergência previstas no artigo 91º”.
O artigo 9º, para o qual se remete, sob a epígrafe “Consentimento”, determina que a intervenção das comissões de proteção das crianças e jovens “depende do consentimento expresso e prestado por escrito dos pais, do representante legal ou da pessoa que tenha a guarda de facto”.
E, o artigo 10º, sob a epigrafe, “Não oposição da criança e do jovem”, dispõe o seguinte:
1 – A intervenção das entidades referidas nos artigos 7º e 8º depende da não oposição da criança ou do jovem com idade igual ou superior a 12 anos.
2 – A oposição da criança com idade inferior a 12 anos é considerada relevante de acordo com a sua capacidade para compreender o sentido da intervenção.
Da conjugação de tais normas resulta que, ressalvadas as situações de emergência previstas no artigo 91º – existência de perigo atual ou iminente para a vida ou de grave comprometimento da integridade física ou psíquica da criança ou do jovem –, em que o tribunal pode prescindir de tal consentimento:
i) a realização de exames médicos à criança ou, por maioria de razão, aos progenitores, depende do consentimento dos progenitores, nos termos do artigo 9º;
ii) a realização de exames médicos à criança, depende ainda da não oposição da criança ou do jovem, quando com idade igual ou superior a 12 anos; a oposição da criança com idade inferior a 12 anos é considerada relevante de acordo com a sua capacidade para compreender o sentido da intervenção.
Como afirma Tomé D’Almeida Ramião[6], a realização de exames médicos depende ainda de consentimento dos pais, do representante legal ou da pessoa que tenha a guarda de facto da criança ou do jovem e da não oposição da própria criança ou jovem com idade igual ou superior a 12 anos, exceto nos casos em que exista perigo atual ou eminente para vida ou de grave comprometimento da integridade física ou psíquica da criança ou do jovem.
Tendo a menor 10 anos à data da decisão que determinou a realização de tal perícia, a sua oposição poderia ser considerada relevante de acordo com a sua capacidade para compreender o sentido da intervenção, e tendo a mesma, à presente data, atingido já os 11 anos, e tratando-se de uma criança identificada nos autos como “inteligente”, afigura-se-nos que a sua oposição deverá ser tida por relevante, obstando à realização do exame. Poder-se-á colocar a questão se a oposição relevante pode ser manifestada nos autos através do seu patrono ou se será, apenas, aquela que a criança manifeste por si própria e não através dos seus representantes ou do seu patrono.
Esta necessidade de não oposição por parte da criança, constitui uma manifestação do direito de audição e participação da criança ou jovem, consagrado no artigo 4º, al. j), que em certos casos pode ser concretizado através do respetivo patrono e noutros envolve a audição presencial e direta da criança envolvida (ex., audição prevista no art. 84º LPCJP, e art. 5º RGPTC).
Inserindo-se no direito a ser ouvida e a ser tida em consideração a sua opinião – tem direito a emitir a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem, desde que a sua capacidade para compreender o sentido da intervenção o aconselhe –, e uma vez que o peso a dar à sua opinião terá de ser avaliado caso a caso, tenderíamos a considerar que tal manifestação de oposição deveria ser prestada pessoalmente pela criança, perante os técnicos da SS ou perante o Tribunal.  Como tal, caso o tribunal tivesse dúvidas sobre se a oposição à realização do exame correspondia efetivamente à vontade da criança, bastar-lhe-ia chamá-la a tribunal para a ouvir pessoalmente sobre a realização de tal perícia.
De qualquer modo, independentemente de considerarmos, ou não, relevante a oposição manifestada nos autos em nome da menor, ambos os progenitores manifestaram a sua oposição, quer à perícia psicológica a realizar à criança, quer à perícia psicológica a realizar aos progenitores.
E relativamente aos progenitores, nunca se lhes poderia impor a realização de exames médicos, entre os quais se incluem os exames psicológicos e psiquiátricos relativos às suas pessoas, quer porque essa imposição, na prática, inviabilizaria a realização do exame por falta de colaboração do examinado, quer porque, constituiria uma violação dos seus direitos de personalidade[7].
Quanto ao à Perícia a realizar na pessoa da menor, não tendo o tribunal a quo (pelo menos até agora) qualificado a situação em apreço no âmbito do artigo 91º da LPCJP – existência de perigo atual ou iminente para a vida ou de grave comprometimento da integridade física e psíquica da criança ou jovem –, que legitimaria a imposição do tribunal, também ela depende do consentimento expresso dos progenitores.
Como tal, e independentemente de os elementos constantes dos autos apontarem para a oportunidade e necessidade de realização de tais perícias – as únicas perícias referidas nos autos tiveram lugar em janeiro de 2018[8], mais de dois anos antes da instauração do presente processo de promoção e proteção, e, encontrando-se em causa dificuldades da menor ao nível da socialização quer inter pares, quer com os adultos em contexto escolar, tais perícias afiguram-se como o meio adequado à compreensão de tais dificuldades –, considera-se que a manifestação de oposição por parte dos pais a tais perícias – a efetuar à menor e às progenitores –  constituiu um impedimento à sua realização.

Pelo exposto, as apelações serão de proceder.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar procedentes as Apelações interpostas pela menor e pelos progenitores, revogando as decisões recorridas, constantes dos despachos proferidos a 17 de abril e 13 de maio de 2020, na parte em que determinam a realização de perícias psicológicas e psiquiátricas à menor e aos seus progenitores.

Sem custas.

                                             Coimbra, 10 de dezembro de 2020

                     V – Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº 7 do CPC.

1. No âmbito dos processos de promoção e proteção, a realização de exames médicos à criança ou jovem depende do consentimento dos pais (ou do representante legal ou da pessoa que tenha a guarda de facto da criança ou do jovem), bem como da não oposição da própria criança ou jovem com idade igual ou superior a 12 anos, exceto nos casos em que exista perigo atual ou eminente para vida ou de grave comprometimento da integridade física ou psíquica da criança ou do jovem.

2.  Não podem ser impostos exames médicos aos progenitores sem consentimento destes, por constituírem uma violação dos seus direitos de personalidade.


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[1] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2, Arts. 362º a 626º, 3ª ed., Almedina, p.328.
[2] Como sustenta José Lebre de Freitas, a previsão de que o alargamento do objeto da perícia passou a poder apenas ser sugerido pelas partes, aponta para um poder insindicável: sem prejuízo de uma decisão criteriosa, não fica o juiz vinculado a tais sugestões – obra e local citados, p. 328.
[3] Tratando-se de um processo de jurisdição voluntária (artigo 100º da LPCJP), o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, só sendo admissíveis as provas que o juiz considere necessárias (nº2 do artigo 986º CPC).
[4] Com a atribuição de “assegurar, nos termos da lei, assessoria técnica aos tribunais em matéria de promoção e proteção de crianças e jovens em perigo e tutelar cível” (al. p), do artigo 3º da Lei Orgânica do Instituto de Segurança Social, I.P., aprovado pelo DL nº 83/2012, de 30 de março.
[5] O que acaba por ser reconhecido pelo tribunal a quo ao admitir a Apelação que os progenitores em julho de 2020 vêm a interpor do tal despacho de 17 de Abril.
[6] “Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, Anotada e Comentada”, Quid Juris, Maio 2019, p.201.
[7] Em tal sentido, embora reportando-se à realização de exames de ADN em ação de investigação de paternidade, se pronunciou o Acórdão do Tribunal Constitucional nº616/98, de 21-10-98, relatado por Artur Maurício.
[8] Cfr., proposta de Plano de Intervenção para Execução da Medida, enviado a tribunal a 23.02.2020.