Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1786/14.0TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: DOAÇÃO MODAL
DOAÇÃO DE TERRENOS A ENTIDADE PÚBLICA
DISPENSA DE FORMA
Data do Acordão: 05/31/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – VISEU – INST. LOCAL – SEC. CÍVEL – J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 62º CRP; 202º, Nº 2, E 965º C. CIVIL.
Sumário: I – Não se duvida que à luz do nosso ordenamento jurídico, designadamente do art.º 62.º da CRP, o direito de propriedade é um direito fundamental, incluído no regime dos direitos, liberdades e garantias. Daqui não decorre, contudo, que tal direito não possa ser sacrificado, sofrendo restrições ou limitações, de que é paradigma a expropriação por utilidade pública consagrada no n.º 2 do mesmo preceito.

II - Mas se “a expropriação, através da declaração de utilidade pública, é o único acto dotado de dignidade suficiente para lesar os direitos ou interesses legítimos do particular”, pressupondo, em todo o caso, a atribuição de uma justa indemnização, afigura-se que nada obsta a que o titular do direito de propriedade, no pleno exercício desse mesmo direito, proceda à sua transmissão (no todo ou em parte), a título gratuito, a favor de um ente público, para efeitos da sua afectação ao interesse público e consequente integração no domínio público.

III - A atribuição (formação) do carácter dominial (ou seja, a aquisição ou submissão de um bem aos os fins do domínio público [utilidade pública]) de uma coisa, não está sujeita à disciplina fixada no CC para a transmissão de bens imóveis, designadamente a nível de forma. Na realidade, a lei civil rege unicamente para as relações jurídico-privadas, sendo que as coisas que se encontram no domínio público se consideram fora do comércio jurídico-privado (v. art.º 202.º, n.º 2 do CC).

IV - Os bens podem ingressar no domínio público quer com base em actos de posse do executivo, de um ente autárquico ou das respectivas populações, como intermediárias, conducentes à usucapião, como forma de aquisição da posse originária, quer com base em cedência e tradição consubstanciadoras da «dicatio ad patriam», como forma de aquisição da posse derivada.

V - No caso em apreço, tendo a ré entrado na posse da parcela destacada do prédio dos AA na sequência do referido acordo e tendo-a integrado no arruamento denominado Rua da Barroca, não subsiste dúvida quanto à sua afectação ao interesse público, do que decorreria a sua inclusão no domínio público da autarquia (cf. art.º 84.º, n.º 1, al. d) da CRP) e consequente subtracção ao comércio jurídico privado, nos termos do art.º 202.º do CC, a obviar ao pretendido efeito restitutório.

VI - Nos termos do art.º 965.º do CC, na doação modal, quer o doador, quer os seus herdeiros têm legitimidade para exigir do donatário ou dos seus herdeiros o cumprimento dos encargos, se necessário através de meios coactivos. Daqui resulta que o incumprimento culposo dos encargos da doação modal poderá fundamentar a imposição coerciva ao faltoso dos correspondentes deveres (podendo ainda fundar a resolução da doação nos termos do art.º 966º, mas apenas quando previsto no contrato).

Decisão Texto Integral:




I. Relatório

A... e mulher F..., reformados, residentes na Rua ..., instauraram acção declarativa, a seguir a forma do processo comum, contra Freguesia de ..., com sede no ..., pedindo a final:

“a) fosse declarada a nulidade do negócio/contrato de compra e venda celebrado entre AA e Ré e objecto dos autos, por inobservância da forma legal;

b) no caso de se entender que as partes celebraram uma doação da parcela do imóvel, fosse declarada a nulidade desse negócio, por inobservância da forma legal;

c) em qualquer caso, fosse a ré condenada a restituir aos AA tudo o que tivesse sido prestado ou, não sendo possível a restituição em espécie, o valor correspondente, que, no caso, equivale ao pagamento do valor de €5.080,50 (cinco mil e oitenta euros e cinquenta cêntimos);

a) fosse declarado que a ré não cumpriu de forma culposa o contrato celebrado com os AA;

b) devendo ser condenada no cumprimento da prestação a que se vinculou, ou seja, à execução do muro de vedação da propriedade dos AA identificada em 1.º, na parte que confronta com a Rua do Barreiro, nos termos e condições melhor definidas nos art.ºs 5.º e 9.º da petição inicial e de acordo com as melhores artes e técnicas de construção civil;

c) fosse a ré condenada no pagamento da sanção pecuniária compulsória de €50,00 pro cada dia de atraso no cumprimento da sua prestação, devendo suportar as custas e encargos legais.

Em fundamento alegaram, em síntese útil, que são os donos do prédio que identificam no art.º 1.º, pinhal sito ao Barreiro, freguesia de ..., com a área inscrita de 1473 m2 e real de 1617 m2, a confrontar ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ... e descrito na CRP de ... Tal prédio sempre esteve vedado com muro de pedra com a altura de cerca de 80 cm, nas suas confrontações poente e sul.

Mais alegaram que, pretendendo alargar a Rua do Barreiro, a Ré chegou a acordo com os demandantes, nos termos do qual estes procederam à cedência de uma faixa de terreno no limite poente do seu prédio, com o comprimento de cerca de 30 metros por cerca de 2,25 mt de largura, num total de 67,74 m2, obrigando-se a demandada, em contrapartida, a executar/reconstruir, em toda a referida extensão e em substituição do muro de pedra antiga, um outro muro de blocos, com o mínimo de 80 cm de altura, com pilares e lentel com ferro e acabado com chapisco e reboco, tudo executado e concluído de acordo com as melhores artes e técnicas de construção civil, negócio este que veio a ser reduzido a escrito em papel timbrado da Freguesia de ...

Na sequência de celebração do dito acordo, a Ré procedeu, durante o ano de 2008, ao alargamento da sobredita Rua do Barreiro, tendo integrado no leito de tal arruamento a faixa de terreno do prédio dos Autores acima referida, demolindo para o efeito o muro de vedação de pedra que nele existia. Não obstante, nunca a Ré edificou, até aos dias de hoje, o muro ao longo da confinância do prédio com o referido arruamento, conforme se havia obrigado, a despeito das interpelações que para tanto lhe foram feitas.

Acresce que o acordo celebrado é nulo por inobservância da forma legalmente prescrita, quer se entenda que estamos perante um contrato oneroso, quer se entenda que se trata de negócio gratuito, atento o disposto nos art.ºs 875.º e 947.º, n.º 1 do CC. Todavia, porque a restituição da parcela incorporada no arruamento não é já possível, por ter integrado o domínio público, deverá a Ré ser condenada na restituição do valor correspondente, à razão de €75,00 por m2 ou, em alternativa, a reconstruir o muro conforme se havia obrigado, caso em que se impõe a sua condenação numa sanção pecuniária compulsória de valor não inferior a €50,00 por dia.

Regularmente citada, contestou a Ré, acusando os AA de estarem a actuar em abuso de direito uma vez que, conforme relatam, foram os próprios quem recusou a construção do muro quando a contestante pretendeu fazê-lo, uma vez que, segundo então invocaram, haviam celebrado acordo com a sociedade de construções ..., Lda., nos termos do qual esta procederia à edificação de uma moradia em banda no prédio em causa, o que importaria a demolição de eventual muro que a Ré ali executasse, pelo que a edificação do muro de vedação, na sua localização final, ficaria a cargo da empreiteira. E foi esse o motivo pelo qual a contestante não procedeu à edificação do muro de vedação na confinância com a Rua do Barreiro, conforme se havia obrigado, tanto mais que cumpriu todos os acordos que na mesma altura celebrou com os restantes proprietários que contribuíram para o alargamento do referido arruamento.

Deste modo, concluiu, não foi a Ré quem incumpriu o acordo, mas antes os AA quem renunciou à contrapartida acordada, sendo claramente abusivas as pretensões formuladas.

Os AA responderam à matéria de excepção, negando ter renunciado à contrapartida acordada a qual, em todo o caso, teria de revestir a forma escrita, pelo que sempre deverá improceder.

Devolvendo a imputação de litigância de má-fé, requereram a final a condenação da Ré a este título.

Fixado o valor da causa, foi dispensada a realização da audiência prévia e os autos remetidos para julgamento.

Teve lugar audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida douta sentença que decretou a total improcedência da acção, com a consequente absolvição da ré de todos os pedidos formulados, tendo absolvido ambas as partes da imputada litigância de má-fé.

Inconformados, apelaram os AA e, tendo desenvolvido as razões da sua discordância nas alegações apresentadas, remataram-nas com as seguintes conclusões:

...

Contra alegou a ré, defendendo naturalmente a manutenção do julgado.

Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, as questões suscitadas pelos apelantes reconduzem-se a saber se ocorreu erro de julgamento no que respeita aos factos vertidos na sentença sob os n.ºs 10 a 14 e quanto aos que foram considerados não provados, bem como errada qualificação do acordo celebrado entre AA e Ré, o qual deverá ser declarado nulo por ausência da forma legalmente prescrita, devendo em todo o caso considerar-se que a obrigação a que a ré se vinculou não se encontra extinta.

Da impugnação da matéria de facto

Por razões de ordem lógica e metodológica, sabido que as questões de facto precedem as de direito, começaremos por apreciar as primeiras.

...

Resulta do que vem de se expor que a decisão proferida quanto à matéria sob impugnação se harmoniza perfeitamente com a prova produzida, acolhendo a versão que, com elevado grau de probabilidade, corresponde àquilo que efectivamente se passou. Deste modo, e sabido que o juiz não poderá almejar alcançar a certeza absoluta, fora do seu alcance, impõe-se confirmar a decisão proferida quanto aos factos em causa.

2. Fundamentação

De facto

Agora estabilizada e lógica e cronologicamente ordenada, é a seguinte a matéria de facto a considerar:

1. Os Autores são donos do seguinte prédio rústico: pinhal, sito ao Barreiro, freguesia de ..., com a área inscrita de 1473 m2 e real de 1617 m2, a confrontar ...

2. Desde tempos imemoriais a até ao ano de 2007, tal prédio rústico esteve vedado, nos seus limites poente e sul, com um muro de pedra antiga com cerca de 80 cm de altura.

3. No ano de 2006 a Ré iniciou diligências no sentido de vir a concretizar o alargamento da Rua do Barreiro, situada a poente daquele prédio e que confina directamente com o mesmo.

4. Para tanto, solicitou aos Autores a cedência de uma faixa de terreno do seu referido prédio, necessária ao pretendido alargamento, ou seja, uma faixa de terreno no seu limite poente e em toda a extensão de norte a sul.

5. O que obteve a concordância dos Autores, com a contrapartida de a Ré executar/reconstruir aos Autores, em toda a extensão de comprimento referida (cerca de 30 metros) e em substituição do referido muro de pedra antiga, um muro de blocos, nada tendo sido acordado quanto à sua altura, nem quanto ao seu revestimento.

6. Para efeitos de formalização de tal acordo, em 14/11/2006 foi emitida em papel timbrado da Freguesia de ... uma Declaração, subscrita por M... (filha e representante dos Autores, na altura emigrados em França) e pelo então Presidente da Junta, ..., nos termos da qual aqueles declararam ceder à segunda, gratuitamente, “o terreno necessário para o alargamento do caminho em Rua do Barreiro/Barbeita, exigindo como contrapartida a reconstrução do muro em blocos na parte a confrontar com a Rua do Barreiro”, tendo-se a Junta de Freguesia comprometido “a executar a contrapartida exigida”, tudo conforme consta do documento de fls. 24.

7. Durante o ano de 2008, a Ré, com o consentimento dos Autores, concretizou o almejado alargamento da sobredita Rua do Barreiro, tendo integrado no leito de tal rua a faixa de terreno do prédio dos Autores supra referida em 4., demolindo para o efeito o muro de vedação de pedra que nele existia.

7-A. A faixa de terreno que os Autores concordaram em ceder tinha o comprimento de cerca de 30 metros e a largura de cerca de 2,25 metros, num total de 67,74 m2.

7-B. Com a cedência da parcela de terreno referida no ponto anterior, o prédio identificado em 1. passou de uma área de 1684,74 m2 para uma área de 1617 m2.

8. A Ré não reconstruiu o muro de vedação no limite poente do prédio dos Autores.

9. A Ré pretendeu fazer o muro no prédio dos Autores mas estes recusaram, uma vez que tinham um acordo com um empreiteiro, ..., Lda., para construção de uma moradia em banda naquele prédio.

10. Atenta essa construção, referiram que a Câmara Municipal de ... exigia como condição para aprovação do projecto um passeio à volta do prédio, pelo que não valeria a pena construir o muro, porque aquando da futura edificação teriam de demolir e reconstruir novamente o muro, ficando o mesmo antes a cargo do construtor/sociedade.

11. Os Autores recusaram a construção do muro, por várias vezes, de forma peremptória e na presença do fiscal da Câmara Municipal.

12. Sucede que a sociedade de construção ..., Lda., entrou em crise financeira em meados de 2010, tendo o Sr. F... renunciado à gerência e, consequentemente, não foi avante o projecto de construção dos Autores.

13. Os Autores nunca manifestaram à Ré que a sua obrigação se mantinha caso o negócio com a referida sociedade não se lograsse.

14. A Ré cumpriu acordo idêntico que fez com todos os outros proprietários dos prédios naquela zona.

15. Os Autores enviaram à Ré a carta registada com AR de 24/5/2013 constante de fls. 25 a 27, solicitando o cumprimento da obrigação de reconstrução do muro no prazo máximo de 30 dias, aludindo a anteriores interpelações verbais, aqui se dando por reproduzido, quanto ao mais, o seu teor.

16. A Ré sempre que foi interpelada respondeu em conformidade, conforme doc. junto a fls. 69 e 70, datada de 3 de Junho de 2013, no qual refere “No decurso da obra as indecisões de V.ª Ex.ª para concretização da reconstrução do muro foram várias, pelo motivo invocado de que tinha um acordo celebrado com o empreiteiro de construção civil, Sr. F..., Lda (…) para a construção de uma moradia em banda no seu terreno e que pelo motivo do Município de ... lhe estar a exigir a construção de um passeio à volta do seu terreno não valeria a pena reconstruir o muro, como era intenção desta autarquia (…).

Por informação posterior por parte de V.ª Ex.ª que face aos problemas fiscais e financeiros por parte do seu empreiteiro, Sr. F..., terão desistido do acordo assumido, estando V. Ex.ª neste momento a tentar fazer passar a inverdade de que esta autarquia local não cumpriu o acordo e que os seus dirigentes não são pessoas de bem.

(…) A sua pouca sorte no acordo com o seu empreiteiro não servirá agora como argumento de fazer passar esta autarquia local como não cumpridora, volvidos cinco anos”, aqui se dando por reproduzido, quanto ao mais, o respectivo teor.

De Direito

Da natureza jurídica do acordo celebrado entre AA e Ré

Analisando o acordo celebrado entre os AA, então representados por sua filha, e a aqui ré Junta de Freguesia de ..., considerou a Mm.ª juíza que se tratava de uma doação com encargos. Não obstante, estribando-se na doutrina acolhida pelo TRG no acórdão de 2/11/2005, proferido no processo n.º 1500/05.2, que expressamente invocou, e na ponderação de que “a parcela de terreno que foi cedida pelos Autores se destinava ao alargamento de uma rua pública e por isso nela foi integrada, dessa cedência resultou a afectação de um bem aos fins do domínio público”, concluiu que tal acto não se encontrava sujeita à disciplina fixada no Código Civil para a transmissão de imóveis, donde não carecer de revestir a forma de escritura pública, não padecendo por isso de qualquer vício formal.

Insurgem-se os AA contra tal entendimento, pretendendo que, quer ao acordo celebrado caiba a qualificação de contrato de compra e venda, conforme lhes parece mais adequado, quer se trate de uma doação, entendimento adoptado na sentença recorrida, sempre o mesmo será nulo por inobservância da forma legalmente prescrita, a determinar o efeito restitutório ou, a entender-se que tal não é possível, a atribuição do valor correspondente, ainda como consequência do regime da nulidade. A essa mesma solução se chegará, acrescentam, ainda que se venha a entender ter ocorrido uma expropriação, atento o preceituado nos art.ºs 10.º e 11.º do CE (cf. conclusão 8.ª).

No que respeita à questão que ora nos ocupa, não se duvida que à luz do nosso ordenamento jurídico, designadamente do art.º 62.º da CRP, o direito de propriedade é um direito fundamental, incluído no regime dos direitos, liberdades e garantias. Daqui não decorre, contudo, que tal direito não possa ser sacrificado, sofrendo restrições ou limitações, de que é paradigma a expropriação por utilidade pública consagrada no n.º 2 do mesmo preceito.

Mas se “a expropriação, através da declaração de utilidade pública, é o único acto dotado de dignidade suficiente para lesar os direitos ou interesses legítimos do particular”[1], pressupondo, em todo o caso, a atribuição de uma justa indemnização, afigura-se que nada obsta a que o titular do direito de propriedade, no pleno exercício desse mesmo direito, proceda à sua transmissão (no todo ou em parte), a título gratuito, a favor de um ente público, para efeitos da sua afectação ao interesse público e consequente integração no domínio público.

Versando sobre caso em tudo idêntico, considerou-se no acórdão da Relação do Porto de 20/5/2014[2] que “A parcela de terreno que o A. cedeu e a autorização que deu para que o muro fosse demolido, tiveram em vista o alargamento de um caminho público, vicinal.
Portanto, estamos perante a afectação de um bem aos fins do domínio público da R.

Ora, a atribuição (formação) do carácter dominial (ou seja, a aquisição ou submissão de um bem aos os fins do domínio público [utilidade pública]) de uma coisa, não está sujeita à disciplina fixada no CC para a transmissão de bens imóveis, designadamente a nível de forma. Na realidade, a lei civil rege unicamente para as relações jurídico-privadas, sendo que as coisas que se encontram no domínio público se consideram fora do comércio jurídico-privado (v. art.º 202.º, n.º 2 do CC). A este propósito ensinava Marcello Caetano (Manual de Direito Administrativo, II, 9ª ed., pág. 921) que a atribuição do carácter dominial de um imóvel pode fundar-se designadamente na simples afectação à utilidade pública (isto é, na aplicação do imóvel ao fim de utilidade pública, como seja a abertura de uma via de circulação). O que não significa, bem entendido, que ao domínio público não possam sobrevir bens adquiridos pelos modos previstos no comércio jurídico-privado (como seja a usucapião) ou usando-se de formas e formalidades próprias do comércio jurídico-privado (como seja a simples forma escrita ou a escritura pública). O que se diz é que a aquisição do carácter dominial não está sujeita obrigatoriamente aos modos, formas e formalidades próprios do comércio jurídico-privado. Temos assim que “in casu” o acto de afectação da coisa cedida aos fins da utilidade pública representou por si só a aquisição do respectivo domínio, por parte da R., da parcela de terreno em causa.

Bem se vê deste modo que o acordo estabelecido entre A. e R. não tinha, para valer juridicamente, que ser formalizado por escritura pública. O que significa que nulidade alguma foi, por inobservância de forma, praticada. A situação em causa é aliás subsumível àquilo a que a doutrina e a jurisprudência italianas designam de dicatio ad patriam. A dicatio (cedência) consiste basicamente em uma pessoa ceder para uso público (designadamente para fins de “strade vicinali” [caminhos vicinais]) bens de sua propriedade, o que é considerado como um meio de aquisição da coisa para o domínio público e uma perda para o tradens. A propósito desta temática expende Durval Ferreira (v. Posse e Usucapião, 2ª ed., pág. 103) que a regra da exigência da escritura pública se circunscreve às relações que tenham por objecto coisas submetidas ao comércio jurídico-privado, de sorte que não abrange as declarações de vontade (a começar pela do cedente) manifestadas para o ingresso da coisa no domínio público. E observa que a dicatio é um meio específico e autónomo de ingresso da coisa no domínio público, fundado justamente na renúncia do particular à sua propriedade».

Impõe-se, pois, concluir que o acto em causa não padece de invalidade por falta de forma”.

Em sentido idêntico, ponderou-se no acórdão do STJ de que “A “dicatio ad patriam” ou a cedência ao domínio público é, por si só, um instrumento de aquisição da posse a favor da colectividade, à imagem do domínio público, mas também, em sentido inverso, um meio da sua perda pelo «tradens» e, finalmente, uma via de aquisição do domínio correspondente a essa posse, desde logo, se esta, enquanto pública, se prolongou pelo tempo necessário para a usucapião, recorrendo-se para o cômputo do prazo respectivo, se necessário, ao instituto da junção ou acessão da posse anterior do «tradens», autor da «dicatio», nos termos do preceituado pelo artigo 1256º, do CC.

A «dicatio ad patriam» traduz-se, assim, no facto, realizado por qualquer sujeito, de admitir o uso público em relação aos bens da sua propriedade, num instrumento específico e autónomo de ingresso da coisa no domínio público, de per si, como instituto de direito público.

(…) Apesar de o negócio jurídico subjacente à entrada da ré na posse da parcela de terreno em análise, ou seja, o contrato de permuta, não se mostrar reduzido a escritura pública, o mesmo não é nulo, por inobservância de forma legal, porquanto a cedência representa o vínculo jurídico da acessão e a aludida exigência formal contende com as coisas existentes no comércio jurídico privado, com exclusão dos acordos relacionados com o ingresso dos bens no domínio público, atento o preceituado pelos artigos 202º, do CC, 80º e 81º, do Código do Notariado.

Os bens podem ingressar no domínio público, quer com base em actos de posse do executivo, de um ente autárquico ou das respectivas populações, como intermediárias, conducentes à usucapião, como forma de aquisição da posse originária, quer com base em cedência e tradição consubstanciadoras da «dicatio ad patriam», como forma de aquisição da posse derivada (…)”.

No caso em apreço, tendo a ré entrado na posse da parcela destacada do prédio dos AA na sequência do referido acordo e tendo-a integrado no arruamento denominado Rua da Barroca, não subsiste dúvida quanto à sua afectação ao interesse público, do que decorreria a sua inclusão no domínio público da autarquia (cf. art.º 84.º, n.º 1, al. d) da CRP) e consequente subtracção ao comércio jurídico privado, nos termos do art.º 202.º do CC, a obviar ao pretendido efeito restitutório.

Não obstante, não falta quem entenda que para o reconhecimento da dominialidade pública não basta a afectação ao uso público, sendo necessária uma apropriação legítima por parte da entidade administrativa, pressupondo um regular processo expropriativo ou a celebração de um válido negócio jurídico de direito privado[3]. Todavia, mesmo a perfilhar tal entendimento, considerando a factualidade apurada nos autos cremos ser de negar, ainda assim, o efeito restitutório. Vejamos:

Atendendo aos contornos do negócio celebrado entre AA e Ré, temos desde logo como elemento a considerar a declaração de que se tratava de uma cedência a título gratuito, ou seja, a beneficiária Junta da Freguesia nada tinha que pagar a título de contrapartida pela cedência do terreno. É certo que se obrigou a reconstruir o muro delimitador do prédio na sua confinância com o arruamento, mas a obrigação “de facere” assim assumida não reveste a natureza de preço devido pela parcela de terreno cedida, preço que, conforme resulta claro do disposto no art.º 879.º do CC, é elemento indispensável à caracterização de um contrato como de compra e venda.

Diz-se modo “o encargo a que o autor do negócio vincule o declaratário, em benefício do declarante, de terceiros ou até no próprio interesse do declaratário”, noção que se extrai do artigo 962.º (e também do art.º 2244.º) do CC[4]. A cláusula modal é, na sua natureza, uma estipulação acessória típica das liberalidades, vinculando o beneficiário da atribuição gratuita a uma determinada obrigação ou comportamento, podendo consubstanciar-se numa acção ou omissão. Funciona como uma restrição à liberalidade, mas não como contraprestação[5], pelo que o contrato aqui em causa seria de qualificar de doação com encargo, nos termos previstos no art.º 963.º do mesmo diploma legal[6], tal como foi entendido na sentença apelada.

Considerando quanto preceituava à data o n.º 1 do art.º 947.º, a doação de coisa imóvel, conforme era o caso, carecia de ser formalizada por escritura pública, sob pena de nulidade (art.º 220.º). Não obstante, é incontornável que a ré adquiriu posse sobre a aludida parcela e, actuando de boa-fé, afectou-a a obra pública, na prossecução do interesse público (sendo ainda de presumir, segundo presunção judiciária autorizada, que também os AA ficaram beneficiados, dada a mais valia que um arruamento melhorado sempre traz a um prédio com pretensões edificativas). E quando assim sucede, vem sendo acolhido pelos nossos tribunais o princípio da intangibilidade da obra pública, “que mais não é do que uma versão administrativista das figuras do abuso de direito ou da colisão de direitos previstas nos art.ºs 334.º e 335.º do CC.

Posto que tal princípio não esteja expressamente consagrado na lei, encontra sustentação no disposto nos art.ºs 159.º e segs. do CPTA, na medida em que se permite afastar a execução de julgado em casos em que esta provoque grave lesão do interesse público. Ou ainda no art.º. 173.º, n.º 3, do CPTA, nos termos do qual a situação jurídica fundada em actos consequentes praticados há mais de um ano é susceptível de obter uma garantia que impede a sua modificação quando os danos sejam de difícil ou impossível reparação e for manifesta a desproporção existente entre o interesse na manutenção da situação e o interesse na execução da sentença anulatória. E também no art.º. 134.º, n.º 3, do CPA, nos termos do qual o efeito da nulidade do acto administrativo “não prejudica a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de actos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais do direito”. Outrossim com o art.º. 162º, nº 3, do novo Cód. de Proc. Administrativo, aprovado pela Lei nº 4/15, de 7-1, segundo o qual o disposto quanto à nulidade dos actos administrativos “não prejudica a possibilidade de atribuição de efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de actos nulos, de harmonia com os princípios da boa-fé, da protecção da confiança e da proporcionalidade ou outros princípios jurídicos constitucionais, designadamente associados ao decurso do tempo”.

Com recurso a tal princípio geral, em casos em que a condenação na restituição do prédio livre e desocupado constituiria um resultado manifestamente inadequado, por resultarem gravemente afrontados interesses de ordem pública, é possível sustentar uma solução diversa daquela que resultaria da aplicação das regras exclusivamente extraídas do direito privado.

Ainda que não esteja expressamente consagrado tal princípio (e embora também não seja pacífica a sua admissibilidade no nosso ordenamento jurídico (…), o certo é que a sua intervenção é limitada a casos que verdadeiramente o justifiquem e que se caracterizem por comportamentos adoptados pela entidade a favor de quem foi declarada a utilidade pública expropriativa e que não ultrapassem subjectivamente os limites da culpa leve”[7].

Tal doutrina adequa-se indubitavelmente ao caso dos autos, em que a ré actuou, a nosso ver, sem culpa, confiada e confiante na declaração emitida pelos AA. E por assim ser, não têm os AA direito à restituição da parcela, tal como se afigura não terem direito a qualquer indemnização pela cedência, como ocorreria normalmente (cf. art.º 1350.º do CC). Com efeito, tendo sido os próprios AA a manifestar livremente a sua vontade no sentido da gratuitidade da mesma cedência, a sua actuação na presente acção, valendo-se da nulidade formal do negócio para reclamar o justo preço volvidos seis anos sobre a data da conclusão da obra pública, configura uma situação de claro exercício abusivo do seu direito à justa indemnização, na modalidade de “venire contra factum proprium”, conforme a ré oportunamente invocou[8]. Tal entendimento determina, tal como foi decidido, a improcedência das pretensões formuladas em via principal.

Questão diversa é, naturalmente, a do cumprimento pela Ré do encargo que onerava a cedência da parcela, pretensão subsidiariamente deduzida pelos AA e que em sede de recurso reiteraram.

Da remissão enquanto causa extintiva das obrigações

Nos termos do art.º 965.º do CC, na doação modal, quer o doador, quer os seus herdeiros têm legitimidade para exigir do donatário ou dos seus herdeiros o cumprimento dos encargos, se necessário através de meios coactivos. Daqui resulta que o incumprimento culposo dos encargos da doação modal poderá fundamentar a imposição coerciva ao faltoso dos correspondentes deveres (podendo ainda fundar a resolução da doação nos termos do art.º 966º, mas apenas quando previsto no contrato).

A propósito, apurou-se nos autos que pese embora a Ré não tenha executado o muro de vedação, tal ocorreu porque os AA recusaram a prestação oferecida, com fundamento no facto de pretenderem levar a cabo no terreno a edificação de moradias em banda, o que obrigaria à cedência de uma área para passeios segundo imposição camarária, donde resultar inútil a edificação de um muro que mais tarde seria para demolir. Tal declaração dos aqui apelantes configura, em nosso entender, não apenas uma situação de mora do credor, conforme agora invocam, mas antes uma verdadeira renúncia ao cumprimento do encargo, sentido que o destinatário normal, colocado na situação da apelada, lhe atribuiria (cf. art.º 236º, n.º 1 do CC).

No seu sentido jurídico, a remissão traduz-se na renúncia voluntária ou na liberação graciosa de um direito de crédito: o credor renuncia a exigir o cumprimento, implicando a sua aceitação por banda do devedor a extinção da correspondente obrigação.

Na remissão da dívida é o próprio credor que, com a aquiescência do devedor, renuncia ao poder de exigir a prestação devida (a obrigação extingue-se sem chegar a haver prestação), afastando definitivamente da sua esfera jurídica os instrumentos de tutela do seu interesse, que a lei lhe conferia; a remissão consiste na renúncia do credor ao direito de exigir a prestação, feita com a aquiescência da contraparte; trata-se de um contrato entre o credor e o devedor, destinado a extinguir determinada relação obrigacional que os liga ou, por outras palavras, de um acordo entre o credor e o devedor pelo qual aquele prescinde de receber deste a prestação devida”[9].

A remissão, enquanto causa extintiva das obrigações, vem prevista no art.º 863.º. Trata-se de um negócio bilateral que, podendo ser oneroso ou gratuito, conforme resulta claro da disposição legal, não prescinde da aceitação do devedor. Todavia, não exigindo a lei uma manifestação expressa, funcionam as regras gerais sobre declarações negociais, nomeadamente as disposições dos art.ºs 217.º e 218.º do CC[10].

Resultando a nosso ver inequívoco dos factos provados que os AA declararam renunciar à prestação a que a Ré se vinculara, declaração negocial remissiva, segue-se ter a mesma sido aceite pela aqui apelada, face à concludência do comportamento que adoptou, procedendo à edificação dos muros de todos os proprietários que haviam contribuído para a beneficiação do arruamento, com a única excepção dos ora apelantes.

Argumentam os recorrentes que tal renúncia seria sempre inválida, por não ter revestido a exigida forma escrita, conforme exige o disposto no art.º 221.º, n.º 2 do CC. Mas sem razão, cremos, uma vez que o contrato de remissão, sendo um negócio jurídico autónomo, é também um negócio informal (art.º 219.º, do CC), não valendo aqui as invocadas disposições atinentes à validade das estipulações acessórias.

Questão diversa é, naturalmente, aquela que se prende com as proibições de prova constantes do art.º 394.º[11] e que o preceito imediato estende “ao cumprimento, remissão, novação, compensação e, de um modo geral, aos contratos extintivos da relação obrigacional” quando a obrigação resulte de documento autêntico ou, como era o caso, particular. Trata-se no entanto de questão que aqui não foi suscitada, sendo certo ainda que, pese embora a formulação irrestrita do preceituado nos n.ºs 1 e 2 daquele preceito, existindo um começo de prova escrita será de admitir a prova testemunhal. E tal era o que ocorria no caso vertente, resultando da documentação apresentada no Serviço de Finanças que os AA pretendiam a rectificação de áreas, não determinada pela cedência à ré, mas contemplando a cedência de uma área bastante superior na confinância com a Rua do Barreiro, como se alcança da análise do levantamento topográfico então junto, o que tornaria inútil a edificação do muro a executar pela Ré, assim abrindo a porta à produção de prova testemunhal para demonstração da invocada renúncia à prestação a que esta se vinculara. Com o que improcedem as derradeiras conclusões recursivas, impondo-se confirmar a sentença apelada.

III. Decisão

Acordam os juízes da 3.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, mantendo a sentença recorrida.

Custas pelos apelantes.

Relatora:

Maria Domingas Simões

Adjuntos:

1º - Jaime Ferreira

2º - Jorge Arcanjo


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[1] Tal como se considerou no acórdão do STJ de 5/2/2015, processo n.º 742/10.2 TBSJM.P1-S1, acessível em www.dgsi.pt
[2] Proferido no processo 1434/08.8 TJVNF.P1, no mesmo sítio. Em sentido idêntico, o acórdão do TRG de 11/2/2005m processo n.º 1500/05.2, também citado na sentença apelada.
[3] Dispõe o art.º 11.º do CE, epigrafado de “Aquisição por via de direito privado” que “1. - A entidade interessada, antes de requerer a declaração de utilidade pública, deve diligenciar no sentido de adquirir os bens por via de direito privado, salvo nos casos previstos no artigo 15.º, e nas situações em que, jurídica ou materialmente, não é possível a aquisição por essa via”
.
[4] Prof. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, AAFDL, vol. II, 1983, págs. 450/451.
[5] Cf. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. III., 10.ª edição, págs. 184-185.
[6] O AUJ 7/97, de 25/2/1997, publicado no DR 1.ª Série-A, de 9 de Abril de 1997, consagrou a seguinte doutrina: “A cláusula modal a que se refere o art.º 963.º do CC abrange todos os casos em que é imposto ao donatário o dever de efectuar uma prestação, quer seja suportada pelas forças do bem doado, quer o seja pelos restantes bens do seu património”.
[7] Do acórdão do STJ de 5/2/2015, processo n.º 2125/10.5TBBBR.L1.S2, em www.dgsi.pt.

[8] Concluindo neste sentido em situação similar, o acórdão desta mesma Relação de 13/10/2015, processo 59/14.3T8TCS.C1, subscrito pela ora relatora e pelo 1.º adjunto como 1.º e 2.º adjuntos, respectivamente.
[9] Do acórdão desta mesma Relação de Coimbra de 3/3/2015, processo n.º 123/11.0 TBIND.C1
[10] Assim se distinguindo da renúncia em sentido técnico-jurídico, “que é a perda voluntária de um direito por manifestação unilateral de vontade. A renúncia não é admitida, em termos gerais, no domínio das obrigações, como forma de extinção dos créditos. É admitida, porém, como forma de extinção das garantias reais (…)” (Profs. Pires de Lima/A. Varela, CC Anotado, vol. II 1986, pág. 155.
[11] Cujo n.º 1 proclama ser “Inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373.º a 379.º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores”.