Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3221/19.9T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS
COBERTURA DE DANOS NÃO PATRIMONIAIS
RESPONSABILIDADE DO TOMADOR DO SEGURO
Data do Acordão: 01/18/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO C CÍVEL – JUIZ 1 DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS: 9.º, N.º 1, ALÍNEA E) DO ESTATUTO DO BOLSEIRO DE INVESTIGAÇÃO;
ARTIGOS 11.º, 175.º E 210.º DO REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE SEGURO APROVADO PELO DECRETO-LEI N.º 72/2008, DE 16-04.
ARTIGO 483.º, N.º 2, DO CÓDIGO CIVIL.
Sumário: I - O contrato de seguro de acidentes pessoais de bolseiro de investigação é um seguro obrigatório e constitui um seguro de pessoas com cobertura, para além do mais, de invalidez permanente.

II - No âmbito de tal contrato, em que é tomadora uma universidade e pessoa segura um bolseiro, cabe ao segurador, perante evento gerador de invalidez permanente, uma obrigação de prestação convencionada, não de natureza indemnizatória.

III – Considerando que o contrato de seguro nada refere quanto a danos não patrimoniais; que o modo de fixação do montante da prestação da seguradora em caso de invalidez permanente é imprestável para quantificação da reparação por dano não patrimonial e que é inequívoca a exclusão de cobertura de quaisquer prejuízos consequenciais directos ou indirectos, é de concluir no sentido de que o seguro não cobre danos não patrimoniais.

IV - A universidade, tomadora do seguro, tendo cumprido a sua obrigação de segurar, só poderia ser responsabilizada pela reparação de danos sofridos pelo bolseiro caso existisse, da sua parte, responsabilidade objectiva ou subjectiva.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:



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I – Relatório

A., com os sinais dos autos,

intentou ação declarativa de condenação, com processo comum, contra

1.ª - "B. , S. A.” e

2.ª - “Universidade C.”, estas também com os sinais dos autos,

pedindo a condenação da contraparte a pagar-lhe a quantia total de € 228.481,26 ([1]), a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, sofridos em consequência de acidente, acrescida de juros, à taxa supletiva legal, a contar da citação e até integral pagamento.

Alegou, para tanto, que:

- tendo celebrado um contrato de bolseira de investigação com a 2.ª R., a A., nesse âmbito contratual, quando efetuava trabalho laboratorial, sofreu um acidente, tendo o seu cabelo sido colhido pelo rotor do “agitador” (máquina com sistema de rotação de alta velocidade), ocasionando-lhe diversas lesões, designadamente no couro cabeludo, com submissão a tratamentos e intervenções cirúrgicas, bem como decorrentes sequelas, tudo com os inerentes danos patrimoniais e não patrimoniais;

- a A. beneficiava de um seguro contra acidentes pessoais, por via do qual a 2.ª R. havia transferido para a 1.ª R. a responsabilidade por acidentes pessoais sofridos pelos seus bolseiros de investigação;

- a 2.ª R. é responsável pelas consequências emergentes dos acidentes pessoais sofridos pelos seus bolseiros de investigação, mormente na parte excedente ao montante máximo da cobertura do seguro.

Contestaram ambas as RR.:

- a 2.ª R. invocou, para além do mais, que, com a celebração do contrato de seguro, transferiu para a 1.ª R. a responsabilidade por eventuais acidentes pessoais sofridos pela A., sendo que o estatuto de bolseiro de investigação não gera relações de natureza jurídico-laboral nem de prestação de serviços, mostrando-se excluída a responsabilidade contratual dessa 2.ª R., para além de não estarem verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, sendo, em qualquer caso, excessivos os montantes indemnizatórios peticionados;

- a 1.ª R. alegou que, vistas as coberturas contratadas e os montantes já suportados para regularização do sinistro, à A. apenas cabe receber, no máximo, a quantia de € 5.380,69, mais impugnando os danos invocados e os valores reclamados.

A A. respondeu à matéria de exceção, concluindo pela sua improcedência.

Tramitados os autos e realizada a audiência final, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:

«(…) julgo a ação parcialmente procedente, por provada (…) e, em consequência, condeno a 1.ª ré, “ B. , S.A.”, a pagar à autora (…) as seguintes quantias:

a) 45.000,00 EUR (…), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros moratórios vincendos, à taxa legal, contados desde a presente data, até efetivo e integral pagamento;

b) 5.000,00 EUR (…), a título de danos patrimoniais futuros, acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos, à taxa legal, contados desde a data da citação da 1.ª ré;

c) 380,69 EUR (…), a título de despesas de tratamento, acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos, à taxa legal, contados desde a data da citação da 1.ª ré.

Absolvo as rés do demais peticionado.

(…)».

Da sentença condenatória, veio a 1.ª R. (seguradora), inconformada, interpor recurso, apresentando alegação e as seguintes

Conclusões ([2]):

«1 – A sentença recorrida violou o preceituado nos artigos 236º, nº 1, 238º, nº 1, 405º, nº 1 e 562º todos do CC, nos artigos 1º, 175º, nºs 1 e 2 e 210º do RJCS e no artigo 9º, nº 1, al. e) da Lei nº 40/2004, de 18 de agosto;

2 – O contrato de seguro dos autos não inclui, no âmbito das coberturas contratadas, a indemnização por danos não patrimoniais, jamais se podendo considerar, in casu e atentas as cláusulas do contrato, que tais danos estão incluídos na cobertura de “Invalidez Permanente”;

3 - Com efeito, conforme resultou provado e consta das Condições Particulares e das Condições Gerais juntas como docs. nºs 1 e 2 à contestação da ora Recorrente, à data do sinistro ocorrido, a Ré Universidade C. mantinha com a Ré B. , SA, um contrato de seguro de “Acidentes Pessoais”, titulado pela apólice nº ..., que contemplava as seguintes coberturas:

- morte ou invalidez permanente, até ao montante de 50.000,00 EUR;

- incapacidade temporária, até ao montante diário de 50,00 EUR;

- despesas de tratamento e repatriamento, até ao montante de 10.000,00 EUR;

4 - No que respeita à cobertura por “morte ou invalidez permanente”, prevê-se no artigo 4.º, n.º 1, alínea b), subalínea ii), que «o montante da indemnização será obtido pela aplicação ao valor seguro, da respetiva percentagem de invalidez permanente estabelecida na Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007 de 23 de outubro, adiante designada por Tabela de Desvalorizações, que faz parte integrante destas condições gerais» – cf. “condições gerais” da apólice juntas como documento n.º 2 com a contestação da ora Recorrente;

5 - Ou seja, o critério para a determinação do quantum indemnizatório contemplado nesta cobertura é meramente aritmético, sendo o valor a liquidar tão só o produto da divisão do capital seguro máximo pela percentagem de desvalorização atribuída;

6 - As condições contratuais pré-estabelecidas às quais aderiu o tomador de seguro (transmitidas à Autora, conforme resultou provado) não contemplam, pois, no risco da Incapacidade coberto, os danos não patrimoniais, onde o critério prevalente é o da equidade (art. 496º, nº 4 do CC);

7 - Procedendo à interpretação da apólice do seguro sub judice, tendo presente a teoria da impressão do destinatário tal como prevista no artigo 236º do CC, cremos que dos termos em que na mesma se mostra garantida a indemnização por invalidez permanente resulta a nosso ver, com clareza, que esta não compreende as consequências não patrimoniais que eventualmente a pessoa segura possa sofrer em consequência do sinistro verificado aquando do exercício da sua actividade de bolseira;

8 - Desde logo nas Condições Gerais da apólice o conceito de “Invalidez Permanente” é definido como “Perda ou incapacidade funcional, parcial ou total, de um membro ou órgão da pessoa segura, clinicamente constatadas e sobrevindas dentro de 24 meses a contar da data do acidente, e deste directa e exclusivamente resultantes”, cfr. art. 1º do Cap. I das Condições Gerais juntas à contestação como doc. nº 2;

9 - Se atentarmos no teor de todas as subalíneas da alínea b) do artigo 4º das Condições Gerais do contrato, verificamos que todos os critérios de apuramento da indemnização para a cobertura de invalidez permanente têm pressupostos exclusivamente de cariz aritmético, cfr. art. 4º do Cap. lI das Condições Gerais juntas à contestação como doc. nº 2;

10 - E se verificarmos o teor das exclusões contratuais, constantes do artigo 7º do Capítulo III, podemos constatar que se encontra excluído “todo e qualquer prejuízo consequencial directo e/ou indirecto, nomeadamente lucros cessantes e/ou perdas e financeiras de qualquer natureza.”;

11 - Ora, perante este texto contratual e sendo o contrato de seguro um contrato formal – o que determina que a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (art. 238º, nº 1 do CC) -, é manifesto que na reparação da invalidez permanente foi convencionado um critério dependente de meros cálculos matemáticos (no qual não intervém o princípio geral contido no artigo 562º do CC, segundo o qual o quantum indemnizatório deve corresponder ao prejuízo efectivamente sofrido e repará-lo integralmente), não se vendo como pode ter-se como compreendida no capital por invalidez permanente, para além da estrita indemnização correspondente à percentagem da perda da capacidade aquisitiva, a indemnização por danos não patrimoniais;

12 – A entender-se assim, teríamos que aceitar a incongruente solução de que a apólice apenas contemplaria a reparação de danos não patrimoniais em casos de menor gravidade, em que a invalidez permanente fosse de um valor percentual mais baixo, pois o valor do capital disponível para tal indemnização iria diminuindo à medida que fosse subindo o grau de desvalorização funcional permanente. O que não será de admitir;

13 - Por outro lado, não se pode descurar que o diploma que regula o estatuto do Bolseiro de Investigação – Lei nº 40/2004, de 18 de agosto, apenas prevê no seu artigo 9º, nº 1, al. e), a garantia da existência de um seguro de acidentes pessoais, incluindo as deslocações ao estrangeiro;

14 - Não estabelece coberturas mínimas, não estabelece capitais mínimos, nem estabelece qualquer imposição de inclusão da cobertura de danos não patrimoniais, como bem nota a sentença recorrida;

15 - Deixando, por isso aos contraentes a liberdade de modulação da relação contratual, nos termos do artigo 405º, nº 1 do CC e 11º do RJCS;

16 - A significar que o legislador não estipulou qualquer obrigatoriedade a esse título;

17 - Assim, por tudo o exposto e tudo ponderado, não pode a ora Recorrente ser responsabilizada por qualquer indemnização a título de danos não patrimoniais, os quais, atentas as razões aduzidas, não estão abrangidos pelas coberturas contratadas;

18 – Jamais se podendo considerar, atento o clausulado contratual e o regime legal aplicável, que dentro da cobertura de Invalidez permanente estão incluídos todos os tipos de danos, incluindo os não patrimoniais, (neste sentido, vide, entre outros, Ac.STJ de 7-11-2019, Proc. nº 654/16.6T8ABT.E1.S1 e AcRGuimarães de 15-01-2015, Proc. nº 1266/09.6TBEPS.G1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt);

19 - Termos em que deve a sentença recorrida ser revogada em conformidade com as presentes alegações, não se condenando a Recorrente no pagamento de qualquer indemnização por danos não patrimoniais, a qual não está contemplada no âmbito das garantias do contrato de seguro dos autos.

Nestes termos, nos mais de direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas. deve ser dado provimento ao recurso apresentado pela Recorrente, assim se fazendo como sempre

JUSTIÇA».

Não foi junta peça recursiva de contra-alegação a este recurso.

Também a A., por seu lado, veio recorrer – da parte absolutória da sentença, no concernente à 2.ª R. (Universidade C.) –, apresentando alegação e as seguintes

Conclusões ([3]):

«1. A Lei 40/2004 de 18/08 (estatuto do bolseiro) ao estabelecer que todos os bolseiros têm direito a beneficiar, por parte da entidade de acolhimento ou financiadora, de um seguro contra acidentes pessoais, incluindo as deslocações ao estrangeiro” está a partir do pressuposto que existe uma responsabilidade pelos acidentes que possam via a ser vitimas ou autores os bolseiros, titulares de uma relação contratual, nos termos da legislação acima invocada (afastando assim a possibilidade de invocação da aplicação da legislação de acidentes de trabalho que, na ausência desta regulamentação, seria aplicável, ex vi do artº 10º da L. //2009 de 7/02).

2. Admitida a responsabilidade da entidade de acolhimento ou financiadora emergente dos acidentes pessoais, eventualmente sofridos pelos seus Bolseiros, a responsabilidade originária mantém-se na entidade de acolhimento, na exata medida em que não tenha sido transferida para a entidade seguradora o que sucederia acaso a entidade de acolhimento ou de financiamento, por qualquer razão não constituísse o seguro a que estava obrigada.

3. A 2ª Ré Universidade C. na qualidade de entidade de acolhimento, não dispõe de uma total liberdade (arbítrio) na modulação da relação contratual com a entidade seguradora, na medida em que esta obrigação, na qual o Bolseiro é credor, reveste a natureza de uma obrigação genérica razão pela qual para o seu cumprimento e, na falta de quaisquer outros critérios “ deve ser feita segundo juízos de equidade (arbitrium boni viri) .

4. Isto é uma decisão (ponderação) de homens prudentes que tivesse ponderado uma negociação de um contrato de seguro de acidentes pessoais, que previsse casos com a gravidade do acidente que aconteceu à recorrente.

5. Da interpretação do texto normativo – Lei nº 40/2008 de 18/08 e, atento o senso comum, possibilita concluir que o seguro contratualizado pela Universidade C. e a B. S.A. não responde às previsíveis exigências de risco a que a lei pretendeu dar resposta, como aliás resulta evidente da factualidade dada como provada nos presentes autos.

6. A cobertura prevista no contrato de seguro sub judicio não é mais favorável do que a cobertura mínima imposta para o seguro desportivo ( c.f. artº 16º do DL nº 10/2009) e para as coberturas mínimas contratadas pela “Fundação para a Ciência e Tecnologia” o que sucede é que os referidos normativos estabelecem coberturas mínimas deixando às entidades que promovem ( promovam) ações desportivas a ponderação exigível para cada caso concreto de praticante desportivo.

7. Aliás nada resulta destes textos que os seguros contratados sejam uniformes para todos os praticantes desportivos ou que afaste a ideia da responsabilidade de tais entidades sempre que os valores indemnizatórios ultrapassem o contrato de seguro outorgado.

8. A formulação com valores mínimos permite responder de forma mais adequada à realidade, e isto porque o seguro contratado pode ( e deve) responder às situações especificas de cada um dos Bolseiros, na medida em que operem na sua investigação funcional e contratada, com materiais perigosos ou/e que envolvam deslocações frequentes ou / e para o estrangeiro.

9. Exigir-se-á a ponderação cuidada – arbitrium boni viri – dos contratantes ( dos responsáveis da entidades de acolhimento e financiadoras e, por outro lado, das companhias seguradoras e, quem diz destas, diz das entidades promotoras de acontecimentos desportivos), de modo a que os seguros que estão obrigadas a contratualizar, por força de lei, respondam aos objetivos que a lei ponderou ao consagrar essa exigência.

10. A concretização do presente contrato de seguro outorgado pela Ré B. S.A. e a Universidade C. , não cumpre o fim que se teve em vista com a realização desse concreto contrato, e isto na medida em que as motivações que o determinaram, e que são outros elementos que devem estar presentes na interpretação de uma declaração de vontade” manifestamente não se encontram plasmados com rigor na letra do seu texto normativo exigindo, por isso, a intervenção do interprete no sentido da reconstituição da verdadeira vontade dos contraentes. (Ac do STJ de 12/03/2013 in Procº nº 2398/07).

11. É claro que o destinatário – neste caso a Universidade C. – ao outorgar as condições contratuais propostas pela 1ª Ré B. S.A. e isto na perspetiva de um contraente /declaratário normal, não poderia ter consciência que essa apólice, contratualmente, esvaziava o seu objetivo que seria o de responder com rigor aos eventuais acidentes sofridos pelos seus Bolseiros.

12. Quanto às exclusões contratuais, constantes do artigo 7º do Capítulo III, diz a alegação da 1ª Ré podemos certificar que a alegação de que o contrato de seguro “sub judicio” excluí “todo e qualquer prejuízo consequencial direto e/ou indireto, nomeadamente lucros cessantes e/ou perdas financeiras de qualquer natureza” não faz qualquer sentido e, isto na medida em que na douta sentença não se decide, o que quer que seja, no âmbito desta previsão normativa, apesar de constarem do pedido formulado pela Recorrente na sua PI.

13. Quanto á alegação que a 1ª Ré deduz e onde desenvolve o entendimento de que no que concerne à reparação da invalidez permanente foi convencionado um critério dependente de meros cálculos matemáticos não se vendo como pode ter-se como compreendida no capital por invalidez presumível, para além da estrita indemnização correspondente à percentagem da perda da capacidade aquisitiva, a indemnização por danos não patrimoniais” a recorrente revê-se na douta decisão recorrida sufragando, a este respeito, integralmente a douta sentença.

14. Quanto à alegação de que a sentença facilitaria a incongruente solução de que a apólice apenas contemplaria a reparação de danos não patrimoniais em casos de menor gravidade, em que a invalidez permanente fosse de um valor percentual mais baixo, pois o valor do capital disponível para tal indemnização iria diminuindo à medida que fosse subindo o grau de desvalorização funcional permanente” não tem qualquer sentido demonstrando à saciedade que a preocupação manifestada pela 1ª Ré B. SA não reside na incongruência que a norma assim interpretada pode gerar mas o que a preocupa é que a norma, assim interpretada, fruste a maximização do seu proveito.

15. A liberdade de modulação da relação contratual, que encontra cobertura nos artºs 405º nº 1, do Código Civil e 11º do Regime Juridico do Contrato de Seguro (RJCS), aprovado pelo Decreto Lei nº 72/2008 de 16 de Abril, “constitui um privilégio” (in sentença recorrida), que a imposição de um seguro delineado e contratualizado ( arbítrio boni viri) de forma a responder com rigor aos potenciais riscos a que estão sujeitos os potenciais beneficiários, não cerceia.

16. A liberdade de modulação da relação contratual, que encontra cobertura nos artºs 405º nº 1, do Código Civil e 11º do Regime Juridico do Contrato de Seguro (RJCS), não colide com a limitação de uma contratualização do seguro que deve ser feita segundo juízos de adequação à situação concreta e à dimensão do risco potencial inerente à especifica atividade do “in casu” Bolseiro.

17. Ao absolver a recorrida Universidade C. do pedido, ainda que na ponderação com a matéria de facto dada como provada e, na exata medida em que ultrapassa a transferência de responsabilidade, para a B. S.A., a sentença não decide em cumprimento da obrigação legal emergente do artº da Lei nº 40/2004 de 18/08 razão pela qual, nessa parte, deve ser revogada, em conformidade com as presentes alegações, condenando-se a Recorrida Universidade C. ao pagamento das indemnizações acima quantificadas no montante global de 158.349,00 € ( cento e cinquenta e oito mil trezentos e quarenta e nove mil Euros).

18. Pelo contrário no que concerne à condenação da Ré B. S.A. deve a sentença ser mantida também em conformidade com as presentes alegações, confirmando a condenação da Recorrente no pagamento das indemnizações aí decididas.

Pelo exposto e, com o douto suprimento de V. Exas., deve ser concedido provimento ao presente recurso, condenando-se a apelada Universidade C. no pedido agora corrigido, pelo contrário confirmando-se a parte da sentença objecto de recurso pela 1ª Ré B. S.A. se fará em ambas as situações a habitual

JUSTIÇA!».

Apenas a 2.ª R. (Universidade C.) contra-alegou, pugnando pela total improcedência do recurso da A..


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Os recursos foram admitidos como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foram mantidos o regime e o efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação recursiva, ao conhecimento do mérito das apelações, cumpre apreciar e decidir.


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II – Âmbito recursivo

Perante o teor das conclusões formuladas pelas partes recorrentes – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([4]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, importa decidir, exclusivamente em matéria de direito:

a) Se, atendendo ao clausulado contratual e ao regime legal aplicável, ocorre cobertura, relativamente ao contrato de seguro em causa nos autos, de danos não patrimoniais, para o que haverá de determinar-se a natureza e a “economia” de tal contrato;

b) Se também a 2.ª R. (Universidade C.) deve ser condenada no pedido.


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III – Fundamentação

A) Matéria de facto

1. - Na 1.ª instância foram considerados – de forma incontroversa – os seguintes factos provados:

«- Relativos ao acidente e suas consequências para a autora

1.º A autora celebrou “contrato de bolsa” com a 2.ª ré, nos termos do qual esta concedeu àquela uma bolsa de investigação, com início a 1 de junho de 2012 e termo a 31 de outubro de 2015 – cf. “contrato de bolsa” junto como documento n.º 3 com a contestação da 1.ª ré, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

2.º No dia 29 de maio de 2014 e no âmbito do plano de trabalhos contratado com a 2.ª ré, a autora efetuava trabalho laboratorial na E. em equipamento piloto pertencente a esta Universidade, quando o seu cabelo foi colhido pelo rotor do “agitador” (máquina com sistema de rotação de alta velocidade).

3.º Como consequência, a autora sofreu avulsão completa do couro cabeludo e perda de substância pela raiz nasal, supracílios e contorno do couro cabeludo, com exposição óssea – cf. “relatório clínico” junto sob o documento n.º 2 com a petição inicial, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

4.º Nesse mesmo dia, a autora deu entrada no serviço de urgência do Centro Hospitalar da ..., onde foi observada e realizados diversos exames imagiológicos, como radiografia e tomografia computorizada – cf. “relatório médico-legal” junto sob o documento n.º 3 com a petição inicial, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

5.º No mesmo dia, foi transferida para o serviço de urgência do Centro Hospitalar ... (...), onde foi realizado reimplante do couro cabeludo com anastomose microcirúrgica aos vasos temporais superficiais – cf. “relatório clínico” junto sob o documento n.º 2 com a petição inicial, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

6.º Após a cirurgia, esteve no “recobro” durante cerca de três dias, período após o qual, por rejeição do couro cabeludo, este lhe foi retirado, voltando a ser intervencionada três vezes, na mesma semana – cf. “relatório médico-legal” junto sob o documento n.º 3 com a petição inicial, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

7.º Na última dessas intervenções cirúrgicas iniciou-se a tentativa de enxerto ao nível da testa e da face – cf. mesmo documento.

8.º No período pós-operatório, verificou-se sofrimento do couro cabeludo reimplantado, com sinais de congestão venosa, o que motivou a realização de vários procedimentos para desbridamento cirúrgico de tecidos desvitalizados (realizados nos dias 2 e 4 de junho de 2014) e cobertura das áreas cruentas com autoenxertos cutâneos (realizados nos dias 7 e 12 de junho de 2014) – cf. “relatório clínico” junto sob o documento n.º 2 com a petição inicial, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

9.º A autora permaneceu internada no serviço de cirurgia plástica do Centro Hospitalar..., durante o qual realizou diversas cirurgias de enxertia, iniciando também acompanhamento clínico pela especialidade de psicologia – cf. mesmos documentos.

10.º A 19 de junho de 2014 teve alta para o domicílio, medicada com analgésicos e orientada para a consulta externa de cirurgia plástica e reconstrutiva, apresentando enxertos viáveis em cerca de 80%, áreas cruentas na região occipital e frontal e duas áreas de exposição óssea na região frontal e parietal esquerda, com indicação para cuidados de penso – cf. mesmos documentos.

11.º Manteve os cuidados de pensos 2 a 3 vezes por semana durante cerca de um mês – cf. “relatório médico-legal” junto sob o documento n.º 3 com a petição inicial, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

12.º Foi submetida a consulta de oftalmologia por diminuição da acuidade visual e foi observada em consulta externa de cirurgia plástica nos dias 20, 24 e 27 de junho e 1 de julho de 2014 – cf. “relatório clínico” junto sob o documento n.º 2 com a petição inicial, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

13.º A 7 de julho de 2014 foi submetida a cirurgia para descorticação da tábua externa da região frontal e a reconstrução com enxertos cutâneos, ficando de novo em regime de internamento durante cerca de três dias – cf. mesmos documentos.

14.º A 6 de agosto de 2014 foi internada no serviço de cirurgia plástica, sendo intervencionada no dia 8 do mesmo mês, tendo sido efetuados enxertos de pele parcial para cobertura de áreas cruentas no couro cabeludo, vindo a ter alta no mesmo dia – cf. “relatório médico-legal” junto sob o documento n.º 3 com a petição inicial, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

15.º A 24 de novembro do mesmo ano foi submetida a cirurgia de ambulatório, para remoção de excesso de pele sobre o olho esquerdo – cf. mesmo documento.

16.º Manteve o acompanhamento pela consulta de cirurgia plástica – cf. mesmo documento.

17.º No dia 25 de maio de 2015, foi operada na unidade ambulatória para correção da cicatriz retrátil, no canto interno do olho esquerdo, sendo novamente referenciada para a consulta de cirurgia plástica – cf. mesmo documento.

18.º A autora apresenta as seguintes sequelas:

No crânio:

- ausência de cabelo e supracílios; extensos complexos cicatriciais nacarados e rosados, dispostos em toda a extensão do crânio, desde o dorso do nariz até ao terço superior da região cervical posterior e entre os lóbulos auriculares inclusive, ocupando uma área total de 37 cm de comprimento por 31 cm de largura, com zonas retráteis e salientes em ambas as regiões retro auriculares e terço superior da região cervical posterior e hipoestesia e grande aderência da pele ao plano ósseo por ausência de plano muscular;

Na face:

- cicatriz rosada, ligeiramente transversal, de concavidade lateral, que se estende desde o terço médio da pálpebra superior direita até ao terço medial do bordo orbitário inferior direito, medindo 5 cm de comprimento depois de retificada; cicatriz nacarada, na região malar direita medindo 3 cm de comprimento; cicatriz nacarada, na região pré auricular direita, medindo 4,5 cm de comprimento por 0,2 cm de largura; cicatriz rosada, ligeiramente curvilínea, de concavidade lateral, que se estende desde o terço médio da pálpebra superior esquerda até ao terço medial do bordo orbitário inferior esquerdo, medindo 4 cm de comprimento por 0,5 cm de largura, discretamente dolorosa à palpação;

No membro inferior esquerdo:

- área nacarada, envolvendo toda a coxa, medindo 57 cm de comprimento por 25 cm de largura, em provável relação com colheita de pele para enxerto – cf. mesmo documento.

19.º A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável no dia 4 de junho de 2015 – cf. mesmo documento.

20.º O período de défice funcional temporário total é fixável em 30 dias, correspondendo aos períodos de internamento – cf. mesmo documento.

21.º O período de défice funcional temporário parcial (correspondendo ao período em que a autora passou a ter algum grau de autonomia, ainda que com limitações) é fixável em 344 dias – cf. mesmo documento.

22.º O período de repercussão temporária na atividade profissional total é fixável em 160 dias, correspondendo aos períodos em que esteve de baixa – cf. mesmo documento.

23.º O período de repercussão temporária na atividade profissional parcial é fixável em 212 dias – cf. mesmo documento.

24.º O quantum doloris é fixável no grau 5, numa escala de 7 graus de gravidade crescente, tendo em conta o tipo de traumatismo, as lesões resultantes, os tratamentos efetuados, o período de recuperação funcional, assim como a necessidade de desmarcação do casamento – cf. mesmo documento.

25.º O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica é fixável em 10 pontos, atendendo à avaliação baseada na Tabela Nacional de Incapacidades e considerando o valor global da perda funcional decorrente das sequelas e o facto de estas, não afetando a autora em termos de autonomia e independência, serem causa de sofrimento físico, limitando-a em termos funcionais – cf. mesmo documento.

26.º Em termos de repercussão permanente na atividade profissional, as sequelas são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares – cf. mesmo documento.

27.º O dano estético permanente é fixável no grau 6, numa escala de 7 graus de gravidade crescente, tendo em conta o sexo e idade da autora, as cicatrizes e a necessidade de utilização de ajudas técnicas (perucas de cabelo natural) – cf. mesmo documento.

28.º Tem necessidade de ajudas medicamentosas (cremes, gel e protetor solar) e técnicas (uso de perucas de cabelo natural e material para “pintar” as sobrancelhas) permanentes – cf. mesmo documento.

29.º A autora alterou a data do seu casamento, que se encontrava marcado para agosto de 2014 e que se realizou um ano depois.

30.º A autora faz feridas na cabeça devido ao uso sistemático de peruca.

31.º A autora sente-se muitas vezes angustiada, triste e afetada na sua imagem pessoal.

32.º As perucas de cabelo natural têm uma duração útil de um ano e um preço de mercado de aproximadamente 800,00 EUR.

33.º A autora despende entre 200,00 EUR a 300,00 EUR por ano em cremes de rotina, protetor solar e produtos para as feridas na cabeça.

34.º A autora nasceu no dia 28 de novembro de 1985.

- Relativos ao contrato de seguro

35.º À data do acidente vigorava um “contrato de seguro de acidentes pessoais”, titulado pela apólice n.º ..., que a 2.ª ré havia celebrado com a 1.ª ré, no qual aquela consta como “tomadora do seguro” e a autora como “pessoa segura” – cf. “condições particulares” da apólice junta sob documento n.º 1 com a contestação da 1.ª ré, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

36.º Nos termos das condições particulares do contrato, o seguro tinha as seguintes coberturas:

- morte ou invalidez permanente, até ao montante de 50.000,00 EUR;

- incapacidade temporária, até ao montante diário de 50,00 EUR;

- despesas de tratamento e repatriamento, até ao montante de 10.000,00 EUR – cf. mesmo documento.

37.º No que respeita à cobertura por “morte ou invalidez permanente”, prevê-se no artigo 4.º, n.º 1, alínea b), subalínea ii), que «o montante da indemnização será obtido pela aplicação ao valor seguro, da respetiva percentagem de invalidez permanente estabelecida na Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007 de 23 de outubro, adiante designada por Tabela de Desvalorizações, que faz parte integrante destas condições gerais» – cf. “condições gerais” da apólice juntas como documento n.º 2 com a contestação da 1.ª ré, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

38.º Relativamente à cobertura “despesas de tratamento”, o artigo 1.º das condições gerais do contrato de seguro define as «despesas de tratamento» como as «despesas realizadas pela pessoa segura para aquisição de bens ou de serviços, desde que prescritas por médico para fins de tratamento de lesão corporal resultante de acidente» – cf. mesmo documento.

39.º O artigo 4.º, n.º 2, alínea c), subalínea iii), das “condições gerais” do contrato de seguro dispõe que «por despesas de tratamento entendem-se as relativas a honorários médicos e internamento hospitalar, incluindo assistência medicamentosa e de enfermagem, que forem necessários em consequência do acidente» - cf. mesmo documento.

40.º A 1.ª ré liquidou as seguintes quantias:

- à autora, pelos períodos de incapacidade temporária, 5.353,30 EUR;

- ao Centro Hospitalar..., por despesas de tratamento, 9.619,31 EUR.

41.º A cobertura e os limites do contrato de seguro foram comunicados à autora.

42.º A “ BB. , S.A.” fundiu-se, por incorporação, na “ D. , S.A.”, a qual alterou a sua denominação para “ B. , S.A.” – cf. certidão permanente junta com o requerimento com a referência Citius 6158738, de 09-12-2020, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

- Relativos ao projeto de investigação

43.º A 2.ª ré, a E. , a F. e a “ G. ” celebraram um protocolo de colaboração para execução de um projeto de investigação e desenvolvimento tecnológico intitulado “Novas cargas minerais modificadas no fabrico de papel (NEWFILL)” – cf. “termo de aceitação” e “protocolo de colaboração” juntos como documento n.º 1 com a contestação da 2.ª ré, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

44.º Consta da cláusula 12.ª do referido protocolo, além do mais e ao que ora importa, que:

«2. Cada Instituição é responsável pelos prejuízos que, a qualquer título, causar a terceiros, durante a execução da sua prestação. (…)

4. Nas relações internas, observar-se-á o seguinte: (…)

b) durante a execução do Projeto, cada Instituição é responsável pelos prejuízos que, pela sua conduta ou omissão, causar a qualquer outro Membro, ou a seus trabalhadores ou colaboradores – cf. mesmo documento.

45.º O “contrato de bolsa” referido em 1.º foi celebrado no âmbito deste projeto de investigação – cf. “contrato de bolsa” junto como documento n.º 3 com a contestação da 1.ª ré, cujo teor dou por integralmente reproduzido.».

2. - E foi julgado não provado que:

«a) A autora tem dificuldade em adormecer.

b) Nos primeiros anos após o acidente, a autora sentia dificuldades em contactar com as pessoas com quem tinha de interagir profissionalmente.

c) A autora refugia-se na solidão.

d) As cicatrizes que a autora tem limitam-na na sua vida íntima, bem como nos períodos de ócio, como seja frequentar a praia.

e) A autora despende em medicamentos para as dores e cremes o montante aproximado de 1.000,00 EUR por ano.

f) A autora despendeu com medicamentos, cremes, perucas e outros produtos o montante de 2.632,26 EUR.».

***

B) O Direito

1. - Da natureza e “economia” do contrato

Esgrime a 1.ª R./Recorrente que o âmbito de cobertura do contrato de seguro celebrado – um seguro de acidentes pessoais, com cobertura, para além do mais, por invalidez permanente e despesas de tratamento, como resulta incontroverso da discussão operada em 1.ª instância – não contempla danos não patrimoniais, por o clausulado contratual não os prever e a lei não os impor para este tipo de contrato.

Na sentença em crise, por seu lado, depois de se ter enfatizado tratar-se aqui de um «seguro de pessoas», garantindo «prestações de natureza indemnizatória» (e não um «seguro de danos, como no seguro de responsabilidade civil»), com cariz de «seguro obrigatório», direcionado para «uma necessidade social fundamental» (a de «assegurar que o beneficiário chegue, efetivamente, a usufruir da cobertura»), entendeu-se que nada obsta, em geral, a que, no seguro de acidentes pessoais, as partes convencionem a cobertura de danos morais, ao abrigo do princípio da liberdade contratual.

Importa, assim, para melhor compreensão da matéria recursiva, começar por determinar a natureza e “economia” do contrato de seguro de acidentes pessoais em causa.

Na decisão em crise já foi sinalizado – sem impugnação neste particular – que entre a A. e a 2.ª R. (Universidade C. ) foi celebrado um contrato de bolsa, «regulado pelo Estatuto do Bolseiro de Investigação, aprovado pela Lei n.º 40/2004, de 18 de agosto, que prevê o regime aplicável», Estatuto esse que «prevê a forma e o conteúdo mínimo do contrato de bolsa» (art.º 8.º respetivo), o qual não gera «relações de natureza jurídico-laboral nem de prestação de serviços, não adquirindo o bolseiro a qualidade de trabalhador em funções públicas» ([5]).

E, com especial interesse para o caso dos autos, consignou-se ainda naquela decisão que o art.º 9.º, n.º 1, al.ª e), do Estatuto do Bolseiro de Investigação (na redação aplicável, atenta a data do ocorrido acidente) prevê o direito dos bolseiros a um seguro contra acidentes pessoais.

Com efeito, ali se estabeleceu (no Estatuto, quanto aos “Direitos dos bolseiros”) que todos os bolseiros têm direito a «Beneficiar, por parte da entidade acolhedora ou financiadora, de um seguro contra acidentes pessoais, incluindo as deslocações ao estrangeiro», nada mais se definindo, porém, no concernente ao conteúdo desse contrato de seguro ([6]).

Daí que se concorde com o Tribunal a quo quando conclui que estamos perante um contrato de seguro obrigatório, cujo conteúdo/clausulado está sujeito, todavia, em larga medida, ao princípio da liberdade contratual [cfr. art.ºs 405.º, n.º 1, do CCiv., e 11.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (doravante, RJCS), aprovado pelo DLei n.º 72/2008, de 16-04].

Quer dizer, neste contrato de seguro de acidentes pessoais para proteção dos bolseiros de investigação, entre uma entidade acolhedora/financiadora e uma seguradora, ocorre imposição legal de celebração (para aquela entidade, assim privada, neste âmbito, da sua liberdade de contratar), restando, todavia, em ampla escala, a liberdade de estipulação (liberdade contratual para definição do conteúdo/clausulado do contrato).

Assim sendo, a R. Universidade C. (tomadora do seguro) cumpriu a sua obrigação legal de celebrar (com a 1.ª R., seguradora) o contrato de seguro de acidentes pessoais quanto à A. (pessoa segura), como resulta do ponto 35 dos factos provados ([7]).

Contrato esse com o âmbito de cobertura definido entre tomadora e seguradora, ao abrigo da liberdade contratual (de estipulação) que lhes assistia, nos moldes apurados sob os pontos 36 a 39 dos factos provados, não se vendo que ocorra – nem tal foi invocado – qualquer irregularidade ou invalidade nesse regime contratual estabelecido entre as partes (clausulado), aí se radicando, pois, a aludida “economia do contrato”.

Por outro lado – e esta é também uma distinção essencial –, é sabido que o contrato de seguro de acidentes pessoais é um seguro de pessoas (cfr. art.ºs 175.º e segs. do RJCS), por contraposição aos seguros de danos (a que se reportam, diversamente, os art.ºs 123.º e segs. daquele RJCS).

Se o seguro de danos pode respeitar a coisas, bens imateriais, créditos e quaisquer outros direitos patrimoniais (art.º 123.º do RJCS), aí se incluindo, pois, o seguro de responsabilidade civil – definido pelo art.º 137.º do mesmo RJCS como aquele em que o segurador cobre «o risco de constituição, no património do segurado, de uma obrigação de indemnizar terceiros» (decorrente, assim, de responsabilidade civil do segurado) –, já o seguro de pessoas tem por objeto «a cobertura de riscos relativos à vida, à saúde e à integridade física de uma pessoa ou de um grupo de pessoas nele identificadas» (art.º 175.º daquele RJCS).

Assim sendo, o seguro de pessoas cobre, entre outros (os supra aludidos), os «riscos relativos à integridade física (seguro de acidentes pessoais)» ([8]), podendo garantir prestações de valor predeterminado não dependente do efetivo montante do dano ou prestações de natureza indemnizatória (como dispõe o n.º 2 do art.º 175.º do RJCS).

Tal como esclarece António Menezes Cordeiro ([9]), o seguro de pessoas «é um desenvolvimento recente, tecido a partir do seguro de vida (…), distinguindo-se, desde sempre, do seguro de danos. Com efeito, ao passo que, no seguro de danos, se joga uma prestação, isto é, uma aportação patrimonial destinada a suprimir um dano, no seguro de pessoas lida-se com valores humanos de natureza não-patrimonial. Por via desta importante especificidade, todo o contrato fica infletido.» ([10]).

A noção de seguro de acidentes pessoais encontra-se estabelecida no art.º 210.º do RJCS, esclarecendo esta norma que o segurador cobre o risco da verificação de lesão corporal, invalidez, temporária ou permanente, ou morte da pessoa segura, por causa súbita, externa e imprevisível.

Como, por outro lado, resulta dos factos provados dos pontos 36 a 39 (contextualizados, todavia, com o teor literal do contrato celebrado, de si elucidativo), estamos, in casu, perante um seguro de prestações convencionadas ([11]) no que concerne aos eventos morte e/ou invalidez permanente ([12]), por contraposição aos seguros de prestações indemnizatórias.

Quer dizer – e pormenorizando –, enquanto nos casos de morte ou de invalidez permanente total/absoluta (a que corresponda a 100%) é, invariavelmente, pago, de forma esgotante, o montante referido de € 50.000,00 (valor do capital objeto da cobertura), já no caso de invalidez permanente parcial (inferior a 100%) a prestação da seguradora varia em função da percentagem de invalidez verificada.

Assim, nem nesta última hipótese a prestação da aqui 1.ª R. «consiste num valor a determinar a partir dos danos resultantes do sinistro» ([13]), o que afasta a qualificação como verdadeira «prestação indemnizatória». Com efeito, se é certo que, como clausulado por tomadora e seguradora, de acordo com o aludido princípio da liberdade contratual, a prestação por incapacidade permanente parcial assume quantum variável em função da percentagem de invalidez permanente demonstrada, também parece seguro que, mesmo nesse caso, apenas haverá de proceder-se a uma simples operação matemática (cálculo aritmético, com aplicação ao valor do capital fixado da dita percentagem de invalidez).

Para um caso similar, quanto a esta tipologia de coberturas, embora no âmbito de um contrato de seguro desportivo – todavia, ainda um seguro de acidentes pessoais –, já foi entendido pelo STJ que, «devendo (…) a invalidez permanente parcial ser ponderada pelo grau de incapacidade que for fixado», tal significa que «estas últimas coberturas (por morte ou por invalidez permanente) se traduzem em obrigação de prestação convencionada independente do valor do dano efetivo e não como prestação indemnizatória propriamente dita» ([14]).

Já quanto à função do seguro, não deve olvidar-se que este se liga à pretendida realização, pela pessoa segura (bolseiro), de atividades de natureza científica, tecnológica e formativa, designadamente, trabalhos de investigação tendentes à obtenção de grau ou diploma académico, incluindo mestrados e doutoramentos, compreendendo-se que se tenha visado garantir as condições necessárias de prossecução das atividades inerentes à respetiva atribuição da bolsa, também, pois, em caso de acidente pessoal nesse âmbito.

Pode dizer-se, assim, que a imposição da contratação do seguro de acidentes pessoais em causa se prende com a necessidade de garantir que os bolseiros por ele abrangidos disporão de recursos financeiros para custear as despesas em que incorram com tratamentos ocasionados por lesões decorrentes dos acidentes previstos ou assegurar-lhes o pagamento de um valor em caso de óbito ou invalidez permanente ([15]), no escopo, pois, de obtenção de uma cobertura dos acidentes pessoais ocorridos no decurso da respetiva atividade que seja adequada aos seus riscos e aos encargos gerados.

Em suma, no caso dos autos estamos perante um seguro obrigatório de acidentes pessoais – seguro de pessoas (não de danos, afastando qualquer assimilação/equiparação a um seguro de responsabilidade civil) –, com cobertura, quanto ao que aqui importa, de invalidez permanente, gerador de uma obrigação de prestação convencionada (não propriamente de natureza indemnizatória), cujo singelo modo de cálculo foi definido no clausulado contratual.

Vigorando neste campo contratual, em larga escala, a liberdade de conformação do conteúdo do contrato, a conclusão sobre a cobertura, ou não, de danos não patrimoniais depende, no caso, do que resultar do clausulado do contrato de seguro celebrado, a dever ser adequadamente interpretado.

2. - Da cobertura quanto a danos não patrimoniais

Neste âmbito, partindo para a análise do clausulado do contrato de seguro dos autos, o Tribunal a quo entendeu, na falta de qualquer cláusula de «exclusão de danos não patrimoniais/morais», que:

«O que parece evidente no texto do contrato não é a exclusão da indemnização de danos não patrimoniais, mas, pelo contrário, a não qualificação da natureza do dano indemnizável e, consequentemente, a não exclusão de que o dano a cobrar seja de natureza não patrimonial.

Por isso, haverão estes de ter-se por não excluídos, devendo o contrato de seguro ser interpretado, na dúvida, contra a parte que o redigiu e enunciou as respetivas cláusulas, mormente cláusulas contratuais gerais, valendo, neste âmbito, o princípio in dubio contra stipulatorum. Em conformidade com este princípio, uma ambiguidade no texto contratual deve ser entendida, no sentido de interpretada, como abrangendo o conteúdo indemnizatório mais amplo, aqui correspondente à não exclusão da cobertura dos danos não patrimoniais.

Se o segurador não pretendia assumir o risco/cobertura quanto a danos não patrimoniais – dentro do capital de 50.000,00 EUR fixado para o caso de invalidez permanente –, deveria a 1.ª ré tê-lo deixado expresso/claro nas cláusulas contratuais gerais por si predispostas ou, ao menos, precisando-o noutra qualquer latitude do texto contratual, o que, manifestamente, não foi feito.

(…)

Assim, dentro do capital seguro de 50.000,00 EUR para a cobertura de “invalidez permanente”, deve a 1.ª ré responder também pelo correspondente dano não patrimonial.».

A aludida R./Recorrente invoca, ex adverso, desde logo, que estamos perante contrato formal, com efeitos em sede interpretativa, quanto ao respetivo clausulado.

Porém, não tem razão, salvo o devido respeito, quando invoca a forma contratual. É que o contrato de seguro, que era um contrato formal ao abrigo do disposto no art.º 426.º do CCom. – era essa a nossa tradução jurídica –, passou a ser, desde 01/01/2009, um contrato consensual quanto à forma (regra da liberdade de forma, em sintonia com o previsto no art.º 219.º do CCiv., sem prejuízo de o segurador – só ele – ser obrigado a formalizar o contrato num instrumento escrito, a apólice de seguro, a qual não carece, todavia, da assinatura da contraparte, embora lhe deva ser entregue), à luz do disposto no art.º 32.º (n.ºs 1 e 2) do RJCS, aprovado pelo DLei n.º 72/2008, de 16-04 [cujo art.º 6.º, n.º 2, al.ª a), revogou aquele art.º 426.º].

Isto mesmo tem sido defendido pelo aqui relator, inclusive em Contrato de Seguro, Responsabilidade Automóvel e Boa-Fé, Almedina, Coimbra, 2017, ps. 40 e segs., onde são mencionadas as implicações em matéria de interpretação do negócio jurídico, com inaplicabilidade do disposto no art.º 238.º do CCiv. (cfr. p. 42), posição que é de acolher ([16]).

Esgrime também a mesma Recorrente com a liberdade contratual, num horizonte em que, a seu ver, nem a lei impõe a obrigatoriedade de cobertura de danos não patrimoniais, nem o contrato celebrado os prevê.

Importa, então, analisar o clausulado contratual, de molde a, em termos interpretativos, concluir se estão, ou não, ali contemplados os danos não patrimoniais.

É líquido – retomando o já exposto – que, relativamente à cobertura por invalidez permanente, foi previsto um montante (máximo) de capital de € 50.000,00 (facto 36), sendo o montante da indemnização obtido, em concreto, pela aplicação ao valor seguro da respetiva percentagem de invalidez permanente estabelecida na Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007 de 23 de outubro (facto 37).

Assim, tem razão a R./Recorrente quando invoca que a prestação a seu cargo pelo evento invalidez permanente depende de um mero cálculo aritmético, dentro do valor seguro de € 50.000,00, quadro em que opera a percentagem de invalidez permanente que resulte apurada.

Ora, este modo – mediante um tal cálculo aritmético – de determinação da prestação pecuniária não parece poder ajustar-se/adequar-se para fixação do quantum da compensação por danos não patrimoniais, os quais, quando não sujeitos a prestação convencionada (ab initio), são quantificáveis, logicamente, mediante o concurso da equidade, como ocorre nos seguros de responsabilidade civil, à luz do disposto no art.º 496.º, n.ºs 1 e 4, do CCiv..

Porém, se o dito cálculo aritmético não é apto a determinar o montante indemnizatório por qualquer dano de cariz não patrimonial, é também certo que o contrato, no seu clausulado, não oferece qualquer remissão para critérios de equidade.

E, se a dúvida quanto ao sentido do clausulado predisposto do contrato de seguro, designadamente por ambiguidade deste, deverá ser ponderada contra o predisponente, importa, desde logo, verificar se tal dúvida é fundada e existente no caso (por via de falta de disposição convencional ou de ambiguidade).

Ora, vem sendo entendido pela jurisprudência do STJ que a «progressiva aproximação ao contrato em concreto (…) impõe que, primeiramente, se tome em atenção as cláusulas particulares e só depois as condições especiais (que se aplicam a um determinado tipo de contratos de seguro, completando ou especificando as condições gerais) e, em seguida, as condições gerais, comuns a todos os contratos de seguro» ([17]).

No caso, nada podendo retirar-se das condições particulares quanto a danos não patrimoniais – sua cobertura ou não –, o mesmo podendo dizer-se do texto das «cláusulas especiais» (cfr. fls. 84 v.º e segs. do processo físico), importa prosseguir na análise das condições gerais do contrato, onde figura, entre as coberturas base do seguro, a invalidez permanente, bem como, quanto à definição desta cobertura, a explicitação clara de que o montante da prestação será obtido pela aplicação ao valor seguro (de € 50.000,00, correspondente ao montante máximo a pagar) da respetiva percentagem de invalidez permanente (estabelecida pelo modo mencionado no facto 37) – cfr. arts. 3.º, 4.º e 11.º das condições gerais juntas com a contestação da R./Recorrente ([18]).

Consta ainda, com relevo para o caso, das condições gerais do contrato, quanto a exclusões, não ficar garantido, em caso algum, todo e qualquer prejuízo consequencial direto e/ou indireto, nomeadamente lucros cessantes e/ou perdas económicas e financeiras de qualquer natureza [art.º 7.º, n.º 1, al.ª r)].

Ora, deste modo, bem determinado, de fixação do montante da prestação da seguradora (com utilização de cálculo matemático/aritmético), de si imprestável para fixação/quantificação de reparação por dano não patrimonial, em conjugação com a inequívoca exclusão de quaisquer prejuízos consequenciais diretos ou indiretos, parece dever, salvo o devido respeito, concluir-se pela não cobertura, pelas forças do celebrado seguro de acidentes pessoais, de quaisquer danos não patrimoniais.

Com efeito, os danos não patrimoniais invocados – incluindo quantum doloris e dano estético –, tal como alegados sob os art.ºs 45.º e segs. da petição inicial, são de perspetivar, se bem se vê, como consequenciais ao acidente e decorrentes lesões suportadas, do mesmo modo que o são, no plano patrimonial, os mencionados (de forma não esgotante), «lucros cessantes e/ou perdas económicas e financeiras de qualquer natureza».

Termos em que – com a devida vénia – é de acolher aqui, mutatis mutandis, a posição expressa no já mencionado Ac. STJ de 06/04/2017, nos seguintes termos:

«(…) é manifesto que na reparação da invalidez permanente foi convencionado um critério dependente de meros cálculos matemáticos (no qual não intervém o princípio geral contido no artigo 562.º do Código Civil, segundo o qual o quantum indemnizatório deve corresponder ao prejuízo efectivamente sofrido e repará-lo integralmente), não se vendo como pode ter-se como compreendida no capital por invalidez permanente, para além da estrita indemnização correspondente à percentagem da perda da capacidade aquisitiva, a indemnização por danos não patrimoniais.

Acresce que, a entender assim, teríamos que aceitar a incongruente solução de que a apólice apenas contemplaria a reparação de danos não patrimoniais em casos de menor gravidade, em que a invalidez permanente fosse de um valor percentual mais baixo, pois o valor do capital disponível para tal indemnização iria diminuindo à medida que fosse subindo o grau de desvalorização funcional permanente. E chegar-se-ia ao absurdo de, no caso de uma incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho, correspondente a uma IPP de 100%, ou mesmo no caso de uma IPP de 66% – potencialmente determinativas de maiores danos em bens de ordem espiritual, atenta a maior gravidade do dano corporal e as maiores limitações físicas que coenvolvem –, a apólice não contemplar a indemnização por danos não patrimoniais por não haver já capital disponível para o efeito. O que, a nosso ver, de forma alguma é crível que tenha sido o sentido verdadeiramente querido pelas partes.

 Assim, se a apólice não contempla expressamente a reparação do dano não patrimonial, se a definição de “invalidez permanente” nela contida aponta apenas para as consequências patrimoniais da lesão e se o critério nela clara e inequivocamente estabelecido para a reparação da “invalidez permanente” é puramente aritmético – multiplicação da IPP apurada pelo valor do capital garantido na apólice, com as restrições assinaladas –, conduzindo a resultados interpretativos claramente iníquos, face ao clausulado, a contemplação no capital garantido da indemnização por danos não patrimoniais, é de concluir que o contrato de seguro celebrado (…) não compreende as consequências não patrimoniais que eventualmente a pessoa segura possa sofrer em consequência de sinistro verificado (…).» (destaques aditados).

Ou como dito, na mesma senda, no referido Ac. STJ de 07/11/2019, «(…) atender ao valor do dano efetivo, incluindo dos danos não patrimoniais, poderá eclipsar a diferenciação da atribuição patrimonial devida por invalidez permanente absoluta e a devida por invalidez permanente parcial e, no âmbito desta, a que for devida em função dos graus de incapacidade fixados (…)».

Tudo visto, em adequada interpretação do conteúdo contratual – inexistindo ambiguidade do clausulado (o que afasta a aplicação da máxima in dubio contra stipulatorum) –, conclui-se pela inexistência de cobertura, no quadro do dito seguro de acidentes pessoais, quanto a danos não patrimoniais, com exclusão, pois, da respetiva reparação pela seguradora.

Donde que deva proceder a apelação da 1.ª R., levando à sua absolvição, mediante revogação da sentença nesta parte, quanto a danos não patrimoniais (montante de € 45.000,00 e respetivos juros de mora).

3. - Do fundamento para condenação da R. Universidade C. no pedido

Passando ao recurso da A., vejamos que fundamentos esgrime a mesma para que o Tribunal ad quem, diversamente do veredito da 1.ª instância, pronuncie condenação também quanto à R. .

Antes, porém, observemos as razões que conduziram à decisão absolutória, com que não se conforma aquela A./Recorrente.

Escreveu-se na sentença [com referência ao art.º 9.º, n.º 1, al.ª e), do Estatuto do Bolseiro de Investigação e sua projeção sobre o caso]:

«(…) a norma em questão não implica a assunção de qualquer responsabilidade por parte da entidade de acolhimento.

A norma, ao reconhecer o direito do bolseiro a beneficiar de um seguro contra acidentes pessoais, limita-se a instituir o seguro obrigatório, visando conferir proteção ao bolseiro.

A categoria dos seguros obrigatórios pressupõe uma celebração imposta por disposição legal (como é o caso em apreço).

Com o seguro obrigatório, atende-se a uma necessidade social fundamental, a de assegurar que o beneficiário chegue, efetivamente, a usufruir da cobertura. É certo que um sistema de seguros não evita o risco, mas previne o perigo das vítimas não obterem o ressarcimento.

No quadro do seguro obrigatório em causa, apenas existe a obrigação de cobertura por um seguro contra acidentes pessoais, sem que haja regulamentação legal específica do conteúdo do seguro imposto (…). Por isso, a liberdade de modulação da relação contratual (…) constitui uma faculdade que a imposição do seguro obrigatório em benefício do bolseiro não cerceia. Podia, por isso, a 2.ª ré celebrar o contrato de seguro com a 1.ª ré nos termos em que o fez, por não existir norma que imponha, para além da obrigatoriedade da contratação de um seguro contra acidentes pessoais, limites mínimos de cobertura.» ([19]).

Contrapõe a A./Recorrente – e aqui assenta, se bem se entende, a base da sua argumentação – que a «Lei 40/2004 de 18/08 (estatuto do bolseiro)», ao estabelecer a obrigatoriedade do seguro («todos os bolseiros têm direito a beneficiar (…) de um seguro contra acidentes pessoais»), «está a partir do pressuposto que existe uma responsabilidade pelos acidentes (…)» (conclusão 1.ª).

Não podemos deixar de dissentir, com todo o respeito devido.

É que, naquela latitude do sistema, o que o legislador pretendeu afirmar foi a instituição do seguro obrigatório de acidentes pessoais dos bolseiros, obviamente, com cobertura eficaz, atenta a função desse seguro. Daí que tenha nascido para a R. Universidade C. a obrigação legal de celebrar um contrato de seguro de acidentes pessoais que cobrisse os riscos da bolseira aqui Demandante.

E foi isso que a Universidade C. fez, celebrando o contrato de seguro em causa: cumpriu, desse modo, a sua obrigação de contratar, sendo que o conteúdo do contrato de seguro obrigatório de acidentes pessoais de bolseiro ficou, como visto, sujeito ao princípio da liberdade contratual.

A A./Recorrente parece pretender convocar uma eventual responsabilidade objetiva da R. Universidade C. , que abarcasse o acidente dos autos, tendo em conta a relação contratual que é estabelecida entre os bolseiros e aquela .

Porém – sabido, desde logo, que o seguro dos autos não é um seguro de responsabilidade civil –, só poderia haver responsabilidade objetiva (com obrigação de indemnizar independentemente de culpa) «nos casos especificados na lei» (art.º 483.º, n.º 2, do CCiv.).

Ora, é patente, desde logo, que a relação entre A. e R. Universidade C. não é uma relação de subordinação laboral (como resulta do Estatuto do Bolseiro), afastando a responsabilidade objetiva por acidentes de trabalho, sendo ainda, por outro lado, que a Recorrente não indica qualquer norma jurídica – nem este Tribunal a deteta – que estabeleça a responsabilidade objetiva da dita Universidade C. .

E, se é de afastar qualquer pressuposto fundado numa inexistente responsabilidade objetiva, também não está consubstanciado um qualquer facto ilícito e culposo que fosse gerador de responsabilidade civil (não invocado e sem qualquer suporte nos factos apurados).

Donde que não possa a R. Universidade C. ser responsabilizada em sede de responsabilidade objetiva ou por culpa.

Ilícito haveria – por violação de norma legal imperativa – se a Universidade C. não tivesse celebrado o contrato de seguro obrigatório de acidentes pessoais de bolseiro.

Mas a Universidade C. cumpriu esse seu dever legal, contratando um seguro com disciplina convencional e coberturas adequadas ([20]), seguro esse a operar quanto ao sinistro dos autos ([21]).

Feito isso, nada mais lhe era exigível, termos em que não pode, a nosso ver, ser responsabilizada pelo sinistro e suas consequências danosas, posto dever operar a cobertura do seguro, com as decorrentes prestações a cargo da R. seguradora (e só desta).

Donde que, neste entendimento, improceda a apelação da A., sendo, pois, de manter a sentença absolutória quanto à R. Universidade C. .

     

***

IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

(…)

***
V – Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Conceder provimento ao recurso da R./Recorrente (seguradora) e, em consequência, revogar a decisão recorrida no concernente à condenação dessa R. – que vai nessa parte absolvida – em reparação por danos não patrimoniais (montante de € 45.000,00 e respetivos juros moratórios);
b) Negar provimento à apelação da A., confirmando o dispositivo absolutório da sentença quanto à R. Universidade C. ;
c) Manter no mais a decisão recorrida.

Custas das apelações pela A. (vencida), sendo as devidas na 1.ª instância a suportar por aquela e pela 1.ª R., na proporção do verificado decaimento respetivo.

 

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas e em teletrabalho.

Coimbra, 18/01/2022

        

Vítor Amaral (Relator)

Luís Cravo

                                     

Fernando Monteiro


([1]) Correspondente a € 86.849,00, por danos patrimoniais futuros; € 44.000,00, para ajudas técnicas; € 25.000,00, para as ajudas medicamentosas; € 2.632,26, por danos patrimoniais presentes; € 80.000,00, por danos não patrimoniais.
([2]) Que se deixam transcritas.
([3]) Que se deixam transcritas, com destaques retirados.
([4]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([5]) Dispõe o art.º 1.º daquele Estatuto (quanto ao “Âmbito de aplicação”) que:
«1 - O presente Estatuto define o regime aplicável aos beneficiários de subsídios, atribuídos por entidades de natureza pública e ou privada, destinados a financiar a realização, pelo próprio, de actividades de natureza científica, tecnológica e formativa, nos termos do artigo seguinte, sem prejuízo do disposto pelo direito comunitário e pelo direito internacional.
2 - Os subsídios a que se refere o número anterior designam-se por bolsas, sendo concedidos no âmbito de um contrato celebrado entre o bolseiro e uma entidade acolhedora.
(…)».
([6]) Âmbito em que os DLei n.º 202/2012, de 27-08, e DLei n.º 89/2013, de 9-07, embora alterando aspetos particulares do Estatuto do Bolseiro de Investigação, nada vieram modificar/acrescentar.
([7]) Trata-se, pois, de um seguro obrigatório – não facultativo –, mas de conteúdo aberto, regido, pois, pelo princípio da liberdade contratual (de estipulação).
([8]) V., neste sentido, Pedro Romano Martinez e outros, Lei do Contrato de Seguro Anotada, Almedina, Coimbra, 2009, p. 445.
([9]) Cfr. Direito dos Seguros, 2.ª ed. (revista e atualizada), reimpressão, Almedina, Coimbra, 2017, p. 839.
([10]) Sobre a distinção entre seguros de danos e seguros de pessoas pode ver-se ainda, entre outros, José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, ps. 37 e seg..
([11]) São seguros de prestações convencionadas os que garantem um valor predeterminado (fixado à partida), não dependente, pois, do apuramento ulterior de um montante exato do dano concreto, bastando, no essencial, a ocorrência do evento determinante da operância da cobertura do seguro.
([12]) Consta das condições particulares, quanto a coberturas, em caso de «morte ou invalidez permanente», um capital por pessoa de «50.000,00», correspondente, em termos de garantias principais, ao mesmo capital de «50.000,00». E, nas condições gerais do contrato, vem expressamente mencionado que: a) O segurador garante, em caso de morte, o pagamento do respetivo valor seguro ao beneficiário [art.º 4.º, n.º 1, al.ª a), i.]; b) O segurador garante, em caso de invalidez permanente, o pagamento do respetivo valor seguro à pessoa segura, sendo o montante a pagar obtido por aplicação ao valor seguro da respetiva percentagem de invalidez permanente, de acordo com determinada tabela  [art.º 4.º, n.º 1, al.ªs b), i. e ii., e c)].
([13]) V. José Vasques, op cit., p. 47.
([14]) Cfr. Ac. STJ de 07/11/2019, Proc. 654/16.6T8ABT.E1.S1 (Cons. Tomé Gomes), em www.dgsi.pt, com destaques aditados. No mesmo sentido, os Acs. STJ de 08/09/2016, Proc. 1311/11.5TJVNF.G1.S1 (Cons. Orlando Afonso), também em www.dgsi.pt – a significar que, se «a determinação do quantitativo da atribuição patrimonial devida à pessoa segura se acha estritamente correlacionada com o grau de invalidez de que aquela ficou a padecer em consequência do sinistro, é forçoso considerar que, para a determinação da importância a liquidar pela recorrida, não deve o intérprete ater-se nos critérios usualmente empregues na jurisprudência para fixar a indemnização pelos danos patrimoniais decorrentes da incapacidade permanente, tanto mais que não nos encontramos no domínio da obrigação a responsabilidade civil por factos ilícitos (n.º 1 do artigo 483.º e artigo 562.º, ambos do Código Civil) e que essa atribuição patrimonial é uma mera decorrência do funcionamento desse contrato, desprovida de natureza indemnizatória e impassível de autonomização face à prestação de suportação de risco a cargo da seguradora.» (destaque aditado) –, e de 06/04/2017, Proc. 335/10.4TTOAZ-P1.S1 (Cons. Gonçalves Rocha), ainda em www.dgsi.pt.
([15]) Parafraseando o aludido Ac. STJ de 08/09/2016, referente a seguro desportivo obrigatório (ainda um seguro de acidentes pessoais).
([16]) Note-se que a apólice junta aos autos – a que alude (e para que remete) o ponto 35 dos factos provados – tem data de emissão de «17/06/2013» (cfr. fls. 66 do processo físico), em tempo, pois, de plena vigência do RJCS, tendo o acidente, por seu lado, ocorrido em 29/05/2014 (cfr. facto 2).
([17]) Assim, por todos, o Ac. STJ de 07/11/2017, Proc. 398/16.9T8PVZ.P1.S1 (Cons. Pedro de Lima Gonçalves), em www.dgsi.pt. Veja-se ainda, do mesmo modo, o Ac. STJ de 04/12/2014, Proc. 919/13.9TVLSB.L1.S1 (Cons. Granja da Fonseca), também em www.dgsi.pt.
([18]) Quer dizer, enquanto nos casos de morte ou de invalidez permanente total/absoluta (a que seja correspondente, na “economia”/dinâmica do contrato, a 100%) é, invariavelmente, pago o montante referido de € 50.000,00, já no caso de invalidez permanente parcial (inferior a 100%) o quantum da prestação da seguradora varia, como visto, em função, somente, da percentagem da invalidez.
([19]) E acrescentou-se que «a cobertura prevista no contrato de seguro em questão nos autos é mais favorável do que a cobertura mínima imposta para o seguro desportivo (cf. artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 10/2009) e mesmo que, aparentemente, as coberturas mínimas contratadas pela “Fundação para a Ciência e Tecnologia” para os seus bolseiros» (apontando para «20.000,00 EUR em caso de morte ou invalidez permanente»).
([20]) Não havia exigência legal de cobertura de danos de cariz não patrimonial, nem limites legais quanto a capital, parecendo, em atenção aos riscos expetáveis no âmbito da atividade de bolseiro, não serem as coberturas contratadas desajustadas, desadequadas ou desproporcionais.
([21]) Nem se vê – parafraseando o dito Ac. STJ de 07/11/2019 – que o clausulado contratado entre as RR. não se insira «no quadro do contrato de seguro de acidentes pessoais na modalidade de prestações de valor predeterminado não dependente do montanteC efetivo do dano, de modo a proporcionar um ressarcimento do sinistrado a forfait, seja este dano superior ou inferior àquele valor. // Por outro lado, visando-se cobrir o risco de lesões corporais determinativas de invalidez permanente inerentes a acidente (…), nem sequer necessariamente associado à prática de ilícito civil no domínio da responsabilidade extracontratual, não se mostra imperioso que a prestação devida pelo segurador seja aferível pelo dano efetivo ou esteja limitada a este, segundo o princípio indemnizatório consagrado no artigo 128.º da LCS para o contrato de seguro de danos. // Nessa conformidade, não se afigura que a “indemnização” desse modo pré-determinada nas apólices de seguro» seja contrária à «natureza da atividade» em questão ou provoque «um esvaziamento do objeto do contrato de seguro».