Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1238/20.0T8ANS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTOS AUTENTICADOS
FORMALIDADES DA AUTENTICAÇÃO
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO MEDIANTE EMBARGOS
Data do Acordão: 01/18/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ANSIÃO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 703.º, N.º 1, ALÍNEA B) E 734.º, N.º 1, AMBOS DO CPC; ARTIGOS 46.º, N.º 1, ALÍNEAS A) A N) E 70.º, AMBOS DO CÓDIGO DO NOTARIADO E ARTIGO 38.º DO DECRETO-LEI 76-A/2006 DE 22/03.
Sumário: I - A inexistência de título executivo pode ser invocada pelo executado, pela primeira vez, em sede de recurso interposto contra a decisão que julgou improcedentes os embargos opostos à execução, no caso de, em tal momento, ainda não ter havido transmissão dos bens penhorados.

II – A autenticação de um documento particular efectuada por advogado estagiário é nula quando não contenha as formalidades previstas nas alíneas a) a n) do n.º 1 do artigo 46.º do Código do Notariado.

III - A nulidade da autenticação não pode ser suprida em sede executiva, uma vez que a validade e existência do título afere-se no momento da instauração da execução.

IV – Não vale como título executivo o documento particular cuja autenticação seja nula.

Decisão Texto Integral:


Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de COIMBRA:


RELATÓRIO


Intentada execução por A. S.A. contra B. , LDA. e C. , para pagamento da quantia de € 144 777,58 apresentando como título executivo documento particular de reconhecimento de dívida com termo de autenticação, vieram os executados deduzir oposição por embargos, invocando a excepção de não cumprimento do contrato de empreitada que serviu de base à elaboração do denominado “Acordo de Pagamento”, por existência de defeitos não corrigidos na obra e, bem assim, o direito à compensação de valores em dívida decorrente dos prejuízos tidos por causa desses defeitos e da necessidade da sua reparação.

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Recebidos os embargos e notificado o exequente, veio este contestar, impugnando a existência de defeitos na obra e do alegado contra-crédito.


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Após, foi proferido despacho saneador no tribunal a quo que julgou improcedente o incidente de oposição por embargos à execução de documento particular autenticado por “não junto, nem produzido, qualquer outro meio de prova legal plena que afaste o valor probatório supra descrito do declarado pelas embargantes no contrato em apreço (não foi junta qualquer prova documental infirmadora da veracidade da declaração, nem produzida qualquer contra-declaração confessória ou recognitiva de factos desfavoráveis), uma vez que dos documentos juntos na petição de embargos com data posterior ao título executivo, não se extrai qualquer contra-declaração confessória ou recognitiva de factos desfavoráveis.”


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Não se conformando com essa decisão, vieram os embargantes dela interpor recurso, concluindo da seguinte forma:

CONCLUSÕES

1) Contrariamente ao alegado pela Exequente/Embargada e ao constante na alínea A) do Factos Provados, o documento que serve de base à execução não constitui documento autenticado válido, pelo que não é título executivo.

2) Determina o nº. 3 do artigo 35º do Código do Notariado, que “São autenticados os documentos particulares confirmados pelas partes perante notário.”; sendo que a confirmação do documento se faz mediante termo de autenticação, lavrado no próprio documento ou em folha anexa.

3) deve conter, entre outros: o nome completo, estado, naturalidade e residência habitual dos outorgantes, bem como das pessoas singulares por estes representadas, a identificação das sociedades, nos termos da lei comercial, e das demais pessoas colectivas que os outorgantes representem, com menção, quanto a estas últimas, das suas denominações, sedes e números de identificação de pessoa colectiva; a menção dos documentos apenas exibidos com indicação da sua natureza, data de emissão e entidade emitente e, ainda, tratando-se de certidões de registo, a indicação do respetivo número de ordem ou, no caso de certidão permanente, do respetivo código de acesso; as assinaturas, em seguida ao contexto, dos outorgantes que possam e saibam assinar, bem como de todos os outros intervenientes, e a assinatura do funcionário, que será a última do instrumento – Artigo 46 do CN.

4) Da análise aos documentos elaborados por Advogado e que se encontram anexos ao “Acordo Contratual”, verificamos que tais documentos não se encontram elaborados de acordo com o disposto nos supra mencionados dispositivos legais.

5) Assim, de tais documentos não constam o estado, naturalidade e residência habitual dos outorgantes, nem as sedes e números de identificação das pessoas colectivas que eles representam (Cfr. páginas quinta a oitava do título executivo) – alínea c) do nº. 1 do artigo 46º do CN.

6) Por outro lado, em tais documentos o Sr. Advogado – Estagiário não indicou o código da certidão permanente das sociedades que os Outorgantes representam, nem a data de emissão e qual a entidade emitente dessas certidões (Cfr. páginas quinta a oitava do título executivo) - alínea g) do nº. 1 do artigo 46º do CN.

7) Por fim, tais páginas/documentos não se encontram assinadas pelos supostos intervenientes neles identificados;

8) No que respeita às páginas nona e décima (e que diz respeito à Executada C. ), tal documento, atento o título nele aposto e o seu teor, não constitui um Termo de Autenticação, mas um mero reconhecimento de assinatura, pelo que o mesmo nem sequer se enquadra na alínea b) do nº. 1 do artigo 703º do CPC.

9) Não cumprindo tais documentos elaborados pelo Sr. Advogado-Estagiário o formalismo/requisitos dos documentos autenticados previstos nos artigos 46º, nº. 1, 150º e 151º, todos do Código do Notariado, a que os Advogados e Solicitadores estão obrigados, são tais autenticações nulas por vício de forma (Artigo 70º, nº. 1 do Código do Notariado).

10) Não tendo o documento 1 junto com o requerimento executivo natureza de documento autenticado, verifica-se a inexistência do título executivo – artigo 729º, al. a) do CPC, ex vi artigo 731º do CPC.

11) A inexistência de título executivo é de conhecimento oficioso – artigo 734º, nº. 1 do CPC.

12) Deve ser alterada a alínea A) dos Factos Provados, devendo a mesma passar a ter a seguinte redacção: «A – A exequente/embargante apresenta como título executivo o documento denominado “Acordo contratual”, não autenticado, (cfr. documento junto com o requerimento executivo que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).»

13) A douta sentença sob recurso violou, por erro de interpretação e/ou de aplicação, os Artºs. 703º, nº. 1, al. b) do C. P. C. e os artigos 46º, 70º, 150 e 151º do Código do Notariado.

Termos em que, e no muito que V. Exas. se dignarão suprir, deve a douta sentença sob recurso ser revogada e substituída por outra que, dando provimento ao recurso, julgue os Embargos de Executado totalmente procedentes.”


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Notificado o exequente/embargado, este não interpôs contra-alegações.

 


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QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]

A questão colocada em sede de recurso não foi suscitada perante o tribunal recorrido, nem por este tribunal apreciada, pelo que, não invocada em sede de embargos, estaria em princípio, pelo princípio da concentração da defesa, precludida a possibilidade da sua invocação posterior, excepto se de conhecimento oficioso, porque integrada no elenco das questões que determinariam a ter sido conhecidas, o indeferimento liminar da petição inicial (artº 726 nº2 a) do C.P.C.)

Nestes termos, as questões a decidir consistem em apurar:

b) se a falta de título executivo pode ser apreciada apenas em sede recursória;

a) em caso de resposta afirmativa, se o documento particular apresentado à execução, não preenche os requisitos previstos no artº 703 nº1 b) do C.P.C., por não se encontrar autenticado;


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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A matéria de facto a considerar, para decisão da presente questão, é a seguinte:

1-A exequente/embargante apresenta como título executivo um documento denominado “Acordo contratual.”

2-Deste documento, constam os seguintes “Termos de Autenticação”:
A--“No dia onze de janeiro de dois mil e dezasseis, no meu escritório sito na Rua ..., em ..., perante mim, F. , compareceu:
D. , portador do cartão de cidadão número ..., válido até 17.05.2020, e E. , portador da carta de condução número ..., emitida a 07.08.2013, na qualidade de Administradores da Sociedade “ A. S.A.”, com poderes para o acto, qualidade e poderes conforme verifiquei pela consulta à Certidão Permanente. Os outorgantes, para fins de autenticação, apresentaram-me o documento que antecede-Acordo Contratual- que declararam já ter lido, tendo ainda afirmado que o seu conteúdo é a fiel expressão da vontade da sociedade que representam, pelo que confirma inteiramente tal conteúdo. Este termo de autenticação foi lido e o seu conteúdo explicado, em voz alta, aos outorgantes, na sua presença.
Esta autenticação é feita nos termos do disposto no artigo 38º do Decreto-Lei nº 76-A/2006 de 29 de Março. Custo: Gratuito.
 Nos termos do disposto no nº1 do art. 4º da Portaria nº 657-B/2006 de 29 de Junho, o número de registo informático do presente acto, é o 37762LE/107.”

B-“No dia onze de janeiro de dois mil e dezasseis, no meu escritório sito na Rua ..., em ..., perante mim, F. , compareceu:
C. , portadora do cartão de cidadão número ..., válido até 29.11.2020, na qualidade de Gerente da Sociedade “ B. Lda.”, com poderes para o acto, qualidade e poderes conforme verifiquei pela consulta à Certidão Permanente. A outorgante, para fins de autenticação, apresentou-me o documento que antecede-Acordo Contratual- que declarou já ter lido, tendo ainda afirmado que o seu conteúdo é a fiel expressão da vontade da sociedade que representa, pelo que confirma inteiramente tal conteúdo. Este termo de autenticação foi lido e o seu conteúdo explicado, em voz alta, ao outorgante, na sua presença.
Esta autenticação é feita nos termos do disposto no artigo 38º do Decreto-Lei nº 76-A/2006 de 29 de Março. Custo: Gratuito.
Nos termos do disposto no nº1 do art. 4º da Portaria nº 657-B/2006 de 29 de Junho, o número de registo informático do presente acto, é o 37762LE/103.”

3-Os referidos “Termos de Autenticação”, contêm o carimbo e a assinatura do Advogado-estagiário que os elaborou, mas deles não conta a assinatura de nenhum dos outorgantes.

4- As embargantes liquidaram apenas quatro prestações das contempladas no acordo descrito em 1).

 

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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO


Julgados improcedentes os embargos de executado, vieram os embargantes interpor recurso, invocando a inexistência de título executivo, uma vez que os denominados “Termos de Autenticação” não cumprem os requisitos previstos no artº 46 nº1 alíneas a) a n), 150 e 151 do Código do Notariado, sendo assim nulos por vício de forma e, nessa medida, não integrando os títulos executivos previstos no artº 703 nº1 b) do C.P.C.

Trata-se de matéria que o tribunal de primeira instância não conheceu, nem foi invocada na petição de embargos, embora o tenha sido em sede de execução, tendo o tribunal de primeira instância considerado esgotado o seu poder jurisdicional quanto a esta questão. Impõe-se, pois, apreciar se, decidindo o tribunal de primeira instância pela improcedência da execução, com outros fundamentos, pode o embargante invocar, em sede de recurso a invalidade ou falta de título executivo.

b) se a falta de título executivo pode ser apreciada apenas em sede recursória;

Constitui regra geral que toda a execução se deverá basear numa obrigação que se revista de certeza, liquidez e exigibilidade, traduzida num título, o qual se assume como condição necessária e suficiente da acção executiva.

O título executivo é assim o documento que incorpora uma determinada obrigação, seja ela pecuniária, de entrega de coisa certa ou para prestação de facto, dele decorrendo a demonstração legalmente bastante do direito correspondente[3], o qual dispensa, assim, a sua prévia averiguação e declaração por via da competente acção declarativa.

Constituindo a sentença judicial condenatória, o título executivo por excelência, a criação de outros títulos executivos resulta da necessidade sentida pelo legislador de assegurar tutela jurisdicional efectiva àqueles direitos que, não sendo controvertidos, não beneficiavam de título executivo e assim, careciam de prévia declaração por via judicial, com o consequente aumento de pendência processual e morosidade na efectivação do direito, sem que a necessidade de averiguar e declarar o direito o impusesse, por não controvertido.

Ora o direito à tutela jurisdicional efectiva, constituindo um direito com assento constitucional, integrado nos direitos fundamentais dos cidadãos (cfr. art. 20º da Constituição da República Portuguesa) compreende o direito de obter uma decisão judicial num prazo razoável e sem dilacções indevidas, no âmbito de um processo justo e equitativo,[4] o qual engloba a garantia da realização coerciva do direito em prazo útil, [5] podendo assim afirmar-se um verdadeiro direito constitucional à execução (tutela executiva), inserido no âmbito da tutela jurisdicional decorrente do art. 20º nº4 da Constituição.[6]

Esta tutela executiva não prescinde do respectivo título, título este “pelo qual se determinam os fins e limites da acção executiva” (nº5 do artº 10 do C.P.C.) que, conforme acima referido não se esgota na sentença judicial, mas decorre de outros títulos a que o legislador, no uso dos poderes decorrentes do art. 9º, alínea b), da Constituição, conferiu força executiva. Ora, a natureza e amplitude destes títulos, para além da sentença judicial, não tem sido constante, variando ao sabor de necessidades económicas, de segurança do comércio jurídico e/ou de descongestionamento dos tribunais, conforme resulta do sucessivo alargamento ou restrição do seu elenco, constante das diferentes alterações ao Código de Processo Civil.

Assim, no âmbito do C.P.C. de 1939, o legislador procedeu ao alargamento do elenco de títulos executivos de forma a abranger, para além das sentenças judiciais, outros de natureza não judicial (cfr. art. 46º) - em ruptura com o pendor excessivamente formal do C.P.C. de 1878 – de forma a dar resposta à necessidade de conferir tutela executiva, sem necessidade de prévia propositura de acção declarativa, naquelas situações em que verdadeiramente não existisse litígio sobre a existência e exigibilidade do direito, que carecesse de ser suprido por meio de decisão judicial, intenção que se manteve no âmbito do C.P.C. de 1961, com a atribuição de força executiva, também a documentos particulares.

Após a revolução de 1974, o legislador persistiu no seu propósito de liberalização dos títulos executivos extrajudiciais[7],[8], mantendo o objectivo de conferir tutela executiva em situações não carecidas de apreciação judicial, mas sem que as exigências de tutela equitativa dos direitos dos pretensos devedores fossem postas em causa, pois que o executado, citado para cumprir a obrigação titulada, poderia defender-se com a mesma amplitude de meios com que poderia defender-se no processo declarativo.

É com este enquadramento, que surge o alargamento do elenco de títulos executivos aos documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto” (artº 46 c) do C.P.C., na redacção do D.L. 226/2008 de 28/11)

Com a Reforma de 2013, o legislador veio a restringir este elenco de títulos executivos, apontando como razão o aumento de embargos de executado decorrente deste tipo de títulos que assim contrariava a razão para a sua criação, ou seja a desnecessidade de préva interposição de acção declarativa, por se não tratarem de créditos controvertido. Assim, na elaboração do novo Código de Processo Civil (Lei 41/2013) foi eliminada a referência aos “documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto”.

Assim sendo, estão actualmente previstos no artº 703 b) do C.P.C., como títulos executivos apenas os “documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação.

E, porque o referido título foi constituído em 2016, não lhe é aplicável a decisão do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 408/2015, de 14 de Outubro, que julgou inconstitucional a aplicação desta restrição a documentos particulares emitidos em data anterior à entrada em vigor deste Código de Processo Civil, por serem então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961.

Nesta medida, porque neste campo vigora o princípio da tipicidade, sendo taxativo o elenco de títulos previstos no artº 703 do C.P.C., o documento apresentado à execução só constituirá título executivo, se estiver exarado ou autenticado por notário ou outras entidades ou profissionais com competência para o efeito e, se dele constar a constituição ou reconhecimento de uma obrigação.

Não existindo título ou sendo este insuficiente impunha-se o indeferimento liminar do requerimento executivo, com fundamento na alínea a) do artº 726 nº2 C.P.C.

No entanto, se, por qualquer razão, o julgador se não aperceber da falta deste pressuposto específico da execução, nada obsta a que venha posteriormente a apreciar esta questão, pois que se trata de questão de conhecimento oficioso, cuja apreciação sempre se imporia ao tribunal. Quer isto dizer que, ainda que não invocada tal questão em sede de embargos de executado, o princípio da concentração da defesa e da preclusão de meios de defesa não se aplica quando sejam invocadas questões que já eram de conhecimento oficioso, ou seja, aquelas questões que não estão na livre disponibilidade das partes.[9]

Com uma única limitação temporal, constante do artº 734 nº1 do C.P.C., de não ter ocorrido ainda o primeiro acto de transmissão de bens penhorados. Assim, se não tiver existido qualquer ato de transmissão de bens penhorados a terceiros, podem ser apreciadas as questões que poderiam ter conduzido ao indeferimento liminar ou ao aperfeiçoamento do requerimento executivo, quer a requerimento da parte, quer oficiosamente e ainda que não tenha sido deduzida oposição ou, tendo sido deduzida, não o tenha sido com este fundamento.

Conforme se refere no Ac. do TRL de 17/05/17, (proc. nº 2638/07.6TTLSB.1.L1-4) “o art. 734º-1 do CPC/2013, aliás com redacção similar às duas outras anteriores versões do CPC, dispõe com muita clareza que o juiz, antes do primeiro acto de transmissão de bens penhorados pode rejeitar a execução conhecendo oficiosamente das questões que poderiam ter determinado o indeferimento liminar. O que significa que tal despacho, naturalmente, nem sequer é um despacho de indeferimento liminar. Como explica mesmo o Prof. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3º, Coimbra Editora, ed. 2003, a pag. 335, em anotação ao então correspondente art. 820º do CPC, “Até esse momento, o juiz deve rejeitar oficiosamente a execução, logo que se aperceba da ocorrência de alguma das situações susceptíveis de fundar o indeferimento liminar, quer não tenha havido despacho liminar proferido (art. 324-5), quer só posteriormente se tenha revelado no processo executivo ou, mesmo, no processo declarativo de oposição à execução.”…”A expressa consagração, desde o DL 329-A/95, da possibilidade de conhecimento oficioso superveniente dos fundamentos de indeferimento liminar harmoniza-se com esta possibilidade de fazer valer no processo executivo razões de que o juiz só se dá conta no processo de oposição…”.[10]

O único limite é efectivamente o primeiro acto de transmissão de bens penhorados, porque só então se coloca a questão da protecção de terceiros adquirentes de boa fé, devendo ser entendida a referência constante deste preceito, como aludindo apenas a terceiros de boa fé. Só com esse primeiro acto de transmissão, conforme refere Lebre de Freitas[11]preclude pois a possibilidade de apreciação, no âmbito do processo executivo, dos pressupostos processuais gerais e das questões de mérito respeitantes à existência da obrigação exequenda”, justificando-se este limite à possibilidade de apreciação, pelo facto de, só após a entrega de bens ao seu adquirente, “passarem a existir interesses de terceiros de boa fé que urge salvaguardar.”[12]

Não tendo ainda existido qualquer acto de transmissão de bens penhorados, no sentido pretendido com esta norma[13], conforme resulta de consulta aos autos de execução de que este é apenso, nada obsta à apreciação da falta de título executivo (artº 726, nº1 a), do C.P.C.), aqui arguida em sede de recurso, fundamento que passaremos a apreciar de seguida.

a) Da falta de título executivo, por os denominados “Termos de Autenticação” serem nulos por vício de forma

A nulidade invocada decorre essencialmente de não poderem ser considerados documentos autenticados, aqueles em que os respectivos termos de autenticação não se mostram lavrados em conformidade com as formalidades essenciais à validade do referido termo.

A propósito desta questão há que ter em conta que a decisão recorrida julgou os embargos improcedentes, precisamente pela força probatória atribuída aos referidos documentos particulares autenticados, decorrente do disposto nos artº 377 do Código Civil, segundo o qual “os documentos particulares autenticados nos termos da lei notarial têm a mesma força probatória dos documentos autênticos”. E, por via do disposto no artº 371 do mesmo diploma legal, “os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que nele são atestados com base nas percepções da entidade documentadora” considerando ainda que as declarações confessórias nele contidas, não se mostravam impugnadas por qualquer outro meio de prova equivalente.

Mas, porque apenas constituem títulos executivos os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outros profissionais ou entidades com competência para tal, há que analisar se efectivamente este documento apresentado como autenticado, reúne os requisitos legais para assim ser considerado. 

Se a autenticação de documentos particulares era apanágio dos Notários, o legislador veio adoptar medidas de simplificação e eliminação de actos e procedimentos notariais e registrais, por via do D.L. 76-A/2006 de 22/03, visando actuar “no domínio da autenticação e do reconhecimento presencial de assinaturas em documentos, permitindo que tanto os notários como os advogados, os solicitadores, as câmaras de comércio e indústria e as conservatórias passem a poder fazê-las. Trata-se de facilitar aos cidadãos e às empresas a prática destes actos junto de entidades que se encontram especialmente aptas para o fazer, tanto por serem entidades de natureza pública ou com especiais deveres de prossecução de fins de utilidade pública como por já hoje poderem fazer reconhecimentos com menções especiais por semelhança e certificar ou fazer e certificar traduções de documentos.” (preâmbulo do respectivo diploma).

Atribuiu-se assim aos mencionados neste diploma, nomeadamente advogados e solicitadores, poderes até então cometidos aos oficiais públicos, nos mesmos termos e sujeitos às mesmas obrigações, nomeadamente no que se reporta à autenticação de documentos particulares.

A este respeito, dispõe-se no artº 150 do Código do Notariado que os documentos particulares adquirem a natureza de documentos autenticados desde que as partes confirmem o seu conteúdo perante o notário”, sendo lavrado termo de autenticação o qual deve satisfazer as exigências das alíneas a) a n) do artº 46 e ainda “A declaração das partes de que já leram o documento ou estão perfeitamente inteiradas do seu conteúdo e que este exprime a sua vontade;” (artº 151 nº1 a) do C.Notariado).

Exige-se assim que deste termo de autenticação conste:

a) A designação do dia, mês, ano e lugar em que for lavrado ou assinado e, quando solicitado pelas partes, a indicação da hora em que se realizou;

b) O nome completo do funcionário que nele interveio, a menção da respectiva qualidade e a designação do cartório a que pertence;

c) O nome completo, estado, naturalidade e residência habitual dos outorgantes, bem como das pessoas singulares por estes representadas, a identificação das sociedades, nos termos da lei comercial, e das demais pessoas colectivas que os outorgantes representem, com menção, quanto a estas últimas, das suas denominações, sedes e números de identificação de pessoa colectiva;

d) A referência à forma como foi verificada a identidade dos outorgantes, das testemunhas instrumentárias e dos abonadores;

e) A menção das procurações e dos documentos relativos ao instrumento que justifiquem a qualidade de procurador e de representante, mencionando-se, nos casos de representação legal e orgânica, terem sido verificados os poderes necessários para o acto;

f) A menção de todos os documentos que fiquem arquivados, mediante a referência a esta circunstância, acompanhada da indicação da natureza do documento, e, ainda, tratando-se de conhecimento do imposto municipal de sisa, a indicação do respectivo número, data e repartição emitente;

g) A menção dos documentos apenas exibidos com indicação da sua natureza, data de emissão e entidade emitente e, ainda, tratando-se de certidões de registo, a indicação do respetivo número de ordem ou, no caso de certidão permanente, do respetivo código de acesso;
h) O nome completo, estado e residência habitual das pessoas que devam intervir como abonadores, intérpretes, peritos médicos, testemunhas e leitores;

i) A referência ao juramento ou compromisso de honra dos intérpretes, peritos ou leitores, quando os houver, com a indicação dos motivos que determinaram a sua intervenção;

j) As declarações correspondentes ao cumprimento das demais formalidades exigidas pela verificação dos casos previstos nos artigos 65.º e 66.º;

l) A menção de haver sido feita a leitura do instrumento lavrado, ou de ter sido dispensada a leitura pelos intervenientes, bem como a menção da explicação do seu conteúdo;

m) A indicação dos outorgantes que não assinem e a declaração, que cada um deles faça, de que não assina por não saber ou por não poder fazê-lo;

n) As assinaturas, em seguida ao contexto, dos outorgantes que possam e saibam assinar, bem como de todos os outros intervenientes, e a assinatura do funcionário, que será a última do instrumento.

Examinados os termos de autenticação juntos com o documento particular, deles não consta nem a correcta identificação das pessoas singulares que outorgam em representação da sociedade, nem a indicação do número de pessoa colectiva da sociedade, nem a indicação do código de acesso à certidão permanente da sociedade, conforme o exige o disposto nas alíneas c) e g) do artº 46 do C. Notariado.

Por último e com consequências mais gravosas: do termo de autenticação não consta a assinatura dos outorgantes, em clara violação do disposto na alínea n).

 Ora, o artº 70 do Código do Notariado comina com a nulidade a violação das exigências contidas nas alíneas a) a g) do seu nº1, entre elas a falta de assinatura dos outorgantes. E, se no seu nº2 estabelece formas de sanação dessas nulidades, no caso em apreço, a sanação destas nulidades não é possível em sede executiva. A existência e validade do título executivo aferem-se pelo momento de interposição da acção executiva.

Não se trata assim de nulidade suprível ou sanável em sede executiva, ao abrigo deste nº2 do artº 70 do C. Notariado. Conforme referido em Acórdão proferido nesta mesma Relação de 21/01/20[14], este “vício/omissão não pode ser agora suprido, em plena fase executiva, sabido que o título deve estar formado ao tempo da instauração da ação executiva.”

Assim sendo, apenas pode ser considerado como título executivo o documento particular do qual resulte a constituição ou reconhecimento de uma obrigação, que esteja devidamente autenticado à data da interposição da acção executiva.

Ora, o documento só pode ser considerado devidamente autenticado se “o seu teor tiver sido confirmado pelas partes perante o certificante (o notário, a câmara de comércio e indústria, o conservador, o oficial de registo, o advogado ou o solicitador), nos termos prescritos nas leis notariais, circunstância que terá de constar da respetiva autenticação”[15], devendo ainda constar deste termo “as assinaturas dos outorgantes que possam e saibam assinar, bem como de todos os outros intervenientes, e a assinatura do funcionário, que será a última do instrumento, sob pena do acto notarial ser nulo, por vício de forma.[16]

Por último, deste termo devem ainda constar os elementos de identificação dos outorgantes e a forma como foi verificada a sua identidade e os poderes dos que outorgam em representação de pessoas colectivas. [17]

Não cumprindo os Termos de Autenticação as exigências previstas no artº 46 nº1 alíneas a) a n) e 70 nº 1 do Código de Notariado, enfermam de nulidade não sanável, pelo que se tem de concluir pela falta de título executivo, por não enquadrado no disposto na alínea b) do artº 703 do C.P.C.


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DECISÃO


Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação, em julgar extinta a execução, com fundamento na falta de título executivo.

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Custas pela exequente/embargada nos termos previstos no artº 527 nº1 do C.P.C. 

                                                           Coimbra 18/01/22



[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] CASTRO MENDES, Lições de Direito Civil, 1969, pág. 143.
[4] Sobre o direito a um processo equitativo vide Le Droit à un Procés Equitable, Comission Européenne pour la democratie par le droit, 2000, Conseil de l`Europe e ainda TEIXEIRA DE SOUSA, Miguel, “A jurisprudência constitucional portuguesa e o direito processual civil”, XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, Coimbra Editora, 2008, p. 72. Ainda a este respeito vide QUILLHERÉ- MAJZOUB, La defense du droit à un procès equitable, 1999, pág. 226 apud PINTO, Rui, A Ação Executiva, AAFDL, 2020, pág. 13. Ainda sobre a tutela jurisdicional efectiva e o direito a um processo equitativo e leal, vd. MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I, Universidade Católica Portuguesa, Fev. 2017, págs. 323 a 330.  
[5] CANOTILHO, J.J. Gomes e MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, Coimbra Editora, referindo, a págs. 164/165, que esta garantia se destina a evitar que “as decisões judiciais e a garantia de direitos e interesses se reduzam a meras declarações de intenção a favor de uma das partes.”.
[6] Neste sentido, vide os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 1169/96 de 20/09/96; 444/91 de 20/11/91; 960/96 de 10/07/96 e os Acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), Guincho/Portugal (10/07/84), Guez/França (17/05/05) e Guerreiro/Portugal (31/01/02), disponíveis in http://hudoc.echr.coe.int
[7] Vide a este respeito LEBRE DE FREITAS, José, A Acção Executiva, Coimbra, 1993, págs. 45 e segs. e TEIXEIRA DE SOUSA, Miguel, A Exequibilidade da Pretensão, edições Cosmos, 1991, págs. 15 e segs.
[8] Tendo para o efeito, procedido à eliminação da exigibilidade de reconhecimento presencial da assinatura do devedor para os títulos cambiários (art. 51º nº2 do D.L. nº 201/76 de 19 de Março, publicado no Diário do Governo n.º 67/1976, Série I de 1976-03-19) e posteriormente do reconhecimento notarial (pelo D.L. nº 533/77 de 30 de Dezembro, publicado no Diário da República n.º 301/1977, Série I de 1977-12-30, que alterou a redacção deste art. 51º). Ainda neste âmbito, o D.L. nº 242/85 de 9 de Julho (Diário da República n.º 155/1985, Série I de 1985-07-09), veio alargar o elenco dos títulos executivos particulares, ao prescindir do reconhecimento notarial da assinatura do devedor nas letras, livranças e cheques.
[9] Veja-se no mesmo sentido Ac. desta relação e secção de 28/04/16, relator Nuno Sampaio, proc. nº 7262-13.1TBOER.L1-6

[10] É esta aliás jurisprudência assente, conforme decorre, para além dos já citados, os Acs. do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-03-2015, processo n.º 28802/09.5T2SNT.L1-2; de 30-11-2010, processo n.º 5170/07.4TMSNT-A.L1-7, de 27/10/2016, Processo nº. 4960/10.5TCLRS.L1-6 e de 24/10/19,processo nº 2218/14.0T8SNT-A.L1.L1-2; do TRP de 18/12/18, proc. nº 31688/15.7T8PRT-B.P1; do STJ de 30-11-2006 (revista n.º 3813/06 da 7.ª Secção), de 09-03-2004 (revista n.º 4109/03 da 7.ª Secção), e de 21-11-2011 (agravo n.º 2510/00 da 1.ª Secção).
[11] LEBRE DE FREITAS, José, A Acção Executiva, 6ª edição, Coimbra Editora, págs. 188/189.
[12] Vidé Anotação a este preceito em COSTA RIBEIRO, Virgínio e REBELO, Sérgio, A Acção Executiva Anotada e Comentada, Almedina 2015, a págs. 273
[13] Não se desconhecendo posição contrária que equipara o acto de transmissão à realização de pagamentos ao exequente (embora não constituísse esta questão o cerne do recurso) contida no Ac. do TRL de 11/12/18, de que foi relatora a Sr. Desembargadora Gabriela Marques, proc. nº 686/15.0T8LSB.L1-6, disponível para consulta in www.dgsi.pt

[14] Proferido no Proc. nº 4388/18.9T8VIS-A.C1, de que foi relator Vítor Amaral, disponível para consulta in www.dgsi.pt

[15] Ac. do TRC de 06/11/18, relator António Carvalho Martins, Proc. nº 1068/18.9T8CBR.C1, disponível in www.dgsi.pt.

[16] Ac. do TRG de 17/12/20, relatora Maria dos Anjos Nogueira, Proc. nº 2580/20.5T8GMR.G1 e Ac. do TRP de 22/10/20, Francisca Mota Vieira, proc. nº 7633/20.7T8PRT.P1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.

[17] Ac. do STJ de 17/10/19, relator Bernardo Domingos, Proc. nº 19222/16.6T8PRT-A.P1.S2, disponível in www.dgsi.pt.