Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
744/14.0TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: DIREITO DE REGRESSO
SEGURADORA
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
PRESSUPOSTOS
AGRAVAMENTO
DANOS
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 09/15/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - VISEU - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 27º, Nº 1, ALÍNEA C) DO DEC. LEI Nº 291/2007, DE 21/08 E ART. 570º DO CC
Sumário: I – No domínio da actual legislação – Dec. Lei nº 291/2007, de 21/08 – o direito de regresso da seguradora, ao abrigo do disposto no art. 27º, nº 1, alínea c), daquele diploma, não depende da alegação e prova do nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia em que o condutor circulava e a eclosão do acidente; tal direito de regresso basta-se com a demonstração de que o acidente ocorreu por culpa do condutor que conduzia com taxa de alcoolemia superior à permitida, sem que seja necessário indagar se a conduta culposa do condutor decorreu ou não da influência do álcool.

II – A conduta ilícita e culposa do lesado que é transportado no veículo sem que tivesse colocado o cinto de segurança tem toda a aptidão para contribuir para o agravamento dos danos sofridos em caso de acidente, justificando-se, por isso, que essa conduta seja valorada, ao abrigo do disposto no art. 570º do CC, para reduzir, em 15%, o valor da indemnização a que tenha direito pelos danos que sofreu em consequência de um embate frontal do veículo onde seguia.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A..., S.A., com sede na (...), Lisboa, intentou a presente acção contra B... , residente na (...), Viseu, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de 21.307,38€, acrescida de juros de mora desde 10/01/2014 até pagamento.

Alega, para o efeito, que, no dia 15/01/2012, ocorreu um acidente de viação no qual foi interveniente um veículo conduzido pela Ré, acidente que ocorreu por culpa da Ré dada a velocidade excessiva a que circulava e a taxa de álcool de 1,34g/l que apresentava. Alega que, ao abrigo do contrato de seguro que havia celebrado relativamente a esse veículo, despendeu a quantia global de 21.307,38€ com a reparação dos danos causados e com despesas diversas, assistindo-lhe agora o direito de regresso contra a Ré em virtude de a mesma circular com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida.

A Ré contestou, impugnando alguns dos factos vertidos na petição inicial e alegando, em suma, que não existe qualquer nexo de causalidade entre o acidente e a taxa de alcoolemia que apresentava, razão pela qual não assiste à Autora qualquer direito de regresso. Alega que não circulava com excesso de velocidade e que, considerando o estado do piso, o mau tempo (chuvoso) que se fazia sentir, a estação do ano em que se encontrava à data do acidente (Janeiro, época de muito gelo em Viseu), a intervenção de um veículo terceiro que imprudentemente não sinalizou a sua marcha, e os atentos reflexos da R. para não embater nesse veículo terceiro, justificam que o acidente poderia ter ocorrido, tivesse ou não a R. consumido bebidas alcoólicas. Mais alega que o embate apenas causou lesões ao passageiro C... , porque este estava ébrio e porque não havia colocado o cinto de segurança como era de sua obrigação e conforme lhe foi insistentemente pedido por todos os passageiros da viatura.

Assim e impugnando ainda o valor dos danos e as quantias peticionadas, conclui pedindo a sua absolvição do pedido.

Foi realizada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador e foi fixado o objectivo do litígio, com delimitação dos factos já admitidos por acordo e dos factos que seriam objecto de prova.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que, julgando a acção procedente, condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de 21.307,38€, acrescida de juros à taxa legal de 4%, desde 10/01/2014 até integral pagamento.

Inconformada com essa decisão, a Ré veio interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

 1. Nos artigos 17º a 27º da petição inicial, a A. articulou os factos que constituem a causa de pedir na ação.

2. Discorda a recorrente da Douta Sentença “a quo”, quer quanto à matéria de facto que foi dada como provada, quer quanto à matéria de facto que foi dada como não provada, a qual é susceptível de ser modificada por ter ocorrido gravação dos depoimentos prestados e constarem dos autos todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre a matéria de facto, conforme estipula o art. 662º nº 1 alínea do CPC.

3. Temos pois que, constitui objecto do litígio, saber se se mostram verificados os pressupostos de que depende o accionamento do direito de regresso e em caso afirmativo em que medida.

4. Assim, a recorrente impugna: (i) a matéria de facto considerada provada nos pontos 20, 21, 22 e 23 da Douta Sentença, por entender estar incorrectamente julgada, devendo ser dada como não provada; e (ii) toda a matéria de facto considerada não provada.

5. Em audiência de julgamento não foi feita prova dos factos considerados provados e quanto aos factos considerados como não provados não foi efectuada uma ponderosa e prudente análise crítica da prova produzida.

6. O Tribunal “a quo” fundamentou a procedência da acção no facto de a ré não ter logrado provar que os ferimentos causados no passageiro C... apenas ocorreram por incúria deste, uma vez que não estava munido do cinto de segurança e apresentava um TAS de 2,66 g/l, que o mantinha praticamente inerte.

7. Contudo, desconsiderou totalmente, o facto de nenhum dos outros passageiros ter sofrido qualquer lesão ou ferimento ainda que leve, o que só se deveu à circunstância de cumprirem integralmente, as regras de segurança.

8. Ao dar por provado que o passageiro C... não levava cinto, o que foi confirmado pela testemunha Agente D... , E... e F... , e que apresentava uma TAS de 2,66 g/l, a Mmª Juiz “a quo” reconhece as causas que acabariam por conduzir o passageiro às lesões e, consequentemente, ao embate da viatura.

9. Atentos os depoimentos das testemunhas que presenciaram a ocorrência, não resulta entendível que o Tribunal “a quo” não tenha valorado os seus depoimentos no sentido de dar por assente o estado do piso e as condições climatéricas que terão estado na origem do acidente, e contribuíram para a derrapagem da viatura.

10. A imediata reacção da recorrente ao travar de modo a evitar a colisão no veículo que se atravessou no seu caminho, é demonstrativo da “pureza” dos seus reflexos.

11. De resto, é a A. ora recorrida, que reconhece na sua p.i. (art. 9º) a existência de um veículo não identificado.

12. Claro que o estado do piso gelado e o orvalho típico da hora, mês/estação do ano em que ocorreu o acidente, contribuiriam para um deslizamento da viatura e embate no muro.

13. E embora não tivesse ficado provado que o condutor do veículo terceiro não sinalizou a sua marcha, também não resultou provada qual a extensão de visibilidade da estrada onde ocorreu o acidente, pelo que fortes dúvidas se colocam quanto à culpa da recorrente no acidente, e mesmo quanto à questão de saber se foi a lentidão da capacidade de reacção da recorrente devido ao grau de alcoolemia de que era portadora, que levou a que não conseguisse evitar a colisão.

14. Entende-se pois, que face à prova apurada, dúvidas se suscitam quanto à demonstração da culpa da recorrente na eclosão do acidente, para além de que, apresentando aquela, uma taxa de alcoolemia superior ao limite mínimo legal, sempre haveria que analisar o conjunto dos factos demonstrados para se poder concluir, subsequentemente, pela verificação do nexo de adequação entre a condução sob a influência do álcool e o acidente em questão.

15. Do mesmo modo, não ficou demonstrada a extensão de visibilidade da estrada onde ocorreu o acidente, o que redundará inevitavelmente, na falta de demonstração da culpa da recorrente na eclosão do acidente, bem assim, se foi a lentidão da capacidade de reacção da recorrente devido ao grau de alcoolemia de que era portadora, que fez com que não conseguisse evitar o embate.

16. Para estabelecer a causalidade pela qual o Tribunal “a quo” acabou por concluir não basta, em abstracto, que a influência alcoólica da condutora seja adequada a desencadear o facto danoso, sendo necessária a demonstração por parte da A. dos malefícios da condução sob os efeitos do álcool, não dos que assentam a qualquer condutor, mas antes factos relativos ao concreto condutor não obstante a existência do princípio da livre convicção do juiz.

17. Tendo em consideração que no momento do acidente havia nevoeiro; que o piso estava húmido, que um veículo se atravessou se aproximou do veículo conduzido pela recorrente o que a terá assustado e feito com que travasse, e o carro se despistasse por forma a evitar a colisão nesse veículo; que o passageiro C... vinha com uma TAS de 2,66 g/l, inconsciente e sem cinto, são, contrariamente ao decidido, causas justificativas do que verdadeiramente causou o acidente

18. E estes são elementos preponderantes e essenciais, que resultaram dos depoimentos das testemunhas que confirmaram o acidente no local, e que mal interpretados e mesmo desconsiderados, consubstanciaram na sentença de que aqui se recorre.

Conclui pedindo a revogação da decisão recorrida nos termos supra referidos.

  

A Autora apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

1. Entende a ora Recorrida que a sentença ora objecto de recurso não padece de qualquer vício, concordando integralmente com os factos dados como provados e não provados e a aplicação do Direito ao caso em apreço.

2. O meritíssimo juiz do tribunal a quo dos factos dados como provados, não podia extrair conclusão/decisão diversa daquela que se repercutiu na douta sentença, atenta a matéria dada como provada.

3. De facto as doutas alegações da Recorrente não colhem qualquer fundamentação legal uma vez que não existe qualquer contradição entre a matéria dada como provada e a decisão.

4. Da conjugação da prova produzida em audiência de julgamento, resulta de forma inequívoca o Recorrente circulava com uma taxa de álcool de pelo menos 1,03 g/l, tendo os seus reflexos diminuídos.

5. Facilmente se alcança que se estabeleceu e foi provado o nexo causal entre a condução sob o efeito de uma elevada taxa de alcoolemia, e a produção do acidente.

6. No entanto, e mesmo que assim não se entenda, é entendimento consensual por parte da jurisprudência, que não é necessária a prova do nexo causal entre a condução sob o efeito de uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida e a responsabilidade pela culpabilidade do sinistro.

7. Com efeito, o tribunal a quo explicitou de forma clara e inequívoca a decisão, ao referir, expressamente o seu douto entendimento no que concerne ao direito de regresso invocado pela Recorrida e aos pressupostos inerentes aos mesmos, os quais resultaram como provados.

8. Assim, concluiu e bem o tribunal a quo: “ Face à exposição que antecede, duvidas não restam de que a ré conduzia aquando do embate com a taxa superior à legalmente permitida, designadamente com a taxa de pelo menos 1,03 g/l, tendo os seus reflexos diminuídos, conduzindo com falta de cuidado e zelo sem que conseguisse controlar o veículo e evitar o embate.”

Com estes fundamentos, conclui pela improcedência do recurso.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se existiu erro na apreciação da prova e se importa ou não alterar – e em que termos – a decisão proferida sobre a matéria de facto no que toca aos pontos impugnados;

• Saber se o direito de regresso da Autora depende da prova do nexo de causalidade entre o acidente e o álcool;

• Saber se o acidente ocorreu por culpa da Ré/Apelante e se existiu algum contributo do lesado para a produção ou agravamento dos danos pelo facto de seguir no interior do veículo sem o cinto de segurança e com uma TAS de 2,66 g/l.


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III.

Matéria de facto

A Ré/Apelante vem impugnar a decisão da matéria de facto no que toca aos factos enunciados como provados sob os nºs 20, 21, 22 e 23 (factos que, na sua perspectiva, não deveriam ter sido considerados provados) e no que toca aos factos enunciados como não provados (que, na sua perspectiva, devem ser considerados provados), invocando, para o efeito, os depoimentos prestados pelas testemunhas, E... D... e G....

Pretende, portanto, a Apelante que se considerem como não provados os seguintes factos:

20. Em virtude do aludido em 8) a ré conduzia o veículo aludido em 3), com falta de cuidado, zelo e prudência, sem que conseguisse controlar tal veículo, evitando o embate.

21. Em consequência do aludido em 6) o veículo conduzido pela ré embateu com a parte frontal no murete de granito da rotunda Calouste Gulbenkian.

22. O aludido em 7) e 8) causou à ré uma perturbação dos reflexos e da coordenação motora, bem como uma lentidão na capacidade de reacção e percepção.

23. Nas circunstâncias aludidas em 3) a ré conduzia o veículo acima aludido a velocidade que em concreto não foi possível apurar mas desadequada às circunstâncias da via e climatéricas.

E pretende que se considerem provados os seguintes factos:

- Que nas circunstâncias aludidas na factualidade provada a ré conduzia o veículo também ai identificado a velocidade superior a 50 Km/h.

- Que nas circunstâncias aludidas na factualidade provada a ré conduzia o veículo também ai identificado a velocidade inferior a 50 Km/h.

- Que nas circunstâncias de tempo e lugar aludidas o tempo era chuvoso e havia gelo na estrada.

- Que o veículo que se encontrava a circular no sentido do Rossio- rotunda, não sinalizou a manobra, o que levou a que a ré tivesse que travar abruptamente.

- Que face ao estado do piso o veiculo não respondeu prontamente à travagem, tendo ocorrido um deslizamento da viatura e o embate.

Analisemos, então, essa matéria de facto à luz da prova produzida.

Comecemos pela velocidade a que circulava o veículo.

Não obstante impugnar toda a matéria de facto que não foi considerada provada (sustentando, aparentemente, que se deveria considerar provado que o veículo circulava a velocidade superior a 50 km, ao mesmo tempo que se deveria considerar provado que circulava a velocidade inferior a essa), parece claro que a Apelante não pretende impugnar o primeiro facto que se considerou não provado (ou seja, que o veículo circulasse a velocidade superior a 50 km/h); o que a Apelante pretenderá, por via da impugnação que veio deduzir, é que se considere provado que circulava a velocidade inferior a 50 km/h.

Mas não vislumbramos como esse facto possa ser considerado provado, já que não existem quaisquer indícios que nos permitam aferir – ainda que de forma indirecta – essa velocidade e as testemunhas também não o confirmaram de forma credível.

As testemunhas, G... e D... , não sabem a que velocidade o veículo circulava, sendo certo que apenas se deslocaram ao local após o acidente.

A testemunha, C... , declara não se recordar de nada, sendo que, ao que tudo indica e tendo em conta os demais depoimentos, estaria alcoolizado e a dormir.

A testemunha, E... , diz que iam talvez a 50 Km/hora, esclarecendo, no entanto, que não sabe ao certo a velocidade a que circulavam, sabendo apenas que não iam depressa. E a testemunha F... também não confirmou a velocidade a que circulavam. Aliás, de acordo com esta testemunha, todos tinham bebido (a Ré seria a que estava em melhores condições para conduzir e ainda assim apresentava a taxa de alcoolémia que resulta da matéria de facto) e, portanto, não é de admitir como provável que os demais ocupantes da viatura tivessem tido a exacta percepção da velocidade a que o veículo circulava.

Não vislumbramos, portanto, como seria possível, em face da prova produzida, considerar provado que o veículo circulava a velocidade inferior a 50 km/h, importando notar que a Apelante também não concretiza devidamente as razões pelas quais entende que os depoimentos prestados eram suficientes para que aquele facto se considerasse provado.

     

Pretende também a Apelante que se considere provado que o tempo era chuvoso e havia gelo na estrada.

Mas também não vislumbramos como esse facto possa ser considerado provado.

O auto de ocorrência elaborado pela PSP alude apenas à existência de nevoeiro; não alude a chuva e não alude a gelo na estrada.

Ainda que as testemunhas G... e D... declarem que era provável que o piso estivesse húmido e escorregadio dada a existência de nevoeiro, não confirmam a chuva e o gelo na estrada (e é apenas isto que se refere no ponto de facto em questão) e este facto também não é confirmado pela testemunha, E... . Apenas a testemunha, F... , alude ao tempo chuvoso (sem confirmar, no entanto, a existência de gelo), depoimento que não nos parece suficiente para considerar esse facto como provado, tendo em conta os demais depoimentos e tendo em conta o auto de ocorrência, onde apenas se registou a existência de nevoeiro.

Mais pretende a Apelante que se considere provado que o veículo que se encontrava a circular no sentido do Rossio- rotunda, não sinalizou a manobra, o que levou a que a ré tivesse que travar abruptamente.

Que a Ré travou a fundo para dar prioridade ao veículo que circulava na rotunda já resulta do ponto 6. da matéria e, portanto, o facto que foi considerado não provado e que a Apelante pretende ver considerado provado apenas se reporta à não sinalização da manobra por parte desse veículo.

A verdade é que esse facto não foi confirmado por nenhuma testemunha. As testemunhas, G... e D... , não o poderiam confirmar porque não o presenciaram; a testemunha, C... , não se recorda de nada; a testemunha, E... , declara não ter visto qualquer sinalização, mas não declara que ela não tenha existido (importando notar que esta testemunha, além de ir no banco de trás, também tinha bebido e, provavelmente, não ia com a atenção necessária para se lembrar, com alguma certeza, se tal sinalização foi ou não efectuada) e a testemunha, F... , declara não conseguir precisar se aquele veículo sinalizou a manobra (sendo certo que, como declara, tinha bebido, estava cansado e estava um pouco atordoado).

Nada, portanto, nos permite concluir que aquele veículo não tenha sinalizado a manobra.

Pretende ainda a Apelante que se considere provado que face ao estado do piso, o veículo não respondeu prontamente à travagem, tendo ocorrido um deslizamento da viatura e o embate.

Que o veículo não respondeu prontamente à travagem, já o sabemos, porque resulta da matéria de facto que, não obstante essa travagem, o veículo não parou e foi embater na rotunda. E, ao contrário do que pretende a Apelante, nada nos permite afirmar que tal tenha ocorrido por causa do estado do piso. Além do mais, o estado do piso (ao que supomos a circunstância de estar molhado e escorregadio) era do conhecimento da Apelante e, portanto, seria necessariamente uma circunstância a tomar em conta para regular a velocidade do veículo em função dessas concretas circunstâncias. Daí que a afirmação de que o veículo não respondeu à travagem devido ao estado do piso, sempre equivaleria a dizer que a Apelante não havia regulado a velocidade do veículo em função daquela situação.

Apreciemos agora os factos que, na perspectiva da Apelante, foram incorrectamente considerados provados.

Relativamente ao ponto 21. não percebemos, sequer, as razões pelas quais a Apelante entende que esse facto não deveria ser considerado provado, já que o mesmo é claramente confirmado por todos os depoimentos prestados e pelo auto de ocorrência.

Relativamente ao ponto 23., já referimos supra que a prova produzida não nos permite aferir a velocidade a que circulava o veículo, sendo certo, porém, que a última parte do citado ponto de facto (quando nele se diz que a velocidade era desadequada às circunstâncias da via e climatéricas) é um juízo conclusivo que, como tal, deve ficar arredado da matéria de facto, razão pela qual se elimina essa referência.

Relativamente aos pontos 20 e 22, importa dizer o seguinte:

É certo, perante a prova produzida – e perante a matéria de facto que foi julgada provada sem que tivesse sido impugnada – que a Ré não conseguiu controlar o veículo e evitar o embate, já que é seguro afirmar que a Ré não conseguiu imobilizar o veículo e foi embater na rotunda, embora nos parece genérica, vaga e conclusiva – por isso devendo ser eliminada – a referência feita a falta de cuidado, zelo e prudência. Relativamente ao facto constante do ponto 22, é certo que ele não resulta directamente dos depoimentos, já que as testemunhas não declaram, efectivamente, ter constatado tal perturbação dos reflexos e tal lentidão da capacidade de reacção e percepção, sendo certo que a Apelante não estava alcoolizada ao ponto de esse facto ser percepcionado pelas testemunhas. No entanto, é seguro afirmar que a presença de álcool causa perturbação nos reflexos e na coordenação motora e uma lentidão na capacidade de reacção e percepção e é a constatação científica desse facto que está subjacente à proibição de conduzir veículos automóveis sob a influência do álcool. É certo que o grau dessa perturbação varia de indivíduo para indivíduo, mas, em maior ou menor grau, ela existirá sempre, condicionando e influenciando a atenção e a percepção, bem como a rapidez de reflexos e coordenação motora que é imprescindível ao exercício da condução em condições de segurança. Diz a Apelante que a circunstância de ter travado imediatamente quando o outro veículo passou à sua frente demonstra a “pureza” dos reflexos, mas a verdade é que a “pureza” dos seus reflexos apenas poderia ficar evidenciada se tivesse conseguido travar em condições de segurança de forma a imobilizar o veículo; não o tendo conseguido e tendo perdido o controlo do veículo e indo embater na rotunda, parece que ou circulava com evidente excesso de velocidade (face às características do local, às concretas circunstâncias da via, ao nevoeiro e ao piso húmido e escorregadio) – excesso de velocidade ao qual a influência do álcool também não é alheia – ou os seus reflexos não estariam assim tão puros como pretende fazer crer, porquanto não conseguiu reagir a tempo de travar e imobilizar o veículo em segurança. A verdade é que a Apelante apresentava uma TAS de 1,03 g/l – bem superior à legalmente permitida – taxa essa que, de acordo com as regras de experiência e estudos científicos, tem total idoneidade para determinar uma perturbação dos reflexos e para determinar uma redução ou limitação na capacidade de concentração, atenção e reacção, para além de determinar, habitualmente, alguma euforia que inibe a percepção do perigo e que potencia uma condução mais arriscada e perigosa sem que exista uma correcta e adequada ponderação das concretas circunstâncias que, em determinado momento, imponham ou exijam determinados cuidados. Ora, sendo assim, e nada existindo que nos permita afirmar que a Apelante tenha uma capacidade de resistência ao álcool superior àquela que é normal e habitual, impõe-se considerar que aquela TAS lhe causou efectivamente uma perturbação dos reflexos e da coordenação motora, bem como uma lentidão na capacidade de reacção e percepção.

Em face do exposto, mantém-se integralmente a decisão proferida no que toca à matéria de facto não provada, tal como se mantém a decisão relativamente aos pontos 21 e 22 da matéria de facto provada.

Os pontos 20 e 23 passarão a ter a seguinte redacção:

20. A Ré conduzia o veículo aludido em 3), sem que tivesse conseguido controlar tal veículo e evitar o embate.

23. Nas circunstâncias aludidas em 3) a ré conduzia o veículo acima aludido a velocidade que em concreto não foi possível apurar.

A matéria de facto provada será, portanto, a seguinte:

1. A autora, A... , S.A., exerce a indústria de seguros em vários ramos.

2. No exercício da sua actividade, a autora contratou com F... , um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela Apólice n º 034/01162361/004, através do qual transferiu para a ora autora a responsabilidade civil decorrente da circulação terrestre do veiculo DF..., conforme documento de fls. 16/17 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

3. No dia 15 de Janeiro de 2012, pelas 5 horas e 10 minutos, ocorreu um embate na Avenida Gulbenkian, freguesia de Coração de Jesus, em Viseu, que envolveu o veiculo de matricula DF..., conforme participação de acidente de fls. 18 a 28 dos autos, cujo teor aqui se dá pro integralmente reproduzido.

4. O local do acidente é constituído por uma estrada sem separador e apresenta dois sentidos de circulação.

5. O limite máximo de circulação no referido local é de 50 Km/h.

6. Nas circunstâncias de tempo e lugar aludidas em 3) a condutora do veículo DF... circulava na Avenida 25 de Abril, no sentido sul-norte em direcção ao Rossio, quando ao aproximar-se da entrada da rotunda, apercebendo-se que na mesma se encontrava a circular outro veículo, que vinha do sentido Rossio, a fim de lhe dar prioridade, a condutora do veículo seguro na ré travou a fundo.

7. Do teor da participação de acidente de viação de fls. 19 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, consta que o resultado do controlo do Álcool da condutora do veículo DF... é de 1,34 g/l.

8. Em aditamento ao auto de participação cuja cópia consta de fls. 28, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, foi elaborada a seguinte informação “Informo que foi elaborado Auto de contra-Ordenação com o n º 966178777 à condutora do veiculo interveniente, em virtude de ter acusado ma TAS de 1,03 g/l, conforme relatório final 12.000134.1 do INML”

9. Pelo Centro Hospitalar Tondela – Viseu, foi emitida a nota de débito que consta de fls. 29 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzida, no montante de € 19,60, datada de 16 de Fevereiro de 2012.

10. Pelo Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, E.P.E, foi emitida a factura n º 520125969, datada de 13/06/2012, no montante de € 4.659,66.

11. Pela K... foi emitida a factura n º 1.302.878, datada de 31 de Outubro de 2013, no montante de € 300,00, conforme documento de fls. 31 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

12. Pelos Serviços Médicos de W..., S.A foi emitida a factura n º 2012.407/A de 30 de Setembro de 2012, no montante de € 80,00, conforme cópia de fls. 34 dos autos.

13. Pelo K... foi emitido recibo, datada de 30 de Julho de 2013, no montante de €12.500, conforme documento de fls. 37 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

14. Pela K... foi emitida a factura n º 1.302.370, datada de 11 de Setembro de 2013, no montante de € 3.305,62, conforme documento de fls. 38 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

15. Pela PSP de Viseu foi emitido recibo n º 279855 no montante de € 12,00, datado de 23 de Março de 2012, conforme documento de fls. 40 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

16. Pelo K... foi emitido o recibo cuja cópia consta de fls. 41 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, no montante de € 198,45, datado de 1 de Outubro de 2012.

17. Pela Peritagem e Averiguações Auto, L.da, foi emitida a factura n º 7577 datada de 01/02/2012, no montante de € 227,40, cuja cópia consta de fls. 42 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

18. Pelos Ilustres Mandatários da autora foi enviada carta à ré datada de 10 de Janeiro de 2014, cuja cópia consta de fls. 43 a 50 dos autos e cujo teor aqui se por integralmente reproduzido.

19. Na sequência da carta aludida em 18) foi pela ré remetida à autora carta datada de 21/01/2014, cuja cópia consta de fls. 51/52 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

20. A ré conduzia o veículo aludido em 3), sem que tivesse conseguisse controlar tal veículo e evitar o embate.

21. Em consequência do aludido em 6) o veículo conduzido pela ré embateu com a parte frontal no murete de granito da rotunda Calouste Gulbenkian.

22. O aludido em 7) e 8) causou à ré uma perturbação dos reflexos e da coordenação motora, bem como uma lentidão na capacidade de reacção e percepção.

23. Nas circunstâncias aludidas em 3) a ré conduzia o veículo acima aludido a velocidade que em concreto não foi possível apurar.

24. Do embate aludido resultaram ferimentos no passageiro do veículo que motivaram que fosse sujeito a internamento e operação, bem como a diversos tratamentos médicos.

25. A autora em virtude do acordo aludido em 2), regularizou as despesas aludidas de 9) a 17), e ainda outras despesas diversas com medicamentos e deslocações, as quais ascenderam ao montante global de € 23.182,30.

26. O passageiro C... nas circunstâncias acima aludidas, não tinha colocado o cinto de segurança, sendo portador de uma TAS 2,66 g/l – conforme informação clinica de fls. 96 e seguintes dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

E mantêm-se como não provados os seguintes factos:

- Que nas circunstâncias aludidas na factualidade provada a ré conduzia o veículo também ai identificado a velocidade superior a 50 Km/h.

- Que nas circunstâncias aludidas na factualidade provada a ré conduzia o veículo também ai identificado a velocidade inferior a 50 Km/h.

- Que nas circunstâncias de tempo e lugar aludidas o tempo era chuvoso e havia gelo na estrada.

- Que o veículo que se encontrava a circular no sentido do Rossio- rotunda, não sinalizou a manobra, o que levou a que a ré tivesse que travar abruptamente.

- Que face ao estado do piso o veiculo não respondeu prontamente à travagem, tendo ocorrido um deslizamento da viatura e o embate.


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IV.

Direito

A Autora veio exercer, por via da presente acção, o direito de regresso que, alegadamente, lhe assiste, ao abrigo do disposto no art. 27º, nº 1, alínea c), do Dec. Lei nº 291/2007, reclamando da Ré o reembolso daquilo que pagou a título de indemnização pelos prejuízos causados por um acidente de viação que havia sido causado pela Ré quando conduzia um veículo com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida.

A sentença recorrida julgou procedente essa pretensão, considerando que estavam verificados os pressupostos do direito de regresso uma vez que a Ré conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida e que, nessas circunstâncias, deu causa ao acidente, mais considerando, no que toca à medida dessa obrigação, que a Ré não havia provado, como lhe competia, que a circunstância de o lesado estar alcoolizado e não trazer cinto de segurança tenha agravado os danos e em que medida, razão pela qual a mesma foi condenada a pagar a totalidade da quantia peticionada.

 A Apelante insurge-se contra a sentença recorrida, dizendo, em suma, que não ficou demonstrada a sua culpa na eclosão do acidente e o nexo de causalidade entre o acidente e a condução sob influência do álcool e sustentando que o nevoeiro, o piso húmido e a circunstância de o passageiro/lesado vir inconsciente (com uma TAS de 2,66 g/l) e sem cinto de segurança foram as verdadeiras causas do acidente.

Analisemos, então, a questão.

Dispõe o art. 27º, nº 1, alínea c), do Dec. Lei nº 291/2007, de 21/08, que “Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso (…) contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida…”.

Sustenta a Apelante – ao que nos parece – que a existência do direito de regresso pressupõe a demonstração do nexo de causalidade entre o acidente e a condução sob influência do álcool, circunstância que não teria ficado demonstrada nos autos.

Parece-nos, no entanto, que não lhe assiste razão.

A necessidade de efectiva demonstração desse nexo de causalidade era, de facto, uma questão controversa no domínio da vigência do Dec. Lei 522/85, de 31/12 (entretanto revogado) e em cujo art. 19º, alínea c), se dispunha que, satisfeita a indemnização, a seguradora tinha direito de regresso “contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool…”.

De facto, com base na expressão “agido sob a influência do álcool”, que era utilizada pelo legislador, uma boa parte da nossa jurisprudência entendia que o direito de regresso da seguradora pressupunha a alegação e prova – a efectuar pela seguradora – do nexo de causalidade entre o acidente e a condução sob a influência do álcool; não bastaria demonstrar que o acidente havia sido imputável ao referido condutor, sendo ainda necessário demonstrar que a eclosão do acidente se havia ficado a dever à taxa de alcoolemia que o condutor apresentava.

Havia, porém, quem tivesse entendimento diferente, considerando não ser necessária a alegação e prova de tal nexo de causalidade e que o direito de regresso decorria da mera condução sob o efeito do álcool.

A controvérsia jurisprudencial que assim se desenvolveu veio a culminar no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 6/2002[1], onde se decidiu que “a alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente”.

Surgiu, entretanto, o Dec. Lei nº 291/2007, de 21/08 (aplicável ao caso sub judice), que, revogando o anterior diploma, veio a estabelecer, como supra se referiu, que a seguradora tem direito de regresso “contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida…”.

Contudo, não obstante a diferente redacção desta norma relativamente à anterior, a controvérsia que existia no domínio da anterior legislação – pelo menos até ao momento em que foi proferido o referido Acórdão 6/2002 – manteve-se no domínio da legislação actual, continuando a inexistir consenso no que toca à necessidade (ou não) de fazer a efectiva demonstração do nexo de causalidade entre a condução com taxa de alcoolemia e a eclosão do acidente.

De facto, há quem entenda que a doutrina estabelecida pelo Acórdão Uniformizador mantém actualidade e pertinência face ao estabelecido no Dec. Lei nº 291/2007, sendo, por isso, necessário fazer a prova daquele nexo de causalidade (é o caso dos Acórdãos da Relação de Porto de 19/01/2012, 15/01/2013 e 16/05/2013 e do Acórdão do STJ de 06/07/2011[2]) e há quem entenda que o direito de regresso da seguradora não depende agora da alegação e prova desse nexo de causalidade, bastando a prova de que o condutor deu causa (qualquer causa) ao acidente (é o caso dos Acórdãos do STJ de 08/10/2009, 28/11/2013 e 09/10/2014, do Acórdão da Relação do Porto de 13/12/2011 e dos Acórdãos da Relação de Coimbra de 08/05/2012, 29/05/2012, 22/01/2013 e 01/07/2014[3]).

Tomando posição sobre a questão e seguindo o entendimento que já adoptamos no Acórdão proferido em 18/02/2014, no processo nº 2452/12.7TBLRA.C1[4] (relatado pela aqui relatora e que transcrevemos em parte), parece-nos, salvo o devido respeito pela opinião contrária, ser de adoptar o entendimento de que, no domínio da actual legislação, não é necessária a alegação e prova do nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia em que o condutor circulava e a eclosão do acidente, bastando a demonstração de que o acidente ocorreu por culpa do condutor que conduzia com taxa de alcoolemia superior à permitida.

É essa, com efeito, a posição que se impõe, na nossa perspectiva, atendendo às regras legais sobre interpretação da lei – cfr. art. 9º do C.C. – segundo as quais “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”; “não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” e “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”,

De facto, a necessidade de alegação e prova do referido nexo de causalidade (álcool/acidente) não tem qualquer correspondência verbal na letra da lei, porquanto a norma supra citada apenas exige que o condutor tenha dado causa ao acidente, sem qualquer alusão ao facto de esse “dar causa” ter que estar relacionado com a taxa de alcoolemia de que o mesmo é portador.

Por outro lado, presumindo – como impõe a lei – que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, parece-nos que, se tivesse sido essa a sua intenção, o legislador não teria deixado de aludir claramente à necessidade de o acidente ter sido causado pela taxa de alcoolemia de que o portador era portador, tanto mais que estava, naturalmente, ciente das divergências que se haviam suscitado a propósito da interpretação da norma que anteriormente dispunha sobre essa matéria.

Acresce que – como se menciona nos últimos acórdãos citados – não faria muito sentido que o legislador tivesse alterado a redacção da norma, caso pretendesse, afinal, que ela valesse com o sentido que já se havia estabilizado na jurisprudência, face ao Acórdão nº 6/2002. De facto, se a jurisprudência já estava estabilizada nesse sentido, por que razão o legislador teria alterado a redacção da norma, se não fosse para contrariar a interpretação que a jurisprudência havia adoptado e que não correspondia ao seu pensamento e à sua intenção? Importa notar que o Dec. Lei 291/2007, quando prevê as situações em que existe direito de regresso da seguradora, reproduz algumas das alíneas que já constavam da norma correspondente do diploma anterior sem introduzir qualquer alteração na respectiva redacção. E, portanto, seria normal que o legislador também tivesse adoptado esse procedimento, caso pretendesse regular a situação da condução com taxa de alcoolemia nos mesmos termos que já decorriam do entendimento jurisprudencial que se havia firmado a propósito da anterior redacção. Parece-nos, portanto, que, ao alterar os termos em que a situação era prevista na norma anterior, o legislador terá pretendido regular a situação em termos diversos, afastando-se da posição assumida no Acórdão Uniformizador, dispensando a prova do nexo de causalidade entre o álcool e o acidente e exigindo apenas a prova de que o acidente foi causado pelo condutor que conduzia com taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida.

Concluímos, portanto, que, em face da actual legislação, o direito de regresso da seguradora não depende da alegação e prova do nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente; apenas será necessário provar que o condutor deu causa ao acidente e que conduzia com taxa de alcoolemia superior à permitida, ou seja, que o acidente ocorreu por culpa do condutor que conduzia com essa taxa de alcoolemia, sem que seja necessário indagar se a conduta culposa do condutor decorreu ou não da influência do álcool (importa notar que, sendo difícil ou impossível a efectiva constatação desse facto, nem sequer se admite como provável que a taxa de alcoolemia de que o condutor era portador não tivesse tido nenhuma influência na omissão dos deveres de cuidado que vieram a dar causa ao acidente; o legislador considerou que, a partir de determinada taxa de alcoolemia, não existem as condições necessárias para a condução de veículos, porquanto a atenção e os reflexos ficam afectados – embora em grau e gravidade que podem variar de pessoa para pessoa – e, por isso mesmo, determinou que tal condução não poderia ser efectuada; se, não obstante esse facto, tal condução é efectuada e se vem a ocorrer um acidente em consequência de uma conduta culposa do condutor que apresenta uma taxa de alcoolemia superior à permitida, não será fácil admitir que essa alcoolemia nenhuma influência teve no comportamento culposo que desencadeou o acidente).

Assente, portanto, que não é necessária a demonstração do aludido nexo de causalidade e estando provado – cfr. ponto 8. da matéria de facto – que a Ré apresentava uma TAS de 1,03 g/l (taxa que é largamente superior à permitida, já que, como decorre do disposto no art. 81º do Código da Estrada, considera-se sob influência de álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l), resta saber se foi ou não a Ré quem deu causa ao acidente.

E parece-nos que sim.

Está provado que a Ré conduzia o veículo pela Avenida 25 de Abril, no sentido sul-norte em direcção ao Rossio; que, quando se aproximou da entrada da rotunda, apercebeu-se que na mesma se encontrava a circular outro veiculo, que vinha do sentido Rossio; que, a fim de dar prioridade a esse veículo, travou a fundo e que, na sequência desse facto, não conseguiu controlar o veículo e foi embater com a parte frontal do veículo no murete de granito da rotunda.

Ora, em face destes factos, parece evidente a conclusão de que o acidente ocorreu por culpa da Ré, já que só a velocidade excessiva a que seguia ou a sua falta de atenção, destreza, rapidez de reacção ou perícia poderão justificar o acidente.

E de nada vale apelar – como faz a Apelante – ao estado do piso (que estaria molhado, húmido, escorregadio ou, eventualmente, com gelo) e às condições climatéricas (nevoeiro) para justificar o acidente, porquanto todas essas circunstâncias teriam que ser ponderadas pela Ré para regular a velocidade que imprimia ao veículo de modo a que pudesse imobilizá-lo em segurança caso fosse necessário parar para ceder a prioridade a qualquer veículo que se apresentasse na rotunda onde pretendia entrar.

Ainda que o limite legal de velocidade imposto no local fosse de 50 Km, tal não significava, evidentemente, que não tivesse o dever de circular a velocidade inferior se era isso que se impunha tendo em conta as características do local onde circulava, as condições climatéricas e o estado do piso e, portanto, se a Ré ia entrar numa rotunda, se havia nevoeiro e se o piso estava molhado, húmido ou escorregadio, a Apelante teria que reduzir a velocidade tendo em atenção todos esses factores. Não sabemos se o fez ou não, já que, não sabemos qual a velocidade a que circulava, mas, se a Ré circulava – como era seu dever – a velocidade adequada que, tendo em conta todas aquelas circunstâncias, lhe permitisse imobilizar o veículo em segurança antes de entrar na rotunda, parece que só a sua falta de atenção, destreza ou perícia ou a lentidão da sua reacção poderão justificar que, ao invés de imobilizar o veículo antes de entrar na rotunda, tenha perdido o seu controlo e tenha ido embater no murete da rotunda.

  E, ao contrário do que parece sustentar a Apelante, não vislumbramos como e de que forma o passageiro/lesado poderia ter dado causa ao embate ou contribuído para a sua eclosão. Poder-se-á discutir se o lesado – pelo facto de estar alcoolizado, a dormir ou entorpecido e pelo facto de não levar cinto de segurança – contribuiu para a verificação ou agravamento dos danos que ele próprio sofreu, mas, como é evidente, tais circunstâncias não contribuíram, de forma alguma, para o embate do veículo. Com efeito, era a Ré que conduzia o veículo e não há notícia de qualquer acto que tenha sido praticado pelo aludido passageiro que tivesse interferido, de algum modo, na condução efectuada pela Ré; não foi pelo facto de o aludido passageiro ir sem cinto e adormecido ou entorpecido que a Ré não imobilizou o veículo e foi embater na rotunda; a Ré não parou o veículo e foi embater na rotunda porque circulava, eventualmente, a velocidade excessiva (porque inadequada às concretas circunstâncias do local, ao estado do piso e às condições climatéricas) ou, não sendo esse o caso, porque não teve (eventualmente por influência da TAS de que era portadora) a necessária capacidade de reacção e coordenação ou a destreza e perícia que se impunham para imobilizar o veículo em segurança.

Foi a Ré, portanto, quem deu causa ao acidente e, porque conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, estão verificados os pressupostos de que depende o direito de regresso da Autora, face ao disposto no art. 27º, nº 1, al. c), do citado Dec. Lei nº 291/2007.

Coloca-se, no entanto, a questão de saber se o passageiro lesado contribuiu para a verificação dos danos (não para a verificação do embate, porque este apenas pode ser imputado à condutora do veículo) ou para o agravamento dos danos, pelo facto de seguir no veículo sem o cinto de segurança e com uma TAS de 2,66 g/l, com vista a determinar, face ao disposto no art. 570º do CC, se a indemnização desses danos deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.

Dispõe o nº 1 da norma citada que “quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção e agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”.

A sentença recorrida considerou não haver lugar a qualquer redução da indemnização em virtude de não ter ficado provado que aquele comportamento do lesado tivesse contribuído para a verificação ou para o agravamento dos danos.

A Apelante discorda, dizendo – embora de forma inapropriada, como já referimos – que essa foi uma das causas do embate. Aquele comportamento do lesado não foi, evidentemente, uma causa do embate (este apenas é imputável à Ré), mas é seguramente idóneo para contribuir para a verificação ou agravamento dos danos resultantes do embate.

É certo que não resulta expressamente da matéria de facto que aquela circunstância tenha contribuído para os danos verificados, sendo certo que a prova directa desse facto sempre seria muito difícil, porquanto, na prática, não é possível determinar quais as concretas lesões que o lesado teria sofrido caso levasse o cinto de segurança, já que as concretas lesões sofridas por cada um dos ocupantes de um veículo interveniente em acidente de viação (que, frequentemente, apresentam gravidade substancialmente diferente) são o produto de múltiplos factores, tais como a forma e o local como o veículo embateu ou foi embatido, o posicionamento de cada um dos ocupantes dentro do veículo e até a concreta posição em que se encontravam no momento do embate ou os movimentos que efectuaram como reacção e, na maioria dos casos, não é possível determinar quais as concretas razões que determinam que, em consequência do mesmo embate, um dos ocupantes sofra lesões muito graves ou mesmo a morte, ao passo que outro sai dele ileso.

Parece-nos, de qualquer forma, que a falta de colocação do cinto de segurança dificilmente terá deixado de contribuir para o agravamento dos danos, designadamente quando, como aqui aconteceu, está em causa um embate frontal do veículo onde seguia o lesado, já que, como é sabido, o uso do cinto de segurança – cuja obrigatoriedade é imposta por lei – tem como função evitar a projecção do corpo para a frente e os danos de maior gravidade que essa projecção propicia, seja pela possibilidade de o corpo ser projectado para o exterior do veículo, seja pela possibilidade de embater com maior força em qualquer ponto do interior do veículo.

A circunstância de o passageiro/lesado ser portador de uma TAS de 2,66 g/l não releva aqui particularmente, já que, ainda que essa circunstância – pelo entorpecimento e limitação dos reflexos que provoca – também seja idónea para contribuir para o agravamento dos danos, dificilmente se poderá afirmar estar em causa um facto culposo – como exige o art. 570º - já que não parece que seja susceptível de um juízo de censura o indivíduo que se limita a ser transportado num veículo automóvel (não indo, portanto, a conduzir) depois de ter consumido bebidas alcoólicas.

O mesmo não se pode dizer da falta de colocação do cinto de segurança.

Aqui, está claramente em causa o incumprimento de uma obrigação legal – imposta pelo art. 82º do Código da Estrada – e, como se refere no Acórdão do STJ de 21/12/2013[5], uma omissão de cuidado claramente culposa, ostensivamente reveladora da inobservância do cuidado e diligência exigíveis a uma pessoa medianamente diligente e cuidadosa, colocada na situação do lesado por ser do conhecimento geral que é perigoso fazer-se transportar num veículo automóvel sem ter o cinto de segurança colocado. 

Com efeito, qualquer pessoa medianamente diligente, colocada naquelas circunstâncias, não deixaria de observar aquele dever de cuidado – colocando o cinto de segurança – não só porque tal correspondia ao cumprimento de uma imposição legal, mas também porque não poderia deixar de saber que, em caso de acidente, a falta do cinto era susceptível de causar danos que de outra forma não se verificariam ou de causar danos bem mais graves do que aqueles que sofreria se tivesse o cinto colocado.

O passageiro/lesado podia e devia ter colocado o cinto de segurança, evitando, dessa forma, as lesões de maior gravidade que acabou por sofrer e, portanto, actuou culposamente, contribuindo com tal conduta para o agravamento dos danos.

Mas, ponderando a gravidade das culpas – como determina o citado art. 570º - parece-nos, de qualquer forma, que a culpa do lesado é bem mais diminuta do que a culpa da Ré.

Com efeito, é indiscutível que, caso o embate não tivesse ocorrido (embate que – reafirma-se – é imputável à Ré), o aludido passageiro, ainda que não levasse cinto, não teria sofrido qualquer lesão e, portanto, é inegável a existência de nexo causal entre esse embate e essas lesões, tal como é inegável a culpa da Ré que podia e devia ter actuado de outro modo, observando as cautelas e cuidados necessários no exercício da condução que lhe teriam permitido evitar o embate. Assim, as lesões sofridas pelo passageiro são, sobretudo, imputáveis à Ré, e, embora, como se disse, o aludido passageiro também tenha omitido o dever de cuidado que sobre ele impendia, contribuindo culposamente para o agravamento dos danos, o seu grau de culpa é bem mais diminuto, pelo que, desconhecendo-se a exacta medida do agravamento dos danos decorrente da conduta do lesado, afigura-se-nos razoável reduzir a indemnização em 15%, à semelhança do que se considerou nos Acórdão do STJ de 21/02/2013, supra citado e no Acórdão do STJ de 03/03/2009[6].

Diz-se ainda na sentença recorrida que não poderia haver lugar à redução da indemnização em virtude de a Ré não ter provado que a Autora não tivesse tido em conta aquela conduta do lesado para efeito de apuramento da indemnização que lhe pagou.

Mas, salvo o devido respeito, se a Autora tomou em consideração esse facto – ou seja, se pagou indemnização inferior ao valor dos danos por ter considerado o comportamento culposo do lesado – deveria tê-lo alegado e, não o tendo feito, teremos que presumir que a indemnização que pagou engloba todos os danos sofridos pelo lesado.

Importa referir, aliás, que a Autora nem sequer alegou – como devia – os concretos danos sofridos pelo lesado que terão justificado o pagamento da indemnização de 12.500,00€ e, portanto, nem sequer dispomos de qualquer elemento que nos permita concluir se o valor dos danos a indemnizar era superior ou inferior ao valor da indemnização que a Autora entendeu pagar e, como parece evidente, o obrigado de regresso não está obrigado a pagar tudo aquilo que a seguradora tenha entendido pagar, mas apenas aquilo que se justificava ou era razoável pagar face aos concretos danos verificados. A sentença recorrida condenou a Ré a pagar a totalidade da quantia peticionada, ainda que não tenham sido alegados e provados os concretos danos que a quantia paga pela Autora se destinou a indemnizar, sendo certo, porém, que, nessa parte, a Apelante não põe em causa a decisão e não incluiu essa questão no objecto do recurso (razão pela qual não a poderemos apreciar e teremos que atender aos valores fixados em 1ª instância), mas, desconhecendo-se – porque a Autora não alegou – os concretos danos sofridos pelo lesado e nada permitindo afirmar que a quantia paga pela Autora era inferior ao valor ajustado para indemnizar esses danos, teremos que partir do princípio – porque nada em contrário foi alegado – que a indemnização paga pela Autora se destinou a reparar todos os danos sofridos pelo lesado e, porque a culpa deste impunha a redução da indemnização a que tinha direito em 15%, o direito de regresso da Autora sobre a Ré não poderá exceder esse valor.

Como se depreende da matéria de facto e dos documentos para os quais remete, o valor que a Autora pagou para reparação dos danos sofridos pelo lesado ascende ao valor de 17.757,71€, impondo-se, por isso, considerar – já que, reafirma-se, a Apelante não põe isso em causa – que é esse o valor dos danos e, nessa parte, a Ré apenas fica obrigada a pagar a quantia de 15.094,06€ (correspondente ao valor dos danos com uma redução de 15%).

As demais despesas, no valor global de 3.545,02€ (a que aludem os pontos 14, 15 e 17 da matéria de facto), não se reportam a indemnização de danos sofridos pelo lesado e, portanto, no que toca a essas despesas, não tem aplicação o disposto no art. 570º do CC. Tais despesas serão inteiramente da responsabilidade da Ré, sendo certo que, em relação às mesmas, a Apelante não suscita, no presente recurso qualquer outra questão além das que já foram apreciadas.

A Ré/Apelante está, portanto, obrigada a pagar à Autora a quantia de 18.639,08€.  


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – No domínio da actual legislação – Dec. Lei nº 291/2007, de 21/08 – o direito de regresso da seguradora, ao abrigo do disposto no art. 27º, nº 1, alínea c), daquele diploma, não depende da alegação e prova do nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia em que o condutor circulava e a eclosão do acidente; tal direito de regresso basta-se com a demonstração de que o acidente ocorreu por culpa do condutor que conduzia com taxa de alcoolemia superior à permitida, sem que seja necessário indagar se a conduta culposa do condutor decorreu ou não da influência do álcool.

II – A conduta ilícita e culposa do lesado que é transportado no veículo sem que tivesse colocado o cinto de segurança tem toda a aptidão para contribuir para o agravamento dos danos sofridos em caso de acidente, justificando-se, por isso, que essa conduta seja valorada, ao abrigo do disposto no art. 570º do CC, para reduzir, em 15%, o valor da indemnização a que tenha direito pelos danos que sofreu em consequência de um embate frontal do veículo onde seguia.


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V.
Pelo exposto, concedendo-se parcial provimento ao presente recurso, revoga-se, em parte, a sentença recorrida, condenando-se a Ré a pagar à quantia de 18.639,08€ (dezoito mil, seiscentos e trinta e nove euros e oito cêntimos), acrescida de juros nos termos que constam da sentença recorrida.
Custas a cargo de ambas as partes na proporção do respectivo decaimento.
Notifique.

Maria Catarina Gonçalves (Relatora)

Des. Adjuntos: Maria Domingas Simões

                        Nunes Ribeiro


[1] Publicado no D.R., I Série A, de 18/07/2002.
[2] Proferidos nos processos nºs 774/10.0TBESP.P1, 995/10.6TVPRT.P1, 7382/11.7TBMAI.P1 e 129/08.7TBPTL.G1.S1, respectivamente, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[3] Proferidos nos processos nºs 525/04.9TBSTR.S1, 582/11.1TBSTB.E1.S1, 995/10.6TVPRT.P1.S1, 592/10.6TJPRT.P1, 665/10.5TBVNO.C1, 273/10.0T2AVR.C1, 1278/11.0T2AVR.C1 e 139/12.0T2ALB.C1, respectivamente, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[4] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[5] Processo nº 2044/06.0TJVNF.P1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.

[6] Proc. nº 09A0009, disponível em http://www.dgsi.pt.