Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
392/09.6TBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: CASO JULGADO
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
SEGURO AUTOMÓVEL
VALIDADE
Data do Acordão: 09/28/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COVILHÃ – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 498º, 671º E 673º DO CPC; 21º, 23º E 29º, Nº 6, DO DL Nº 522/85
Sumário: I – A excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo a tríplice identidade de sujeitos, objecto e pedido.

II – A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no artº 498º do CPC.

III – Pressupondo a responsabilização do FGA a inexistência de seguro válido e eficaz (artºs 21º, 23º e 29º, nº 6, do DL nº 522/85), mas decidido previamente, com trânsito em julgado (primeira decisão) em acção proposta pelos lesados contra a seguradora não haver seguro válido e eficaz, esta primeira decisão impõe-se como “eficácia reflexa do caso julgado” em acção posterior, intentada pelos mesmos lesados, agora contra o FGA, vinculando-o.

IV – O artº 29º, nº 6, do DL nº 522/85 só prevê a situação da demanda do FGA, exigindo para a sua legitimidade passiva a presença do responsável civil, mas não o inverso, podendo o lesado demandar apenas o responsável civil, sem ter que o fazer igualmente contra o FGA.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I – RELATÓRIO

1.1. - Os Autores:

A...

B...

C...

Instauraram ( 26/3/2009 ) na Comarca da Covilhã acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra os Réus:

D...

Fundo de Garantia Automóvel

Alegaram, em resumo:

No dia 23 de Abril de 2006, quando o veículo automóvel de matrícula ...-...-LV circulava pela EN nº 18, sentido Guarda/Belmonte, porque o seu condutor, o Réu D..., seguia desatento e com velocidade excessiva, foi embater na traseira do ciclomotor ...-BMT-...-..., que circulava no mesmo sentido, conduzido por E... , projectando-o na via, em consequência do que veio este a falecer.

Os Autores, filhos de E..., sofreram danos patrimoniais e não patrimoniais.

No processo crime ( nº32/06), o Réu D... foi condenado criminalmente, e os Autores demandaram civilmente a F... – Companhia de Seguros S.A., que foi absolvida, por sentença transitada em julgado, em virtude de considerar não ser válido o seguro.

Pediram a condenação dos Réus a pagarem o montante global de € 222.987,00, acrescida de juros desde a citação, sendo de € 63.750,00, pela perda do direito à vida, € 500,00, pelo ciclomotor destruído, € 36.517,00 à Autora A..., € 57.930,00 à Autora B... e € 64.040,00 ao Autor C....

Contestou o Fundo de Garantia Automóvel ( fls.128 ) defendendo-se por excepção, ao arguir a sua ilegitimidade passiva, dado existir seguro válido, e por impugnação.

Replicaram as Autoras.

1.2. - No saneador decidiu-se:

a) - Julgar improcedente a excepção da ilegitimidade passiva e do caso julgado;

b) - Julgar improcedente a acção e absolver os Réus dos pedidos.

1.3. – Inconformados, os Autores recorreram de apelação, com as seguintes conclusões:

[…]

Não houve resposta.


II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – O objecto do recurso:

A questão submetida a recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, consiste em saber se a sentença recorrida, ao absolver os Réus, designadamente o FGA, por considerar válido e eficaz a existência de seguro, viola o caso julgado da primeira sentença ( proferida no processo crime ) que absolveu a Seguradora do pedido, por inexistência de seguro.

2.2. – O tribunal deu como provados os seguintes factos:

[…]

2.3. – O caso julgado:

Na acção cível, deduzida em processo de adesão ( proc. nº 32/06), o tribunal, por sentença transitada em julgado, decidiu julgar improcedente o pedido de indemnização cível e absolver do pedido a demandada F... – Companhia de Seguros.

Para tanto argumentou-se com a inexistência se seguro válido, visto que o contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel obrigatório é de natureza pessoal, cuja obrigação de segurar está ligada à pessoa que possa ser civilmente responsável, e a G... , na qualidade em que subscreveu o seguro ( proprietária) não podia transferir para a Seguradora uma responsabilidade que não tinha, e não celebrou um contrato a favor de terceiro.

Disse a sentença:

“ Assim, em conformidade, temos de concluir que na altura do embate em discussão nos autos o veículo que era conduzido por D... seu proprietário, não estava seguro, encontrando-se, por isso, em nítida infracção às normas dos arts.1º nº1, 2º nº1 do DL nº55/85.

“ Ora, não tendo a pessoa responsável pela reparação dos danos causados a terceiros peticionados nestes autos – D... -, decorrentes da circulação do veículo automóvel ...-...-LV, transferido para a demandada F..., por contrato de seguro essa responsabilidade, não pode esta ser responsabilizada pelos danos peticionados nestes autos”.

Na sentença agora recorrida decidiu-se absolver os Réus, por não se verificarem os pressupostos da intervenção do FGA ( arts. 21 e 23 do DL nº55/85 ), considerando válido o mesmo contrato de seguro.
Justificou-se, em síntese, que no domínio do seguro obrigatório, a responsabilidade coberta no seguro de veículos afere-se pela do condutor responsável civil, figure ou não no contrato como tomador ou beneficiário do seguro, sendo que a lei prevê expressamente o direito de qualquer pessoa proceder ao seguro de um veículo, substituindo-se e suprindo a obrigação de segurar que faz recair sobre as pessoas às quais incumbe esse dever jurídico.

Afirmou-se, em conclusão:

“ Dos considerandos tecidos, podemos, então, concluir, que não existe qualquer razão para considerar o contrato de seguro sob análise nulo, inexistente ou inválido, mantendo-se a vinculação decorrente do contrato de seguro.

“Donde, não resultando provados os pressupostos da obrigação de indemnizar por parte do FGA (artºs. 21.º e 23.º do citado DL n.º 522/85), tudo funcionará perante os AA ( terceiros face ao contrato de seguro obrigatório) como se o seguro com a referida Companhia de Seguros permanecesse válido e eficaz.”

Como se sabe, estas duas posições antagónicas reflectem a controvérsia existente sobre o tema, uma ( a primeira) mais clássica, outra ( a segunda) mais moderna, fazendo uma interpretação de acordo com o direito comunitário ( cf., por ex., Moitinho de Almeida, Contrato de Seguros, Estudos, 2009, pág.216 e segs.).

Os apelantes consideram que a primeira decisão se impõe, devido à “autoridade do caso julgado”, sendo este, no essencial, o objecto do recurso.

Quid iuris?

A expressão “ caso julgado “ é uma forma sincopada de dizer “ caso que foi julgado “, ou seja, caso que foi objecto de um pronunciamento judicativo, pelo que, em sentido jurídico, tanto é caso julgado a sentença que reconheça um direito, como a que o nega.

O caso julgado material ( arts.671 e 673 do CPC ) implica dois efeitos - um negativo e outro positivo – sendo em face deles que se distingue a excepção de caso julgado e a autoridade de caso julgado ( cf., para a distinção de ambas as figuras, cf., por ex., Manuel de Andrade, Noções elementares de processo Civil, pág. 320, Anselmo de Castro, Direito processual civil declaratório, vol. III, pág. 384, Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo Código de Processo Civil, pág. 576, e “O objecto da sentença  e o caso julgado material “, BMJ 325, pág.171, Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, pág. 325, Mariana França Gouveia, A Causa de Pedir na Acção Declarativa, pág. 394).

A excepção do caso julgado pressupõe uma tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir ( arts.497 e 498 do CPC ) e distingue-se da autoridade do caso julgado, onde este se manifesta no seu aspecto positivo.
Definindo o âmbito de aplicação de cada um dos conceitos, refere Teixeira de Sousa -  “A excepção do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contraria na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção do caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (...), mas também a inviabilidade do Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica (...).Quando vigora como autoridade do caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva a repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente (“ O objecto da sentença e o caso julgado material”, BMJ 325, pág.171 e segs. ).
         A jurisprudência tem acolhido esta distinção ( cf., por ex., Ac do STJ de 26/1/94, BMJ 433, pág.515, Ac RC de 21/1/97, C.J. ano XXII, tomo I, pág.24 ), sendo que para a autoridade do caso julgado não se exige, segundo entendimento prevalecente, a coexistência da tríplice identidade, prevista no art.498 do CPC ( cf., por  ex., Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág.320, A c do STJ de 13/2/2007, em www dgsi.pt, Ac RC de 21/1/97, C.J. ano XXII, tomo I, pág.24, Ac RP de 2/4/98, Ac RC de 27/9/05, em www dgsi.pt ).
         Neste contexto, pode distinguir-se ambos os institutos da seguinte forma:
         A excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil ( razões de economia processual ), o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo uma total identidade entre ambas as causas;

A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença ( razão de certeza ou segurança jurídica ).

Pois bem, na medida em que a responsabilização do FGA pressupõe a inexistência de seguro válido e eficaz ( arts.21, 23 e 29 nº6 do DL nº 522/85 ), mas decidido previamente, com trânsito em julgado ( primeira decisão) não haver seguro válido e eficaz, esta primeira decisão impõe-se aqui através da autoridade do caso julgado.
             Na verdade, considerando que a força e autoridade do caso julgado visam evitar que a questão decidida pelo órgão jurisdicional possa ser validamente definida, mais tarde, em termos diferentes por outro ou pelo mesmo tribunal e que possui também um valor enunciativo, que exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada e exclui todo o efeito incompatível, dado que a presente acção contra o FGA tem como pressuposto a ausência de seguro válido e eficaz, mas estando judicialmente decidido, por trânsito em julgado, isso mesmo, não pode voltar a apreciar-se tal questão, por se lhe impor a primeira decisão sobre a relação material controvertida, com força obrigatória dentro e fora do processo ou seja com a autoridade de caso julgado ( arts.671 nº1 e 673 do CPC ).

Note-se que, apesar de não haver identidade de sujeitos em ambas as acções, o caso julgado da primeira atinge reflexamente o terceiro ( FGA).

A propósito dos limites subjectivos do caso julgado, muito embora a regra seja a vinculação entre as partes ( eficácia relativa) , há casos em que a sentença se projecta na esfera jurídica de terceiros, vinculando-os. Daí que tanto a doutrina, como a jurisprudência, tenham vindo a acolher a distinção entre “eficácia directa” e “eficácia reflexa” do caso julgado.

Neste contexto, assumem eficácia reflexa ou ultra partes, por exemplo as sentença de anulação ou declarativas da nulidade de negócios, as proferidas em questões de estado, as formadas sobre uma relação jurídica que surge como fundamento de pretensões em acções posteriores ( cf., por ex, António Cunha, Limites Subjectivos do Caso Julgado, pág. 14 e segs.).

Para Teixeira de Sousa ( Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág.588 e segs.), a eficácia reflexa vincula qualquer sujeito a aceitar aquilo que foi decidido entre todos os sujeitos com legitimidade processual, isto é, “ quando a acção decorreu entre todos os interessados directos ( quer activos, quer passivos) e, portanto, esgotou os sujeitos com legitimidade para discutir a tutela judicial de uma situação jurídica, pelo que aquilo que ficou definido entre os legítimos contraditores ( na expressão do art.2503 § único , CC/1867) deve ser aceite por qualquer terceiro”.

Ora, na acção cível deduzida em processo de adesão foi aí discutida entre todos os interessados directos, com legitimidade processual, para o efeito, o problema da validade do seguro, decidindo-se pela sua invalidade.

Por outro lado, a lógica discursiva da sentença, assente na ausência dos “pressupostos da obrigação de indemnizar por parte do FGA”, nunca poderia levar também à absolvição do 1º Réu ( condutor do veículo), pois o afastamento do FGA não seria impeditivo ou extintivo da responsabilidade do Réu D..., por não se verificar preterição de litisconsórcio necessário passivo.

Na verdade, o art.29 nº6 do DL nº 522/85 só prevê a situação da demanda do FGA, exigindo para a sua legitimidade passiva a presença do responsável civil, mas não o inverso. Ou seja, caso o lesado queria apenas demandar o responsável civil não tem de demandar igualmente o FGA para assegurar a legitimidade passiva daquele.

Portanto, a letra da lei só é decisiva no sentido de considerar parte ilegítima o FGA, sem a presença do responsável civil, mas não o inverso, por ser este o verdadeiro e último responsável, sobre o qual aquele pode exercer o direito de regresso.

Procede a apelação, com revogação da sentença, devendo prosseguir o processo.

2.3. – Síntese conclusiva:


         1. A excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil ( razões de economia processual ), o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo a tríplice identidade de sujeitos, objecto e pedido.

2. A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade, prevista no art.498 do CPC.

3. Pressupondo a responsabilização do FGA a inexistência de seguro válido e eficaz ( arts. 21, 23 e 29 nº6 do DL nº 522/85 ), mas decidido previamente, com trânsito em julgado ( primeira decisão) em acção proposta pelos lesados contra a Seguradora não haver seguro válido e eficaz, esta primeira decisão impõe-se como “eficácia reflexa do caso julgado” em acção posterior, intentada pelos mesmos lesados, agora contra o FGA, vinculando-o.

4. O art.29 nº6 do DL nº 522/85 só prevê a situação da demanda do FGA, exigindo para a sua legitimidade passiva a presença do responsável civil, mas não o inverso, podendo o lesado demandar apenas o responsável civil, sem ter que o fazer igualmente contra o FGA.


III – DECISÃO

         Pelo exposto, decidem:


1)

         Julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida.

2)

         Custas pela parte vencida a final.


Jorge Arcanjo (Relator)
Isaías Pádua
Teles Pereira