Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
486/08.5TBPCV-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
ESTRANGEIRO
GABINETE PORTUGUÊS DA CARTA VERDE
EXERCÍCIO DE DIREITO
CRÉDITO
INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 07/01/2014
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: PENACOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 2º DO DL Nº 122-A/86, DE 30 DE MAIO, ART. 323º NºS 1 E 4 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I. Em acção interposta para efectivar a responsabilidade civil emergente de viação ocorrido em Portugal, no qual intervieram um veículo matriculado em Portugal e um outro, matriculado e com estacionamento habitual em França, sendo a culpa pela sua ocorrência de imputar ao condutor deste último, deve ser demandado o GPCV (sem prejuízo da demanda directa da companhia de seguros para a qual haja sido transferida a responsabilidade civil pelos danos decorrentes da circulação do dito veículo ou da sua correspondente em Portugal), como decorre do disposto no art.º 2.º do DL 122-A/86, de 30 de Maio;

II. Resulta do disposto no art.º 323.º, seus n.ºs 1 e 4, do Código Civil, que só tem idoneidade para interromper o prazo prescricional a prática de acto judicial que, directa ou indirectamente, dê a conhecer ao devedor a intenção de o credor exercer o seu direito, sendo ineficaz o conhecimento que se dê a pessoa diversa do obrigado.

III. Por assim ser, a citação do FGA não tem a virtualidade de interromper eficazmente a prescrição em relação ao GPCV, uma vez que tal citação não lhe foi dirigida nem consta dos autos que aquele tivesse a qualidade de seu representante.

Decisão Texto Integral: O recurso é o próprio, tendo sido recebido no modo e com o efeito devidos.
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Atendendo a que a questão colocada nos autos, circunscrita à excepção peremptória da prescrição, se reveste de simplicidade, como autoriza o disposto no artigo 656.º do CPC, passo a proferir decisão sumária.
Notifique.

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I. Relatório

No Tribunal Judicial da comarca de Penacova,

Por acção entrada em juízo em 8 de Agosto de 2008, A..., solteiro, maior, residente na Rua (...), em Aveiras de Cima, veio instaurar contra:

B... , companhia de seguros com sede em (...), Paris, France;

C... , residente em (...), France; e

Fundo de Garantia Automóvel, com sede na Av.ª de Berna, n.º 19, em Lisboa, acção declarativa de condenação, a seguir a forma ordinária do processo comum, pedindo a final a condenação dos RR no pagamento da quantia de € 31 545,13 (trinta e um mil, quinhentos e quarenta e cinco euros e treze cêntimos), acrescida de juros de mora taxa legal, contados da citação até integral pagamento.

Em fundamento alegou, em síntese útil, ter ocorrido um acidente de viação no dia 18 de Agosto de 2005, ao Km 52,869 do IP3, concelho de Penacova, no qual intervieram o veículo ligeiro da marca Volkswagen, modelo Golf, de matrícula (...)ZG, pertencente ao demandante, que na ocasião o conduzia, e o veículo ligeiro da marca Mercedes, com a matrícula (...)MT51, pertença do réu C... e por ele na ocasião conduzido. O acidente ficou a dever-se a culpa deste réu que, por circular a velocidade excessiva, superior a 170 Km/h, abalroou o veículo conduzido pelo autor quando este se encontrava a efectuar manobra de ultrapassagem a uma viatura que o precedia, circulando por isso na faixa mais à esquerda das duas que, naquela via, se destinavam ao trânsito que circulava no sentido Coimbra-Viseu.

Mais alegou que em consequência do embate a viatura ZG capotou, tendo sofrido estragos ao nível da sua estrutura que tornam inviável a reparação, tendo o salvado sido avaliado em € 6500,00, quando o seu valor à data era de €25 000,00. Acresce que por via do acidente o demandante se encontra privado até ao presente da viatura, o que constitui igualmente dano indemnizável, reclamando a este título € 25,00 por dia, pretendendo ainda o reembolso das despesas hospitalares em que incorreu.

Invocou finalmente que nos termos da declaração amigável de acidente na ocasião preenchida constava que o proprietário do AMT havia transferido a responsabilidade civil emergente dos acidentes de viação em que aquela viatura interviesse para a demandada seguradora que, no entanto, veio a declinar qualquer responsabilidade com fundamento na inexistência de contrato de seguro com cobertura para o acidente em causa, o que justifica a demanda dos 2.º e 3.º RR, como impõe o n.º 6 do art.º 29.º do DL 522/85, de 31 de Dezembro.

Veio entretanto a ser proferido despacho que, apelando ao disposto no art.º 2.º do DL 122-A/86, de 30 de Maio, e na consideração de que nos acidentes envolvendo veículos de matrícula estrangeira deve ser demandado o Gabinete Português de Carta Verde, julgou verificada a excepção dilatória de ilegitimidade dos RR, por preterição de litisconsórcio necessário passivo, convidando o autor ao respectivo suprimento.

Acatando o convite, veio o autor deduzir incidente de intervenção principal provocada do GPCV, o qual foi admitido (cf. despacho certificado de fls. 107 a 109), tendo sido ordenada, em conformidade, a citação do interveniente.

Citado o GPCV em 10/4/2012, logo invocou a excepção peremptória da prescrição por em muito se mostrar excedido o prazo de 3 anos consagrado no n.º 1 do art.º 498.º do Código Civil.

Foi proferido despacho saneador e nele foi declarada a ilegitimidade dos RR inicialmente demandados, atendendo a que os riscos decorrentes da circulação da viatura de matrícula francesa se encontravam cobertos por contrato de seguro celebrado com a C.ª de Seguros Sérénis Assurances, em vigor à data do acidente, prosseguindo os autos apenas contra o chamado GPCV.

Na apreciação da excepção peremptória da prescrição que pelo GPCV havia sido invocada, e aceitando embora que o prazo prescricional aplicável é o de 3 anos consagrado no n.º 1 do art.º 498.º do CC, com fundamento no facto de o FGA ter sido citado em 11.08.2008, julgou-se o prazo em curso interrompido nessa data, concluindo-se pela improcedência da excepção, prosseguindo os autos com selecção dos factos assentes e organização da base instrutória.

Inconformado, apelou o GPCV e, tendo apresentado as suas alegações, rematou-as com as seguintes conclusões:

“1.ª O autor teve conhecimento do direito que lhe competia em 18 de Agosto de 2005;

2.ª- Intentou a presente acção contra e todos, excepto contra quem devia;

3.ª- Em 19 de Setembro de 2011, e mesmo assim a convite do Tribunal, requereu a intervenção principal do aqui chamado Gabinete Português de Carta Verde;

4.ª- Admitindo-se que, muito embora a citação do ora chamado só tivesse ocorrido em Abril de 2012, a interrupção da prescrição se presumisse efectuada 5 dias volvidos após ter sido requerida pelo autor a dita intervenção do aqui chamado GPCV;

5.ª- Ainda assim, em 24 de Setembro de 2011 (cinco dias após ter sido requerida), já se mostrava prescrito o direito do autor em relação ao chamado GPCV;

6.ª- A citação do réu FGA efectuada em 11 de Agosto de 2008 não teve a virtualidade de interromper o prazo prescricional relativamente ao chamado GPCV;

7.ª- Pois este não tem também a virtualidade de adivinhar citações efectuadas na pessoa de outrem;

8.ª- A citação é o acto pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada acção e se chama ao processo para se defender; emprega-se ainda para chamar ao processo, pela primeira vez, uma pessoa interessada na causa (art.º 228.º, n.º 1 do CPC);

9.ª- Violou pois o douto saneador sentença, ao julgar improcedente a excepção peremptória de prescrição do direito do autor expressamente invocada pelo chamado GPCV, o disposto no art.º 323.º, n.ºs 1 e 4 do CC e 228.º, n.º 1 do CPC”.

Com tais fundamentos pretende a revogação do despacho proferido na parte impugnada devendo, em conformidade, ser julgada procedente a excepção peremptória invocada e o recorrente ser, em conformidade, absolvido do pedido.

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O autor/apelado não contra alegou.

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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, constitui única questão submetida à apreciação deste Tribunal saber se deve ser julgada procedente a excepção peremptória da prescrição do direito do autor que pelo apelante GPCV foi invocada.

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II Fundamentação

Interessando à decisão os factos constantes do relato feito em I,. antecipando a decisão, desde já se adianta que, em nosso entender, assiste razão ao apelante.

Ocupam-se os autos de acidente de viação ocorrido em Portugal no dia 18 de Agosto de 2005, no qual foram intervenientes um veículo matriculado no nosso país, propriedade do autor, que na ocasião o conduzia, e o veículo de matrícula francesa (...)MT51, propriedade do demandado C..., residente em França, e por ele conduzido aquando do embate.

Primeira nota a reter, a da aplicabilidade aos presentes autos do DL 522/85, de 31 de Dezembro, na versão em vigor à data do acidente, no que as partes não dissentem.

Ora, nos termos do art.º 2.º do DL 122-A/86, de 30 de Maio, “Compete ao Gabinete Português de Certificado Internacional de Seguro, constituído em conformidade com a Recomendação n.º 5, adoptada pelo Subcomité de Transportes Rodoviários do Comité de Transportes Internos da Comissão Económica para a Europa da Organização das Nações Unidas, a satisfação, ao abrigo da Convenção Complementar entre Gabinetes Nacionais, das indemnizações devidas, nos termos legais e regulamentares do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aos lesados por acidentes causados por veículos matriculados noutros Estados membros da Comunidade Económica Europeia ou em países terceiros cujos gabinetes nacionais de seguros tenham aderido à referida Convenção Complementar, bem como por veículos matriculados noutros países terceiros que sejam portadores de um documento válido justificativo da subscrição num outro Estado membro de um seguro de fronteira”.

Face ao assim preceituado, assente fica a legitimidade do agora apelante para a causa, o que não vem questionado[1]. No entanto, como resultou do relato circunstanciado feito em I., em dúvida quanto à existência e validade do seguro obrigatório, o autor demandou: uma companhia de seguros francesa, que se veio a verificar não ser aquela para a qual o proprietário da viatura de matrícula francesa havia transferido a sua responsabilidade civil emergente dos acidentes de viação em que a mesma interviesse; o FGA, a quem a lei não confere legitimidade para intervir neste tipo de situações (cf. n.º 1 do art.º 21.º do DL 522/85); e o proprietário do veículo, assim errando claramente o alvo. Com efeito, mesmo a não existir seguro válido, a regularização do sinistro caberia, ainda aqui, ao GPCV, o qual seria depois reembolsado pelo seu congénere francês nos termos do Acordo Multilateral de Garantia (para o qual deverão ter-se por efectuadas todas as referências feitas à Convenção Complementar entre Gabinetes Nacionais como resulta do art.º 2.º do DL 130/94, de 19 de Maio).

Não está igualmente em discussão que o prazo que aqui releva é o de 3 anos previsto no n.º 1 do art.º 498.º, prazo que teve o seu início na data do acidente -18 de Agosto de 2005- por ter o autor ficado então ciente do direito que lhe assistia. Deste modo, a não ter existido nenhuma causa de interrupção, a extinção do direito pelo decurso do prazo prescricional operou em 18 de Agosto de 2008.

Dispõe o art.º 323.º do Código Civil que “1. A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o Tribunal seja incompetente.

2. Se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias.

3. A anulação da citação ou notificação não impede o efeito interruptivo previsto nos números anteriores.

4. É equiparado à citação ou notificação, para efeitos deste artigo, qualquer outro meio judicial pelo qual se dê conhecimento do acto àquele contra quem o direito pode ser exercido.

Do assim preceituado resulta claramente que só tem idoneidade para interromper o prazo prescricional a prática de acto judicial que, directa ou indirectamente, dê a conhecer ao devedor a intenção de o credor exercer o seu direito. Por outras palavras, o facto interruptivo da prescrição consiste no conhecimento que teve o obrigado, através duma citação ou notificação judicial, de que o titular pretende exercer o direito. Tal é o que inequivocamente resulta dos n.ºs 3 e 4, donde ser ineficaz o conhecimento que se dê a pessoa diversa do obrigado.

Revertendo ao caso dos autos, verifica-se ter a Mm.ª juiz considerado que o prazo prescricional em curso se interrompera com a citação do FGA, verificada em 11 de Agosto de 2008, embora tenha omitido as razões pelas quais assim considerou. No entanto, o que se constata é que o FGA e o GPCV são entes jurídicos distintos, o primeiro um fundo autónomo inserido no Instituo de Seguros de Portugal (cf. art.º 22.º do DL 522/85), o segundo uma associação sem fins lucrativos e de duração indeterminada, conforme proclamam os respectivos estatutos (cf. escritura de 9 de Outubro de 1986, lavrada a fls. 42 do L.º 327-C do 16.º Cartório Notarial de Lisboa, conforme aviso publicado no DR-III Série, de 21/11/86, a págs. 13039[2]). Se assim é, a citação do FGA, tal como a dos demais demandados, não tem a virtualidade de interromper eficazmente a prescrição em relação ao GPCV, uma vez que tal citação não lhe foi dirigida nem consta dos autos que qualquer um dos citados tivesse a qualidade de seu representante. Deste modo, e tal como certeiramente assinala o apelante, mesmo admitindo que o prazo se tinha interrompido cinco dias depois do autor ter requerido a sua intervenção nos autos, o que nos remete para o dia 24 de Setembro de 2011, há muito que a prescrição já tinha então operado. Daí que se imponha a revogação do saneador sentença proferido, na parte em que julgou improcedente a excepção de prescrição invocada.

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III. Decisão

Em face a todo o exposto, e na procedência do recurso interposto pelo Gabinete Português de Carta Verde, julgo procedente a excepção de prescrição invocada e, consequentemente, absolvo-o do pedido contra ele deduzido pelo autor/apelado A....

Custas da acção nesta e na primeira instância a cargo do autor.

Maria Domingas Simões (Relatora)

Nunes Ribeiro

Helder Almeida


[1] Sem prejuízo da reconhecida possibilidade de demandar directamente a seguradora responsável, no caso de existência de seguro válido, ou a sua correspondente no nosso país, o que corresponde a entendimento jurisprudencial constante. V. acórdãos do STJ de 13/3/2003, processo 03 B 3010, e de 11/1/2011, processo n.º 2357/08.6 TVLSB.L1.S1, acessíveis em www.dgsi.pt, o primeiro deles assim sumariado: “1. O seguro de responsabilidade civil automóvel celebrado em Espanha, um estado membro da CE, produz efeitos no nosso País, como se aqui tivesse sido emitida a respectiva apólice (art. 20º/8 do Dec-Lei 522/85, de 31/12). 2. Relativamente a sinistros ocorridos em Portugal, compete ao Gabinete Português de Certificado Internacional de Seguro (G.P.C.V.), como gabinete gestor, a satisfação das indemnizações devidas, nos termos legais e regulamentares do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aos lesados por acidentes ocorridos em Portugal causados por veículos matriculados noutros Estados membros da CE. 3. A acção em que seja pedida indemnização por danos decorrentes de acidente de viação, ocorrido em Portugal, causado por veículo automóvel matriculado num Estado membro da União Europeia deve ser dirigida, em princípio, contra o Gabinete Português de Carta Verde; mas pode ser intentada contra o segurado ou o segurador (como directamente responsável pelos danos causados). 4. E se o segurador tiver correspondente em Portugal, também este pode ser demandado, de acordo com o n.º 3 do Despacho Normativo n.º 20/78, de 24/1. 5. O correspondente não é um mero intermediário ou auxiliar do segurador ou do Gabinete Gestor, mas verdadeiro responsável pelo pagamento da indemnização aos lesados, sem prejuízo do direito a subsequente reembolso do que pagar, judicial ou extrajudicialmente”.

[2] Referenciado por Adriano Garção Soares, José Maia dos Santos e Maria José Rangel de Mesquita in “Seguro Obrigatório de Responsabilidade civil automóvel” Coimbra 1997, pág. 109.