Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
629/11.1TBSCD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
RESPONSABILIDADE BANCÁRIA
CHEQUE
RECUSA DE PAGAMENTO
REVOGAÇÃO
DANOS
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 02/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - ST. COMBA DÃO - INST. LOCAL - SEC. COMP. GEN. - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.483, 487 CC, 29, 32 LUCH
Sumário: 1.- Na acção de responsabilidade civil extracontratual do Banco sacado, decorrente da devolução de cheque apresentado a pagamento com fundamento em revogação ilegítima, são pressupostos daquela a conduta: a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre este e aquele comportamento.

2.- No caso, paralelo ao da revogação ilegítima (proibição pura e simples, sem justificação), o sacador não declara ao Banco a situação concreta em que o cheque foi emitido e entregue ao portador, não concretizando qualquer facto da invocada e genérica falta ou viciada vontade de pagar.

3.- Sendo certo que o Banco sacado tem de ser cuidadoso e conferir indícios da plausibilidade da declaração do sacador, nada tendo aquele feito para conferir o facto concreto integrador do vício, o sacado age ilicitamente e com culpa, ao obedecer à ordem do sacador.

4.- Nesta acção recai ainda sobre o tomador do cheque o ónus da alegação e prova da existência do dano e do nexo de causalidade entre a revogação ilegítima e o dano.

5.- O lesado tem de alegar e provar que, não fora a devolução ilegítima do cheque, o mesmo seria ou poderia vir a ser descontado pelo banco sacado.

6.- A circunstância do cheque não haver sido pago não significa necessariamente a existência de algum prejuízo para o respectivo portador, porque este continua titular do direito substantivo derivado da relação jurídica subjacente.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

R (…), SA, intentou ação contra M (…)- Associação Mutualista, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 35.448,62€, acrescida de juros desde a citação até integral pagamento.

Alegou, em síntese:

É dona de 8 cheques sacados pela “E (…)”, os quais foram devolvidos com a menção de falta ou vício na vontade, sendo a causa de recusa de pagamento dos cheques inexistente, na medida em que é falsa a comunicação da sacadora, o que a Ré não podia desconhecer, causando prejuízo à Autora, que continua desapossada do valor dos cheques.

Contestou a Ré a sua ilegitimidade, invocando que o sacado F (…)transmitiu para a C (…) a universalidade dos ativos e passivos.

Deduzido incidente de intervenção, foi chamada ao processo esta C (…), que contestou, invocando a prescrição do direito da Autora e que o F (…) enquanto banco sacado, considerou que havia fortes e excepcionais motivos que estavam na base das ordens de revogação.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença a julgar a exceção da prescrição do direito da Autora improcedente e a julgar a ação improcedente, por não provada, absolvendo a Ré e a interveniente dos pedidos formulados.

Em síntese, a sentença considerou que a conduta do Banco sacado, sendo ilícita, não foi culposa e considerou que a Autora não alegou o nexo de causalidade entre aquela e o dano invocado.


*

Inconformada, a Autora recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

                1. A análise dos factos provados, coadjuvada com os depoimentos testemunhais prestados nos autos e a documentação carreada para o processo por a própria apelada, com primordial importância das “ordens de revogação” e dos “extratos de movimentos históricos de conta”, a fls dos autos, deveriam ter preconizado uma sentença condenatória da Apelada.

2. O processado não se esgota nos articulados principais apresentados pelas partes nos autos, mas nos requerimentos que as mesmas efetuam nos autos em complemento desses articulados ou face ao requerido pela parte contrária, devendo tais requerimentos e resposta aos mesmos e documentação atinente ser objeto de apreciação e valoração pelo Tribunal, o que, in casu, não se verificou, com acuidade aos requerimentos da apelante de 18.02.2014 e de 17.03.14, que respetivamente motivaram a junção pela apelada das ordens de revogação propriamente ditas da sua cliente e já referenciadas nos Art.ºs 25.º a 27.º da sua contestação e dos extratos de conta.

3. Estão verificados, segundo o art. 483º do CC, todos os pressupostos da responsabilidade civil extra contratual, no que ao banco apelado diz respeito, pela ilícita recusa de pagamento dos cheques de que a apelante era portadora, apresentados que foram nos termos e prazo prescritos no n.º 1.º do art.º 29.º da Luch.

4. Quanto à ilicitude do banco sacado, manifesta-se no desrespeito pelo art.º 32.º da LU, quando este aceita, sem justa causa, uma ordem de revogação do cheque durante o prazo de apresentação a pagamento do mesmo, as quais se reduzem a meras informações genéricas, sem quaisquer justificação, negando pagamento dos cheques dos autos, apenas mediante a indicação genérica de falta

ou vício da vontade na emissão dos cheques.

5. Ilicitamente, porque a recusa em pagar os cheques que a autora apresentou a pagamento, estribada na comunicação da emitente de revogação dos mesmos por vício na formação da vontade, se traduziu na violação do estabelecido no art. 32º da LUCh [Lei Uniforme sobre Cheques] que proíbe o não pagamento de cheques, com base no indicado fundamento (revogação), quando eles tenham sido apresentados para tal fim no prazo de legal de oito dias, contados desde as datas neles apostas como de emissão (arts.1º nº 5 e 29º da LUCh).

6. E culposamente, porque não agiu (o Banco) com a diligência que lhe era exigida e de que era capaz, pois com base naquele fundamento e na vaga alegação, pela titular da conta sacada, de padecerem de «vício na formação da vontade», o que devia ter feito era não acatar a referida comunicação e não deixar de pagar os cheques com base nesse fundamento.

7. O Banco apelado agiu ilicitamente e com culpa ao ter recusado o pagamento dos cheques indicados no ponto nº 1 dos factos provados, em virtude de ter acatado a comunicação da interveniente, emitente daqueles, de revogação por vício na formação da vontade.

8. Outrossim, a matéria de facto integra, como motivado, os pressupostos da ilicitude (Por violação do art. 32.° da LUC) e in casu da culpa, na medida em que foi violada pelo Banco R. uma regra vinculativa da atividade bancária e dos títulos de crédito que não poderia ignorar, não tendo sido demonstrada uma circunstância que, além de configurar “justa causa”, se demonstrasse ser real ou

verdadeira.

9. Quanto ao dano ou prejuízo sofrido pela apelante e sendo reconhecidas as dificuldades de prova que recaem sobre a apelante, como aliás reconhece o Conselheiro Abrantes Geraldes no acórdão citado, existe um facto inequívoco indesmentível, que se traduz no facto de a apelante não ter ficado processualmente inerte aos entendimentos jurisprudenciais que firmaram à posteriori da propositura da ação dos autos, vindo a demandar nos autos a apelada para efeitos de apuramento dos danos resultantes do não pagamento dos cheques na data da apresentação e pela sua não devolução, forma única que detinha para coadunar ou ajustar o seu pedido e meios de prova às vigentes correntes jurisprudenciais, (como in casu sucede com o Ac. do STJ de 14.1.2014, in www.dgsi.pt/jstj alvejado na decisão recorrida), por outras palavras, como único meio de dizer ou alegar que a conta sacada dispunha de numerário suficiente para efetuar o desconto/pagamento dos cheques dos autos, no momento em que foram apresentados a pagamento.

10. Prova documental baseada nas “ordens de revogação” e nos “extratos de movimentos históricos de conta” que o Tribunal recorrido não valorou e de que aliás, fez tábua rasa, quando os deveria ter apreciado para valorar ou aflorar se a conta sacada dispunha ou não de fundos monetários suficientes para prover ao pagamento dos cheques, meios probatórios concreto, que como infra se aduzirá imporiam a final uma decisão diversa da preconizada. al) b n.º 1 art.º 640 CPC.

11. Do que tudo resulta, Venerandos Desembargadores, defensamos numa primeira argumentação que era ao Banco apelado que competia alegar e provar, inclusive face à própria junção dos extratos bancários que este fez nos autos a

pedido da Apelante e por as motivações ínsitas no requerimento de 17.03.2014 e que outrossim passam a integrar nos termos do nº 2 do artº 342º factologia integradora de defesa, que a conta sacada não dispunha de fundos suficientes (não só no momento da apresentação dos cheques a pagamento mas nos oito dias seguintes), isto dada a inutilização dos mesmos para nova apresentação a pagamento por o vício invocado.

12. E como o Banco apelante não fez esta prova, deve ser condenado a preceito.

13. Subsidiariamente e na presença dos referidos extratos bancários, não esquecendo as também já referidas ordens de revogação, e caso não se anua que o ónus da prova incumbia ao Banco apelado, defensamos que o Tribunal recorrido, quando muito, não analisou toda a prova carreada nos autos como o deveria ter feito, devendo em consequência, ter dado como assente e provado que se se não fosse a revogação e devolução ilícita dos cheques apresentados a pagamento no prazo legal, o que releva para os efeitos da al) b n.º 1 art.º 640 CPC e in casu, pelo menos nos cheques 38223372; 38223373, 38223389 na data da apresentação, que estes títulos seriam ou poderiam ser descontados pelo banco sacado, porque existia provisão suficiente imediata ou ainda que em relação a todos os cheques nos oito dia seguintes, fazendo-se prova efetiva do dano ou pelo menos, dano equivalente à alegação formulada e do indispensável nexo causal entre o alegado prejuízo e o facto ilícito imputado ao banco réu, aqui e pelos invocados motivos em relação a todos os cheques reclamados ou ainda que somente em relação aos cheques m/s 38223372; 38223373, 38223389, devendo a

apelada ser respetivamente condenada a preceito ou subsidiariamente a pagar à apelante que até à presente data não recebeu a importância titulada pelos cheques do valor global destes três cheques.

14. Isto sem prejuízo de V. Exs., Venerandos Desembargadores, não poderem deixar de considerar, em ultima ratio, da anulação, que expressamente se invoca da decisão da 1ª instância, por indispensável a ampliação da matéria de facto ao abrigo da alínea c) do n.º2 do Artigo 662.º do CPC, com vista tão só à

consideração concreta dos danos, também resultantes da conduta ilícita (e culposa) do Banco, com referência ao movimentos/ histórico de extratos bancários juntos pela apelada a fls dos autos.


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            Não foram apresentadas contra-alegações.

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            Questões colocadas:

            A reapreciação da matéria de facto.

            A análise da ilicitude e da culpa no comportamento do Banco.

            A análise do dano provocado por este comportamento. Ónus de alegação e prova.

            Necessidade de ampliação da matéria de facto.


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Na reapreciação dos factos, o Tribunal da Relação altera a decisão proferida sobre a matéria de facto se a prova produzida, reapreciada a pedido dos interessados, impuser decisão diversa (art.662, nº1, do Código de Processo Civil).

Imposta a necessidade daquele pedido dos interessados, o art.640º impõe um ónus a cargo do recorrente que impugne aquela decisão, estabelecendo o seguinte:

“1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. (…)

Se a Recorrente efetivamente pretende uma reapreciação da matéria de facto, entendemos que a mesma não dá cumprimento à referida norma, o que constitui um obstáculo à reapreciação pedida e implica, nos termos da mesma, a imediata rejeição do recurso, na parte da impugnação da matéria de facto.

O art.640º referido tem a sua correspondência no anterior art.685º-B do Código de Processo Civil, ainda que parcial, vindo a nova norma reforçar o ónus de alegação que impende sobre o recorrente, quem deve agora indicar também a resposta que deve ser dada às questões de facto impugnadas (a al.c).

A norma, ao impor a necessidade do recorrente indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, traduz uma opção do legislador que não admite o recurso genérico contra a errada decisão da matéria de facto, mas apenas a possibilidade de revisão de factos individualizados. (ver  Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, págs. 126 e seguintes.)

Ora, a recorrente faz essencialmente considerações gerais.

O que falta saber é o que concretamente pretende a recorrente que seja dado como provado.

A recorrente não faz a indicação dos factos alegados que tem por incorrectamente não julgados ou mal julgados.

No corpo das alegações do recurso e nas suas conclusões, a recorrente não se refere em concreto aos pontos de facto elencados na sentença, de forma individualizada, de modo a concretizar a sua discordância e a concreta decisão que, no seu entender, devia ser proferida.

E tudo isto obstaculiza a que a Relação se pronuncie, de forma integrada e segura, sobre os concretos factos dados como provados e não provados na sentença em crise.

De qualquer maneira, considerando os factos provados, aquilo que tinha sido alegado na petição e a análise jurídica infra apresentada, esta reapreciação mostra-se também desnecessária.

Pelo exposto, nos termos do art.640º, nº1, a) a c), do Código de Processo Civil, rejeita-se o recurso no que à impugnação da matéria de facto respeita.


*

           

Foram considerados provados os seguintes factos:

1)-A Autora é dona e legítima portadora dos seguintes cheques, sacados de E (…) Lda., sobre a conta o n.º (...), do F (…):

- cheque n.º 38223371, emitido em Mondim de Basto, em 20.05.2009, no

montante de € 4.655,37;

- cheque n.º 38223372, emitido em Mondim de Basto, em 20.06.2009, no

montante de € 4.655,37;

-cheque n.º 38223373, emitido em Mondim de Basto, em 20.07.2009, no

montante de € 4.655,37;

- cheque n.º 38223374, emitido em Mondim de Basto, em 20.08.2009, no

montante de € 4.655,37;

- cheque n.º 38223375, emitido em Mondim de Basto, em 20.09.2009, no

montante de € 4.655,37;

- cheque n.º 38223389, emitido em Mondim de Basto, em 20.10.2009, no

montante de € 4.171,77;

- cheque n.º 38223390, emitido em Mondim de Basto, em 20.11.2009, no

montante de € 4.000,00;

- cheque n.º 38223391, emitido em Mondim de Basto, em 20.12.2009, no

montante de € 4.000,00.

2) Apresentados a pagamento dentro dos 8 dias seguintes à respectiva data de emissão, tais cheques foram devolvidos na compensação em 21.05.2009, 23.06.2009, 21.07.2009, 21.08.2009, 22.09.2009, 22.10.2009, 24.11.2009, 23.12.2009, com as seguintes indicações:

- cheque n.º 38223371, com a indicação Falta/Vício;

- cheque n.º 38223372, com a indicação F/Vício;

- cheque n.º 38223373, com a indicação f/vício;

- cheque n.º 38223374, com a indicação f/vício;

- cheque n.º 38223375, com a indicação Falta/Vício;

- cheque n.º 38223389, com a indicação Cheq. vers. vício na formação da

vontade;

- cheque n.º 38223390, com a indicação Cheq. vers. vício na formação da

vontade;

- cheque n.º 38223391, com a indicação Cheq. vers. vício na formação da

vontade.

3) Os cheques referidos em 1) estavam todos passados à ordem da Autora, sem qualquer rasura;

4)Tendo os mesmos sido preenchidos pela mesma pessoa e com a mesma caneta;

5) E entregues à Autora pela sacadora para pagamento de uma dívida;

6) Contraída pela sociedade A (…),S.A.

7) Sendo que a gerente da sacadora dos cheques é esposa do gerente da

sociedade A (…), S.A.

8) Bem sabendo a sacadora dos cheques o fim a que os mesmos se destinavam;

9) A R. acatou a ordem dada pela sacadora dos cheques, sem averiguar o que quer que fosse junta da A e de bancos intermediários.

10) A Autora é considerada uma sociedade séria e prestigiada no meio comercial onde desenvolve a sua atividade.

11) A autora até à presente data não recebeu a importância titulada pelos

cheques descritos em 1).


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            Análise da ilicitude e da culpa no comportamento do Banco.

A responsabilidade acionada só pode ser configurada como extra contratual.

Como é sabido, são pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos a ação, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre este e aquela ação.

Também é pacífico que agir com culpa significa atuar em termos de se merecer a reprovação ou censura do direito.

A conduta do lesante é reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo, modo esse pelo qual agiria um bom pai de família nas mesmas circunstâncias – art.487º, nº 2, do Código Civil.

A questão de saber se um Banco, ao recusar o pagamento de um cheque, no período da respectiva apresentação a pagamento, com base na revogação pelo sacador, incorre ou não em responsabilidade civil extra contratual, foi objecto do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº4/2008, proferido na revista alargada nº 542/06 - 1.ª Secção. (Também é pertinente referir aqui o A.U.J. nº9/2008, de 25.9.2008, no processo 07P3394, ao coligir novos argumentos e considerações sobre a realidade que nos preocupa. Ambos estão disponíveis em www.dgsi.pt.)

O primeiro acórdão distingue, para o efeito, duas situações: a revogação pura e simples, sem qualquer justificação e as situações de “revogação por justa causa”, havendo nestas uma proibição legítima de pagamento do cheque.

Em situações como o furto do cheque, o seu extravio ou falsificação ou outra que afecte a vontade da emissão ou entrega do cheque ao portador, é justificada ou legítima a proibição do seu pagamento, transmitida ao banco sacado pelo sacador, que aquele tem de cumprir, mesmo que a ordem de proibição surja durante o período de pagamento.

Pelo contrário, como expresso no acórdão uniformizador, quando a revogação ( e só esta, porquanto as outras situações não são casos de verdadeira revogação) ocorra no período de pagamento, a conduta do sacado é ilícita.

No caso, o fundamento da recusa aposta no verso dos cheques apresentados a pagamento é a “falta/vício na formação da vontade”.

A sacadora comunicou por escrito ao Banco que revogava os cheques emitidos a favor da Autora, pelo motivo de “falta ou vício na formação da vontade”.

Esta comunicação não foi complementada com qualquer outra explicação concreta.

Como na revogação (proibição pura e simples, sem justificação), a sacadora não declara a situação concreta que integrará aquela “falta ou vício na formação da vontade”.

Esta declaração apresenta-se apenas vaga e genérica.

Ela não é concreta de modo a conferir plausibilidade à causa invocada para a revogação dos cheques.

Neste contexto, no momento em que o Banco confere a declaração do sacador, entendemos que lhe era possível e exigível pedir outros esclarecimentos sobre a referida e genérica “falta ou vício na formação da vontade”.

Esta exigência de esclarecimentos não é necessariamente uma certificação do motivo ou uma exigência de elementos de prova para recusar o pagamento. Ela é apenas uma exigência de concretização factual do motivo que o revele plausível. (Sobre as exigências que recaiem sobre o sacado no controle das declarações dos sacadores, ver os acórdãos do STJ, de 30.5.2013 (proc.472/10), com voto de vencido, e desta Relação, de 16.03.2010 (proc.339/08) e de 21.3.2013 (proc.669/08), acessíveis em www.dgsi.pt.)

O Banco sacado não só não desconhece que muitas das declarações dos sacadores não corresponderão à verdade (mas de controle difícil), como conhece que algumas delas nenhum facto concreto as sustenta (e, neste caso, o controle é possível), especialmente quando a conta sacada não tiver provisão, com vista a evitar a devolução com este motivo.

Neste particular, ao contrário da decisão recorrida, entendemos esta conduta do Banco como ilícita e culposa. O facto é que o Banco se bastou, mal, com uma invocação genérica do vício, não exigindo a indicação do facto concreto ocorrido que revelasse plausível o vício.

Em conclusão, o caso configura uma atuação ilícita e negligente do Banco.


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A análise do dano provocado por este comportamento. Ónus de alegação e prova.

            Ao nível do dano e nexo de causalidade entre ele e o facto, agora de acordo com a decisão recorrida, entendemos que a alegação apresentada pela Autora é insuficiente.

Quanto aos danos, a Autora alegou:

“26.º Com a conduta culposa que vem de se descrever o sacado causou graves prejuízos à Autora,

“27.º Que permanece desapossada do montante titulado pelos cheques supra descritos - 35.448,62_ (trinta e cinco mil quatrocentos e quarenta e oito euros e sessenta e dois cêntimos).

A alegação é conclusiva e não estabelece um adequado nexo de causalidade entre a conduta e o montante titulado pelos cheques.

Já no seu voto de vencido no A.U.J. nº4/2008, Salvador da Costa alertava para a circunstância de o cheque não haver sido pago não significar necessariamente a existência de algum prejuízo para o respectivo portador, porque ele continua titular do direito substantivo derivado da relação jurídica subjacente. A entrega do cheque traduz-se, em regra, numa datio pro solvendo (art.840º do Código Civil).

O cálculo do prejuízo na esfera jurídica da Autora não podia, por isso, ser aferido por via da mera correspondência ao valor inscrito nos cheques.

Esta perspectiva é correta, acrescentando alguns que a responsabilidade do Banco restringir-se-á, em princípio, aos danos resultantes do não pagamento desses cheques nas datas de apresentação, tais como despesas, lucros cessantes ou eventuais danos não patrimoniais. (Custódio Montes, no seu voto de vencido, naquele A.U.J.; ver acórdãos da Relação do Porto de 17.09.2012 e de 31.01.2012, no sítio da dgsi.)

Noutra perspectiva jurispudencial, também correta, aqueles que alertam para a necessidade de caber ao pretenso lesado alegar e provar que, caso o Banco não tivesse aceitado a revogação do cheque, o mesmo poderia vir a ser descontado em virtude da conta sacada ter fundos suficientes que permitissem o  pagamento: não o fazendo, a ação deve ser julgada improcedente. (acórdãos do STJ de 14.01.2014 e de 21.03.2013, ainda naquele sítio.)

Ora, nesta perspectiva, não foi alegado pela Autora a existência ou não de provisão na conta sacada; a Autora nada alega quanto à conta sacada.

Considerando a outra perspectiva, a Autora também nada alega quanto ao desenvolvimento da relação jurídica subjacente à passagem dos cheques.

Antes de se conferir o ónus de prova de um facto, existe um ónus de alegação desse facto, sendo o dano (e o respectivo nexo de causalidade) facto essencial constitutivo do direito à indemnização invocado (art.5º, nº1, do Código de Processo Civil).

Sendo assim, a definição do prejuízo onerava claramente a Autora.

Faltando este pressuposto da responsabilidade civil acionada, o pedido condenatório do Banco deve ser julgado improcedente.


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Necessidade de ampliação da matéria de facto ou consideração da prova feita documentalmente no decorrer da audiência de julgamento.

Dispõe o artigo 662.º do Código de Processo Civil (Modificabilidade da decisão de facto):

1 — A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

2 — A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:

a) (…);

b) (…);

c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;

Entende a Recorrente que o Tribunal recorrido não analisou toda a prova carreada para o processo (caso dos extratos bancários), como o deveria ter feito, devendo ter dado como assente que se não fosse a revogação e devolução ilícita dos cheques apresentados a pagamento no prazo legal, pelo menos os cheques 38223372, 38223373 e 38223389 poderiam ser descontados pelo banco sacado, porque existia provisão suficiente imediata ou ainda, em relação a todos os cheques, nos oito dia seguintes, fazendo-se prova efetiva do dano.

Ora, como já decorre do que afirmamos supra, antes da consideração da prova está a consideração da alegação dos factos.

O tribunal recorrido não podia retirar ilações dos documentos relativas a factos não alegados.

Quando, no decorrer do julgamento, a Autora se dá conta da potencial exigência daquela prova, ela omitiu a alegação dos factos pertinentes, a concretizar em momentos processuais já ultrapassados.

Assim, por falta de alegação dos factos, não pode agora a Relação ponderar a prova desses factos, por qualquer uma das vias referidas na norma.


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Decisão.

Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas pela Autora.

Coimbra, 2015-2-10


 (Fernando de Jesus Fonseca Monteiro (Relator)

 (Maria Inês Carvalho Brasil de Moura)

 (Luís Filipe Dias Cravo)