Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
961/17.0PBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRIZIDA MARTINS
Descritores: AMEAÇA
ADEQUAÇÃO
ANÚNCIO DE MAL FUTURO
Data do Acordão: 06/05/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (J I CRIMINAL – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.153.º DO CP
Sumário: I – O bem jurídico protegido pelo crime de ameaça é a liberdade de decisão e de acção.

II - O normativo legal em causa assume-se actualmente sob a veste de um crime de perigo e já não, como ocorria anteriormente à Revisão de 1995, como um crime de dano.

III - A ameaça adequada é aquela que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado, tendo em conta as suas características pessoais.

IV - A descrição objectiva invocada pela recorrente no RAI, segundo a qual o arguido afirmou que “lhe ia fazer a vida negra”; “iria fazer um escabeche e arruinar-lhe a vida”, não consubstancia o anúncio de um mal futuro para a pessoa da ofendida.

Decisão Texto Integral:




Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.


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I. Relatório.

1.1. Junto da 2.ª Secção do Departamento de Investigação e Acção Penal de Viseu, correram termos uns autos de inquérito crime tendentes a averiguar da eventual verificação de diversos ilícitos, sendo também distintos os seus agentes.

No momento processual azado, e ao que ora releva com interesse para o presente recurso, o Ministério Público proferiu despacho ditando o arquivamento respectivo na parte em que se indagou da eventual emergência de um crime de ameaça p.p.p. 153.º do Código Penal, sendo seu agente o arguido e vítima a assistente , ambos entretanto já mais identificados [cfr. fls. 189/193].

No intuito de obter a pronúncia deste arguido, a também mencionada assistente requereu a abertura da fase facultativa da instrução, apresentando para o efeito o libelo acusatório que é fls. 274/276.

Tramitada a fase facultativa instaurada, a M.ma JIC prolatou a decisão instrutória que é fls. 319 e segs., por cujo intermédio decidiu, no que concerne, “Não pronunciar o arguido … pelos factos e pelo crime de ameaças, p.p.p. artigo 153.º do CP, que constam do RAI da assistente.” [sic fls. 333]

1.2. Mostrando-se agora irresignada com o teor da decisão instrutória, e visando obter a pronúncia denegada, recorre a assistente para este Tribunal da Relação, sendo que da motivação com que fundamentou tal dissídio extraiu as seguintes conclusões, que se transcrevem [fls. 350/1]:

«1- O Tribunal a quo decidiu não pronunciar o arguido … pela prática do crime de ameaça, p.p. 153.º do Código Penal, entendendo que as expressões “Que lhe ia fazer a vida negra” e “Que na inauguração dos “ ... ” iria fazer um escabeche e arruinar-lhe a vida”, proferidas no dia 4 de julho de 2014, dirigidas, publicamente, à recorrente não tinham a intenção de provocar inquietação e perturbação;

2 - Mais concluiu que não vislumbrava qual o crime com que o arguido estava a ameaçar a recorrente;

3 - Com esta interpretação jurídica, o Tribunal a quo errou;

4 - Errou, em primeiro lugar, porque as expressões geraram medo e prejudicaram a liberdade de determinação da recorrente, que receou, justificadamente, que o arguido quisesse e pudesse arruinar a sua reputação, naquela data, suportando o medo inerente a essa conduta anunciada;

5 - As expressões reproduzidas em 1. tiveram o intuito de atemorizar e coarctar a liberdade de actuação da recorrente, através de uma intimidação futura, determinada, que, mediante um mal importante, a constrangeu a suportar essa ameaça.

6 - Assim sendo, estão preenchidos os elementos objectivos do crime de ameaça.

7 - Quanto ao tipo subjectivo de crime de ameaça, exige-se que a actuação do arguido tenha sido perpetrada com dolo (artigo 14.º do C. Penal), em qualquer uma das suas modalidades.

8 - O arguido … demonstrou um animus de lesar a recorrente na sua liberdade pessoal no evento da inauguração, através da indução de que lhe provocaria embaraço na inauguração dos “ ... ”, concretizando, publicamente, a sua intenção.

9 - Mantendo-a suspensa acerca da forma como iria arruinar a sua vida, causando-lhe medo e inquietação que abalaram, de forma grave, a sua estabilidade psicossomática.

10 - Por último, no âmbito estrito da instrução, para que exista pronúncia apenas é necessário que existam indícios suficientes da prática do crime.

11 - Por tudo o exposto, errou, na sua interpretação jurídica, o Tribunal a quo ao não pronunciar o arguido … pelos factos e pelo crime de ameaça, p.p. artigo 153.º do C. Penal.

12 - Com esta decisão, o Tribunal a quo violou as normas constantes dos artigos 153.º do C. Penal, assim como o artigo 308.º n.º 1 do CPP.»

1.3. Proferido despacho admitindo o recurso, bem como fixando o seu regime de subida e efeito [fls. 372], seguiram-se respostas dos sujeitos processuais visados com essa interposição, sufragando ambos o seu improvimento. Assim:

Do Ministério Público que em síntese conclusiva rematou com a seguinte ordem de ideias [fls. 381]:

«1 – No inquérito instaurado, com os elementos então constantes dos autos[1] foram reunidos indícios entendidos como suficientes para deduzir acusação contra o arguido … pela prática de um crime de ameaça.

2 – As diligências levadas a efeito em sede de instrução também não trouxeram aos autos novos elementos que infirmassem as conclusões do inquérito.

2 – Como consequência concluiu a Sr.ª Juíza a quo ser mais possível a absolvição do arguido em sede de julgamento do que a sua condenação.

4 – Por tal razão, foi proferido despacho de não pronúncia do arguido, como se impunha.»

Bem como do arguido … [fls. 382//3] que, coligindo alguma jurisprudência, sufraga não assumirem as expressões por si proferidas idoneidade para o preenchimento do tipo de ilícito apontado.

1.4. Observadas as formalidades devidas, remeteram-se os autos para este Tribunal da Relação, onde, aquando do momento previsto pelo art.º 416.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer conducente também ao improvimento do recurso interposto.

No âmbito do subsequente art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, a recorrente/assistente não apresentou qualquer resposta a tal parecer.

Aquando do exame preliminar dos autos, porque se não descortinou a emergência de fundamento que obstasse ao prosseguimento do recurso, ordenou-se a recolha dos vistos devidos, o que sucedeu, e sua submissão a conferência.

Dos trabalhos desta emerge a presente apreciação e decisão.


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II. Fundamentação.

2.1. O despacho recorrido[2] tem o teor que segue:

«I-Relatório:

Iniciaram-se os presentes autos com a denúncia apresentada...

Por seu turno no âmbito do NUIPC 963/17.7PBVIS … apresentou queixa contra …, … e …, por factos ocorridos no mesmo dia, onde refere que estava na esplanada do ... , quando o suspeito … lhe disse que lhe ia fazer a vida negra, que na inauguração dos ... , iria fazer um escabeche e arruinar-lhe a vida...

Findo o inquérito...

Por seu turno, a assistente/arguida … veio requerer a abertura de instrução, pretendendo a pronúncia do arguido …, pela prática de um crime de ameaças, p.p.p artigo 153 do CP.

Ora, este é objeto da instrução...limitando-se a mesma... e ao despacho de arquivamento do MP de fls. 189 a 193, ficando de fora da instrução a acusação particular de fls. 203 (contra a arguida … e o arguido …), pelos factos ocorridos no dia 4 de Julho...

Foi admitida a instrução.

Realizou-se o debate instrutório com observância do legal formalismo.


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O Tribunal é competente.

O processo é o próprio.

Não existem nulidades, exceções ou questões prévias que cumpra apreciar.

II- Fundamentação da Decisão:

De acordo com o art.º 286.º do CPP:

“1- A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

(...)”.

Por seu turno o art.º 308.º do mesmo diploma preceitua:

“1- Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.

Sobre indícios dispõe o art.º 283.º, n.º 2 do CPP que: “ Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

Da conjugação dos citados artigos conclui-se que para a pronúncia do arguido basta a existência de indícios suficientes da prática do crime. De facto, a instrução não visa, ao contrário do julgamento, a demonstração da realidade dos factos da causa, a certeza jurídica, mas apenas a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito.

Tal como refere o Figueiredo Dias a suficiência dos indícios que legitima a submissão de alguém a julgamento só ocorrerá quando: “seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição (in Direito Processual Penal, I, 1974, pág. 133).

A este respeito refere, ainda, Germano Marques da Silva: “o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido” (in do Processo Preliminar, p. 347 e 348).

É verdade que o entendimento sobre a noção de indícios suficientes não é unanime.

De facto, há quem defenda (como parece defender o Prof. Germano Marques da Silva, acabado de citar), que quando a possibilidade de futura condenação for mais provável do que a possibilidade de absolvição deve o arguido ser pronunciado, posição esta que acaba por ter o acolhimento de grande parte da jurisprudência, que defende ainda que a fase de instrução não pode nem deve ser confundida com a fase do julgamento.

Contudo, há ainda quem tenha uma posição mais exigente. Na verdade há os defensores do critério da possibilidade particularmente qualificada, em que os diversos elementos de prova, relacionados e conjugados, fazem nascer uma convicção de alta probabilidade de que o arguido, em julgamento, será condenado (como parece defender Jorge Noronha e Silveira em o conceito de indícios suficientes no processo penal português, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, 2004, pp. 155 e seguintes).

Tal tese vai igualmente buscar argumentos ao princípio in dúbio pro reo, que deve ser aplicado à valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia e ao art.º 32.º n.º 2, da Constituição».

Assim, o juízo sobre a suficiência dos indícios deverá passar pela probabilidade elevada que se traduz num juízo de prognose não só da condenação ser mais provável que a absolvição, mas mais, que em julgamento será ultrapassada a barreira do in dúbio pro reo na fase do julgamento.

Acontece que na prática, e em cada caso concreto, muitas vezes é difícil aferir se estamos apenas perante uma probabilidade superior de condenação, em relação à absolvição, ou se, fazendo o tal juízo de prognose, o principio in dúbio pro reo será ultrapassado em julgamento, sendo que muito facilmente as duas teses se confundem, parecendo não existirem duvidas que quando está ultrapassada, em fase de instrução, o principio in dúbio pro reo, a probabilidade de condenação do arguido em julgamento é muito superior à da sua absolvição, já sendo mais difícil aferir se não obstante a existência da probabilidade de condenação superior à da absolvição, foi ultrapassada a barreira do in dúbio pro reo.

Assim, impõe-se uma análise cuidada caso a caso, a qual obviamente não pode esquecer o artigo 308.º do CPP, nem os princípios constitucionalmente consagrados, inclusive o da presunção da inocência, devendo existir uma articulação entre os mesmos.

E aqui chegados não podemos deixar ainda de citar o Prof. Castanheira Neves (in Processo Criminal, Sumários, p. 39) que a este respeito escreveu: “na apreciação da suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final - só que a instrução (…) não mobiliza os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação”.


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Na situação concreta só são objeto desta instrução... o despacho de arquivamento referente ao crime de ameaças.

De acordo com o mencionado art.º 153.º, n.º 1 do CP:

“1- Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa

até 120 dias.”

São elementos objetivos deste tipo de crime os seguintes:

a) Ameaça de outra pessoa com a prática de um crime;

b) De forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação.

Além destes dois elementos, para que a conduta seja punida, torna-se, ainda, necessário que o agente tenha atuado com dolo, em qualquer das suas modalidades (art.º 14.º do CP) - elemento subjetivo do tipo.

Este crime é um crime de perigo. No entanto ao contrário do que sucedia no CP de 1982, este tipo, p.p.p. art.º 153.º, não é um crime de resultado. Na verdade, enquanto que à luz do CP de 1982 se exigia que o agente tivesse provocado no sujeito passivo medo, receio ou inquietação, exigia-se, portanto, o medo em concreto, agora basta que a ameaça seja adequada a provocar o medo, mesmo que em concreto o não tenha provocado (cfr. CP anotado, Simas Santos e Leal Henriques, 1996, vol. II, pág. 185).

...


*

Vejamos então:

...


*

Pretende a assistente a pronuncia do arguido … pela prática de um crime de ameaças.

De acordo com o RAI o arguido dirigindo-se à assistente proferiu a seguinte expressão:

“Vou-te fazer a vida negra”, “ Na inauguração dos ... , vou fazer um escabeche e arruinar-te a vida”.

Mais uma vez e sem questionar os indícios da ocorrência de tais factos, entendemos que tal factualidade, como já referiu o MP, não integra a prática do crime de ameaças.

O artigo 153.º estipula que:

“1- Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa

até 120 dias.”

É elemento objetivo do tipo em causa ameaça com a prática de um crime.

Ora, não vislumbramos, qual é o crime com que o arguido está a ameaçar a assistente ao proferir as expressões em causa, nem o mesmo é alegado no RAI.

Aliás, o que se extrai das expressões proferidas é que o arguido estava a ameaçar a assistente, com a prática de um escabeche de uma escandaleira no dia da inauguração, o que não configura qualquer ameaça da prática de um crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal ou a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor.

É certo que menciona-se no RAI que o arguido ameaçou a liberdade pessoal da assistente. Acontece que o que configura o crime do artigo 153.º é a ameaça da prática de um crime contra a liberdade pessoal e não a ameaça da liberdade pessoal.

Ora, não vislumbramos de que forma as expressões proferidas possa integrar a prática de qualquer um dos crimes do Capitulo IV, mais concretamente a ameaça da prática de um crime de coação, de rapto, escravidão, tráfico de pessoas, tomada de reféns ou de qualquer outro que integre este capitulo.

E não se compare a situação em causa com a expressão alegadamente proferida pela arguida/ assistente …, como o faz o RAI, e mencionada na acusação pública, em que, notoriamente a arguida … ameaça o ofendido com a prática de um crime de dano e de um crime de ofensa à integridade física.

Aliás, os próprios factos alegados no RAI são insuficientes no que tange aos elementos deste tipo de crime:

Pelo que, por referência ao RAI não se encontra suficientemente indiciado que:

- O arguido ao proferir as expressões que constam do RAI tenha tido a intenção concretizada de provocar inquietação e perturbação na assistente;

- Que tenha atuado de forma livre voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta seja proibida e punida por Lei.

III- Pelo exposto, decide-se:

...

- Não Pronunciar o arguido … pelos factos e pelo crime de ameaças, p.p.p. artigo 153.º do CP, que constam do RAI da assistente.

...».

2.2. Delimitação do objecto do recurso.

Dispõe o art.º 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Nesta senda, constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido através das conclusões formuladas na motivação, as quais delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar[3], sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso[4].

In casu, à míngua de questões desta natureza, atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência da recorrente com a decisão impugnada, a questão decidenda, unicamente de direito, consiste, por isso, em aquilatarmos se as expressões proferidas pelo arguido integram a prática indiciária de um crime de ameaça, p.p.p. art.º 153.º do Código Penal impondo-se, consequentemente, a sua pronúncia.

Os autos, mormente a decisão recorrida no seu intróito, contém elementos bastantes e pertinentes sobre o conceito de “indícios suficientes” que importa considerar para que o processo lograsse obter a sua ida a julgamento como reclamado pela recorrente, donde que nos abstenhamos de os reproduzir pois de mera redundância se trataria.

Por outro lado, não se mostra controvertida a materialidade cometida pelo arguido …, tal como, aliás, também atentou a M.ma JIC no despacho em crise e daí que se aceite como definitivamente assente.

Tudo conjugado, e tarefa simplificada pelo já afirmado nos autos, diga-se, apenas verificarmos se os mesmos assumem a virtualidade de seguirem então para o palco da audiência de julgamento.

2.3. No entender da recorrente, o arguido …, nas descritas condições de tempo e lugar, ao dirigir-se-lhe afirmando “que lhe ia fazer a vida negra”; “iria fazer um escabeche e arruinar-lhe a vida”, instituiu-se na autora material consumada de um crime de ameaça, p.p.p. art.º 153.º do Código Penal e daí que, contráriamente ao expendido pela decisão recorrida, deva ser pronunciado.

Dispõe este artigo, e reitera-se, que “Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.”[5]

O bem jurídico aqui protegido é a liberdade de decisão e de acção.

No seguimento do Professor Américo Taipa de Carvalho[6], “as ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ofendido, afectam, naturalmente, a paz individual que é condição de uma verdadeira liberdade.”

São elementos deste tipo legal de crime: a ameaça da prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor; que a ameaça seja adequada a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação da vítima; finalmente, o dolo.

A ameaça tem de representar: o anúncio de um mal, que tanto pode ser de natureza patrimonial como pessoal; esse mal tem de ser futuro, sendo porém indiferente que o agente refira ou não o prazo dentro do qual concretizará o mal; finalmente, torna-se indispensável que o mal futuro anunciado esteja na dependência da vontade do agente, indispensabilidade essa que deverá ser analisada tendo como ponto de partida a perspectiva do homem comum, atendendo igualmente aos especiais conhecimentos da pessoa ameaçada.

Em segundo lugar, é necessário que a ameaça seja “adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.”

Como referiu o Professor Jorge de Figueiredo Dias[7], “o que se exige, para preenchimento do tipo, é que a acção reúna certas circunstâncias, não sendo necessário que em concreto se chegue a provocar o medo ou a inquietação.”

Daí que o normativo legal em causa se assuma actualmente sob a veste de um crime de perigo e já não, como ocorria anteriormente à Revisão de 1995, como um crime de dano[8]; [9].

Hoje, já não se exige a ocorrência do dano, como efectiva perturbação da liberdade do ameaçado, mas também não basta a simples ameaça da prática do crime. Com efeito, exige-se a comprovação da adequação da ameaça, perante a situação concreta, para provocar medo ou inquietação, o que leva a concluir que o crime de ameaça, previsto e punido no artigo 153.º do Código Penal, é um crime de perigo.

“Assim, desde que a ameaça seja adequada a provocar o medo, mesmo que em concreto o não tenha provocado, verifica-se o preenchimento do tipo legal.”[10]

Seguindo novamente os ensinamentos do Professor Américo Taipa de Carvalho, “o critério para aferir da adequação da ameaça para provocar o medo ou inquietação é objectivo-individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do homem comum); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das «sub-capacidades» do ameaça). Assim, uma determinada ameaça pode, relativamente a um adulto normal, não ser adequada, mas já o ser quando o ameaçado é uma criança ou uma pessoa com perturbações psíquicas.”

À guisa de conclusão, a ameaça adequada é aquela que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado, tendo em conta as suas características pessoais.

Finalmente, e atentando agora no tipo subjectivo de ilícito, o crime de ameaça exige o dolo.

O dolo é uma entidade complexa portadora de sentidos diversos consoante a sua valoração é objecto da ilicitude ou da culpa: como forma de realização do tipo de ilícito, traduz-se no “conhecimento e vontade de realização daquele tipo de crime.”[11]; como forma de culpa, enquanto modo de formação da vontade que conduz ao facto, o dolo é portador do desvalor de uma atitude pessoal contrária ou indiferente ao dever-ser jurídico-penal.

Delimitados os contornos pelos quais se impunha ao Tribunal sindicado ajuizar da pronúncia do arguido, a conclusão assumida de que não concorriam tais pressupostos mostra-se inevitável e de manter.

A descrição objectiva invocada pela recorrente no RAI, segundo a qual o arguido afirmou que “lhe ia fazer a vida negra”; “iria fazer um escabeche e arruinar-lhe a vida”, não consubstancia o anúncio de um mal futuro para a pessoa da ofendida.

Desta descrição objectiva não é possível extrair a ilação de que o arguido incorreu no anúncio, e dirigido à pessoa da ofendida, da prática de crime contra a sua (dela) vida, integridade física, liberdade pessoal, liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, ainda da ofendida.

Só por si, o recurso a essa expressão não permite concluir tratar-se de um crime de ameaça tipificado pelo aludido artigo 153.º.

Por seu intermédio nada se concretiza, nem a característica genérica do discurso permite retirar com segurança uma qualquer ameaça concretizável.

A pretensão de integração no tipo claudica no primeiro pressuposto de integração tipológica: não há ameaça com acto ilícito criminal.

Resta inútil apurar da adequação ao surgimento do “medo ou inquietação” ou o prejuízo para a respectiva “liberdade de determinação”.

A vida em sociedade e as tensões interpessoais que necessariamente exige, nem sempre no patamar da linearidade, não permite todavia que o campo do direito penal a invada com carácter excessivo, sob a capa de uma tutela que apenas a sua ultima ratio pode justificar.

Como se exarou no Ac. do TRE citado na resposta do arguido/recorrido[12], “... a exclusão destes casos de “tensão” interpessoal são o preço de vida em sociedade, casos que não podem, todos, ser objecto de tutela penal, sob pena de se tornar inviável a vida societária ou esta se transferir para a sala de audiências.”

Termos em que, face aos fundamentos demais aduzidos, quer no despacho que determinou o arquivamento dos autos na parte em que se indagava da (eventual) verificação do ilícito mencionado, quer no despacho recorrido, por forma alguma inviabilizados pela recorrente, urge manter o decidido.


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III. Dispositivo.

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste TRC em negar provimento ao recurso interposto pela assistente e, em consequência, decidem manter o despacho recorrido.

Custas pela recorrente, fixando-se em três UCs a taxa de justiça devida (sem prejuízo de eventual concessão de apoio judiciário e/ou de legal isenção) – cfr. art.ºs 515.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 e Tabela III, do Regulamento das Custas Processuais.


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Coimbra, 5 de Junho de 2019                                                  

[Documento integralmente processado e revisto pelo 1.º signatário, bem como assinado electrónicamente por ambos os signatários – art.º 94.º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Penal]

 Brizida Martins (relator)

Orlando Gonçalves (adjunto)


[1] Certamente por lapso não se interpolou aqui a menção da expressão “não”.
[2] Naturalmente e quanto possível no que concerne com o objecto do presente recurso.
[3] Na doutrina, cfr. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113. Na jurisprudência, cfr. entre muitos, os Acórdãos do STJ de 25-06-1998, in BMJ 478, pág. 242; de 03-021999, in BMJ 484, pág. 271; de 28-04-1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193.
[4] Cfr. Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28-12-1995.
[5] Em parte das notas seguintes, atentaremos ao expendido no aresto do TRG, in processo n.º 944/12.7PBBRG.G1, acedido em www.dgsi.pt.
[6] In Comentário Conimbricense do Código Penal – parte especial, tomo I, pág. 342.
[7] No âmbito da Comissão de Revisão, in Código Penal – Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, 1993, pág. 500.
[8] Neste preciso sentido, a citada anotação do Professor Américo Taipa de Carvalho, in Comentário..., pág. 348, bem como os Senhores Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques, in Código Penal Anotado, volume II, 1996, pág. 185.
[9] Em igual sentido o Ac. do TRE, no recurso n.º 1595/04-1, de 11 de Janeiro de 2005, e cujo Relator António Pires Henriques da Graça, escreveu: “ Após a revisão do CP operada pelo DL n.º 48/95, de 15 de Março, para a verificação do crime de ameaça p. e p. pelo artº 153º não se torna necessário que o mal anunciado provoque no visado efectivo medo ou receio ou justificada inquietação, mas sim que seja causalmente idóneo a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação do visado.
[10] Cfr. os Senhores Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques, in ob. cit., pág. 185.
[11] Cfr. Professor Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal – Sumários das Lições do Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias à 2.ª turma do 2.º ano da Faculdade de Direito, pág. 187.
[12] Recurso 1/11.3GCSTR.E1, acedido em www.dgsi.pt.