Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
760/13.9TXPRT-L.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: PERDÃO DE PENA
PENA DE MULTA
REVOGAÇÃO
Data do Acordão: 06/02/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DE PENAS DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 2.º, N.º 7, DA LEI N.º 9/2020, DE 10-04
Sumário: O ordenamento jurídico (artigo 2.º, n.º 7, da Lei n.º 9/2020, de 10-04) não exige que a pena decorrente do crime determinante da revogação do perdão seja de prisão, podendo ser de multa.
Decisão Texto Integral:




Acordam, em conferência, na 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

C. veio interpor recurso do despacho proferido, em 16-12-2020, que revogou o perdão anteriormente concedido (ao abrigo da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril) e, em consequência, determinou o cumprimento do remanescente da pena perdoada.


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A razão da sua discordância encontra‑se expressa nas conclusões da motivação de recurso, onde refere que:

1) O Recorrente, encontra-se em liberdade na sequência da decisão de declarar perdoado o período do remanescente da pena que estava a cumprir no âmbito do processo 1237/13.8TABRG pela prática de crimes de roubo, ofensa à integridade física e consumo de produto estupefaciente.

2) Em Julho de 2020 o aqui Recorrente foi condenado por crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, n.º 1, do Decreto-Lei 2/98 de 3 de Janeiro, na pena de multa de 126 dias à taxa diária de € 6,00.

3) Face ao sucedido, e uma vez que foi cometido novo crime, foi notificado da revogação do perdão anteriormente concedido e em consequência determinado o cumprimento do remanescente da pena perdoada.

4) Com tal decisão, discorda vivamente o Recorrente, como infra se demonstra.

5) O Arguido foi colocado em liberdade, conforme já foi referido, no âmbito do perdão concedido pela Lei 9/2020, lei essa que se aplicou a quem estava recluído em Estabelecimento Prisional.

6) O espírito da lei em questão era o de criar condições de salubridade no meio prisional, criando espaço suficiente para permitir uma gestão sanitariamente adequada na prisão.

7) O objectivo primordial da lei supra citada mantém-se, logo, faz todo o sentido que se analise o caso concreto e se verifique se a conduta do Arguido é compatível com o risco da entrada em Estabelecimento Prisional.

8) No que toca ao processo que despoletou a revogação da pena, efectivamente o mesmo existiu e o Arguido confessou sem reservas que utilizou o carro sem ser portador do título de condução que o habilita para tal.

9) A possibilidade de ter que cumprir 2 anos de cadeia, coloca em crise o seu percurso e até mesmo a sua integridade enquanto cidadão, uma vez que, caso isso aconteça correrá o risco de não ter o apoio da sua nova família e acabaria por gerar efeitos nefastos na vida do mesmo.

10) Os dois anos de prisão nada mais seriam do que uma forma de “atirar” o Recorrente definitivamente para a marginalidade afastando-o do caminho do trabalho e da dignidade.

11) Foi a pena revogada, uma vez que o condenado cometeu novo crime doloso no ano subsequente à data da entrada em vigor da lei 9/2020, ora, com tal decisão e tendo em conta a avaliação do caso concreto o Recorrente não concorda.

12) Além do supra referido, em que verificamos que se mantém o perigo iminente de sobrelotação das cadeias portuguesas, estamos perante uma violação do princípio da proporcionalidade e adequação das penas protegidas pelo artigo 13º, n.º 1 e 18º, n.º 2, da CRP.

13) Deve a restrição da liberdade limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

14) É da opinião do Recorrente que, a aplicação de uma pena de multa não pode determinar a revogação do perdão da pena de prisão, por violação dos princípios já referidos.

15) Por outro lado, situações substancialmente diferentes, crimes e molduras penais completamente opostas exigem um regime diverso, a desigualdade de tratamento para diferentes situações é uma dimensão essencial do princípio da igualdade.

16) Resulta dos elementos dos autos e é claro pelas circunstâncias do caso que, estamos perante uma criminalidade heterogénea, tipos de crime diferentes em que o grau de ilicitude é distinto e como tal incomparável, parecendo-nos injusto que volte a entrar num Estabelecimento prisional, por ter sido condenado a uma pena de multa.

17) Importa que se faça a distinção entre um delinquente multiocasional que reitera uma conduta devido a uma causa meramente fortuita, acidental, casual e esporádica de alguém que pratica vários factos ilícitos e típicos sendo indiferente às condenações judiciais, o que não é, de todo, o caso do requerente.

18) Analogicamente, retira-se dos ensinamentos de Simas Santos e Leal Henriques que “a prática do segundo crime pode não indiciar desrespeito pela condenação anterior, a reiteração criminosa pode ficar a dever-se a causas meramente fortuitas ou exclusivamente exógenas. Em tal caso não deve haver lugar a agravação uma vez que, não pode afirmar-se uma maior culpa referida ao facto.”

19) Há uma necessidade extrema, para que não se cometa um erro fulcral, de efectuar um juízo de prognose póstuma de que o Arguido com a ameaça de pena de prisão, após ter estado em reclusão, se manterá afastado da senda criminal e interessado em manter o cumprimento das normas jurídicas por forma a afastar-se definitivamente da prática de qualquer ilícito criminal.

20) Presentemente, a actuação do Arguido não foi de insensibilidade para com o sistema de justiça, pois compareceu ao julgamento, denotando preocupação em relação à condenação, confessou os factos traduzindo-se numa colaboração directa com a administração da justiça, sendo completamente honesto com o relato dos factos.

21) Face ao exposto pugnamos pela revogação do despacho proferido.

Nestes termos e sempre com mui douto suprimento do Venerando Tribunal, deverá ser revogado o Despacho proferido pelo Tribunal de Execução de Penas de Coimbra, e, consequentemente, deve manter-se a aplicação do perdão da pena previsto na Lei 9/2020.


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Respondeu o Magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo defendendo a improcedência do recurso, por considerar que:

não se diga que a decisão é injusta ou desproporcionada.

Primeiro porque, na hora da sua libertação, o recorrente foi devidamente advertido, e estava consciente de que a prática de novo crime doloso, no ano subsequente, importaria a revogação do benefício que então lhe era concedido.

E depois porque, com a revogação, apenas se impõe o cumprimento de uma pena (ou do seu remanescente) imposta anteriormente em consequência de actividade criminosa, que o recorrente já tinha que cumprir, e que lhe havia sido perdoada não por qualquer mérito seu, mas por força de circunstâncias a que era totalmente alheio (a necessidade de fazer face à pandemia da doença COVID-19).

Assim, a decisão proferida está conforme a lei e não implica violação de qualquer princípio constitucional, designadamente os invocados pelo recorrente, pelo que deverá ser mantida.”.

Nesta instância, o Exmº Procurador da República emitiu parecer no mesmo sentido.

Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do CPP, não foi obtida resposta.

Os autos tiveram os vistos legais.


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II- FUNDAMENTAÇÃO

Consta do despacho recorrido (por transcrição):

C. encontrava-se em cumprimento de uma pena única de 10 anos de prisão resultante de cúmulo jurídico efectuado no Processo n.º 1237/13.8TABRG, pela prática de crimes de roubo, roubo tentado, roubo agravado, roubo qualificado, ofensa à integridade física e consumo de produtos estupefacientes.

Em 13/04/2020, foi proferida decisão a declarar perdoado o período remanescente da pena de prisão que o condenado C. então cumpria, sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequentes à data de entrada em vigor da Lei n.º 9/2020.

De tal decisão constava expressamente exarada a dita condição resolutiva que foi devidamente notificada ao condenado.

Por decisão proferida em 22/07/2020 no âmbito do Processo Sumário n.º 481/20.6PPPRT, transitada em julgado em 30/09/2020, foi o C. condenado na pena de cento e vinte dias de multa, à taxa diária de € 6,00, pela prática, em 8 de Julho de 2020, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º, n.º 1, do Dec-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro.

Preceitua o art. 2º, n.º 7, da Lei n.º 9/2020 que “O perdão a que se referem os n.ºs 1 e 2 é concedido (…) sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada.

Assim, face ao exposto e uma vez que o condenado cometeu novo crime doloso no ano subsequente à data da entrada em vigor de L 9/2020, declara-se revogado o perdão anteriormente concedido, determinando-se, em consequência, o cumprimento do remanescente da pena perdoada.

V- Decisão:

Por todo o exposto, em conformidade com as disposições legais supra referidas, decide-se revogar o perdão anteriormente concedido a C. e, em consequência, determina-se o cumprimento do remanescente da pena perdoada.

Custas do incidente pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC (art 8.º, nº5, sem prejuízo do art 4.º, nº2, al c), ambos do RCP).

Notifique o arguido, o Ministério Público e comunique ao respectivo Estabelecimento Prisional, à DGRS e ao processo de condenação.

Boletins à DSICCOC.

Após trânsito, ao Ministério Público.


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APRECIANDO

Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso e que estas limitam o seu objecto, a questão suscitada e a decidir consiste em saber se se verificam os pressupostos previstos no artigo 2º, n.º 7, da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, enquanto fundamento para a revogação do perdão anteriormente concedido ao ora recorrente, e que, em consequência, determinou o cumprimento do remanescente da pena perdoada.


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Pugnando pela revogação do despacho recorrido, alega o recorrente:

“O Arguido foi colocado em liberdade no âmbito do perdão concedido pela Lei 9/2020, lei essa que se aplicou a quem estava recluído em Estabelecimento Prisional.

O espírito da lei em questão era o de criar condições de salubridade no meio prisional, criando espaço suficiente para permitir uma gestão sanitariamente adequada na prisão.

Assim sendo, a atual situação de saúde do país e do mundo, bem como o condicionalismo específico dos estabelecimentos prisionais continuarão a justificar a adoção de especiais cautelas, e nesta fase com uma intensidade superior.

Foi o perdão revogado, uma vez que o condenado cometeu novo crime doloso no ano subsequente à data da entrada em vigor da lei 9/2020; (…) e mantendo-se o perigo iminente de sobrelotação das cadeias portuguesas, estamos perante uma violação do princípio da proporcionalidade e adequação das penas protegidas pelos artigos 13º, n.º 1 e 18º, nº 2, da CRP.

A aplicação de uma pena de multa não pode determinar a revogação do perdão da pena de prisão, por violação dos princípios já referidos.”.

Não assiste razão ao recorrente.

Vejamos,

A Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, criou um Regime excepcional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19.

E, uma das medidas estabelecidas pela Lei foi um perdão parcial de penas de prisão [art. 1º, n.º 1, al. a)].

Assim, dispõe o artigo 2º sob a epígrafe “Perdão”: (é nosso o sublinhado)

1- São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.

2- São também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos, e o recluso tiver cumprido, pelo menos, metade da pena.

7- O perdão a que se referem os n.ºs 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada.

Por sua vez, o n.º 6 do artigo 2º da Lei n.º 9/2020 elenca os crimes relativamente aos quais o condenado não pode ser beneficiário do perdão referido nos n.ºs 1 e 2.

Ora, sobre as razões excepcionais que determinaram a aprovação da Lei n.º 9/2020, estão as mesmas explicadas na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 23/XIV ([1]), resultando da mesma que foi propósito do legislador “minimizar o risco decorrente da concentração de pessoas no interior dos equipamentos prisionais”.

No caso vertente, como refere o despacho recorrido, o condenado encontrava-se em cumprimento da pena única de 10 anos de prisão (resultante de cúmulo jurídico efectuado no proc. n.º 1237/13.8TABRG) e, por despacho de 13-4-2020 foi-lhe perdoado o remanescente de tal pena, sob a condição resolutiva prevista no n.º 7 do artigo 2º da referida Lei, ou seja, de o condenado beneficiário do perdão não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada.

Acrescendo que, da decisão que declarou perdoado o remanescente da pena de prisão constava expressamente a dita condição resolutiva, a qual foi devidamente notificada ao condenado.

Aconteceu que, incumprindo  tal condição resolutiva,

Por decisão proferida, em 22-7-2020, no âmbito do Processo Sumário n.º 481/20.6PPPRT, transitada em julgado em 30/09/2020, foi o ora recorrente condenado na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, pela prática, em 8 de Julho de 2020, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal p. e p. pelo artigo 3º, n.º 1, do Dec-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro.

Ora, a condição resolutiva do perdão opera de forma obrigatória e automática, isto é, o perdão concedido é automaticamente revogado, por força da lei – ope legis – logo que se mostre verificada a condição resolutiva do artigo 2º, n.º 7, da mencionada Lei; pelo que, não pode o recorrente invocar razões relacionadas com a proporcionalidade ou a justiça da revogação do perdão.

Aliás, não haveria lugar ao cumprimento do remanescente da pena se não houvesse lugar à revogação do perdão e, para isso, apenas dependia do recorrente não preencher a condição resolutiva.

Por outro lado,

E, contrariamente ao que afirma o recorrente, a lei não exige que a pena que determina a revogação do perdão seja de prisão. É, pois, irrelevante a natureza da pena aplicada à nova infracção, mas sim, deve tratar-se de crime doloso e ser cometido no ano subsequente ao da concessão do perdão.

Neste sentido se pronunciou o TC no Acórdão n.º 298/2005, de 7 de Junho:

«(…) a perda de uma medida de clemência derivada da autoria, pelo arguido, de um crime doloso, praticado depois de publicada a lei que concedeu o perdão … não se mostra desproporcionada, mesmo que o segundo crime tenha sido, em concreto, punido com pena de multa. A liberdade de conformação do legislador, especialmente na concessão de medidas de clemência e na previsão das causas da sua revogação, não é obviamente arbitrária, sendo antes susceptível de controlo jurisdicional quanto ao respeito, designadamente, dos princípios da igualdade e da proporcionalidade. Porém, o seu uso, não se mostra, no presente caso, merecedor de censura constitucional, não sendo intoleravelmente desproporcionado ou desadequado aos fins das penas a previsão da revogação do perdão de pena de prisão como consequência da prática, pelo arguido, dentro de um lapso de tempo relativamente curto após a publicação da lei de clemência, de novo crime doloso, independentemente da natureza da pena aplicável a este segundo crime … para este efeito, o que é relevante é a circunstância de o recorrente ter cometido o segundo crime, de natureza dolosa, depois de ter sido publicada a lei que concedera perdão de pena de prisão condicionado à não prática de crime doloso nos três anos subsequentes à data da sua entrada em vigor».

Por conseguinte, como fundamentou o despacho recorrido, estando preenchidos os pressupostos para que deva ser declarado revogado o perdão de que o arguido beneficiou nos autos, uma vez que não observou a condição resolutiva a que o perdão aplicado se encontrava subordinado, nenhum reparo nos merece o despacho recorrido, não tendo sido violados quaisquer princípios constitucionais, designadamente os invocados pelo recorrente.


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III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Negar provimento ao recurso.

Custas a cargo do recorrente, fixando-se em 3 UC´s a taxa de justiça.


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Coimbra, 2 de Junho de 2021

Texto processado em computador e integralmente revisto pela relatora e assinado electronicamente - artigo 94º, n.º 2 do CPP

Elisa Sales (relatora)

Jorge Jacob (adjunto)


[1] - Veja-se Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 72, de 3-4-2020 pág. 80-84.