Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
150366/10.0YIPRT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO
REENVIO PREJUDICIAL
Data do Acordão: 05/03/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARA DE COMPETÊNCIA MISTA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 5º/1, ALS. A) E B) DA CONVENÇÃO DE LUGANO II (DE 2007).
Sumário: I – Os Tribunais portugueses são competentes, em razão da nacionalidade, para conhecer de um litígio relativo a um contrato de prestação de serviço inominado cujo cumprimento deva ter lugar em Portugal, celebrado entre uma empresa nacional e outra suíça.

II – Apenas quando ao juiz nacional surgem dúvidas na aplicação e interpretação de uma norma comunitária necessária para o julgamento da causa deve pedir ao T.J. das Comunidades que decida sobre essa questão, o que implica um reenvio automático do caso para o T.J..

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

            I- RELATÓRIO

            I.1- A...S.A.», com sede em Coimbra, apresentou em 3.5.2010 requerimento de injunção contra «B....,S.A.», com sede na Suíça, pedindo que a requerida seja notificada para pagar a quantia de 153.484,92 € acrescida de juros de mora, por fornecimento de bens ou serviços no âmbito de contrato entre ambas celebrado em 16.12.09, discriminados nas notas de débito que indica, e cujas importâncias aí tituladas a requerida não teria pago nas datas de vencimento nem posteriormente.

            Em oposição, a requerida invocou a excepção da incompetência internacional dos tribunais portugueses.

            Em despacho saneador de 24.11.10, julgou-se improcedente a arguida excepção.

            Inconformada, a ré apelou, formulando na sua alegação de recurso estas úteis conclusões:

[…]

I.2- Em contra-alegações, a requerente defende a manutenção do despacho recorrido.

            Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                           #                      #

            II - FUNDAMENTOS

            Como claramente decorre das transcritas conclusões, a questão a decidir consiste em saber se o tribunal de Coimbra é ou não competente, em razão da nacionalidade, para dirimir o presente conflito.

            Para ditar a incompetência desse tribunal, invocou-se o disposto nos arts.5º da Convenção Relativa à Competência Judiciária em Matéria Civil e Comercial, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República nº33/91, de 30.10, e 74º/1 do C.P.C. na redacção introduzida pela Lei nº14/06, de 26.4.

            Defende a Ré/apelante a aplicação ao caso da Convenção de Lugano de 2007 que entrou em vigor na União Europeia, em 1.1.2010; ao invés, a apelada contesta a aplicabilidade da dita Convenção, defendendo a competência dos tribunais portugueses à luz da Convenção de Lugano de 1988, introduzida no nosso ordenamento jurídico pela referida Resolução da A. República nº33/91, e ainda do disposto no art.74º/1, C.P.C..

            A aplicação no espaço das normas processuais rege-se pelo princípio da territorialidade, por força do qual a competência jurisdicional e a forma de processo são reguladas pelo direito vigente no Estado do foro.

            Neste plano de consideração, aos tribunais portugueses cabe aferir a sua própria competência internacional, bem como dos tribunais estrangeiros de que dimanem sentenças submetidas à sua revisão, segundo as regras de competência internacional directa (arts.61º, 65º, 65º-A e 99º do C.P.C.) e indirecta (art.1096º-c) do C.P.C.).

            Porém, o âmbito de aplicação de tais regras de competência é negativamente delimitado pelas convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas, que prevalecem sobre aquelas (art.8º/2 da Const. R.P.).[1]

             Conforme antes referido, a decisão em recurso estribou-se nas regras da Convenção de Lugano de 1988, ratificada por Portugal em 30.10.91, que assenta em princípios e regras fundamentalmente idênticas à da Convenção de Bruxelas assinada em 27.9.68, relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial.

            Na perspectiva da recorrente, a situação em apreço reclama a aplicação das normas estabelecidas na Convenção de Lugano assinada a 30.10.07.

            Vejamos se lhe assiste razão nesta questão prévia.

            A nova Convenção de Lugano substitui a anterior de 1988, com o mesmo objecto e alinhada com princípios estabelecidos no Regulamento (CE) nº44/2001 do Conselho, de 22.12.00, instrumento aplicável entre os Estados-Membros da União Europeia em matéria de competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial. Pretendeu-se também com essa aproximação alcançar um nível uniforme de circulação de decisões em matéria civil e comercial entre os Estados-Membros e a Suíça, a Noruega e a Islândia, países que são Parte Contratante na dita Convenção, também apelidada de Convenção “Lugano II”, que entrou em vigor a 1.Janeiro.2010.

            As Convenções, bem como os Tratados, Actos, Pactos, Protocolos, são acordos contratuais entre Estados, cujo processo de formação compreende a fase da assinatura e a da ratificação pelos chefes de Estado respectivos ou por quem suas vezes faça. A ratificação justifica-se a fim de haver uma oportunidade para a apreciação global, já que os interesses regulados são frequentemente complexos e importantes. Regra geral, é o próprio tratado ou convenção que dispõe ou de qualquer modo deixa transparecer se a sua força obrigatória fica dependente de ratificação ou se, pelo contrário, bastará a assinatura. A assinatura, seguida ou não de ratificação conforme os casos, tem sido tradicionalmente o processo pelo qual os Estados exprimem a sua vontade de exprimem a sua vontade de se considerarem vinculados por um tratado.[2]  

            Descendo ao caso dos autos, estamos perante um litígio privado internacional entre duas sociedades comerciais, a A. com sede em Portugal, e a Ré, sedeada na Suíça. Ou seja, entre um país membro da União Europeia e um outro (Suíça) não membro da U.E. mas Estado Parte na Convenção.

            Como se disse, a Convenção entrou em vigor em 1.1.10, é aplicável entre os Estados-Membros da União Europeia, e foi ratificada pelo Conselho Federal Suíço em 31.3.10.[3]

            A ratificação de tratado (ou convenção) tem a virtualidade de o incorporar na ordem interna. De harmonia com o art.69º/2 da Convenção em referência, esta será submetida a ratificação dos Estados signatários.

            Conforme atrás salientado, pela ratificação os Estados exprimem a sua vontade de se considerarem vinculados por um tratado.

            Neste quadro, naquela data de 31.3.10 o estado suíço vinculou-se pela convenção, cujos efeitos jurídicos na ordem interna começaram então a produzir-se.

            Em suma, afastada a aplicação da convenção de Bruxelas de 1968 face ao disposto no art.65º da convenção de Lugano II e ainda ao facto de a Suíça não ser Estado-Membro da União Europeia, atender-se-á a esta última convenção, que substituiu a convenção de Lugano de 1988 (art.69º/6), e que já estava em vigor quando, em 3.5.10, foi entregue o requerimento de injunção.

             Concluindo-se pela aplicabilidade das regras ínsitas da dita convenção, resta então determinar qual o tribunal internacionalmente competente para dirimir o conflito privado entre as partes, as quais não convencionaram validamente um pacto atributivo de jurisdição.

            Como é sabido, a competência do tribunal é apreciada em função dos termos em que a acção é proposta, determinando-se pela forma como o autor construiu o pedido e os respectivos fundamentos, independentemente da apreciação do seu acerto substancial.

            A obrigação relevante para o estabelecimento da competência é a que “serve de base à acção judicial”.[4]

            Face aos fundamentos do requerimento injuntivo, extrai-se que os direitos que a requerente, aqui apelante, pretende fazer valer, decorrem de um contrato firmado com a requerida em 12/09, e que tem como suporte um acordo comercial celebrado entre elas em Novembro de 2006, apodado de “Fornecimento de hardware de telemetria – concurso Butagaz Outubro de 2006” (doc. fls.56-58).

            Pela leitura dos pontos 1 e 2 desse documento, retira-se que a ré encomendou à A. o fabrico de equipamento diverso com materiais especificados, nas quantidades, preços, condições de pagamento e entregas aí mencionados.

            No requerimento de injunção alega a requerente que prestou à requerida os serviços constantes das notas de débito que ela aceitou, mas que não pagou.

            Donde a conclusão de que se está perante um contrato de prestação de serviço inominado ou atípico, regulado pelas normas do mandato. A transferência do equipamento/material encomendado dá-se só no momento da entrega da obra, e não por efeito do contrato, como aconteceria se se tratasse duma compra e venda.

            Em regra, é competente o tribunal do domicílio do réu.

Com efeito, o art.2º/1 da convenção determina que “sem prejuízo do disposto na presente convenção, as pessoas domiciliadas no território de um Estado vinculado pela presente convenção devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado”.

            E o art.3º/1 estabelece que “as pessoas domiciliadas no território de um Estado vinculado pela presente convenção só podem ser demandadas perante os tribunais de outro Estado vinculado pela presente convenção por força das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente título”.

            Na secção 2 estabelecem-se os critérios especiais de competência legal.

            Assim, em matéria contratual estabelece-se no art.5º/1-a) que uma pessoa domiciliada no território de um Estado vinculado pela convenção, pode ser demandada perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão.

E na al.b) determina-se que para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário (que no caso em exame não existe), o lugar de cumprimento da obrigação em questão será: - no caso de prestação de serviços, o lugar num Estado vinculado pela presente convenção onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados.

Pelos termos do dito acordo comercial firmado entre as partes, e que serve de base à acção, à A. incumbia a realização, em benefício da ré, de uma actividade – fabrico/fornecimento de equipamento informático (hardware). Assim, e tal como antes se disse, tal acordo é de prestação de serviços.

Logo, a situação retratada cai no âmbito da al.b)-2ª parte, do nº1 do art.5º da convenção, sendo irrelevante o lugar de cumprimento da obrigação de pagamento do preço dos serviços.

Segue-se, então, que os tribunais portugueses são os competentes, em razão da nacionalidade, para conhecer da presente causa.

Daí que foi bem decidida na 1ª instância, a atribuição da competência internacional ao Tribunal de Coimbra, se bem que com fundamentos diferentes dos nossos.

                                               *

Nas suas alegações, a recorrente requereu, ao abrigo do art.267º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, para interpretação do art.69º da Convenção de Lugano II (2007).

As decisões prejudiciais são colocadas ao Tribunal de Justiça pelos juízes nacionais, quando está em causa a interpretação do Tratado, a validade e a interpretação dos actos das instituições da Comunidade e do BCE, e a interpretação dos estatutos dos organismos criados por um acto do Conselho, quando estes estatutos o prevejam.

Assim, quando ao juiz nacional surgem dúvidas na aplicação e interpretação de uma norma comunitária necessária para o julgamento da causa, pede ao T.J. que decida sobre essa questão, o que implica um reenvio automático do caso para o T.J..

Ora, a questão levantada pela recorrente - interpretação do art.69º da Convenção, em ordem a estatuir o momento da entrada em vigor da Convenção num Estado que a ratifica: se a ratificação, depósito ou entrada em vigor nesse Estado - , não é de considerar como questão prejudicial de interpretação. Isto pela simples razão de que não surgiram dúvidas sobre a interpretação a dar a essa norma.

Com efeito, como questão prévia para efeito decisório, entendemos, interpretando o nº2 do art.69º, que bastava a ratificação pelo Estado signatário (aqui a Suíça) para a Convenção entrar em vigor na ordem interna desse Estado. E assim, indo de encontro ao entendimento perfilhado pela apelante, convocou-se a dita Convenção de Lugano de 2007 – o que não foi feito na decisão em recurso – aplicando-se ao caso em análise as normas que aí regem a competência dos tribunais (arts.2º e 5º).

Não há, pois, motivos para o reenvio prejudicial.

Dito isto, improcedem as conclusões da apelação.

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III - DECISÃO

Acorda-se, pelo exposto, em julgar improcedente a apelação e o pretendido reenvio prejudicial, confirmando-se a decisão apelada pelas razões acima aludidas.

Custas pela apelante.


Regina Rosa (Relatora)
Artur Dias
Jaime Carlos Ferreira


[1]   Cfr. Ac.R.C. de 25.3.03 por nós relatado (CJ II/03-32)
[2]   Cfr. James Leslie Brierly, «Direito Internacional», 4ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian, pág.323-330
[3]   Como bem assinala a recorrente, nos termos dos tratados comunitários, é da competência exclusiva da Comunidade Europeia a celebração da nova Convenção de Lugano. Conforme resulta do art.69º/1 da Convenção, a força obrigatória da mesma quanto aos Estados-Membros fica apenas dependente da assinatura da Comunidade Europeia. No tocante aos Estados signatários, fica dependente de ratificação (nº2 do art.69º). O mesmo decorre do disposto no art.1º/3 da referida convenção.
[4]  Cfr.Luís Lima Pinheiro, «Direito Internacional Privado», Vol.III, pág.82