Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
605/09.4T2ILH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: RECURSO
CONCEITO JURÍDICO
Data do Acordão: 03/27/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CBV ILHAVO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: 1333.º Nº 1 DO CC
Sumário: Os recursos são um instrumento processual para reapreciar questões concretas, de facto ou de direito, que se consideram mal decididas e não para conhecer questões novas, não apreciadas e discutidas no tribunal a quo, sem prejuízo das que são de conhecimento oficioso.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

A... e mulher B..., instauraram, no Juízo de Média e Pequena Instância Cível de Ílhavo, da Comarca do Baixo Vouga, a presente acção declarativa, com processo sumário, contra C..., pedindo que se declare "que os autores são donos e legítimos possuidores do prédio composto de terra de semeadura de sequeiro, com a área de 8.500 m2,sito no lugar dos ..., Rua ..., freguesia e concelho de Ílhavo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ílhavo sob o n.º x..., inscrito na matriz sob o artigo z..., do qual fazem parte integrante as benfeitorias consistentes na obra de construção da casa de habitação nele implantada, de rés do chão, com dois quartos, casa de banho e cozinha, inscrita na matriz urbana da freguesia de ... de Ílhavo sob o artigo y..." e que se condene os réus a "reconhecerem o mencionado direito dos autores e a fazerem-lhes a restituição ou entrega do citado bem."

Alegam, em síntese, que são donos do prédio composto de terra de semeadura de sequeiro, com a área de 8.500 m2, sito no lugar dos ..., Rua ..., freguesia e concelho de Ílhavo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ílhavo sob o nº x..., inscrito na matriz sob o artigo z..., tendo este prédio sido doado ao autor marido pelos seus pais mediante escritura pública de doação outorgada em 1989, e que sobre ele os réus construíram uma casa de habitação de rés-do-chão, a qual se encontra inscrita na matriz sob o artigo y..., construção essa que decorreu sem qualquer projecto aprovado pela Câmara Municipal de Ílhavo, que não tem condições de ser legalizada e que prejudica o aproveitamento do restante prédio em que foi edificada, não sendo viável a obtenção de licença de utilização para a mesma.

Afirmam ainda que desconhecem o montante das despesas relativas àquela construção e aceitam que ela aumentou o valor do imóvel, aumento esse que não conseguem quantificar.

Os réus não contestaram.

A Meritíssima Juíza proferiu sentença em que decidiu:

"Pelo exposto, julga-se provada e procedente a presente acção, e, em consequência, condenam-se os réus C ...e D... no pedido contra eles formulado, ou seja:

- a reconhecer que os autores são donos e legítimos possuidores do prédio composto de terra de semeadura de sequeiro, com a área de 8.500 m2, sito no lugar dos ..., Rua ..., freguesia e concelho de Ílhavo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ílhavo sob o nº x..., inscrito na matriz sob o artigo z..., do qual fazem parte integrante as benfeitorias consistentes na obra de construção da casa de habitação nele implantada, de rés-do-chão, com dois quartos, casa de banho e cozinha, inscrita na matriz urbana da freguesia de ... de Ílhavo sob o artigo y...; e

- a proceder à entrega do citado bem."

Inconformado com tal decisão, dela o réu interpôs recurso, que foi admitido como de apelação e com efeito suspensivo, findando a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

A) Os argumentos da sentença recorrida relativos à existência de benfeitorias e propriedade dos recorridos, reconhecendo estes como donos e legítimos proprietários do referido prédio com uma área de 8.500 m2, não colhem provimento, porque padecem de errada interpretação das normas jurídicas, motivo pelo qual se deve proceder à ponderação da sentença recorrida.

B) Os recorridos reclamam que as obras de construção constituem benfeitorias, mas na verdade, dever-se-ia ter considerado que in casu, estamos perante a figura jurídica da acessão imobiliária.

C) Sendo certo que, benfeitoria e acessão se distinguem na medida em que a primeira consiste num melhoramento feito por quem está ligado à coisa em consequência de uma relação ou vínculo jurídico – art. 216.º do CC - ,enquanto que a segunda é um fenómeno que vem do exterior, de um estranho, de uma pessoa que não tem contrato jurídico com ela – art. 1340.º do CC -, ou, que os actos de acessão distinguem-se das benfeitorias porque alteram a substância do objecto, porque inovam.

D) Ocorrendo a construção de edifício em terreno alheio, relevam os artigos 1325.º e 1340.º do Cód. Civil, segundo os quais dá-se a acessão quando uma coisa que é propriedade de alguém se une e incorpora outra coisa que lhe não pertencia e se uma pessoa, de boa fé, construir alguma coisa em terreno alheio e o valor dela trazido à totalidade do prédio for maior do que o valor que ele tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes da edificação.

E) E há boa fé no caso em apreço, conforme resulta do art. 4 e ss. da p.i.,

F) Visto que o recorrente e a esposa, na constância do matrimónio, construíram a habitação no prédio melhor identificado no artigo 1.º da p.i., que sabiam ser alheio, tendo construído a habitação, à vista dos proprietários, como se colhe também dos art. 4.º e ss. da p.i..

G) Ou seja, a edificação era do conhecimento dos recorridos, que nunca alegam o contrário na sua p.i..

H) E não existia por parte do recorrente e da Ré, qualquer ligação jurídica em relação ao prédio.

I) Acresce dizer que a incorporação efectuada trouxe, à totalidade da parcela um valor maior do que aquele que tinha antes, como aliás é confessado pelos requeridos no art. 11.º da p.i.

J) Tal construção, como decorre da leitura conjunta dos artigos 16.º, 17.º e 18.º da pi e do documento junto pelos requeridos sob o número 2, que aqui se dá por integralmente reproduzido, ocupa a área total de 208 m2,

K) E de harmonia com o disposto no art. 1340.º n.º 1 do Cód. Civil, temos que o dono da obra só poderá adquirir a propriedade do terreno se este em consequência das obras, tiver ficado valorizado em montante superior ao seu valor anterior, o que acontece no caso sub judice.

L) Ora, o prédio rústico original veio à posse dos requeridos por doação, no ano 1989 e a construção, que é mais recente, e trata-se de uma edificação levada a cabo numa parcela de terreno de 208 m2, parte do prédio original constituído por 8.500 m2, facto que não deveria ter sido ignorado, devendo-se ter concluído pela aplicação da acessão imobiliária em detrimento das benfeitorias, pois não pode comparar-se o valor monetário de uma parcela edificada de 208 m2 com o valor de 8.500 m2 de terra de semeadura de sequeiro.

M) Para além de que, referimo-nos apenas e só à parcela de 208 m2, parte residual daqueles 8.500 m2, circunstância reiterada pela existência de dois artigos matriciais autónomos.

N) O n.º 1 do citado art. 1340.º refere expressamente que o autor da incorporação pagará o valor que o prédio tinha antes das obras, tendo andado mal o Tribunal a quo, ao aplicar o instituto das benfeitorias ao invés da figura jurídica da acessão imobiliária.

O) Pretende pelo exposto o recorrente, que a sentença recorrida, laborada em erro de direito, seja revogada devendo antes ser decido que adquiriu o prédio dos recorridos, quanto à área ocupada pela construção, isto é, 208 m2, por acessão industrial imobiliária.

Os autores contra-alegaram sustentando que "dos factos apurados não constam aqueles que seriam adequados a configurar qualquer situação de acessão industrial imobiliária" e que "nenhum razão existe para que seja produzida qualquer modificação ou alteração da sentença, dada a sua boa fundamentação de facto e de direito".

Face ao disposto nos artigos 684.º n.º 3 e 685.º-A n.os 1 e 3, as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir consiste em saber se deve "ser decido que [o réu] adquiriu o prédio dos recorridos, quanto à área ocupada pela construção, isto é, 208 m2, por acessão industrial imobiliária."[1].


II

1.º


Relativamente aos factos provados, consta na sentença recorrida que:

"Por documentos e confissão (nos termos do art. 484º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, aplicável por força do art. 463º, nº 1 do mesmo diploma legal), consideram-se provados os factos alegados pelos autores na respectiva petição inicial, os quais aqui se dão por integralmente reproduzidos."


2.º

Como diz na suas alegações, como este recurso "pretende o recorrente, (…) que a sentença recorrida laborada em erro de direito, seja revogada devendo antes ser decido que adquiriu o prédio dos recorridos, quanto á área ocupada pela construção, isto é, 208 m2, por acessão industrial imobiliária." [2]

É, assim, claro que o réu tem em vista a revogação da sentença recorrida e que, na vez do que aí se decidiu, deve "ser decido que adquiriu o prédio dos recorridos, quanto á área ocupada pela construção, isto é, 208 m2, por acessão industrial imobiliária."

Regista-se que o réu (e a ré igualmente) não contestou, o que é sinónimo de que não deduziu excepção alguma, nem tão pouco formulou qualquer pedido reconvencional. É, portanto manifesto, que não colocou no tribunal a quo a questão relativa a essa sua pretensão de aquisição, por acessão industrial imobiliária, de uma parte do prédio dos autores, pelo que, aquele não pôde, naturalmente, pronunciar-se acerca dela.

Não obstante isso, o réu interpõe recurso com a finalidade de, por esta via, se declarar que "adquiriu o prédio dos recorridos, quanto á área ocupada pela construção, isto é, 208 m2, por acessão industrial imobiliária."

Neste circunstancialismo é, salvo melhor juízo, inquestionável que estamos perante uma questão nova.

Como é sabido, os recursos "destinam-se a permitir que um tribunal hierarquicamente superior proceda à reponderação da decisão recorrida"[3] e "não a conhecer de questões novas, salvo se estas forem de conhecimento oficioso e não estiverem já resolvidas por decisão transitada em julgado"[4]. Os recursos constituem, assim, um instrumento processual para reapreciar questões concretas, de facto ou de direito, que se consideram mal decididas e não para conhecer questões não apreciadas e discutidas no tribunal a quo[5], sem prejuízo das que são de conhecimento oficioso.

Consequentemente, não pode este tribunal conhecer da questão que o réu, em sede de recurso, lhe coloca.

De qualquer forma, parece oportuno lembrar que, no que se reporta à acessão industrial imobiliária, o n.º 1 do artigo 1333.º do Código Civil dispõe que "se alguém, de boa fé, unir ou confundir objecto seu com objecto alheio, de modo que a separação deles não seja possível ou, sendo-o, dela resulte prejuízo para alguma das partes, faz seu o objecto adjunto o dono daquele que for de maior valor, contanto que indemnize o dono do outro ou lhe entregue coisa equivalente."

Para este efeito há boa-fé, "quando o autor da união ou confusão ignorava que um dos objectos era alheio, ou se foi autorizada a incorporação pelo dono do terreno" ou quando sabendo "que o objecto era alheio e, ao mesmo tempo, estar convencido de que poderiam ser separados sem detrimento";[6] importa que se ignore "desculpavelmente o carácter alheio da coisa adjunta".[7]

E "aquele que for dono da coisa de maior valor tem direito a adquirir o todo".[8] Na verdade, "o critério básico para determinar qual dos proprietários fica dono da nova coisa é o do valor. Tem direito à acessão o proprietário da coisa unida ou misturada de maior valor".[9]

No caso dos autos o réu diz que há boa-fé "visto que o recorrente e a esposa, na constância do matrimónio, construíram a habitação no prédio melhor identificado no artigo 1.º da p.i., que sabiam ser alheio, tendo construído a habitação, à vista dos proprietários, como se colhe também dos art. 4.º e ss. da p.i.."[10]

Ora, no artigo 4.º da petição inicial diz-se que "nesse prédio, foi implantada uma modesta casa de habitação de rés-do-chão, inscrita na matriz sob o art.º n.º y...", constando do artigo 5.º que a mesma foi "mandada construir pelos ora Réus, na constância do seu casamento, entretanto já dissolvido por divórcio" e no artigo 6.º afirma-se que "a construção decorreu sem projectos que tivessem sido aprovados pela Câmara Municipal de Ílhavo e demais entidades competentes".

Assim, nada se encontra nos factos contidos nestes artigo da petição inicial que permita sustentar que o réu agiu de boa-fé, isto é que ignorava que construía num imóvel de terceiro ou que estava autorizado, pelo respectivo dono, a aí construir, e, tratando-se da construção de uma casa, é evidente a impossibilidade de a separar do terreno em que ela foi implantada. Aliás, o réu diz-nos na conclusão F que sabia que o terreno onde construiu era "alheio", pese embora não possa deixar de se sublinhar que este facto, trazido para o processo apenas nas alegações de recurso, não está entre os provados.

O réu afirma ainda que " a incorporação efectuada trouxe, à totalidade da parcela um valor maior do que aquele que tinha antes, como aliás é confessado pelos requeridos no art. 11.º da p.i.".[11]

Nesse artigo 11.º alegou-se que "ignoram os Autores quais tenhas sido as despesas com a obra a que se alude desconhecem também qual a medida da sua desvalorização motivada pelos factores negativos que comporta, porém não deixaram de trazer ao prédio dos Autores algum evidente aumento de valor, que, pelas razões acabadas de expor não conseguem agora quantificar."

Ao contrário do que é dito pelo réu, não está aqui uma confissão de que a coisa construída "trouxe, à totalidade da parcela um valor maior do que aquele que tinha"; em lado algum se alega qualquer valor, quer o do imóvel antes da construção, quer o que passou a ter depois desta se concluir.

E, como diz o réu, não pode mesmo "comparar-se o valor monetário de uma parcela edificada de 208 m2 com o valor de 8.500 m2 de terra de semeadura de sequeiro"[12], pela simples razão de que se desconhece ambos os valores, sendo certo que esta questão, como qualquer outra, não se decide por palpite ou por ser maior ou menor a probabilidade do facto ser verdadeiro.


III

Com fundamento no atrás exposto, julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelo réu.

                                                           António Beça Pereira (Relator)

                                                            Nunes Ribeiro

                                                            Hélder Almeida


[1] Cfr. conclusão O).
[2] Cfr. folha 218.
[3] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, pág. 23.
[4] Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª Edição, pág. 566.
[5] Neste sentido pode ainda ver-se Ac. STJ de 28-4-2010 no Proc. 2619/05.4TTLSB, Ac. STJ de 3-02-2011 no Proc. 29/04.0TBBRSD e Ac. STJ de 12-5-2011 no Proc. 886/2001.C2.S1, em www. gde.mj.pt, e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª Edição, pág. 153 a 158. Cfr. artigo 676.º n.º 1 do Código de Processo Civil.
[6] Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª Edição, pág. 151 e 152.
[7] José Alberto González, Código Civil Anotado, 2011, Vol. IV, pág. 170.
[8] José Alberto González, obra citada, pág. 170.
[9] José Alberto Vieira, Direitos Reais, 2008, pág. 692.
[10] Cfr. conclusão F.
[11] Cfr. conclusão I.
[12] Cfr. conclusão L.