Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
582/10.9TAGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RAMOS
Descritores: DIFAMAÇÃO
CAUSA DE JUSTIFICAÇÃO
Data do Acordão: 11/06/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA GUARDA – 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REENVIO
Legislação Nacional: ARTIGO 180º CP
Sumário: A causa de justificação prevista no n.º 2, do art.º 180º do Código Penal só é aplicável quando está em causa uma imputação de factos, estejam preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do crime de difamação e se verifiquem cumulativamente os requisitos das alíneas a) e b) que são cumulativas.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

Por sentença proferida nos autos supra identificados, decidiu o tribunal

a) ABSOLVER o arguido A... da prática, em autoria material e na forma consumada, de quatro crimes de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180°, n.º 1, 183°, n.º 1, al. a) e 184°, por referência ao artigo 132°, n.º 2, al. 1), todos do Cód. Penal.

b) ABSOLVER o demandado civil A... dos pedidos de indemnização civil contra si formulados pelos demandantes civis B...e C....”

Inconformados com o decidido, B...e C..., assistentes/demandantes, interpuseram recurso no qual apresentou as seguintes conclusões (transcrição):

1. Face à prova produzida, designadamente testemunhal e documental, o tacto constante da al. AD) dos Factos Provados não podia dar-se como provado.

2. Relativamente às expressões contidas na carta enviada pelo Assistente B...ao Arguido, junta a tis. 220 a 223 dos autos, atento o teor literal das mesmas, conjugado com a demais prova produzida nos autos, mormente testemunhal, não vislumbram os Recorrentes de que modo pode concluir-se que, de entre os possíveis sentidos e alcances que possam decorrer das palavras do Assistente B..., seja de assumir, como plausível, retirar-se uma putativa ameaça contra a própria vida do Arguido.

3. Certo é que o Tribunal a quo reconhece reiteradamente não pretender sequer colocar em causa que o Assistente B...não é nem nunca foi pessoa suspeita de alguma vez ter agredido alguém fisicamente ou atentado contra a vida de outrem, fundamentando-se na prova testemunhal que, sobre este concreto aspecto, foi produzida.

4. Ao invés do que perpassa da douta sentença recorrida, não podem, porém, os Recorrentes subscrever o entendimento segundo o qual seria legítimo ao Arguido pensar que pudesse estar sob ameaça de sofrer algum tipo de agressão física perpetrada pelo Assistente B...(pelo próprio ou sob instruções suas), designadamente atentatória da própria vida!

5. As únicas "consequências" plausíveis e possíveis a que alude a dita carta apenas poderiam ser aquelas que, com conhecimento directo dos contornos das interacções e relações existentes entre Assistentes e Arguido, apontaram quase todas as testemunhas ouvidas em Audiência de Julgamento - conforme bem observa o Tribunal a quo na douta sentença: consequências políticas, consequências institucionais e consequências judiciais.

6. Tal era o percurso que, sem desvios, sempre trilhavam os Assistentes. Inexistindo, ademais, qualquer indício que permitisse ao Arguido sequer suspeitar que fosse o mesmo preterido, em prol de uma qualquer "solução justiceira", a aplicar pelas próprias mãos do Assistente B...ou por alguém a seu pedido.

7. Mais: o próprio Arguido, nas declarações que prestou, embora tenha referido ter receado sofrer algum tipo de represália por parte do Assistente B..., a verdade é que assumiu expressamente que nunca sentiu uma real ameaça por parte deste, face ao teor da carta em apreço.

8. Não podem, pois, os Recorrentes aceitar que seja dado como provado o facto constante da al. AD) meramente com base no sentimento que o Arguido diz ter experimentado, na sequência e por causa do teor de uma comunicação que recebeu do Assistente B..., cujo teor consta dos autos, reforçado por um "ouvir dizer" a outrem, cujas declarações não sequer foram tomadas em Audiência de Julgamento.

9. De facto, e quando prestou, à comunicação social, as declarações que constam dos autos, o Arguido tê-lo-á feito sem prévio aconselhamento, "a quente", como sói dizer-se, pelo que posteriormente competiu à defesa engendrar esta justificação para a sua conduta, estribada no pretenso receio que alega ter sentido o qual, já se disse e demonstrou, não é real.

10. Aliás, e acaso receasse mesmo qualquer tipo de agressão física por parte ou a mando do Assistente B..., mal se compreenderia, porque manifestamente contrário às regras da experiência, que o Arguido propalasse publicamente que o considerava um criminoso! Seria um verdadeiro contra-senso.

11. Por outro lado, e muito embora, na douta sentença, seja igualmente invocado o depoimento da testemunha E... para reforçar a existência de, pelo menos, rumores quanto à amizade do Assistente B...com indivíduos de etnia cigana, alegadamente disponíveis para, a seu pedido, exercerem algum tipo de violência contra o Arguido, cumpre sublinhar que a mesma apenas revela conhecimento de tais boatos ou rumores (e nada mais do que isso) daquilo que diz ter "ouvido dizer", de forma vaga e não concretizada, sem que tenha conseguido apontar efectivamente quem lhe falara de semelhante eventualidade, para além do Arguido.

12. Mas mais: entende o Tribunal a quo, conforme resulta da douta motivação da sentença, que é legítimo especular-se que, caso tivessem sido ouvidas mais testemunhas da "facção" do Arguido, para além da testemunha E..., também viriam provavelmente sustentar a tese do Arguido, nesta parte.

13. Não sem antes, porém, referir que tanto os Assistentes, como todas as testemunhas arroladas pela acusação e pelo pedido de indemnização civil escamotearam a existência de tais rumores e afirmações por parte do Assistente B....  

14. Acresce que, para fundamentar o tal alegado receio ou temor, o Arguido invoca o conhecimento, à data dos factos, de relatório de perícia psiquiátrica médico-legal, no qual, segundo afirmou, o Assistente B...era descrito como «uma pessoa muito quezilenta, uma pessoa que não respeitava as chefias, que não aceitava a autoridade», e, bem assim, no facto de o Assistente B...estar, à data dos factos, de baixa médica psiquiátrica.

15. Quanto a este argumento, porém, consta dos autos prova documental (fls. 847 a 860) que infirma objectivamente estas declarações do Arguido.

16. O relatório de Perícia Médico-Legal a que foi submetido o Assistente B...em é cronologicamente muito posterior à recepção da carta que o Arguido reputa de ameaçadora e que juntou aos autos a fls. 220 e seguintes, recebida quase um ano antes da elaboração do referido relatório de perícia médico-legal.

17. O período de baixa médica psiquiátrica do Assistente B...apenas teve o seu início cerca de 4 meses após a recepção pelo Arguido da carta supra referida, constante de fls. 220 e seguintes dos autos.

18. Os restantes relatórios clínicos de psiquiatria juntos aos autos são posteriores à prestação das declarações do Arguido à comunicação social em causa nos presentes autos.

19. Ou seja, se há coisa que a referida prova documental permite concluir é que a condição psiquiátrica do Assistente B...não pôde ser causa do receio que o Arguido diz ter sentido, porque era do mesmo desconhecida, à data dos factos.

20. Tal condição psiquiátrica antes pode, muito pelo contrário, resultar ou, pelo menos, ter-se adensado por causa e na sequência das declarações que publicamente, a órgãos de comunicação social, foram pelo Arguido prestadas, acerca do Assistente B...!  

28. Com as declarações que prestou a respeito dos crimes e demais ilícitos cujo cometimento imputa aos Assistentes, o Arguido não pretendeu apenas expressar aquele que é o seu entendimento e opinião sobre a questão, como resulta da motivação douta sentença.

29. Na verdade, tendo já o Arguido, à data dos factos, conhecimento do despacho de arquivamento que, no termo do inquérito, tinha sido proferido pelo Ministério Público, quanto aos crimes que imputa, nas suas declarações, aos Assistentes – alínea. M) dos Factos Provados - tal conhecimento conformou a sua conduta.

30. Uma vez que, em sede própria, no processo crime movido contra os Assistentes, fora proferido despacho de arquivamento, no termo do inquérito, entendeu o Arguido por bem vir tomar a seu cargo a incumbência de repor a (sua) justiça e vir a público contradizer o teor do mesmo e reafirmar o seu próprio entendimento dos factos: que os Assistentes, não obstante o despacho de arquivamento (que era já do seu conhecimento), tinham efectivamente cometido os crimes que o Arguido entendia serem-lhes imputáveis.

31. Das declarações que prestou à comunicação social, transcritas nos autos e parcialmente transpostas no douto libelo acusatório e nas als. E) a H) dos Factos Provados, resulta inequivocamente a imputação categórica, aos Assistentes, dos crimes e demais condutas ilícitas que o Arguido lhes assaca, em lado nenhum se vislumbrando uma modesta manifestação de opinião divergente da vertida no despacho de arquivamento referido em B) e M) dos Factos Provados.

32. Mais resulta da sentença recorrida que há reconhecidamente um clima de extrema conflitualidade entre Arguido e Assistentes, tanto mais que, para além dos factos objecto dos presentes autos, existem numerosas outras querelas e processos judiciais e disciplinares que opõe os aqui Arguido e Assistentes, as quais existiam já à data dos factos.

33. Ora, se, por um lado, os Assistentes, por divergirem ideologicamente do Arguido, o questionavam amiúde, na qualidade de Presidente do Conselho de Administração da (...)da Guarda, sobre as suas opções, tomadas de posição e deliberações - e o faziam sem recurso a qualquer tipo de ameaça ou sob pena de represália, mas perante o próprio e entidades públicas, judiciais e administrativas,

34. Por outro lado, o Arguido, ainda na qualidade de Presidente do Conselho de Administração, para além de, detentor do ius puniendi em sede disciplinar, os ter sancionado pesadamente [veja-se, designadamente, a ai. C) dos factos provados], não se coibiu de publicamente os catalogar como "gente de má índole", aos quais não conviria os demais funcionários da (...)da Guarda verem-se associados.

35. E nesta qualidade - de funcionários da (...)da Guarda - foram as testemunhas F... e G... advertidos pelo Arguido, então Presidente do Conselho de Administração daquela ULS, para que não mantivessem relações com os Assistentes, sob pena de sofrerem consequências indesejáveis.

36. Com a conduta que assumiu, e sobre a qual incidem os presentes autos, o Arguido alargou consideravelmente o seu raio de acção, extravasando o método que "dentro de portas" (i.e., na (...)da Guarda) aplicava, a todo o território nacional- onde pode ver-se a RTP - e, em particular, ao distrito da Guarda - onde pode escutar-se a Rádio (...).

37. Nos termos da douta sentença recorrida, as expressões proferidas pelo Arguido e que se deram como provadas nos autos poderiam ser tidas como ofensivas da honra e consideração dos Assistentes, na medida em que lhes imputam a prática de crimes e ilícitos disciplinares.

38. Basta a existência de um dolo genérico ao proferir tais expressões, pelo que se considera preenchido, pelo menos, o elemento volitivo do dolo.

39. Manifesta, porém, o Tribunal a quo dúvidas quanto ao elemento cognitivo do dolo, na medida em que se deu como não provado que o Arguido soubesse que a sua conduta fosse proibida e punida por lei.

40. Ora, como é evidente, e apesar de não ter formação jurídica, o Arguido não é pessoa intelectualmente destituída. Pelo contrário, é um cidadão informado, com formação superior, médico em topo de carreira, com experiência no desempenho de cargos de administração hospitalar durante mais de 10 anos. E, como tal, é-lhe exigível o conhecimento da ilicitude da sua conduta.

41. No entanto, Tribunal a quo determinou a absolvição do Arguido da prática dos crimes que lhe eram imputados nos autos, não porque não se tenha provado que os cometeu, mas porque entende que se encontra preenchida, in casu, a causa de justificação da conduta do Arguido constante da al. b) do n.º 2 do artigo 180.º do CP.

42. Sucede, porém que o Arguido não logrou provar a veracidade das imputações que efectuou - nem podia, de forma alguma, fazê-lo porque foi feita prova bastante da falsidade das mesmas;

43. Nem tão-pouco poderia, da prova produzida, retirar-se que tinha o Arguido fundamento suficientemente sério para, em boa fé, as reputar como verdadeiras.

44. Pelo contrário: conhecedor privilegiado que era, fruto da sua qualidade de Presidente do Conselho de Administração da (...) da Guarda e, como tal, participante nos autos de processo crime identificados na al. A) dos Factos Provados, dos meandros do mesmo, competia-lhe, pelo menos, não desconhecer que as imputações que dirigia aos Assistentes, através da comunicação social, não podiam, de forma alguma, em boa fé, reputar-se como verdadeiras.

45. Muito pelo contrário, aliás, o Arguido tinha perfeito conhecimento do despacho de arquivamento que, relativamente a tais factos, tinha sido proferido [cf. ai. M) dos Factos Provados], relativamente ao qual, ademais, se insurgiu publicamente.

46. Em consequência da conduta do Arguido, e dados os factos provados no que aos Assistentes/Demandantes Civis concerne - em particular, as als. R) a AA) dos factos provados - resulta da experiência comum que os mesmos sofreram danos não patrimoniais, que merecem a tutela do direito.

47. Verificam-se e cumprem-se, em concreto, todos os pressupostos legais dos quais depende o arbitramento de um montante indemnizatório a cada um dos Assistentes/Demandantes Civis pelos danos que, com a sua conduta criminosa, o Arguido lhes causou.

48. O valor a arbitrar aos Assistentes/Demandantes Civis não deverá ser inferior às quantias por estes pedidas de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), ao Assistente/Demandante Civil B..., e € 5.000,00 (cinco mil euros), ao Assistente/Demandante Civil C....

NESTES TERMOS,

E nos melhores de Direito, deve ser dado integral provimento ao presente recurso e, em conformidade, revogar-se a decisão recorrida por outra que condene o Arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de quatro crimes de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1, 183.º, n.º I, ai. a) e 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2 al. I), todos do CP, e, bem assim, no pagamento das indemnizações civis reclamadas e nas respetivas custas”

Respondeu o Ministério Público defendendo a manutenção da decisão recorrida, o que sustentou com as seguintes conclusões:

“1ª- Face ao supra sucintamente exposto, afigura-se-nos não merecer qualquer reparo a decisão ora em recurso;

2ª- Adere-se, integral e plenamente à decisão ora em recurso;

3ª- O Tribunal ponderou devidamente o valor semântico/linguístico das expressões utilizadas, sopesou as suas valências criminais e decidiu, a final, e bem, pela ilicitude das mesmas;

4ª- As expressões utilizadas, são vulgares no campo do direito de expressão/crítica e do direito de informar e não extravasaram tais campos e caíram no terreno do ataque à pessoa;

5ª- A actuação do arguido não ultrapassou os limites do direito à crítica e entrou no campo da ilicitude e do direito criminal;

6ª- O exercício das profissões dos assistentes não os põe invulneráveis, por si só, a todas as críticas, juízos e expressões;

7ª- Donde que a actuação do arguido seja inócua relativamente à honra e consideração do recorrentes;

8ª- Adere-se à tese sufragada na decisão ora em recurso de que se fez prova, testemunhal e documental bastante para se darem como provados os factos constantes da al. AD) dos factos provados;

9ª- Tal interpretação encontra apoio na carta remetida ao arguido pelo assistente B...e assim foi entendida pelo arguido;

10ª- Tal interpretação, exclusivamente subjectiva, não pode ter como únicos contornos os políticos, institucionais ou judiciais, já que o meio era adequado a causar medo e inquietação;

11ª- Tanto mais que se fala em "ciganos" e o arguido passou a andar armado;

12ª- A que acresce o conhecimento pelo arguido do teor do relatório psiquiátrico do assistente B...;

13ª- Aceita-se por boa, em face de todo o exposto, a tese decisão ora em crise, expressa nos n.ºs 2-9, da factualidade dada como não provava;

14ª- Não se aceita a tese da ofensa à honra, bom nome e consideração, pessoal e profissional dos assistentes, aludida no n° 25 das conclusões dos assistentes já que a decisão, neste particular, alude à parte civil e não criminal;

15ª- Não cremos que o arguido tenha agido com dolo, inexistindo, "in casu", quer os elementos objectivos quer subjectivo do tipo;

16ª- Não se corrobora a tese dos assistentes, ora recorrentes, de que ficou provada a conduta do arguido vertida nas al. I) e J) dos factos provados;

17ª- Contrariamente à tese dos recorrentes, vertida nos pontos 29. e 30. das suas conclusões, acompanha-se a versão dos factos assentes na decisão;

18ª- Não é certo ter sido o arguido, singularmente, a exercer o "ius puniendi" sobre os assistentes, mas sim o conselho de administração, como ressalta dos autos e dos depoimentos prestados em sede de julgamento;

19ª- Aceita-se a tese da decisão de que o arguido agiu sem consciência do elementos cognitivo do dolo isto é, por um lado que tenha representado ou previsto o facto ilícito, com todos os seus elementos integrantes e, por outro, a consciência de que esse facto lhe era censurável;

20ª- Aceita-se a tese de que se verifica a ocorrência da causa de justificação da conduta do arguido plasmada na al. b) do n.º 2 do art° 180° do CPenal;

Termos em que,

Deve ser mantida, nos seus precisos termos, a decisão ora em recurso”

O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito devolutivo.

Nesta instância a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no qual se manifesta pela improcedência do recurso.

No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal o arguido nada disse.

Os autos tiveram os legais vistos após o que se realizou a conferência.

Cumpre conhecer do recurso

Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos, excepto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso.

É dentro de tal âmbito que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras).

Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo “questões” a quer se refere o artº 379º, nº 1, alínea c., do Código de Processo Penal, não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entende-se por “questões” a resolver, as concretas controvérsias centrais a dirimir[[1]].

Questão a decidir: erro na apreciação da prova

Na 1.ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade (transcrição):

“A) Correu termos nos Serviços do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Guarda o processo de inquérito n." 904/09.5TAGRD, no qual figuravam como denunciante, entre outros, a (...) da Guarda, E.P.E. e como arguidos, entre outros, os aqui assistentes C...e B..., por alegada prática por estes de factos integradores, segundo a queixosa, dos crimes de burla, abuso de poder, injúria e difamação.

B) No âmbito do referido processo, em 6 de Abril de 2010, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento de tal inquérito em relação aos factos que eram imputados aos arguidos supra referidos e aqui assistentes, tendo a então denunciante, na pessoa do presidente do Conselho de Administração, o ora arguido A..., sido notificada do teor do mesmo em 14 de Abril de 2010, mediante via postal simples com prova de depósito efectuado nessa data na caixa de correio existente na morada do aqui arguido.

C) Por tais factos foi ainda instaurado pela (...) da Guarda, E.P.E. um processo disciplinar aos aqui assistentes, o qual culminou com a aplicação de uma multa no valor de € 17.766,00 ao assistente B..., e no valor de € 15.106,00 ao assistente C....

D) Da decisão proferida no processo disciplinar os referidos arguidos interpuseram recurso para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, onde correm dois processos – 412/10.1BECTB e 411/10.3BECTB, no qual não é do nosso conhecimento de que haja já sido proferido despacho final até à presente data.

E) No dia 29 de Abril de 2010, foi transmitida uma entrevista concedida pelo arguido à Rádio (...), na qual o arguido, referindo-se ao processo disciplinar anteriormente mencionado e no que concerne à alegada prática por parte de B..., C... e G... dos mencionados crimes de abuso de poder, burla, injúria e difamação, declarou que “(...) num dia em Setembro utilizaram, isto andando um pouco para trás, no dia 5 de Setembro a senhora ministra na inauguração do hospital de Seia garantiu que a maternidade no hospital da Guarda não tinha qualquer problema. Mas entretanto os outros senhores, como sabe um deles que é do bloco de esquerda, que é mandatário, por questões partidárias resolveu fazer um abaixo-assinado dizendo que estaria em perigo a maternidade e depois acabou por enviar uma carta ao primeiro-ministro para que ele se pronunciasse sobre o fecho de uma das maternidades, qual seria, até ao dia 27, que era o dia das eleições. Utilizou isso sempre numa situação de expediente da própria (...), não o fez, era uma situação partidária, era uma situação privada, ele utilizou os dinheiros públicos, utilizou os envelopes, ou seja, quem representa a (...)em Juízo e fora dele sou eu e o conselho da administração.”.

F) Mais aí declarou o arguido que “(…) Só que ele não pode utilizar, é abuso de poder, daí que nas vinte e tal cartas que ele mandou para os mais diversos sectores partidários, eu tive conhecimento dessas cartas que sub-repticiamente foram entregues no serviço de expediente por parte de uma secretária clínica de oftalmologia para que aquilo seguisse os seus trâmites através de uma entidade, neste caso a ULS, isto é considerado abuso de poder, foi feito um processo disciplinar, e deste processo disciplinar resultou uma multa de 20 dias e 40 dias, não só por esse aspecto mas por uma série de cartas ameaçadoras que eles escreveram, nomeadamente um deles, ao presidente e aos vogais do conselho de administração. Portanto, cumulativamente e atendendo ao que cada um deles, para ter a ideia um deles ganha cerca de 150 mil euros por ano, ou seja, ganha 2.500 contos por mês, e a multa são vinte dias, e é por aí que tem que eventualmente fazer isso. Eles, a multa sai-lhe cara porque eles ganham muito bem, é só por causa disso.”.

G) No âmbito de uma outra entrevista concedida à estação de televisão RTP e transmitida em 2 de Maio de 2010, o arguido A..., referindo-se às multas aplicadas aos assistentes B... e C...em sede do processo disciplinar anteriormente referido, declarou que "É uma pena extremamente leve, atendendo à gravidade dos crimes e particularmente ao número de crimes, que são quatro, que são quatro regras do Estatuto Disciplinar que eles violam ainda numa situação de cumulação e de premeditação.”.

H) Mais declarou o arguido que “(…) As penas foram cumulativas porque há situações, e nomeadamente cartas de um deles, que levou os 40 dias, com ameaças graves em relação à minha pessoa. Portanto a carta é uma carta pessoal, é uma carta ao presidente do conselho de administração, dirigindo-se a mim, em nome próprio, e havia ameaças que poderiam consubstanciar até situações de atentado à vida.".

I) Com estas declarações, o arguido A... acusou publicamente os assistentes B... e C..., médicos e funcionários da (...) da Guarda, EPE, em exercício de tais funções, de terem indevidamente utilizado dinheiros públicos e de terem cometido o crime de abuso de poder, de terem escrito e enviado cartas ameaçadoras e de terem cometido crimes graves, em número de quatro, numa situação de cumulação e de premeditação.

J) Acusou ainda o assistente B... de ter efectuado ameaças em relação à sua pessoa que poderiam consubstanciar até situações de atentado à vida.

L) O arguido sabia que a rádio e a televisão eram meios que facilitavam a divulgação do conteúdo das suas declarações.

M) À data em que concedeu as entrevistas que se referem supra, o arguido já tinha conhecimento do teor do despacho de arquivamento que havia sido proferido pelo Ministério Público no âmbito do processo de inquérito n." 904/09.5TAGRD, dos Serviços do Ministério Público junto deste Tribunal, como se refere em B).

N) Em 7 de Maio de 2010, o aqui arguido e ali assistente A..., por si e em representação da (...) da Guarda, E.P.E., requereu a abertura da instrução nesse processo referido em A) e B), pugnando pela pronúncia dos aqui assistentes e ali arguidos B... e C...pela prática de crimes de peculato de uso, abuso de funções, usurpação de funções e injúria e difamação agravados.

O) Nessa sequência, a fase de instrução foi declarada aberta e correu termos neste 3° Juízo deste Tribunal, no final da qual, no dia 21 de Janeiro de 2011, foi proferido despacho de não pronúncia dos referidos B... e C...por qualquer dos crimes pretendidos pelo aqui arguido A....

P) No dia 11 de Fevereiro de 2011, o aqui arguido e ali assistente A... interpôs recurso de tal despacho de não pronúncia, onde pugnou pela pronúncia dos aqui assistentes e ali arguidos B... e C...(apenas) pela prática dos crimes de injúria e difamação agravados que lhes imputou em sede de instrução.

Q) Nessa sequência, tal recurso foi admitido e no dia 15 de Junho de 2011 foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Coimbra no qual se decidiu negar provimento ao recurso interposto pelo aqui arguido e ali assistente A..., com a consequente manutenção da decisão recorrida.

R) O assistente e demandante civil B... é médico oftalmologista há cerca de 25 anos, tendo exercido funções durante 17 desses anos na (...) da Guarda, embora tenha sido afastado da sua profissão nessa instituição na sequência de pena disciplinar de demissão que lhe foi aplicada em processo disciplinar que lhe foi movido pela Administração da referida (...), a qual tinha o aqui arguido e demandado como presidente.

S) Tal pena disciplinar de demissão ainda não é neste momento definitiva, na medida em que dela foi interposto recurso junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, e que aí corre termos como a acção administrativa especial n.º 759/11.0BECTB.

T) Em 2004 e em 2007, o assistente e demandante B... adquiriu, a expensas próprias, material médico para apetrechar o serviço de oftalmologia do então designado Hospital (...), actual (...) da Guarda.

U) O carácter e a ética profissional do assistente e demandante B... é reconhecido e enaltecido por numerosas pessoas na Guarda, cidade onde reside e exerce a sua profissão há largos anos a esta parte, tendo-lhe valido um voto de louvor aprovado pela Assembleia Municipal do Município da Guarda, em 31 de Outubro de 2006.

V) O assistente e demandante C... é médico anestesista há mais de 25 anos, sendo que mais de 18 dos quais os exerceu integrado no corpo clínico da (...) da Guarda.

X) Ambos os demandantes civis são pessoal e profissionalmente bem cotados junto da generalidade dos seus colegas e demais funcionários da (...) da Guarda, seus doentes e utentes, da comunidade em geral da Guarda, cidade que escolheram para o exercício da sua profissão.

Z) Ambos os demandantes civis são ainda cidadãos atentos e sensíveis às dificuldades do meio onde se inserem, batendo-se publicamente pela lisura, transparência e defesa dos direitos de que são credores a generalidade dos indivíduos num Estado de Direito Democrático, sendo incapazes de abdicar dos seus princípios, dos quais são profundamente ciosos, em prol de interesses políticos ou institucionais.

AA) Os assistentes e demandantes são pessoas de elevada sensibilidade, educação e apreço social, com brio e prestígio profissional, e sentiram-se acossados, acabrunhados e depreciados perante os seus pares, os seus doentes, a comunidade da Guarda e a opinião pública em geral face à conduta do arguido e demandado que aqui se dá como provada.

AB) Em Setembro de 2009, os assistentes e outros médicos em serviço na (...) da Guarda remeteram e tentaram remeter abaixo-assinados a diversas entidades usando para o efeito envelopes e papel timbrado daquela (...), tendo sido a correspondência efectivamente remetida paga por esta última, e com o uso de meios humanos da mesma.

AC) Em pelo menos uma carta escrita e remetida pelo assistente B...ao arguido em momento anterior aos factos, que é a que consta de fls. 220 a 223 e que aqui se dá por integralmente reproduzida, é usada a expressão "Fica por isso informado para não voltar a portar-se da mesma forma, sob pena de se sujeitar a consequências em que provavelmente ainda não reflectiu.”, assim como “Peço-lhe que reflicta nisto para seu bem", e "Deve também ter consciência de que só se manterá nesse cargo enquanto algumas pessoas, entre as quais continuo naturalmente a incluir-me, assim o permitirem ... “.

 AD) O arguido sentiu-se ameaçado com o teor de pelo menos tal carta e tais dizeres e, atendendo a todo o ambiente de conflito que existia entre si e o assistente B..., pensou que podia correr perigo.

AE) O arguido é médico, exercendo actualmente as funções de Chefe de Serviço do Centro de Saúde de (...), tendo declarado rendimentos de cerca de €70.000,00 no passado ano de 2011. Vive com companheira, que é farmacêutica e tem um filho de 27 anos de idade que se encontra a efectuar mestrado, suportando o arguido uma "mesada" para o mesmo no valor de €700,00 por mês. Suporta prestação a título de empréstimo para aquisição da habitação onde reside no valor de €570,00 por mês.

AF) O arguido não tem quaisquer antecedentes criminais.”

Quanto à factualidade não provada, consignou-se (transcrição):

“Da audiência de discussão e julgamento resultou como não provado que:

1) A entrevista cedida pelo arguido à Rádio (...) e que se refere em E) e F) haja sido transmitida no mesmo dia em que foi colhida.

2) O arguido tenha pretendido agir como agiu com a intenção alcançada de ofender a honra e consideração pessoal e profissional que são devidas aos assistentes B... e C..., bem sabendo que os mesmos eram médicos e funcionários da (...) da Guarda, EPE, em exercício de tais funções.

3) O arguido tenha agido livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

4) O arguido e demandado tenha pretendido desacreditar e denegrir publicamente os assistentes e demandantes civis com as suas afirmações, quer perante os seus pares, quer perante os restantes funcionários da instituição onde trabalhavam, quer perante os doentes e demais utentes da (...) da Guarda, quer perante toda a opinião pública do distrito da Guarda onde se pode ouvir a Rádio (...), quer em todo o território nacional, onde se pode visionar a RTP.

5) Não obstante soubesse que os factos que divulgava não correspondessem à verdade e bem assim que fossem profundamente atentatórios da reputação, bom nome e consideração, quer pessoal, quer profissional, dos assistentes e demandados civis, o arguido e demandado civil se tenha conformado com a sua conduta e respectivas consequências, agindo como fito alcançado de causar danos morais aos assistentes e demandantes civis.

6) A conduta do arguido e demandado que é objecto dos presentes autos tenha sido mais uma das vias das quais o mesmo tenha lançado mão, numa verdadeira campanha que contra os assistentes e demandantes civis tenha movido enquanto tenha estado à frente do Conselho de Administração da (...) da Guarda.

7) E também por esta via tenha o arguido e demandado perseguido e mortificado os assistentes e demandantes, fazendo uso das prerrogativas institucionais de que estava investido, apenas porque aqueles assistentes e demandantes tenham ousado questionar, indagar e insurgir-se contra práticas desconformes que ao longo de anos foram identificando e assim não se tenham coibido de instar o arguido e demandado a justificar as suas opções e decisões, enquanto presidente do Conselho de Administração da (...) da Guarda, bem como não se tenham coibido de fazer chegar às mais diversas instâncias - Administração Central do Sistema de Saúde, Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, à Administração Regional de Saúde do Centro, ao Ministério Público, Polícia Judiciária, etc. - participações e elementos probatórios das situações pouco escorreitas que foram identificando e sinalizando ao longo dos anos.

8) Em consequência da sua conduta, o arguido e demandado haja maculado de forma ostensiva e deliberada o bom-nome e a reputação dos demandantes enquanto médicos e funcionários da (...) da Guarda.

9) E assim tenha tido o arguido e demandado a finalidade de denegrir a integridade profissional e bom-nome e consideração de ambos os assistentes e demandantes civis.

10) O assistente B...haja escrito e remetido ao arguido qualquer carta que contivesse a expressão "sob pena de no futuro eu poder não ser tão delicado como estou a ser nesta carta".

O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

“Relativamente às referências que se efectuam na matéria provada quanto ao processo judicial n.º 904/09.5TAGRD, cujo inquérito decorreu nos Serviços do Ministério Público deste Tribunal e cuja fase de instrução correu termos neste mesmo 3° Juízo deste Tribunal, pensamos que o seu conteúdo se encontra sobejamente certificado e por mais de uma vez documentado nos autos, designadamente o teor do despacho de arquivamento aí proferido, o requerimento para abertura de instrução aí deduzido pelo aqui arguido e ali assistente A..., a decisão instrutória aí proferida, as alegações de recurso deduzidas pelo mesmo A..., e o acórdão final proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, tudo como se deu como provado.

De forma mais particular, está provado a fls. 341 que o aqui arguido foi notificado do aludido despacho de arquivamento mediante via postal simples com prova de depósito efectivamente efectuado na respectiva caixa de correio no dia 14 de Abril de 2010, data esta que é anterior à transmissão das entrevistas que se encontram em causa nos presentes autos. Neste enquadramento, poderia colocar-se a questão (como de certa forma não se deixou de colocar em audiência) de saber se o arguido teria já conhecimento ou não do teor do aludido despacho de arquivamento nos momentos em que concedeu as entrevistas que se encontram em causa nos presentes autos e cujo teor é aquele que se deu como provado não só porque o arguido o assumiu, como também porque se encontram gravadas em suporte digital junto aos autos e basta proceder à sua audição, como procedemos. A questão é pertinente, na medida em que o depósito da notificação do despacho de arquivamento na caixa de correio do arguido não é por si só sinónimo de que houvesse chegado ao seu efectivo conhecimento, sendo certo que as datas em que as entrevistas foram transmitidas não são muito posteriores àquele dia 14 de Outubro de 2010, e não existiu qualquer prova que determinasse em que data é que tais entrevistas foram efectivamente concedidas e gravadas, sendo manifesto que o foram em momento anterior à sua emissão e não foram em directo, como resulta claramente do respectivo contexto e enquadramento.

A este respeito, optou o arguido por declarar apenas que não se recorda se já tinha conhecimento do despacho de arquivamento ou não no momento em que concedeu as entrevistas em causa. No entanto, embora esta parte não se encontre transcrita na acusação nem na matéria provada, basta proceder à audição integral das declarações que o arguido restou à Rádio (...) para constatar que a dado passo o mesmo faz referência expressa ao aludido despacho de arquivamento e manifesta a sua discordância com tal despacho, afirmando que iria pedir a abertura da instrução. Assim, e porque a entrevista à RTP terá sido em momento posterior atendendo à data da sua transmissão, é manifesto que o arguido tinha conhecimento de tal despacho de arquivamento e ainda assim proferiu as expressões que proferiu e que se deram como provadas. As datas das transmissões das entrevistas nos órgãos de comunicação social correspondentes foram dadas como provadas através da confissão do arguido a seu respeito, e por haverem sido afirmadas por prova testemunhal produzida, designadamente dos depoimentos dos assistentes e da testemunha D... .

Por outro lado, embora essa questão também haja sido de certa forma colocada em causa em audiência de julgamento, pensamos que não existe qualquer dúvida minimamente razoável de que o arguido se pretendia referir aos aqui assistentes nas declarações que proferiu a respeito da matéria criminal e de ilícito disciplinar, e especificamente ao assistente B...quanto às cartas que poderiam ser "ameaçadoras da própria vida", muito embora os nomes dos assistentes não sejam em parte alguma claramente referidos. Ora, não só o arguido nunca colocou em causa que se referisse aos assistentes nos termos descritos, como é o que decorre claramente das declarações dos assistentes e de toda a prova testemunhal produzida, tudo provindo de pessoas que se encontravam por dentro do contexto, assim como decorre de forma óbvia do enquadramento e de todo o contexto das peças noticiosas correspondentes emitidas pelos respectivos órgãos de comunicação social.

Por seu turno, é de referir ainda que a matéria que se dá como provada no que diz respeito aos processos disciplinares em que foram arguidos e punidos os aqui assistentes e as sanções que lhes foram aplicadas, resulta tudo do que se encontra sobejamente documentado nos autos, com a precisão de que a multa aplicada ao assistente B...foi no valor de €17.766,OO, e não no valor de €17.776,OO, como erroneamente consta das acusações e do pedido de indemnização civil deduzidos.

Aqui chegados, e apesar de todos os factos que se deram como provados pelas razões que se acabam de referir, incumbirá esclarecer as razões pelas quais ainda assim demos como não provado que com tais factos e tais declarações o arguido e demandado civil tenha tido necessariamente a intenção alcançada de ofender a honra e consideração pessoal e profissional que são devidas aos assistentes ou desacreditar e denegrir publicamente os assistentes e demandantes civis com as suas afirmações, apesar de supostamente saber que as mesmas não corresponderiam à verdade, e bem sabendo que a sua conduta fosse proibida e punida por lei.

Relativamente às declarações prestadas pelo arguido a respeito dos alegados crimes e infracções e sanções disciplinares que são imputadas e aplicadas aos assistentes, o arguido afirmou em suma e em sede de audiência que apenas expressou aquele que é o seu entendimento e opinião sobre a questão, entendimento esse que é suportado por juristas que o motivaram e aconselharam nesse sentido, tanto mais que o próprio é médico, e consequentemente não tem formação jurídica. Afirmou ainda o arguido que não tinha presente se já tinha conhecimento na altura ou não do despacho de arquivamento que já tinha sido proferido pelo Ministério Público a este respeito.

Ora, já vimos (e está provado) que tal conhecimento por parte do arguido do despacho de arquivamento já existia, conforme resultou das suas próprias declarações prestadas à Rádio (...), embora em parte que não se encontra descrita na acusação nem nos factos provados. Desta forma, é este o grande argumento em que se baseia a acusação no sentido de afirmar a intenção de ofender a honra e consideração dos assistentes e a consciência da falsidade dos factos alusivos à prática de crimes e de ilícitos disciplinares, ou seja, foi sempre entendido pela acusação e pelos assistentes e demandantes que, uma vez que o arguido já tinha conhecimento do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, então necessariamente teria de ter conhecimento da falsidade das suas afirmações nesta parte e da falta de fundamento dos crimes e infracções disciplinares que imputou aos assistentes.

Ora, da nossa parte, entendemos que não se pode entender assim. Embora seja certo que o arguido já tinha conhecimento do despacho de arquivamento à data em que proferiu as entrevistas em causa nestes autos, a verdade é que tal despacho não constitui qualquer verdade absoluta e inultrapassável nem qualquer entendimento que seja absolutamente isento de qualquer crítica. Pelo contrário, permite-se aos interessados (neste caso ao aqui arguido) que dele manifeste a sua discordância e reaja em conformidade, tal como aliás o aqui arguido e ali assistente o fez ao requerer a abertura da instrução, como aliás também se encontra provado. Muito embora a sua pretensão não tenha tido acolhimento na correspondente decisão instrutória que viria a ser proferida e o aqui arguido e ali assistente não tenha sequer recorrido de tal decisão nessa parte, tal decisão instrutória é já muito posterior aos factos e às entrevistas aqui em causa e por isso nada afecta ou altera o que acabamos de dizer.

Por seu turno, é de referir que o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público apenas defende que os aqui assistentes não incorreram em qualquer responsabilidade estritamente criminal, não se pronunciando, como é óbvio, quanto a quaisquer eventuais infracções disciplinares. Como é por demais sabido, ainda que a conduta dos aqui assistentes e ali arguidos não integrasse a prática de qualquer crime, ainda assim poderia integrar a prática de ilícitos disciplinares, e por isso, pelo menos nesta parte, o entendimento que continuou a ser sufragado pelo aqui arguido nunca foi minimamente sequer colocado em causa pelo despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público.

Por outro lado ainda, não nos parece de todo necessariamente descabida ou ilegítima a posição assumida pelo arguido no sentido de que os entendimentos que subscreveu e defendeu relativamente aos alegados crimes e infracções disciplinares cometidos pelos assistentes se fundam em opiniões e pareceres fundamentados de outras pessoas que são juristas, e não em meras convicções pessoais suas, tanto mais que o arguido nem sequer dispõe de formação jurídica. Aliás, diga-se mais, mesmo que o arguido tivesse formação jurídica, ainda assim poderíamos perfeitamente entender que a sua posição e entendimento relativamente aos alegados crimes, infracções e sanções disciplinares em causa poderia ser ainda assim defensável e pelo menos minimamente plausível, tanto mais que é por demais consabido que os entendimentos no seio da comunidade jurídica e na aplicação dos factos ao direito estão frequentemente muito longe de ser unânimes.

Aqui chegados, dir-se-á que é certo que da generalidade da prova produzida decorreu que, para além desta questão existem numerosas outras querelas e processos judiciais e disciplinares que dividem o arguido dos aqui assistentes, e que o arguido, na qualidade de presidente do Conselho de Administração da (...) da Guarda à data dos factos relativos aos alegados crimes e ilícitos disciplinares é o instrutor e decisor último de tais processos disciplinares (ainda que por pouco mais que concordar com os pareceres defendidos por juristas), assim com é o queixoso nos alegados crimes, razão pela qual os assistentes e demandantes defendem a existência de uma autêntica "sanha persecutória" do aqui arguido contra os assistentes e que o teria motivado a proferir as declarações que proferiu mesmo sabendo da sua ausência de fundamento, e com o único intuito de ofender a honra e consideração dos assistentes.

No entanto, da nossa parte entendemos que, embora exista claro fundamento para esta suspeita, ainda assim pensamos que não passa disso mesmo (ou seja, de uma suspeita), na medida em que não foi produzida qualquer prova que o sustentasse com a necessária certeza.

Mais urna vez se afirma que o grande argumento avançado pela acusação e pelos assistentes e demandantes no sentido de que assim era pelo motivo de o arguido já ter conhecimento do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público (corno efectivamente já conhecia), não é para nós de todo suficiente, pelos motivos já referidos anteriormente.

Aqui chegados, é momento de justificarmos agora a razão pela qual entendemos que o arguido, ao declarar que havia recebido cartas do assistente B...(porque era claramente a este que se referia, como resultou de toda a prova produzida) com afirmações que poderiam consubstanciar ameaças contra a própria vida, ainda assim não entendemos que tal expressão também ela pretendesse ofender a honra e consideração pessoal e profissional que são devidas aos assistentes ou desacreditar e denegrir publicamente os assistentes e demandantes civis, apesar de supostamente saber que a mesma não corresponderia à verdade, e bem sabendo que a sua conduta fosse proibida e punida por lei.

Desde logo e a este respeito, é necessário atender aos próprios termos daquela que é a única de tais cartas que consta dos autos e da matéria provada, tudo inserido num ambiente de extrema conflitualidade que dividia o arguido e o assistente aqui em causa nessa altura. Da nossa parte, pensamos que os termos que são utilizados são (quiçá propositadamente) muito vagos e genéricos, prestando-se a toda a uma infinidade de possíveis interpretações, de entre as quais não se pode liminarmente e de todo excluir urna possível ameaça contra a vida. É certo (e não se pretende sequer colocar isso em causa) que o assistente B...nunca foi pessoa sequer suspeita de alguma vez haver agredido fisicamente quem quer que seja, mas a questão que se coloca é a de saber se ainda assim não seria legítimo ao arguido pensar que isso poderia vir eventualmente e um dia a acontecer.

Por um lado, a quase totalidade da prova testemunhal produzida, sendo claramente e na generalidade pessoas das simpatias dos assistentes, procurou sugerir que as "consequências" em que provavelmente o aqui arguido "ainda não teria reflectido" só poderiam ser meramente políticas (por ser esta a natureza do seu cargo) ou disciplinares ou judiciais. No entanto, esta singela explicação como sendo a única possível quanto a nós não colhe, na medida em que, à data da carta aqui em causa e das declarações prestadas pelo arguido à comunicação social, já vinham existindo numerosas iniciativas e represálias entre o arguido e os assistentes nesse sentido, e por isso essas nunca poderiam ser as únicas e simples "consequências" em que o arguido ainda não teria "reflectido".

Por outro lado, o arguido afirmou o seu temor e receio face ao teor pelo menos da carta que aqui se dá como provada, tanto mais que existiriam rumores no sentido de que o assistente B...afirmava que poderia dispor de "ciganos" nas proximidades dos quais residia a fim de dar "lições" a quem entendesse. Ora, tanto os assistentes como todas as testemunhas arroladas pela acusação e pelo pedido de indemnização civil escamotearam a existência de tais rumores e afirmações por parte do assistente B..., mas a testemunha E... confirmou-o. Na verdade, esta foi a única testemunha inquirida e arrolada pela defesa que se manifestou "alinhada" com o arguido e em oposição aos assistentes, acontecendo justamente o inverso com todas as restantes testemunhas inquiridas. Tal não surpreende, na medida em que a aludida E... fazia parte do conselho de administração da (...) da Guarda juntamente com o arguido à data da carta aqui em causa, pensando nós que não será injusto que se especule no sentido de que, caso outras testemunhas tivessem sido inquiridas como sendo provenientes dessa "facção", possivelmente também viriam sustentar a tese do arguido nesta parte.

Ora, neste enquadramento, embora não vamos ao ponto de considerar como suficientemente certo que o rumor no sentido do eventual emprego de "ciganos" por parte do assistente B...fosse efectivamente real, pelo menos fica-nos a dúvida sobre se assim seria ou não o que, embora com todo o respeito, como é óbvio, pelos cidadãos de etnia cigana em geral, também por aqui se duvida muito seriamente de que a intenção do arguido fosse apenas proferir uma acusação que não correspondesse à verdade, parecendo antes que pretenderia manifestar um genuíno receio que era o seu.

Por outro lado, não podemos esquecer o facto de que, como os próprios assistentes juntaram aos autos, existem relatórios médicos psiquiátricos relativos ao assistente B...datados de Maio, Junho, Novembro e Dezembro de 2010 e Maio e Agosto de 2011, nos quais se escreveu, entre tudo o mais, que o aludido assistente evidenciava "sintomatologia ansiosa e depressiva, entendível num contexto reactivo aos alegados conflitos no seu local de trabalho, num fundo de personalidade onde se revelam traços de rebeldia, inconformismo, impulsividade e baixa tolerância à frustração", tratando-se de um "contexto psicopatológico" que "carece de um regular e adequado acompanhamento médico-psiquiátrico" e com "assinalável intensidade clínica", "astenia e insónia grave", e "alterações da personalidade que interferem significativamente com a dinâmica familiar e a vida social e profissional do doente". Fala-se ainda de uma "sintomatologia obsessivo-compulsiva grave" e de um "equilíbrio emocional bastante precário.".

Ora, é certo que os relatórios psiquiátricos aqui em causa (fls. 847 a 860) são todos eles de data posterior aos factos que nos ocupam nestes autos, mas tal de todo não significa que não se limitem a retratar um quadro que eventualmente já existisse (como com toda a probabilidade já existiria) à data em que o assistente B...remeteu ao arguido a carta que aqui se encontra em causa.

Por outro lado, é certo que o sr. médico psiquiatra que subscreveu parte de tais relatórios e que acompanhava o assistente B...depôs em audiência no sentido de que o que aí se fez constar não significa que o assistente aqui em causa fosse ou seja uma pessoa agressiva fisicamente ou com propensão para a violência física (o que, repita-se, não pretendemos aqui sugerir com qualquer espécie de certeza), mas mais uma vez pensamos que esse quadro não se pode ter de todo como excluído (como também a aludida testemunha não o excluiu), e é assim em todo este contexto que se vem referindo que pensamos que apesar de tudo era legítimo ao arguido poder pelo menos suspeitar e temer que tal violência pudesse vir a acontecer, receio este que aliás se deu como provado, por ter sido sustentado também e ainda pela testemunha E....

Por seu turno, pensamos que é relevante referir ainda que o arguido nunca afirmou que as cartas consubstanciassem claramente situações de atentado à vida, mas sim e apenas que "poderiam" consubstanciá-lo. Por outras palavras, o arguido nunca deu como adquirido nem como certo que se tratasse de ameaças inequívocas desse género, mas sim que poderiam ser entendidas como tal, como aliás da nossa parte também pensamos que não é descabido que se pudesse assim entender.

Neste ponto é ainda de esclarecer que demos como não provado o alegado na contestação pelo arguido no sentido de que existiriam cartas que contivessem também e ainda a expressão "sob pena de no futuro eu poder não ser tão delicado como estou a ser nesta carta", na medida em que não existe qualquer prova (ou designadamente qualquer de tais cartas) nos autos.

Assim, por tudo quanto se vem dizendo, concluímos no sentido de que todas as expressões usadas pelo arguido e que se deram como provadas dispunham de um fundamento minimamente sério para que o arguido as pudesse considerar como verdadeiras (embora salvo o devido respeito por opiniões e entendimentos diversos, tanto nossos como do arguido), e por isso demos como não suficientemente provadas, repita-se, todas as alegações efectuadas pela acusação e pelos demandantes no sentido de que o arguido pretendesse necessariamente ofender a honra e consideração dos assistentes e demandantes civis proferindo afirmações que soubesse não corresponder à verdade e sabendo que a sua conduta fosse proibida e punida por lei.

Já quase em jeito de conclusão, a respeito de todo o enquadramento social, profissional e cívico dos assistentes e que se dá como provado designadamente sob os itens R) a AB), assim o decidimos com base nos depoimentos prestados pelos assistentes e pela generalidade da prova testemunhal inquirida a esse respeito (no que não foi contrariada por qualquer outro meio de prova), assim como na prova documental junta aos autos e que o suporta, designadamente a fls. 59 a 79 e 720 a 727.

Por fim, quanto aos factos atinentes às condições profissionais e económico-financeiras do arguido, foram relevantes as suas declarações, não existindo elementos para delas duvidar, e quanto aos antecedentes criminais do arguido (que não existem) foi relevante o respectivo CRC que consta dos autos.”

***

Nos presentes autos foi o arguido absolvido da prática de quatro crimes de difamação agravada, previstos e punidos pelos artigos 180°, n.º 1, 183°, n.º 1, alínea a) e 184°, por referência ao artigo 132°, n.º 2, al. l), todos do Código Penal.

Inconformados, os assistentes recorreram invocando, para além do mais, erro na apreciação da prova.

No entanto, os problemas surgem a montante desta questão, pois que a sentença sofre do vício previsto na alínea a. do n.º 2, do art.º 410.º, do Código de Processo Penal[[2]].

Como anteriormente se disse, os vícios consignados nesta disposição legal apenas relevam se tiverem incidência sobre matéria essencial para a decisão da causa pois que se o não tiverem, pode o tribunal ad quem prescindir deles; no caso de serem imprescindíveis para a boa decisão da causa, há lugar, em princípio, a reenvio (art.º 426.º, n.º 1).

E no caso sub judice, o vício indicado incide sobre matéria fundamental para a decisão da causa e é insuperável nesta 2ª instância.

Continuando:

Verifica-se o vício da alínea a. (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada) “quando, da factualidade elencada na decisão recorrida, resulta que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Abril de 2013).

Numa primeira abordagem ao que efectivamente está em causa nestes autos, começaremos por referir que, “grosso modo”, a apreciação do presente recurso assenta no facto de o tribunal “a quo” ter decidido absolver o arguido com base na consideração de que “existe causa de justificação da conduta do arguido como sendo designadamente aquela que consta do artigo 180°, n.º 2, al. b), do Cód. Penal.”

Para uma melhor compreensão de toda a problemática que envolve a absolvição que gerou o presente recurso, passamos a transcrever, na sua parte relevante, a fundamentação jurídica da decisão da 1ª instância (com sublinhados nossos):

(…), pensamos que as expressões que são proferidas pelo arguido e que se dão como provadas poderiam ser tidas como ofensivas da honra e consideração dos assistentes, na medida em que lhes imputam a prática de crimes e ilícitos disciplinares, e imputam ainda ao assistente B...a redacção de pelo menos uma carta que pode ser interpretada como uma ameaça contra a vida. Estariam assim preenchidos os elementos subjectivos do tipo das infracções, pelo menos na sua forma simples.

Por outro lado, muito embora se tenha dado como não provado, em geral, que o arguido pretendesse especificamente ofender a honra e consideração dos assistentes com as expressões que proferiu, bastará a existência de um dolo genérico ao proferir tais expressões, pelo que se poderia considerar preenchido pelo menos o elemento volitivo do dolo, ainda que existissem dúvidas quanto ao elemento cognitivo, na medida em que se deu como não provado que o arguido soubesse que a sua conduta fosse proibida e punida por lei.

Sucede, no entanto que, à luz do que se disse supra, trata-se em todos os casos da imputação de factos aos arguidos, ainda que com juízos de valor associados, mas que são apenas decorrências ou conclusões que o arguido retira dos factos que igualmente narra. A partir deste momento, permite-se assim que opere o n.º 2 do já citado artigo 180° do Cód. Penal, designadamente o disposto na respectiva alínea b), ou seja, permite-se que o agente (ou o aqui arguido) prove a veracidade das imputações que efectuou, ou pelo menos tenha fundamento sério para, em boa fé, as reputar como verdadeiras, sendo certo que, nos termos do n.° 4 da mesma norma, a boa fé é excluída quando o agente não tiver cumprido o dever de informação que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.

(…)

Assim, face ao que se acaba de dizer, julgamos que existe causa de justificação da conduta do arguido como sendo designadamente aquela que consta do artigo 180°, n.º 2, al. b), do Cód. Penal, e por isso o mesmo não poderá ser condenado pela prática de qualquer dos crimes de que se encontra acusado, nem sequer nas suas formas simples, não fazendo por isso sequer sentido averiguar do preenchimento das respectivas agravações que lhe foram igualmente imputadas, nem da respectiva culpa ou punibilidade da sua conduta. Deverá assim o arguido ser pura e simplesmente absolvido da prática de todos os crimes aqui em causa.

Este entendimento do tribunal “a quo” não faz sentido uma vez que o n.º 2, do art.º 180º do Código Penal só é aplicável quando estejam preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de difamação (para além de que as alíneas a. e b. são cumulativas).

Com efeito, para além de não ter tomado posição definitiva sobre se se verificam ou não os elementos objectivos do crime de difamação (“pensamos que as expressões que são proferidas pelo arguido (…) poderiam ser tidas como ofensivas da honra e consideração dos assistentes”), também não tomou posição definitiva sobre a verificação dos elementos subjectivos do mesmo (“muito embora se tenha dado como não provado, em geral, que o arguido pretendesse especificamente ofender a honra e consideração dos assistentes com as expressões que proferiu, bastará a existência de um dolo genérico ao proferir tais expressões, pelo que se poderia considerar preenchido pelo menos o elemento volitivo do dolo, ainda que existissem dúvidas quanto ao elemento cognitivo, na medida em que se deu como não provado que o arguido soubesse que a sua conduta fosse proibida e punida por lei”).

A tudo isto acresce que o tribunal “a quo” não tomou em consideração que os requisitos das alíneas a. e b. do n.º 2 são cumulativos (“permite-se assim que opere o n.º 2 do já citado artigo 180° do Cód. Penal, designadamente o disposto na respectiva alínea b)”).

Todas estas questões poderiam ser apreciadas e resolvidas nesta 2ª instância uma vez que são de conhecimento oficioso.

Porém, como acima se disse, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada incide sobre matéria fundamental para a decisão da causa e é insuperável nesta 2ª instância.

Explicando:

De acordo com o art.º 180º, n.º 1, do Código Penal, comete o crime de difamação “quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo.”

Decorre ainda da mesma disposição legal — conjugada com o disposto no artº 13º do Código Penal —, que para efeitos do tipo legal do crime de difamação só a actuação dolosa é punível, sendo certo que a lei não exige dolo específico — o animus injuriandi —, satisfazendo-se com qualquer das modalidades de dolo: dolo directo, dolo necessário ou dolo eventual (art.º 14º).

Na sentença recorrida deu-se simplesmente como não provados os factos que integram o dolo directo mas nada se disse sobre as demais formas de dolo.

Ora, se a não verificação de dolo necessário ou eventual, implicaria a imediata absolvição do arguido — por falta dos elementos subjectivos do crime —, a verificação de um desses tipos de dolo levaria à sua condenação, excepto se, por exemplo, se verificassem cumulativamente os requisitos das alíneas a. e b..

Uma vez que da factualidade dada por provada não consta qualquer uma das modalidade de dolo e que da matéria dada por não provada consta apenas que não ficou provado que “o arguido tenha pretendido agir como agiu com a intenção alcançada de ofender a honra e consideração pessoal e profissional que são devidas aos assistentes B... e C..., bem sabendo que os mesmos eram médicos e funcionários da (...) da Guarda, EPE, em exercício de tais funções”, temos que concluir que o tribunal “a quo” não averiguou, como devia e podia, da existência de qualquer uma das restantes modalidades de dolo, o que nos impede de proferir decisão devidamente sustentada.

Impunha-se assim ao tribunal “a quo” que averiguasse da existência de qualquer uma das restantes formas de dolo pois só a exclusão de todas elas permitiria uma decisão fundamentada e justa.

O que não aconteceu.

Padece, assim, a sentença recorrida do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto na al. a) do nº 2 do art.º 410.º, o que determina o reenvio para novo julgamento que no entanto não deverá abranger a totalidade do objecto do processo, mas apenas os factos relativos à questão acima identificada (ou quaisquer outros que venham a resultar da discussão da causa, nomeadamente, todos aqueles que, ainda que se tenham agora considerados não provados, se mostrem provados em consequência desta nova abordagem do elemento subjectivo do crime).

*

Termos em que acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em anular o julgamento efectuado e determinam o reenvio do processo para o tribunal a que alude o artigo 426º- A, nº. 2, do mesmo diploma, tendo em vista a realização de novo julgamento circunscrito à averiguação da existência de dolo em qualquer uma das suas modalidades, mas sem prejuízo do conhecimento quaisquer outros factos que, nos termos acima indicados, venham a resultar da discussão da causa.

Não é devida tributação.

*

Luis Ramos (Relator)

Olga Maurício


[1] “(…) quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista. O que importa é que o tribunal decida a questão posta, não lhe incumbindo apreciar todos os fundamentos ou razões em que as partes se apoiam para sustentar a sua pretensão” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 2011, acessível in www.dgsi.pt, tal como todos os demais arestos citados neste acórdão cuja acessibilidade não esteja localmente indicada)
[2] Diploma a que pertencerão, doravante, todos os normativos sem indicação da sua origem