Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3549/16.0T8LRA-K.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
EFICÁCIA DOS ACTOS
DESTITUIÇÃO
JUSTA CAUSA
RESPONSABILIDADE
Data do Acordão: 02/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO COMÉRCIO DE LEIRIA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 56.º, 59.º E 163.º DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESA (DL N.º 53/2004, DE 18 DE MARÇO).
Sumário: I) A lei insolvencial só prevê dois mecanismos de discussão dos actos do administrador da insolvência que tenham violado a lei: a declaração da respectiva ineficácia, em acção própria a instaurar por apenso aos autos de insolvência (artigo 163.º do CIRE); e a acção de responsabilização do administrador pelos danos que tenham sido causados aos devedores e aos credores da insolvência e da massa insolvente (artigo 59.º do CIRE).

II) A justa causa exigida pelo artigo 56.º do CIRE para a destituição do administrador da insolvência implica a demonstração de actos que envolvam uma administração notoriamente deficiente, inapropriada ou ineficaz da massa insolvente, e que, por isso mesmo, nunca seriam praticados por um administrador medianamente diligente e sagaz.

Decisão Texto Integral:







Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Nos autos de liquidação a correr termos por apenso à insolvência de A...,Lda, no Juízo de Comércio de Leiria, Comarca de Leiria, vieram AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH e II, requerer que se declarasse a nulidade da venda de 28.000 acções nominativas de que a insolvente era titular no capital de S..., S.A., efectuada a esta sociedade pelo Administrador da Insolvência, pelo preço de € 140.000,00, após negociação particular, mediante contrato celebrado em 25.06.2020 no Cartório Notarial da ...; e, bem assim, se decretasse a destituição do Sr. Administrador da Insolvência pelas irregularidades praticadas na dita negociação, com apuramento da respectiva responsabilidade pelos danos causados à massa insolvente.

Notificados para se pronunciarem, vieram o Sr. Adminstrador da Insolvência, a compradora S..., S.A., e os restantes membros da comissão de credores, manifestar a sua discordância, propugnando o indeferimento de todo o requerido.

A final foi proferida decisão na qual – para o que ora interessa – se indeferiu a nulidade da venda das acções nominativas de que a insolvente era titular no capital da referida S..., S.A., e, bem assim, o pedido de destituição do Sr. Administrador da Insolvência.

Inconformados, deste veredicto recorreram os credores Requerentes acima melhor identificados, recurso admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

                                                                       *

A apelação.

Nas conclusões com as quais encerra a sua alegação e delimitam o objecto do recurso, vêm levantadas pelos apelantes as seguintes questões:

Reapreciação da matéria de facto;

Necessidade do consentimento da comissão de credores:

Regularidade da obtenção desse consentimento;

Abuso do direito;

Justa causa para a destituição do Administrador da Insolvência.   

Contra-alegaram o Sr. Administrador da Insolvência e a compradora S..., S.A., pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

(…)

Enfim, vai integralmente mantida a matéria de facto consignada na decisão recorrida que agora se passa a transcrever:

1. Por sentença de 22.02.2017, transitada em julgado, foi declarada a insolvência da sociedade “A...,Lda”, nomeado como Administrador da Insolvência (doravante AI) o Sr. Dr. JJ... e aberto concurso de credores pelo prazo de 30 dias (cfr. fls. 104 a 109 do proc. principal).

2. No apenso A de Reclamação de créditos foi junta, pelo Exmº Administrador da Insolvência, a lista definitiva de créditos reconhecidos, sendo que por sentença de verificação de créditos proferida no dia 30/09/2017 foram reconhecidos os créditos constantes em tal lista e que não foram objecto de impugnação (cfr. fls. 23 a 28 e 31 a 33 vº do ap. A).

3. Mostram-se apreendidos nos autos, entre outros bens, títulos representativos de 28.000 acções respeitantes ao capital social da sociedade comercial S..., S.A., com o valor nominal total de € 140.000,00, que correspondem à Verba nº 17 do auto de apreensão de bens móveis datado de 09/08/2017 (cfr. fls. 17 e 18 do ap. B).

4. Por correio eletrónico datado de 28 de novembro de 2019 o Exmº AI informou a comissão de credores que “(…) Todavia, comunicar a V.Exas. que, a S..., S.A., pelas informações que prestou ao AJ, pondera adquirir estas ações pelo valor nominal, que neste caso, está muito próximo do valor de € 140.000,00, valor este que seria pago após a aprovação da proposta. Analisadas todas as informações prestadas ao AJ sobre esta empresa, a documentação remetida, assim como a proposta efetuada, o AJ está em condições de informar V.Exas. que é de opinião que a proposta efetuada é razoável, face à atual situação da empresa e face, igualmente, ao contexto de mercado. Deste modo, V.Exas. dispõem de um prazo de 8 dias para tomar posição, isto é, se aceitam ou não a proposta de aquisição das ações apreendidas efetuada pela S..., S.A. Porém, alerto para o facto de esta empresa ter informado o AJ que pretende uma resposta breve, sob pena de desistir da proposta apresentada. (…) Face ao exposto, solicito que V. Exas. no prazo máximo de 8 dias tomem posição acerca da proposta apresentada pela S..., S.A. para aquisição das 28.000 ações apreendidas, bem como da proposta apresentada para a verba nº 13 – máquinas da sua atividade económica.” (cfr. presente apenso G, fls. 95 vº-96 e163 vº-164)

5. Deste modo, da mesma forma que a Il. mandatária dos credores ora requerentes foi notificada de tal informação no dia 28 de novembro de 2019, os restantes membros da comissão também o foram, ou seja: - O Dr. JJ, na qualidade de mandatário do B..., S.A. e igualmente da atual credora habilitada  I..., S.A.R.L., Presidente da Comissão de Credores; - O Dr. KK, na qualidade de mandatário da M..., SL; - E a Dra. LL, na qualidade de mandatária dos credores ora Requerentes. (cfr. presente apenso G, fls. 163 vº-164)

6. Na sequência de tal comunicação, os credores ora requerentes, através da sua Il. Mandatária, remeteram ao Exmº AI a comunicação electrónica datada de 05/12/2019, da qual consta, para além do mais, o seguinte: “(…)Neste mail e como suporte ao valor de venda das acções da S..., S.A. o Senhor Administrador junta uma “apreciação do valor da empresa” elaborada por um engenheiro, ao qual, como é óbvio, não reconhecemos quaisquer competências técnicas para aferir o valor do capital de uma qualquer empresa. Porém, mais grave do que tal facto é a tomada de posição do Senhor Administrador: vender aos accionistas pelo valor de € 140.000,00 pois quem adquirir as acções da Insolvente não terá maioria uma vez que adquire apenas 40% do capital Salvo melhor opinião, o Senhor Administrador tem por dever velar pelos interesses da massa insolvente e seus credores e não pelos interesses de quem adquire os bens apreendidos à massa, nomeadamente os do restante capital da S..., S.A.. Cabe ao Senhor Administrador vender ao melhor preço os 40% do capital da S..., S.A.. Se quem adquire tem ou não a maioria dessa empresa isso é absolutamente irrelevante para a massa e seus credores, agora o que não pode nem deve é propor a venda desse mesmo capital aos accionistas por um valor por estes proposto, sem antes aferir sobre sua conformidade com o mercado, sob pena de prejudicar todos os credores, cujos interesses o Senhor Administrador foi nomeado para defender Assim e porque o valor das acções do capital de uma sociedade não se afere, com base em apreciações efectuadas por engenheiros, nem pelos documentos que o Senhor Administrador juntou aos autos, mais uma vez lhe solicito que me envie as IES dos últimos 3 anos da S..., S.A. pois os meus clientes comprometem-se a entregar uma avaliação do capital efectuada por técnico credenciado na área, economia, claro. Remetida essa documentação e apresentado esse relatório, deverá o Senhor administrador diligenciar pela venda das acções, até porque conhecemos quem esteja interessado na compra do capital em questão. Em conclusão, os meus clientes, na qualidade de membros da comissão de credores, opõem-se vilmente à venda das acções pelo valor proposto, muito em particular sem antes lhe ser facultada a possibilidade apresentarem ou de lhes ser exibido, relatório económico condigo, credível e isento, do valor das indicadas acções (…)” (cfr. presente apenso G, fls. 108-109)

7. Por seu turno, os dois outros membros da Comissão de Credores, B..., S.A. e M..., SL, manifestaram-se favoravelmente à preconizada venda das acções em apreço à S..., S.A., o que fizeram através de comunicações electrónicas que remeteram ao Exmº AI nos dias 31/01/2020 e 11/02/2020, respectivamente. (cfr. presente apenso G, fls. 131, frente e verso)

8. E as posições favoráveis desses credores foram comunicadas tanto aos autos, por requerimento datado de 28 de fevereiro de 2020, como à mandatária dos credores aqui Requerentes, nomeadamente por correio eletrónico datado de 28 de fevereiro de 2020. (cfr. presente apenso G, fls. 69 a 70 vº e 132)

9. Por requerimento do Exmº AI datado de 22 de janeiro de 2020, foram os presentes autos de Liquidação informados que “ (…) 8 – No entanto, importa informar o Tribunal que, a S..., S.A., pelas informações que prestou ao AJ, pondera adquirir estas ações pelo valor nominal, que neste caso, está muito próximo do valor de € 140.000,00, valor este que seria pago após a aprovação da proposta. 9 – Ora, todo este quadro foi exposto e apresentado à Comissão de Credores, tendo o AJ pugnado, atendendo às informações prestadas sobre esta empresa e à documentação remetida, pela aceitação da proposta, pois entende ser razoável face á atual situação da empresa e ao contexto de mercado. 10 – Solicitou também a estes credores sua tomada de posição, pelo que, de momento, ainda se encontra a aguardar”, requerimento esse que, conforme determinado por despacho datado de 24 de fevereiro de 2020, foi notificado à Comissão de Credores (incluindo, portanto, à Il. Mandatária dos credores ora requerentes) (cfr. presente apenso G, fls. 66 a 68).

10. Por correio eletrónico datado de 28 de fevereiro de 2020, o Exmº AI, para além do mais, solicitou à Il. mandatária dos credores ora requerentes que “(…) Porém, face à posição assumida pela Ilustre Dra. e pelos constituintes de v.exa., que parecem demonstrar conhecimento desta matéria, e por se tratar de um bem muito específico, convido a D. Dra. e os seus constituintes, caso tenham conhecimento, a apresentarem algum interessado na aquisição destas ações, no prazo máximo de 8 dias. (…)”. (cfr. presente apenso G, fls. 132)

11. Os credores ora requerentes não apresentaram ao Exmº AI a identificação de qualquer interessado na aquisição das referidas acções. (cfr., para além do mais, o teor integral do presente apenso G).

12. Por requerimento datado de 20 de abril de 2020, o Exmº AI informou os presentes autos de Liquidação que “1- Por requerimento apresentado no passado dia 28 de fevereiro o AJ informou os autos que convidou a Ilustre Sra. Dra. LL, assim como os constituintes desta, aqui Credores, para, no prazo máximo de 8 dias, apresentarem algum interessado na aquisição das 28 mil ações apreendidas. 2 – Acontece que, como o AJ não rececionou qualquer resposta a este pedido de colaboração, ou qualquer proposta, via correio eletrónico, datado de 15 de abril, informou a Distinta Dra. que, tendo sido esta a melhor proposta obtida para a aquisição destas 28 mil ações e tendo os restantes credores notificados, "M..., SL" e "B..., S.A.", aceite a mesma, notificou a proponente S..., S.A. e comunicou que a proposta apresentada, no valor de € 140.000,00 (cento e quarenta mil euros), tinha sido aceite e que se encontrava disponível para celebrar a escritura de compra e venda das ações apreendidas. 3 – Assim, de momento, o AJ encontra-se a aguardar que a S..., S.A.S..., S.A. designe dia e hora para a celebração da escritura de compra e venda das 28 mil ações apreendidas.”. (cfr. presente apenso G, fls. 71)

13. O correio eletrónico datado de 15/04/2020, que é referido no texto do requerimento descrito no facto anterior, tem o seguinte teor: “Os meus melhores cumprimentos. Serve o presente para expor a v.exas. o seguinte: Por e-mail datado de 28 de fevereiro notifiquei, via correio eletrónico, a Ilustre Dra. LL, uma vez que os seus constituintes foram os únicos que não aceitaram a proposta apresentada pela S..., S.A.S..., S.A. para aquisição das 28 mil ações apreendidas. Na verdade, recorde-se que, tanto o credor "M..., SL" como o credor "B..., S.A." pronunciaram-se pela aceitação da proposta apresentada. Ora, na comunicação remetida o AJ convidou a Ilustre Dra. LL, bem como os s/ constituintes para, no prazo máximo de 8 dias, caso tivessem conhecimento, apresentarem algum interessado na aquisição destas ações. Acontece que, até à presente data, o AJ não rececionou qualquer proposta, pelo que vai aceitar a proposta apresentada pela S..., S.A.S..., S.A., uma vez que foi a melhor proposta obtida para estas ações. Deste modo, vai o AJ notificar a S..., S.A.S..., S.A. para designar dia e hora a fim de se celebrar a respetiva escritura de compra e venda. Sem mais assunto de momento, reitero os meus melhores cumprimentos” (cfr. presente apenso G, fls. 133).

14. Tal correio electrónico datado de 15/04/2020 foi remetido também à Il. Mandatária dos credores ora Requerentes (cfr. presente apenso G, fls. 133).

15. Por motivos não apurados, tal mensagem de correio electrónico foi classificada pela “plataforma” ou servidor de correio electrónico profissional (da Ordem dos Advogados) usada pela Il. Mandatária dos credores ora Requerentes como “SPAM”, e foi “colocada em quarentena” (cfr. presente apenso G, fls. 154 vº a 156 vº)

16. Mediante escritura de compra e venda datada de 25/06/2020, o Exmº Administrador da Insolvência, em representação da Massa Insolvente da sociedade aqui Insolvente, vendeu à S..., S.A., pelo preço de € 140.000,00, vinte e oito mil acções nominativas respeitantes ao capital social da sociedade adquirente (cfr. presente apenso G, fls. 78 a 83).

17. Mediante requerimento junto ao presente apenso de Liquidação a 20/11/2020, o Exmº AI, para além do mais, juntou cópia da escritura referida no facto anterior. (cfr. presente apenso G, fls. 77 a 83).

18. O requerimento referido no facto anterior foi notificado à Comissão de Credores, conforme determinado por despacho de 15/12/2020, notificação essa elaborada a 16/12/2020 (cfr. presente apenso G, fls. 84, bem como o atinente e subsequente processado electrónico).

19. Os ora Requerentes deduziram o presente incidente de nulidade da venda através de requerimento entrado em Juízo a 31/12/2020. (cfr. presente apenso G, fls. 85 a 112).

20. No âmbito do proc. principal foi proferido, a 17/11/2020, o seguinte despacho: “Reqº da L... de 14/10/2020: em face do seu teor e ao abrigo do disposto no art. 3º, nºs 1 e 2, do Dec.-Lei nº 42/2019, de 28/3, considero a cessionária ora requerente - L..., S.A.R.L. – habilitada no lugar do credor cedente B..., S.A. quanto à totalidade dos créditos reconhecidos a este e respectivas garantias. Conforme requerido, determina-se a substituição, como Presidente da Comissão de Credores, do B..., S.A. pela credora ora habilitada L..., S.A.R.L.. Notifique a ora requerente, o credor cedente, a insolvente, a Comissão de Credores e o Exmº AI, sendo este também do teor do reqº em apreço. Notifique também a ora requerente para, na actual qualidade de Presidente da Comissão de Credores, no prazo de 10 dias, juntar aos autos a respectiva credencial, notificando tal aos demais membros da Comissão de Credores através da notificação entre mandatários. Após tal junção, dê conhecimento da mesma ao Exmº AI.” (cfr. proc. principal, fls. 533).

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Sobre a necessidade do consentimento da comissão de credores.

Entendem os credores ora apelantes que a venda por negociação particular das 28.000 acções nominativas detidas pela insolvente no capital social da S..., S.A., estava sujeita ao consentimento da comissão de credores por constituir um “acto jurídico de especial relevo para o processo de insolvência”, isto porquanto o valor do negócio ultrapassava € 10.000,00 e representava pelo menos 10% do valor da massa insolvente, requisitos que são os exigidos pelo art.º 161, nºs 1 e 3, al.ª g), do CIRE para tal qualificação.

Na decisão recorrida foi ponderado que, podendo dar-se por verificado o primeiro pressuposto – visto valor declarado para o negócio ser superior a € 10.000,00 – já o mesmo não sucedia com o segundo, uma vez que nenhuma informação existia sobre os valores dos restantes bens apreendidos (“venais”, prováveis”, “patrimoniais tributários” ou de outra espécie) nomeadamente do imóvel (apesar tudo qualificado como “o bem mais valioso”) e dos veículos automóveis. Pelo que concluiu que não havia elementos para subsumir a situação dos autos à previsão da aludida alínea.

Nenhuma crítica se nos oferece produzir sobre esta ponderação.

Na verdade, não se encontra nos autos qualquer indicação sobre o que se deva ter por valor real ou sequer provável do conjunto dos bens apreendidos para a massa, de molde a poder concluir-se que o preço de venda das acções foi igual ou superior a 10% desse montante.

E, como referem Carvalho Fernandes e João Labareda no seu CIRE anotado (anotação ao art.º 161), “a ponderação do valor do bem em causa no conjunto da massa só verdadeiramente se pode verificar em vista das avaliações feitas corrigidas pelo resultado de anteriores vendas de outros bens que tenham gerado um produto diferente do estimado.

Daí que não haja base factual suficiente para qualificar o negócio de venda das acções como acto jurídico de especial relevo para o efeito do nº 1 do art.º 161 do CIRE.

Regularidade na obtenção do consentimento da comissão de credores.

Partindo do pressuposto de que haveria que obter o consentimento da comissão de credores para a venda das 28.000 acções nominativas da S..., S.A., pertencentes à insolvente, almejam os recorrentes ver declarada a nulidade da mesma com fundamento nos seguintes vícios:

Falta de pedido de consentimento expressamente dirigido à comissão de credores;

Ausência de deliberação da comissão de credores como órgão colegial, não tendo existido reunião dos respectivos membros nem acordo sobre o voto escrito (art.º 69, nºs 1 e 3 do CIRE);

Mesmo existindo deliberação, a inexistência da comunicação aos seus membros e ao juiz (art.º 69, nº 4, do CIRE);

Ausência de informação da comissão de credores sobre a identidade do adquirente das acções e demais condições do negócio com a antecedência mínima de 15 dias relativamente à data da transacção (art.º 161, nº 4, do CIRE).

Tratar-se-iam aqui de formalidades prescritas no CIRE de cujo cumprimento dependeria a validade/regularidade do consentimento da comissão de credores.

A decisão recorrida teve a deliberação da comissão de credores para a venda das acções pelo valor proposto - € 140.000,00 – como plenamente regular, e, portanto, válida, tendo em conta as regras de funcionamento enunciadas no art.º 69 do CIRE.

Com efeito, ali se afirmou que, face às limitações decorrentes da situação de pandemia do COVD-19, foi correcto o procedimento do Sr. AI de solicitar a pronúncia por escrito dos membros da comissão tal como o foi o da transmissão por escrito (por correio electrónico) da vontade de cada um desses membros; que os credores requerentes, integrando a comissão de credores, não diligenciaram tão pouco pela convocação da respectiva reunião; que a comissão de credores deliberou, ainda que por uma maioria de dois dos seus três membros, aceitar a proposta para a venda das acções.

Rebelam-se os credores agora apelantes contra este posicionamento da decisão recorrida contrapondo a inobservância da disciplina imposta pelo referido art.º 69 do CIRE.

Vejamos.

 

Já no Ac. desta Relação de 16/01/2018, de que foi relator o aqui 2º Adjunto, proferido no p. 6229/16.2T8VIS-E.C1,disponível www.dgsi.pt, foi pertinentemente observado que “no processo de insolvência (especial em relação aos demais e por isso só se lhe aplicando as regras gerais, de forma residual, nos termos previstos no artigo 549.º, n.º 1, do CPC), a eficácia dos actos do administrador da insolvência só é posta em crise nos termos previstos no artigo 163.º do CIRE, tudo sem prejuízo de o mesmo poder vir a ser pessoalmente responsabilizado nos termos do seu artigo 59.º.

Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE Anotado, 2.ª Edição, Quid Juris, 2013, a pág. 636, com o regime instituído pelo CIRE, por contraposição ao anterior, houve uma “intensificação da desjudicialização do processo», ficando reduzida a intervenção do juiz que, no domínio da administração e liquidação da massa se traduziu ‘por um lado, em retirar ao juiz qualquer poder de decisão ou, sequer, de intervenção a propósito, e, a nível ainda mais significativo, no desaparecimento da possibilidade de impugnar junto do juiz tanto as deliberações da comissão de credores […] como dos actos do administrador da insolvência’.

Em paralelo, e, decerto, com o objectivo de dinamização e eficiência do processo – instrumentos determinantes da melhor satisfação possível dos interesses dos credores, que constitui a finalidade visada pelo instituto da insolvência -, reforçou-se a competência do administrador, eximindo-o à necessidade permanente de obter a aquiescência de outros órgãos para a concretização dos atos de administração e, sobretudo de liquidação da massa insolvente, por contrapartida da expressa responsabilização pessoal perante os credores.”.

Acrescentando a pág. 637 que a violação dos deveres impostos ao administrador da insolvência fundamenta a responsabilidade civil, ocorrendo os demais pressupostos.

Reiterando a pág. 650 que incumbe ao administrador da insolvência, em exclusivo, a escolha da modalidade da venda, tratando-se de uma opção que se insere no “quadro geral do reforço dos poderes do administrador e satisfaz, de modo significativo, a intenção de desjudicialização do processo”, do que decorre não estar o mesmo obrigado a seguir deliberações de outros órgãos da insolvência e “a decisão não ser censurável, através de qualquer tipo de impugnação, perante outros órgãos ou perante o juiz”.

Na mesma linha são citados os Acórdãos da Relação do Porto de 30/01/2017, no p. n.º 530/16.2T8AVR-F.P1, e da Rel. de Guimarães de 31/03/2016, no p. nº 8579/09.5TBBRG-E.G1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

Não vemos motivo para divergir deste entendimento, que, de resto, se nos afigura ser aquele que é o consentâneo com o pensamento do legislador nesta matéria.

É que a abertura de incidentes de natureza declarativa para a apreciação de irregularidades formais na fase da liquidação só contribuiria para comprometer seriamente a sua eficácia, retardando a obtenção do pagamento aos credores, e, em muitos casos, provocando mesmo uma indesejável depreciação do valor dos bens.

Daí que as apontadas irregularidades ou vícios na colheita do consentimento da comissão de credores não possam ser relevados para invalidar ou tornar ineficaz os actos de alienação praticados pelo Administrador.

Entendem ainda os recorrentes que a venda em causa é nula, devendo ser declarada sem efeito por força do disposto no art.º 839 do CPC, também por não ter sido observado o condicionalismo previsto no art832 do CPC, e, face à oposição de um dos membros da comissão de credores, não ter sido obtida a necessária autorização do juiz para a respectiva realização.

Valem aqui as considerações já expendidas a propósito da regularidade da obtenção do consentimento da comissão de credores.

Em função das especiais necessidades de celeridade do processo de insolvência e de liquidação da massa insolvente, as normas do CPC que estabelecem meios de reacção contra as decisões do AI que não respeitem as formalidades do CIRE não são decalcáveis para a disciplina insolvencial em geral, e, para o processo de liquidação em particular. Nessas normas estão claramente aquelas em que são objecto de específica regulação a impugnação de irregularidades da venda e os casos em que esta fica sem efeito (art.ºs 835 e 839 do CPC).

Para se evitarem expedientes dilatórios e obstáculos à rapidez do processo de liquidação, a lei insolvencial só prevê dois campos de actuação onde podem ser discutidos os actos administrador que tenham violado a lei: a declaração da respectiva ineficácia, nos apertados termos do art.º 163 do CIRE, em acção própria a instaurar por apenso aos autos de insolvência; e a acção de responsabilização do administrador pelos danos que tenham sido causados aos devedores e aos credores da insolvência e da massa insolvente (art.º 59 do CIRE).   

Houve uma notória intenção do legislador em limitar as possibilidades de impugnação dos actos do administrador no âmbito do processo insolvencial, avultando o propósito prevalecente de apenas conferir aos interessados um direito de indemnização.

Foi esta a via preferencialmente escolhida, sem prejuízo da hipótese excepcional da declaração de ineficácia por força do desequilíbrio manifesto de obrigações a que alude o art.º 163 do CIRE.

Como bem se salienta no Ac. da Rel. do Porto 29.05.2014, no p. 615/11.1TYVNG-D.P1, disponível em www.dgsi.pt, “ o administrador está vinculado a actuar como administrador criterioso e ordenado, sob pena de responder pelos danos que a sua actuação cause aos credores. Contudo, os seus actos não podem ser impugnados perante o juiz, já que perante terceiros, em regra, se mantém válidos e eficazes, sem prejuízo do dever de indemnização que façam recair sobre o administrador (…).

Independentemente de haver lugar a justa causa para a sua destituição nos termos do art.º 56 do CIRE, “O administrador responde pelos danos causados ao devedor e aos credores da insolvência e da massa insolvente pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem, sendo a sua culpa apreciada pela diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado (artigo 59.º, n.º 1). O administrador responde igualmente pelos danos causados aos credores da massa insolvente se esta for insuficiente para satisfazer integralmente os respectivos direitos e estes resultarem de acto do administrador (artigo 59.º, n.º 2)” (cfr. o igualmente já referido Ac. da Relação do Porto de 30.01.2017).

Em conformidade com estas considerações, nenhuma consequência há que extrair relativamente à invalidade da venda das acções provocada por uma hipotética violação pelo AI das normas legais invocadas pelos recorrentes.

Desprezo de elementos para a determinação do valor das acções com influência no resultado alcançado com a venda realizada.

Querem ainda os apelantes que se declare que o facto de o sr. AI não ter diligenciado pela justa avaliação do preço das acções e ter recusado a entrega de elementos para essa avaliação a um dos membros da comissão de credores são irregularidades que conduziriam à nulidade da venda por terem influenciado o respectivo resultado, de harmonia com o preceituado no art.º 195, nº1, do CPC ex vi do art.º 17 do CIRE.

Sem prejuízo do já expendido sobre a autonomia e desjudicialização dos actos do Administrador da Insolvência, é de observar que as omissões que agora são apontadas, não só não decorrem da materialidade provada, como não configuram o desrespeito de quaisquer prescrições do CIRE (que, aliás, nem são indicadas pelos recorrentes).

Não está o Administrador de Insolvência sujeito a quaisquer normas de conduta que não venham impostas no CIRE, não lhe sendo aplicáveis as disposições do CPC sobre a determinação do valor dos bens a vender nos moldes do art.º 812 deste Código.

De resto, o art.º 164 do CIRE preceitua que ele “escolhe a modalidade da alienação dos bens, podendo optar por qualquer das que são admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente”

Gozava, assim, o administrador da insolvência de uma ampla autonomia na decisão de vender pelo preço que lhe foi oferecido, apenas tendo de colher o consentimento da comissão de credores na situação identificada no nº 1 do art.º 161 do CIRE.

Ou seja, também neste segmento recursivo os recorrentes soçobram no desiderato de, por via da invocação das supostas irregularidades, verem declarado nulo o acto da venda levada a cabo pelo Sr. Administrador da Insolvência.

Ineficácia da venda das acções.

Esgrimem ainda os apelantes com a ineficácia do negócio em apreço, estribando-se na afirmação de que, em conformidade com o estatuído no art.º 163 do CIRE, “As obrigações assumidas pelo Senhor AI que se projectam na massa e a vinculam excedem manifestamente as assumidas pela outra parte, neste caso a S..., S.A. (cfr. a conclusão 15ª da alegação recursiva).

Mas sem razão.

Como já se deixou dito, a declaração de ineficácia que vem prevista na norma do art.º 163 do CIRE não pode ser discutida, apreciada e decidida em via incidental mas antes em acção autónoma a instaurar pelos credores interessados ou pelo devedor (ou pelo novo administrador entretanto nomeado em eventual substituição do destituído) contra quem aproveite do acto praticado e o Administrador da Insolvência que nele haja intervindo.

A regra é, pois, a da eficácia e oponibilidade dos actos praticados pelo Administrador da Insolvência.

Sendo certo que, por não se tratar de nulidade mas de mera ineficácia, é de admitir, apesar de tudo, a ratificação pelo órgão que deveria ter autorizado o acto e não foi ouvido (comissão de credores ou assembleia geral).

Em tal hipótese, não só o acto fica definitivamente sanado como deixa de relevar o “excesso manifesto” das obrigações assumidas pelo administrador a que alude o art.º 163 do CIRE (neste sentido, v. Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, V. I, Quid Juris, 2006, pág.s 551 a 554, anotações 5ª e 9ª ao art.º 163).

Não é, por conseguinte, admissível a discussão incidental da ineficácia do negócio nestes autos de liquidação.

De todo o modo, sempre se dirá que os elementos que se retiram da factualidade apurada nos autos não evidenciam o dito “excesso manifesto” de obrigações assumidas pela massa insolvente. O desequilíbrio exigido pela lei deve ressaltar dos próprios termos do negócio e não de ponderações efectuadas a partir de elementos de avaliação laterais e posteriores, como é aquela de que os recorrentes se pretendem socorrer.

Donde a improcedência desta questão recursiva.        

Do abuso do direito.

Levantam os apelantes a questão da inexistência do abuso do direito que foi objecto de análise pela decisão recorrida.

Porém, tendo-se concluído pela impossibilidade de reacção dos credores apelantes aos actos do Administrador da Insolvência no âmbito dos presentes autos de liquidação, esta questão está obviamente prejudicada.

Da destituição do Administrador da Insolvência.

Por último, pugnam os recorrentes pela revogação do decidido no que concerne à improcedência do pedido de destituição do AI porquanto, segundo eles, ocorre para tanto justa causa nos termos do art.º 56 do CIRE.

Novamente sem sucesso.

Escreveu-se na decisão recorrida que “para além do mais, o Ex.mo AI, nas operações de liquidação, designadamente no procedimento de venda das referenciadas acções, cumpriu todos os trâmites legais de forma válida e regular, tendo até ouvido e obtido o consentimento da comissão de credores para praticar tal acto quando, em bom rigor, até não estaria obrigado a tal”.

Objectam os apelantes que ocorre a justa causa exigida pelo art.º 56 do CIRE para a destituição.

Segundo a noção de justa causa que é fornecida por Carvalho Fernandes e João Labareda, citada pela decisão recorrida, esta requer a comprovação de uma “administração ou liquidação deficientes, inapropriadas ou ineficazes da massa”.

Terá de ser uma administração notoriamente inadequada.

Estão aqui em apreço todos aqueles actos que, ainda que com respeito pela lei, um administrador medianamente diligente e sagaz teria certamente praticado, porque necessários, ou teria certamente evitado, porque imprudentes ou desaconselháveis.

Compulsada a materialidade provada, nela não se vislumbra uma administração/liquidação susceptível de qualificações desse tipo, designadamente na operação de venda das acções supramencionada.

Na verdade, percorrido aquele elenco, retira-se que o Administrador da Insolvência agora em causa pautou a sua conduta pelo respeito do formalismo legal, ainda que agilizando o consentimento da comissão credores em função do particularismo que já condicionava a vida em sociedade naquela época.

Por outro lado, nada indicia que tenha havido negligência do AI em ter aceite a venda das acções pelo valor oferecido (€ 140.000,00), nomeadamente por ter desprezado informações isentas e fiáveis que inculcariam a presença de um preço demasiadamente baixo em relação ao valor de mercado dos bens a alienar.

De sorte, que, uma vez mais, o recurso soçobra nesta última questão.

Pelo exposto, na improcedência da apelação, confirmam a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes.

                       

Coimbra, 15 de Fevereiro de 2022


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