Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3536/10.1TJCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: ARRENDAMENTO
RENDA
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
RESOLUÇÃO
Data do Acordão: 05/22/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA 3º J C
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.334, 428, 762, 1040, 1081, 1083, 1087 CC
Sumário: 1. Nas situações em que o senhorio não tenha realizado no local arrendado obras a seu cargo, o arrendatário, enquanto se mantiver no gozo do imóvel, não poderá utilizar a excepção de não cumprimento do contrato para se recusar a pagar a renda, em consequência daquele facto, apenas podendo efectuar a redução da renda na medida proporcional à privação ou diminuição do gozo.

2. Se o arrendatário deixar de satisfazer na totalidade a renda devida quando o máximo a que teria direito seria suspender o respectivo pagamento em medida proporcionada à privação parcial do gozo, a conclusão a extrair não pode ser outra senão a de que incorreu em mora, com as inerentes consequências, nomeadamente, a eventual resolução do contrato e a entrega do prédio arrendado.

3. O locatário só pode suspender o pagamento da totalidade da renda quando se trate de não cumprimento do locador que exclua totalmente o gozo da coisa.

Decisão Texto Integral:             Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. A 28.10.2010, M (…) instaurou contra P (…) e A (…) execução para entrega de coisa certa – uma moradia sita na ..., ..., Coimbra – com fundamento no contrato de arrendamento que em 12.6.2008 celebrou com os executados e no comprovativo da comunicação que, através de notificação judicial avulsa efectuada em 24.4.2010, fez aos executados da cessação desse contrato por resolução com fundamento na falta de pagamento das rendas referentes aos meses de Maio de 2009 e Janeiro, Fevereiro, Março e Abril de 2010, nos termos previstos na alínea e) do n.º 1 do art.º 15º da Lei n.º 6/2006, de 27.02.

Os executados deduziram oposição à execução referindo, em resumo, que não pagaram as rendas relativas a Janeiro, Fevereiro, Março e Abril de 2010 porque a exequente se recusou a realizar obras de reparação ao nível da canalização, instalação eléctrica e telhado do local arrendado - necessárias para o dotar das condições mínimas de habitabilidade de que carecia e que tinham sido impostas à senhoria/exequente pela Câmara Municipal de Coimbra -, legitimando essa recusa a suspensão do pagamento das rendas devidas. Referiram ainda que importa deduzir, ao valor das rendas em dívida, a importância de € 225 correspondente às horas de trabalho do 1º executado realizadas com a execução dos trabalhos de reparação do local arrendado aludidos nos itens 9º e seguintes da petição inicial (p. i.) da oposição e que a resolução do contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento dessas rendas, nas descritas circunstâncias, consubstancia situação de abuso do direito.

A exequente contestou as oposições, aduzindo, nomeadamente, em síntese, que liquidou aos executados o valor que estes lhe apresentaram relativo à reparação da caleira do prédio arrendado; inexistem quaisquer deficiências na canalização ou na rede eléctrica; muito antes de a exequente ter sido notificada pela Câmara Municipal de Coimbra, os executados recusaram autorizar a entrada dos pedreiros incumbidos, por aquela, de realizar as obras de reparação do prédio arrendado.

Seguidamente, considerando que a questão a decidir era unicamente de direito, o Tribunal a quo conheceu da oposição, julgando-a improcedente, com o consequente prosseguimento da execução.

Inconformado e visando a “revogação da sentença”, tida por “nula e ilegal”, o 1º executado/oponente interpôs recurso de apelação formulando as conclusões que assim vão sintetizadas:

1º - A sentença padece de nulidade nos termos do art.º 668º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil (CPC), pois o tribunal a quo não conheceu a matéria de facto alegada nos art.ºs 1º e 15º da p. i. da oposição, sendo que, caso a mesma se provasse, daí poderia resultar que as rendas cujo pagamento é reclamado pela exequente podiam não ser devidas.

2º - A sentença, nesta parte, padece de nulidade, ilegalidade e, no mínimo, de erro de julgamento, devendo em consequência ser revogada e ordenada a realização de julgamento para apreciação de tais factos e suas consequências.

3º - O tribunal a quo violou os art.ºs 1031º, b), 1032º e 334º, do Código Civil (CC)[1], pois, atendendo à factologia elencada na oposição, daí resulta que a exequente enquanto locadora, culposamente, incumpriu com as suas obrigações e com tal conduta impediu e impede que o executado frua e goze totalmente a coisa locada, e vai ao extremo de não realizar obras que dotem a casa com condições de habitabilidade.

4º - Não tendo a instalação eléctrica da casa fio de terra, estando o quadro eléctrico sempre a disparar, escorrendo água pelos tectos e paredes dos quartos de dormir, existindo canalizações entupidas e com maus cheiros.

5º - Ocasionando tais infiltrações avarias em aparelhos eléctricos, danos em móveis e consumo anormal de electricidade.

6º - Recusando-se a exequente/locadora a realizar no locado as obras impostas pela Câmara Municipal de Coimbra.

7º - Quando a situação de incumprimento do locador é de tal forma grave, como é o caso, podem os locatários suspender o pagamento das rendas, sob pena de abuso de direito por parte do locador.

8º - O facto de impor o locador ao locatário a obrigação de pagamento de renda, quando o próprio locador culposamente e conscientemente não cumpre com as suas obrigações, consubstancia uma situação de abuso de direito por parte deste.

A exequente não respondeu à alegação de recurso.

Na sequência do despacho do relator de fls. 170, o Tribunal recorrido fixou o valor da causa e conheceu da “nulidade da decisão”, concluindo pela inexistência da invocada omissão de pronúncia (fls. 176).

            Atento o referido acervo conclusivo [delimitativo do objecto do recurso - art.ºs 684º, n.º 3 e 685º-A, n.ºs 1 e 3, do CPC, na redacção conferida pelo DL n.º 303/07, de 24.8] importa decidir: a) se foi cometida a dita “nulidade da sentença”; b) se a operada resolução do contrato de arrendamento celebrado entre as partes é ou não válida.


*

II. 1. Releva a seguinte factualidade:

a) Por contrato de arrendamento, datado de 12.6.2008, a exequente deu de arrendamento ao 1º executado/oponente o prédio urbano composto de r/c, garagem e jardim, sito na ..., freguesia de ..., concelho de Coimbra, inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ..., pelo prazo de cinco anos, com início em 01.7.2008, mediante a renda anual de € 6 000, a pagar mensalmente em duodécimos de € 500, no primeiro dia útil do mês imediatamente anterior àquele a que respeitar e na residência daquela ou através de depósito ou transferência bancária.

b) A 2ª executada/oponente, na qualidade de “fiadora”, obrigou-se também ao pagamento da referida renda.

c) Aquando da notificação judicial avulsa mencionada em I, supra, realizada a 24.4.2010, os executados não tinham pago, pelo menos, as rendas relativas a Janeiro, Fevereiro, Março e Abril de 2010, nem haviam procedido ao depósito do respectivo montante.

d) Nos termos da mesma notificação, que deu entrada em Tribunal a 07.4.2010, a resolução do contrato de arrendamento com fundamento no não cumprimento da obrigação de pagamento das rendas produziria efeitos a 19.4.2010, devendo o prédio arrendado ser entregue à exequente livre de pessoas e bens.

e) Os executados não procederam à entrega do mencionado prédio.

f) Por carta datada de 03.02.2010, o 1º executado comunicou à exequente, nomeadamente: “(…) estou disposto a chegar a um acordo que seja razoável para ambas as partes (…)”; “(…) visto faltarem 3 anos para terminar o contrato a Sr.ª paga-me o montante que perfizer um ano e meio do mesmo eu saio e vou para uma casa à minha escolha onde não tenha tanto frio nem os meus filhos sempre doentes”.

g) Por ofício datado de 17.3.2010[2], o Departamento de Habitação/Divisão de Reabilitação de Edifícios, da Câmara Municipal de Coimbra, notificou a exequente, na qualidade de proprietária do imóvel sito na “ ..., n.º 13”, para executar as seguintes obras: “reparar/substituir a canalização do saneamento da instalação sanitária; reparar/substituir os tacos de madeira degradados dos dois quartos; reparar/impermeabilizar a cobertura em terraço e a restante em telha cerâmica, incluindo o levantamento e reposição da telha existente de acordo com as boas regras da construção”.

2. O recorrente diz que o saneador-sentença recorrido padece de “nulidade” nos termos do art.º 668º, n.º 1, alínea d), do CPC, na medida em que o tribunal a quo não conheceu a matéria de facto alegada nos art.ºs 1º e 15º da p. i. da oposição à execução, sendo que, caso a mesma se provasse, daí poderia resultar que as rendas cujo pagamento é reclamado pela exequente não serem devidas, existindo assim, pelo menos, “erro de julgamento”.

Segundo o mencionado normativo, a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

 O caso da alínea d) do n.º 1 do art.º 668º, do CPC, relaciona-se com o dispositivo do art.° 660°, n.° 2, do mesmo diploma legal[3], e por ele se tem de integrar. A primeira modalidade (omissão de pronúncia) tem a limitação aí constante quanto às decisões que devam considerar-se prejudicadas pela solução dada a outras; a segunda (excesso de pronúncia) reporta-se àquelas questões de que o tribunal não pode conhecer oficiosamente e que não tenham sido suscitadas pelas partes, devendo a palavra “questões” ser tomada em sentido amplo: compreenderá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem.

Contudo, é incorrecto inferir-se que a sentença deverá examinar toda a matéria controvertida, ainda que o exame de uma só parte impuser necessariamente a decisão da causa, favorável ou desfavorável – neste sentido haverá que compreender-se a fórmula da lei “exceptuadas aquelas questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras” (art.º 660º, n.º 2, do CPC).[4]

Analisada a decisão sob censura verifica-se que não enferma do apontado vício (omissão de pronúncia), na medida em que a Mm.ª Juíza a quo conheceu das questões em discussão nos autos e decidiu em conformidade com a fundamentação que teve como adequada, sendo que o “vício” em causa não se confunde com o eventual “erro de julgamento”.

Ademais, como bem se refere no despacho de fls. 176, a factualidade em causa é “irrelevante considerando o fundamento de resolução invocado”, como melhor se explicitará infra[5].

Daí a total insubsistência daquele arrazoado do 1º executado/recorrente.

3. O art.º 1083º estabelece que “qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base no incumprimento pela outra parte” (n.º 1) e que “é inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora superior a três meses no pagamento da renda…” (n.º 3), preceituando-se no art.º 1084º que “a resolução pelo senhorio quando fundada em causa prevista no n.º 3 do artigo anterior, bem como a resolução pelo arrendatário operam por comunicação à contraparte, onde fundamentalmente se invoque a obrigação incumprida” (n.º 1), ficando sem efeito a resolução se o “arrendatário puser fim à mora no prazo de três meses” (n.º 3).[6]

            A notificação ou comunicação prevista no Novo Regime de Arrendamento Urbano/NRAU (aprovado pela Lei n.° 6/2006, de 27.02), aplicável à situação em apreço, faz-se por notificação judicial avulsa ou por contacto pessoal (art.º 9º, n.º 7, do NRAU), servindo de título executivo o comprovativo dessa comunicação e o contrato de arrendamento (art.º 15º, n.º 1, alínea e), do mesmo diploma)[7].

            A cessação do contrato torna imediatamente exigível, salvo se outro for o momento legalmente fixado ou acordado pelas partes, a desocupação do local e a sua entrega, com as reparações que incumbam ao arrendatário (art.º 1081º, n.º 1).

            A desocupação do local arrendado é exigível no final do 3º mês seguinte à resolução, se outro prazo não for judicialmente fixado ou acordado pelas partes (art.º 1087º).

4. Assim, em caso de mora do arrendatário no pagamento de renda superior a três meses, a lei permite ao senhorio proceder à resolução do contrato (art.º 1083º, n.º 3).

Não é necessário que o arrendatário falte ao pagamento de três rendas, uma vez que a lei exige tão-somente uma mora superior a três meses no pagamento de uma única renda ou parte de renda.[8]

No caso vertente, quanto às rendas de Janeiro e Fevereiro de 2010, é irrecusável que a mora tinha duração superior a três meses - com referência à data da efectivação da comunicação resolutiva [cf. II. 1. alíneas a) e c), supra] -, pelo que o não pagamento dessas rendas surge inequivocamente como causa de resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio.

Ademais, como foi sublinhado pela Mm.ª Juíza a quo, afigura-se irrelevante esclarecer se os executados pagaram, ou não, a renda de Maio de 2009 ou se a exequente deixou se imputar ao pagamento das rendas a importância referente à “compensação” pelo trabalho prestado pelo 1º executado na execução de obras no prédio arrendado da responsabilidade da senhoria [cuja quantia, de resto, no cômputo realizado por aquele, seria de apenas € 225].

            5. O arrendamento consiste num contrato sinalagmático, uma vez que a obrigação do senhorio de proporcionar ao arrendatário o gozo da coisa [art.º 1931º, alínea b)] tem como correspectivo a obrigação de pagar a renda ou aluguer [art.º 1038º, alínea a)], ficando assim ambos os contraentes sujeitos a obrigações recíprocas.

O pagamento da renda tem como correspectivo a cedência do local arrendado em condições de ser plenamente fruído em vista do fim a que se destina.[9]

            Da qualificação do arrendamento como contrato sinalagmático decorre a aplicação de vários institutos jurídicos, entre os quais, a excepção de não cumprimento do contrato (art.ºs 428º e seguintes), que se encontra de algum modo presente ou aflorada no art.º 1040, quando se prevê que, se o locatário, por motivos que lhe sejam estranhos, sofrer privação ou diminuição do gozo da coisa locada, poderá ocorrer uma redução da renda proporcional ao tempo da privação ou diminuição e à extensão desta.[10]

Ou seja, no caso de privação parcial do gozo do prédio, por causa não imputável ao locatário, tem este o direito de ver reduzida a parte proporcional da renda, o que constitui uma afloração do princípio de excepção de não cumprimento do contrato.

            6. Nas situações em que o senhorio não tenha realizado no local arrendado obras a seu cargo, a sua não realização constitui fundamento de resolução do contrato pelo arrendatário (art.ºs 1074º, n.º 1 e 1083º, n.º 1).

Porém, enquanto se mantiver no gozo do imóvel o arrendatário não poderá utilizar a excepção de não cumprimento do contrato para se recusar a pagar a renda, em consequência da não realização das obras, apenas podendo efectuar a redução da renda na medida proporcional à privação ou diminuição do gozo (art.º 1040º).[11]

7. Face às “conclusões” da alegação de recurso, a questão principal é a relativa à decretada improcedência da excepção de não cumprimento (art.º 428º, n.º 1[12]).

                O recorrente continua a entender que podia “suspender o pagamento das rendas, sob pena de abuso de direito por parte do locador”, enquanto não forem realizadas as obras já elencadas pela autoridade administrativa; reitera que se verifica o exercício infundado do direito de resolução do contrato de arrendamento pela senhoria/exequente, surgindo a exceptio non adimpleti contractus como causa justificativa do não pagamento das rendas, estando, consequentemente, comprometida a exequibilidade do “título executivo extrajudicial” em causa.

É entendimento corrente, na doutrina e na jurisprudência, que a exceptio é aplicável à locação, exigindo-se, no entanto, uma relação de correspectividade entre a prestação que se pretende recusar e aquela cuja falta se invoca e se verifiquem os demais requisitos dessa excepção[13].

Nesta perspectiva das coisas e acolhendo a ideia do equilíbrio ou equivalência das prestações, considera-se que o locatário só poderá suspender o pagamento da renda (de toda a renda) quando se trate de não cumprimento do locador que exclua totalmente o gozo da coisa; no caso de privação parcial do gozo, imputável ao locador, o locatário apenas poderá suspender o pagamento de parte da renda.[14]

E tem vindo a ser admitido o funcionamento do instituto mesmo nas situações de incumprimento parcial ou de cumprimento defeituoso, fazendo intervir então, sempre que as circunstâncias concretas o imponham, o princípio da boa fé e a “válvula de segurança” do abuso do direito (art.ºs 762º, n.º 2, e 334º), donde o imperativo de uma apreciação, em face das circunstâncias concretas, da gravidade do incumprimento, porquanto seria contrário à boa fé que um dos contraentes recusasse a sua inteira prestação, só porque a do outro enferma de uma falta mínima ou sem suficiente relevo. Na mesma linha, surge a regra da adequação ou proporcionalidade entre a ofensa do direito do excipiente e o exercício da excepção. Uma prestação significativamente incompleta ou viciada justifica que o outro obrigado reduza a contraprestação a que se acha adstrito. Mas, em tal caso, só é razoável que recuse quanto se torne necessário para garantir o seu direito.[15]

Assim, a exceptio opera sempre que exista correspectividade entre a prestação que uma das partes na relação de locação pretenda recusar e aquela cuja falta se invoca, pelo que se o locatário ficar privado do gozo da coisa, no todo ou em parte, por facto imputável ao locador, pode ele suspender, numa medida proporcional, a sua contraprestação; o locatário tem a faculdade de invocar, nos termos gerais, a excepção da inadimplência, quando se verifique mero incumprimento parcial da correspectiva obrigação do locador mas a boa fé exige, por um lado, que a falta assuma relevo significativo e, por outro lado, que se observe proporcionalidade ou adequação entre essa falta e a recusa do excipiente.

O recurso do arrendatário a este instituto, se existe cumprimento defeituoso ou parcial pelo senhorio, apenas o dispensa de pagar a renda correspondente à falta verificada. A quantificação pode tornar-se mais ou menos difícil. Quando as partes não chegarem a acordo sub­siste o remédio da consignação em depósito, mas o arrendatário corre o risco de o seu cálculo pecar por defeito, depositando uma renda menor do que a devida - daí que se imponha uma actuação ponderada e cautelosa sempre que se pretenda exercitar a excepção do não cumprimento no assinalado contexto.[16]

8. Numa perspectiva aparentemente mais restrita tem-se afirmado que o arrendatário, no caso de mora do senhorio na reparação dos defeitos, não pode, mantendo-se no gozo da coisa locada, e enquanto subsistir o contrato, deixar de pagar a renda no momento oportuno, sob pena de incorrer em mora. Pode, apenas, no caso de vício ou defeito, considerar não cumprido o contrato, ou resolver o mesmo, se os defeitos assumirem a gravidade prevista na lei ou pedir ainda a anulação do contrato por erro ou dolo, ou efectuar ele mesmo as reparações ou despesas urgentes (cf. art.º 1036º), sem prejuízo da reclamação do respectivo reembolso ao senhorio.[17]

Um arrendatário, em virtude de defeitos da coisa locada, mesmo em caso de mora do senhorio para a reparação, não pode, mantendo-se no gozo da coisa, e enquanto subsistir o contrato, deixar de pagar a renda no momento oportuno. Não o fazendo incorre em mora.[18]

9. No caso em análise, ainda que se conclua que o locatário foi parcialmente privado do gozo (da plena fruição) do prédio arrendado, devido ao estado em que aquele se encontrava/encontra [cf. II. 1. alínea g), supra], não podemos deixar de considerar que as apontadas deficiências na canalização do saneamento da instalação sanitária, no pavimento dos quartos e na cobertura não se apresentaram como absolutamente impeditivas de o locatário continuar a ter a residência no prédio arrendado [cf., v. g., II. 1. alínea f), supra].

In casu, ao recorrente e à 2ª executada/oponente não lhes era assim lícito deixar de pagar a renda na sua totalidade – daí a verificação da mora com as respectivas consequências.

Por conseguinte, uma vez que os executados deixaram de satisfazer na totalidade a renda devida quando o máximo a que eventualmente teriam direito seria, face ao expendido, sus­pender o respectivo pagamento em medida proporcionada à privação parcial do gozo, a conclusão a extrair não pode ser outra senão a de que incorreram em mora, com as inerentes consequências, nomeadamente, a resolução do contrato por falta de pagamento da renda.[19]

10. Por último, continua o recorrente a sustentar que o facto de impor o locador ao locatário a obrigação de pagamento de renda, quando o próprio locador culposamente e conscientemente não cumpre com as suas obrigações, consubstancia uma situação de abuso de direito por parte do locador.

Depois de discorrer sobre tal instituto, o Tribunal a quo concluiu que, no caso vertente, ainda que ficcionando a demonstração da factualidade invocada pelos executados, a resolução extrajudicial do contrato de arrendamento com fundamento no atraso de pagamento de rendas superior a três meses e no contexto fáctico descrito nas petições da oposição à execução, não configura exercício abusivo desse direito pelo senhorio por não se mostrarem manifestamente excedidos os limites que no exercício desse direito lhe cumpria observar - impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito de resolução, em função dos interesses que legitimam a concessão desse direito.

Face ao aduzido pelas partes e ao que vemos demonstrado, afigura-se que nada se poderá censurar.

Segundo o art.º 334º, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

            O abuso do direito, a ajuizar nos referidos termos, aponta de modo inequívoco para as situações concretas em que é clamorosa, sensível, evidente a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjectivo, de carga essencialmente formal, e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou, pelo menos, dos direitos de certo tipo.[20]

            Manuel de Andrade e Vaz Serra, para definir ou caracterizar o instituto, falam em direitos exercidos em termos “clamorosamente ofensivos da justiça” e em “clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante”.[21]

            Mesmo aceitando a autorizada noção do abuso do direito, dada por Castanheira Neves, que o define como “a `contradição´ entre o cumprimento da estrutura formalmente definidora de um direito e a violação concreta do fundamento que material-normativamente constitui esse mesmo direito[22], importa ter sempre presente que a arma realista do legislador, carregada com as munições extremas do art.º 334º do Código Civil, só aponta, por razões óbvias, para os casos de contradição ´manifesta´.[23]

            Como excepção peremptória inominada, o abuso do direito traduz-se “num problema metodológico-normativo de realização (ou de aplicação) concreta do direito…; o abuso é um modo de ser jurídico que se coloca no trajecto entre a norma e a solução concreta”.[24]

            O abuso de direito constitui uma “válvula de segurança”, uma das cláusulas gerais que permitem ao julgador poder obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalecente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico imperante, em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito por lei conferido.

            No abuso de direito protege-se a tutela da confiança, base de toda a convivência pacífica e da cooperação entre os homens, sendo que a nossa lei adoptou a concepção objectiva do abuso do direito, isto é, não exige que o titular do direito haja procedido com consciência do excesso ou com “animus nocendi” do direito da contraparte, bastando pois que tais limites sejam e se mostrem ostensiva e objectivamente excedidos.

            Neste enquadramento e reportando-nos à situação dos autos, não vemos reunidos os pressupostos da aplicação do aludido instituto, podendo-se afirmar, pelo contrário, que a exequente exerceu o seu direito dentro dos limites traçados pelos normativos, valores e princípios do ordenamento jurídico vigente, designadamente, respeitando o princípio da boa fé, e, em face dos direitos e interesses em presença, mantendo incólume o fundamento que material-normativamente constitui o direito de resolução em apreço.

Soçobram, desta forma, todas as “conclusões” da alegação de recurso.


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III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo apelante/1º executado, sem prejuízo do apoio judiciário de que goza.


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Fonte Ramos ( Relator )

Carlos Querido

Virgílio Mateus



[1] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[2] É a data que resulta da conjugação dos documentos (fotocópias) juntos a fls. 41, 116 e 117.
[3] Preceitua-se no referido normativo: “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
[4] Vide, de entre vários, A. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, 1982, págs. 142 e seguinte e Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 670.
[5] Cf. o ponto II. 4., infra.

[6] Possibilidade que a lei lhe concede sem a limitação a que alude o art.º 1048º, n.º 2 – cf., neste sentido, designadamente, o acórdão do STJ de 06.5.2010-processo 438/08.5YXLSB.LS.S1, publicado no “site” da dgsi.
[7] Nestes casos, como sucedeu na situação em análise, o senhorio deverá recorrer à execução para entrega de coisa certa/entrega de imóvel arrendado prevista nos art.ºs 15º, do NRAU, e 930º-A e seguintes, do CPC.

[8] Vide, neste sentido, entre outros, Lucinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, Arrendamento Urbano, Novo Regime Anotado e Legislação Complementar, 2ª edição, Quid Juris, anotação ao art.º 1083º do CC e Fernando Gravato de Morais, Novo Regime de Arrendamento Comercial, 2006, págs. 103 e seguintes.
[9] Cf., a propósito, o acórdão do STJ de 10.9.2009-processo 375/1999.C1.S1, publicado no “site” da dgsi.
[10] Vide, entre outros, Luís Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 4ª edição, Almedina, 2010, pág. 49.
[11] Vide, de entre vários, Luís Menezes Leitão, ob. cit., págs. 82
    Cf., ainda, nomeadamente, os acórdãos do STJ de 04.4.2006 e da RP de 04.3.1996, in CJ-STJ, XIV, 2, 33 e CJ, XXI, 2, 177, respectivamente.

[12] Estatui o referido normativo: “se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.”
[13] Vide Vaz Serra, Excepção de Contrato Não Cumprido, BMJ, 67º, pág. 26, nota (10).
[14] Cf. o acórdão do STJ de 11.12.1984, in BMJ 342º, 355 e RLJ, 119º, pág. 137, aresto que seguiu de perto o entendimento de Persico, exposta por Vaz Serra, no cit. estudo, sob a mesma nota (10)/pág. 25.

[15] Vide M. J. Almeida Costa, RLJ, 119º, pág. 144, in anotação ao aresto citado na nota anterior.
[16] Ibidem, págs. 145 e seguinte.
[17] Cf. o acórdão da RC de 29.10.1996, in CJ, XXI, 4, 45.
[18] Cf. o acórdão do STJ de 04.4.2006, in CJ-STJ, XIV, 2, 33.
[19] Cf., neste sentido, de entre vários, o acórdão do STJ de 09.12.2008-processo 08A3302, publicado no “site” da dgsi.
[20] Vide Antunes Varela, Das obrigações em geral, Vol. I, 8ª edição, págs. 552 e seguintes e RLJ, 128º, 241.

[21] In Teoria Geral das Obrigações, pág. 63 e BMJ, 85º, 253, respectivamente.
[22] In Questão de facto-Questão de direito, I, Almedina, 1967, pág. 524.
[23] Cf. Antunes Varela, RLJ, 128º, 241.
[24] Vide Castanheira Neves, ob. cit., pág. 528.