Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
20/11.0TBOFR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUIS CRAVO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
CONTRATO DE ADESÃO
CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS
DEVER DE INFORMAR
Data do Acordão: 10/14/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OLIVEIRA DE FRADES
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ART. 425 C COMERCIAL, DL Nº 72/2008 DE 16/4, DL Nº 446/85 DE 25/10
Sumário: 1. O contrato de seguro é essencialmente regulado pelas disposições particulares e gerais constantes da respectiva apólice, não proibidas por lei, e na sua falta ou insuficiência, pelas disposições aplicáveis da LCS (DL nº nº 72/2008, de 16 de Abril), ou na falta de previsão destas, pela aplicação dos regimes gerais previstos no Código Comercial e no Código Civil (cf. art. 4º da dita LCS).

2. Por estar em causa um contrato de adesão, o segurador que apresenta as cláusulas contratuais gerais tem, em relação a elas, o dever de comunicação e o dever de informação, nos termos do art. 5º e segs. do DL nº 446/85 de 25 de Outubro (Regime das Cláusulas Contratuais Gerais), sendo que em caso de não serem cumpridos esses deveres, têm-se por excluídas dos contratos singulares as cláusulas não comunicadas – mas subsistindo, na medida do possível, o contrato.

3. Constando de uma cláusula das condições particulares da Apólice do contrato de seguro em causa, que a indemnização devida como regularização do sinistro – incêndio do imóvel – não seria paga à lesada/tomadora do seguro sem prévio consentimento ou autorização da credora hipotecária desse mesmo imóvel, relativamente a este dito consentimento ou autorização para o pagamento, o que está em causa não é a obrigação de cumprir ou a responsabilidade pelo cumprimento, mas apenas o pagamento “tout court”.

Decisão Texto Integral:

            Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

M (…), LDª”, Sociedade Comercial por Quotas, Pessoa Colectiva nº (...), com sede na (...), Concelho de Águeda, veio intentar a presente acção contra “G (…) , S.A.”, empresa seguradora, Pessoa Colectiva nº (...), com sede na (...) Lisboa, pedindo a condenação da R. a:

- Proceder à reconstrução do imóvel identificado no artº 2º desta peça, em todos os seus componentes (estrutura, cobertura, sanitários, escritórios, pisos, parte eléctrica, canalização ….);

ou

- A proceder ao pagamento à Autora da quantia de € 197.000,00 (cento e noventa e sete mil euros), acrescida dos juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Para tal alega, em resumo:

A A. é uma sociedade comercial por quotas com o objecto social a fabricação e comercialização de ferragens, sendo proprietária do prédio onde exerce a sua actividade.

No dia 25 de Setembro de 2009 deflagrou um incêndio no interior das instalações que destruiu o imóvel, importando a sua reconstrução cerca de 300.000,00€.

Para a aquisição do imóvel a A. contraiu um empréstimo junto do F (...), sobre o qual foi constituído hipoteca, tendo pelo mesmo sido exigido que a A. garantisse os riscos inerentes ao edifício e à actividade nele exercida através de um seguro, a ser contraído junto da R., o que foi feito, tendo a A. celebrado com a R. um contrato de seguro do ramo “multi-riscos industrial, ao qual foi atribuído o numero de apólice 034-003-000-1510.

Deduz, ainda, o chamamento à intervenção do F (...), alegando que o mesmo é credor hipotecário do imóvel em causa.

                                                           *

Regularmente citada a R. veio contestar a presente acção.

Alega, em resumo, que à data do sinistro vigorava um contrato de seguro entre a A. e a (…) Companhia de Seguros que cobria os riscos de incêndio do edifício em causa e do seu recheio, sendo que de acordo com o artigo 16º, nº 2 das condições gerais do contrato celebrado com a A. existindo à data do sinistro mais do que um contrato de seguro com o mesmo objecto, o celebrado entre A. e R. só funciona em caso de inexistência, nulidade, ineficácia ou insuficiência de seguros anteriores, o que consubstancia uma causa impeditiva do direito da A.

Alega ainda que os valores pedidos não têm qualquer justificação, pois o seguro multi-riscos não tem natureza indemnizatória, só podendo a A. receber a indemnização pelos danos efectivamente sofridos.

Deduz, ainda o incidente da intervenção principal provocada da G (…)Companhia de Seguros.

A A. veio apresentar réplica onde alega que a A. nunca lhe entregou as condições gerais da apólice, nem o conteúdo lhe foi explicado.

Igualmente vem com o incidente da intervenção provocada da G (…)Companhia de Seguros.

                                                           *

Foi proferido despacho onde se admitiu a intervenção do F (…) ao lado da A. e da G (…) Companhia de Seguros ao lado da R.

                                                           *

A G (…) (ora “Companhia de Seguros (…) S.A.”) veio contestar a presente acção onde alega que aceitou o contrato desconhecendo da existência de qualquer outro interessado nos bens seguros, desconhecendo os termos do contrato celebrado com a R., sendo que à ora interveniente nunca foi comunicada qualquer alteração de risco, nem qualquer alteração quanto ao destino do bem, motivo pelo qual não pode produzir quaisquer efeitos.

Alega ainda que o incêndio não foi acidental e que no local existiam produtos de risco que excluem a cobertura do risco, que certo que nunca aceitaria o risco se tivesse conhecimento de tal.

                                                           *

Por seu turno a “Caixa Económica (…) veio oferecer articulado próprio (começando por alegar que o F (…)lhe cedeu os créditos e garantias que detinha).

Alega, em resumo que o segurado só pode receber em último lugar depois de satisfeitos os direitos do mutuante, terminando pela improcedência da acção no que tange aos valores e beneficiária da indemnização.

                                                           *

A R. veio ainda pronunciar-se sobre o articulado da “Companhia de Seguros (…) S.A.”.

Também o A. se veio pronunciar sobre os articulados dos Chamados, onde alega nomeadamente que também a (…) não lhe forneceu as condições especiais ou gerais do seguro.

                                                           *

Feito o saneamento dos autos, foi fixado valor à causa, e bem assim organizada a matéria assente e base instrutória, a qual foi objecto de uma reclamação deduzida pela Chamada “Companhia de Seguros (…), S.A.”, desatendida pelo despacho de fls. 345.

Procedeu-se oportunamente à audiência de discussão e julgamento com observância das formalidades legais, tendo sido por despacho de que não houve reclamação, fixada a matéria de facto que era controvertida.

Na sentença, considerou-se, em suma, que era apenas de condenar a Chamada “Companhia de Seguros (…), S.A.”, em consequência a condenando no pagamento à A. da quantia de € 160.000,00, acrescida de juros desde a citação e até efectivo e integral pagamento, e, no mais, absolveu a Ré “G (…) SEGUROS, S.A.” do pedido.

                                                                       *

            Inconformada com a mesma, interpôs a Autora recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

«(…)

            Deduziu igualmente recurso de apelação a Chamada “COMPANHIA  DE SEGUROS (…), S.A.”, extraindo das respectivas alegações, as seguintes conclusões:

            (…)

                                                                       *

            Contra-alegou a Ré “G (…), S.A.”, o que finalizou da seguinte forma:

«(…)

                                                                       *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado nas conclusões das alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detectar o seguinte:

da apelação da Autora
2.1 – se deve ter lugar a efectiva condenação da Ré Seguradora (solidariamente com a Chamada Seguradora), nomeadamente na medida em que a condição suspensiva constante das condições particulares da apólice do atinente contrato de seguro quanto à necessidade de prévio consentimento do F (…)para que possa operar o pagamento da quantia indemnizatória, não interfere ou impede tal condenação?
  da apelação da Chamada
2.2 – se a responsabilidade da Ré Seguradora deve ter efectivamente lugar e ser objecto de condenação, sendo que a correspondente responsabilidade da dita Ré advém para esta do cumprimento do contrato de seguro que aceitou celebrar, posterior ao da Chamada?;
2.3 – se por aplicação da válida cláusula 19ª, nº 1 das Condições Gerais da Apólice do contrato de seguro por esta Chamada celebrado, face à alegada alteração de risco e alteração do interesse do segurado em que se traduziu a constituição de uma hipoteca sobre o imóvel objecto do seguro, que não foi comunicada, quer legal, quer contratualmente à própria, o contrato de seguro da mesma é ineficaz?

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado/fixado pelo tribunal a quo, o que naturalmente contempla a conjugação da condensação dos factos assentes com os decorrentes das respostas dadas aos quesitos da base instrutória elaborada, e sendo certo que os recursos ora deduzidos não questionam a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto. 

            Tendo presente esta circunstância, são os seguintes os factos que se consideraram provados na 1ª instância:

1) A Autora é uma sociedade comercial por quotas que tem como objecto social a fabricação e comercialização de ferragens.

2) Encontra-se inscrito a favor da A o prédio urbano a seguir identificado: Prédio urbano destinado a indústria, composto de rés-de-chão, 1º andar e logradouro, com a área coberta de 810 m2, área descoberta com 5150 m2, sito em Reigoso, concelho de Oliveira de Frades, a confrontar do Norte com Lote nº 7, do Sul com Lote nº 11, Nascente e Poente com caminho, inscrito na respetiva matriz predial urbana da freguesia de Reigoso, sob o artigo 386 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Frades, sob o nº 646.

3) No dia 25 de Setembro de 2009, pelas 19h30, deflagrou um incêndio no interior do imóvel identificado no precedente.

4) O qual se alastrou ao edifício.

5) Tal ocorrência foi combatida pelos Bombeiros Voluntários de Oliveira de Frades, que declararam o incêndio extinto pelas 21h50.

6) E foi comunicada à GNR de Oliveira de Frades, que elaborou o competente Auto de Notícia.

7) A GNR de Oliveira de Frades deu disso conhecimento ao Ministério Público junto do Tribunal do mesmo concelho.

8) E deu também disso conhecimento à Polícia Judiciária que realizou a competente inspeção judiciária.

9) Realizado o correspondente inquérito, que correu termos sob o nº 447/09.7JAAVR, foi o mesmo arquivado, por não se ter apurado que a ocorrência tivesse tido origem criminosa.

10) Pode-se ler no despacho de arquivamento que:-“foi efectuada inspecção judiciária, tendo-se constatado que houve uma total destruição por acção do fogo e calor de quase toda a cablagem de máquinas ali existentes, bem como dos quadros eléctricos …

Do relatório de ocorrência de fls. 46 e 47 consigna-se, designadamente, que a área de produção ficou totalmente destruída, não se logrando, assim, determinar o local onde teve início o incêndio …

Foi ainda efectuado exame pericial, tendo-se concluído que na zona de pintura ocorreu uma forte destruição, com a presença de inúmeros produtos inflamáveis aí existentes, o que poderá ter potenciado o alastramento do fogo, e que a instalação eléctrica não apresentava danos, não sendo desse modo possível determinar a causa que esteve na origem do incêndio …” .

11) A Autora, na qualidade de “tomadora de seguro”, celebrou com a Ré G (...), um contrato denominado de seguro do ramo “multi-riscos industrial”.

12) A que foi atribuído o número de apólice 034-003-000/1510.

13) Com início em 02 de Fevereiro de 2007.

14) Que garante à Autora o pagamento das indemnizações devidas por força dos, entre outros, riscos/danos/prejuízos ocorridos no edifício identificado em 2), até ao seguinte limite: “Incêndio, Queda de Raio e explosão --------------------------------------Capital seguro”

15) Sendo que o capital seguro para o dito prédio imóvel foi de € 197.000,00 (cento e noventa e sete mil euros).

16) Sobre o prédio identificado em 2) existe hipoteca registada a favor do chamado F (...).

17) De acordo com as condições particulares da apólice supra referida, “declara-se que o chamado F (…), SA tem interesse no presente contrato, na qualidade de credor hipotecário, não podendo por isso o mesmo ser anulado nem paga qualquer indemnização em caso de sinistro sem o seu prévio consentimento”.

18) À data do sinistro objeto dos presentes autos, vigorava também um acordo denominado de seguro “Multiglobal Indústria” que havia sido celebrado entre a A. e chamada a G (…) – Companhia de Seguros, S.A. (hoje A (...)), em 18.04.2004 e que cobria o risco de incêndio do edifício que constitui as instalações fabris da A., conforme “Condições Particulares”.

19) Tal acordo cobria não só o edifício, como também o recheio, sendo que o capital seguro àquele aplicável ascendia a €238.810,45.

20) Nos termos do preceituado no artigo 16º, nº 2 do Capítulo III das “Condições Gerais”:1. “Existindo à data do sinistro, mais de um contrato de seguro com o mesmo objecto e garantia, a presente apólice apenas funcionará em caso de inexistência, nulidade, ineficácia ou insuficiência de seguros anteriores.”

21) O sinistro objeto dos presentes autos foi participado também à chamada GLOBAL, que pretendeu regularizar a situação ressarcindo a A. dos prejuízos sofridos.

22) A A. exerce a sua atividade no imóvel referido em 2).

23) O referido imóvel veio à mão da A. fruto de aquisição ao Município de Oliveira de Frades.

24) Desde então, há mais de 15, 20, 30, 40 e mais anos que, por si e seus antepossuidores no direito, a Autora tem estado na fruição e administração pública, pacífica e continuada do aludido prédio, inicialmente rústico e depois urbano, dele retirando todas as utilidades de que é suscetível.

25) Primeiramente, os seus antecessores trataram do prédio rústico.

26) Lavraram-no, plantaram e cortaram árvores, apanharam mato e lenha.

27) Terraplanaram o terreno a fim de o preparar para a construção urbana.

28) Fizeram projetos do imóvel a construir.

29) Obtiveram as respetivas licenças de construção.

30) Vindo a Autora a edificar nele (prédio rústico) o imóvel identificado em 2).

31) Aí têm feito obras de reparação, conservação.

32) Pago as respetivas contribuições.

33) De forma permanente e continuada.

34) À vista e sem oposição de quem quer que fosse.

35) Agindo na convicção de que é dona e legítima proprietária daquele prédio, e de que não lesava qualquer direito ou interesse alheio.

36) Nesse prédio a A. tinha máquinas de produção, de fabrico, matérias primas, consumíveis e material de escritório;

37) O edifício ficou na sua maior parte queimado, atingindo o fogo a cobertura; as paredes, ficando, inclusive, a parede da frente do edifício desligada; os tetos que racharam; as massas, que estalaram; a estrutura em ferro, que ficou, pelo menos em parte, calcinada e empenada; as chapas lacadas com isolamento térmico, que ficaram retorcidas e calcinadas, sem condições de reaproveitamento e o portão que ficou inutilizado;

38) O recheio ficou destruído.

39) Em face do mencionado nos artigos anteriores a A. está impedida de laborar desde a data do sinistro.

40) A A. é uma pequena empresa familiar.

41) O fogo atingiu a parte elétrica, ficando os fios todos queimados e retorcidos, os quadros elétricos da parte fabril carbonizados, as lâmpadas destruídas e a maior parte das fichas elétricas e interruptores queimados;

42) O fogo atingiu a canalização, porquanto os canos e tubos derreteram e ficaram retorcidos.

43) Em todas as diversas partes que compõem o edifício como sejam a área fabril, de escritório, casas de banho e refeitório.

44)Tais estragos implicam a reconstrução total do imóvel, de forma a que este possa voltar a encontrar-se em condições de ser afeto à atividade que nele se desenvolvia antes do sinistro.

45) A reparação dos danos mencionados implica um custo de cerca de 160.000,00.

46) À A., em 16.3.2007 foi concedido, pelo F (…) SA um financiamento sob a forma de Abertura de Crédito, no montante de 75.000,00€;

47)Tendo constituído a hipoteca referida em P) para garantia do seu crédito.

48) Foi exigido pelo chamado F(…), na altura, que a Autora garantisse os riscos inerentes ao edifício e à atividade nele exercida através de um contrato de seguro.

49) Contraído junto da Ré.

50) O que a Autora, seguindo as indicações do chamado F (…), fez.

51) Quando a A. celebrou com a Ré o contrato denominado de seguro dos autos, fê-lo por intermédio do F (…), tendo-lhe, na altura, sido entregues as respectivas “Condições Gerais”.

                                                                       *

            4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1 – Questão de se deve ter lugar a efectiva condenação da Ré Seguradora (solidariamente com a Chamada Seguradora), nomeadamente na medida em que a condição suspensiva constante das condições particulares da apólice do atinente contrato de seguro quanto à necessidade de prévio consentimento do F (...) para que possa operar o pagamento da quantia indemnizatória, não interfere ou impede tal condenação (a correspondente responsabilidade da dita Ré advém para esta do cumprimento do contrato de seguro que aceitou celebrar, posterior ao da Chamada):

De referir desde logo que esta questão é suscitada em ambos os recursos de apelação deduzidos por A. e Chamada, isto é, ambas pugnam pela efectiva condenação da Ré Seguradora – tendo presente a absolvição desta que foi proferida na sentença.

            Que dizer?

            Quanto a nós, adiantando desde já a solução – e releve-se esse juízo antecipatório! – assiste efectivamente razão a ambas as Apelantes.

            Senão vejamos.

            O regime do contrato de seguro achava-se, até há pouco, contido nos artigos 425º e seguintes do Código Comercial, encontrando-se diversos aspectos regulados em diplomas avulsos atinentes à actividade seguradora.

            Entretanto, em 1/01/2009, entrou em vigor um novo regime jurídico do contrato de seguro, aprovado pelo DL nº 72/2008, de 16 de Abril (regime doravante designado abreviadamente por LCS), o qual, por via do sinistro ajuizado ter ocorrido em 25 de Setembro de 2009 e, portanto, já depois da entrada em vigor do referido diploma, apesar de estarem em causa contratos de seguro celebrados nos anos de 2004 e 2007, é aplicável ao caso dos autos (cf. art. 2º, nº 2 do citado diploma).

            Ora, apesar de se tratar de um contrato de adesão – na medida em que as cláusulas gerais são elaboradas sem prévia negociação individual e a cujos termos o segurado (ou tomador de seguro) se terá de subordinar – nada obsta a que se aplique a regra geral do regime contratual que é o da autonomia da vontade, segundo o qual as partes podem fixar livremente o conteúdo dos contratos (art. 405º do C.Civil), excepto se colidir com normas de natureza imperativa quer relativa quer absoluta.

            Deste modo, o contrato de seguro é essencialmente regulado pelas disposições particulares e gerais constantes da respectiva apólice, não proibidas por lei, e na sua falta ou insuficiência, pelas disposições aplicáveis da LCS, ou na falta de previsão destas, pela aplicação dos regimes gerais previstos no Código Comercial e no Código Civil (cf. art. 4º da LCS).

            Sem embargo, por estar em causa um contrato de adesão, o segurador que apresenta as cláusulas contratuais gerais tem, em relação a elas, o dever de comunicação e o dever de informação, nos termos do art. 5º e segs. do DL nº 446/85 de 25 de Outubro (Regime das Cláusulas Contratuais Gerais), sendo que em caso de não serem cumpridos esses deveres, têm-se por excluídas dos contratos singulares as cláusulas não comunicadas – mas  subsistindo, na medida do possível, o contrato.

            No caso vertente, foi sustentado na sentença recorrida que por não resultar provado a adequada informação e comunicação por parte da Ré Seguradora quanto ao teor da cláusula 16ª, nº2 das “condições Gerais” da atinente apólice do contrato de seguro (“Existindo à data do sinistro, mais de um contrato de seguro com o mesmo objecto e garantia, a presente apólice apenas funcionará em caso de inexistência, nulidade, ineficácia ou insuficiência de seguros anteriores”), não podia esta cláusula de exclusão de responsabilidade ser aposta à A..

            Na linha de entendimento vindo de expor, naturalmente que merece a nossa integral concordância uma tal linha de decisão!

            Acontece que, ainda assim, se veio a concluir na sentença recorrida pela exclusão de responsabilidade da dita Ré Seguradora, por força do constante das “Condições Particulares” da mesma Apólice do contrato de seguro em causa, em termos de “condição suspensiva”, à luz do disposto no art. 270º do C.Civil, face ao que ficou igualmente acordado entre as partes, e como tal aí se encontra consignado, a saber, “declara-se que o chamado F (…), SA tem interesse no presente contrato, na qualidade de credor hipotecário, não podendo por isso o mesmo ser anulado nem paga qualquer indemnização em caso de sinistro sem o seu prévio consentimento”.

            Tendo presente esta situação, sustentou-se na sentença recorrida que “(…) de acordo com o artigo 343, nº3 do CC cabia à A. o ónus de provar a verificação da condição, prova essa que não foi feita, sendo que no seu articulado a chamada Caixa Económica, alega precisamente que não deu a mencionada autorização e, como tal que o pedido deve improceder.

Assim, não provando a A. a verificação da condição, a qual aliás, nem sequer alega, não obstante reconhecer no artigo 60 do seu articulado que a chamada tem interesse na ação como credora hipotecária, deve a ação em relação à R. improceder.

            Será assim?

            Entendemos que não pela seguinte ordem de razões: relativamente a este dito consentimento ou autorização para o pagamento, o que está em causa não é a obrigação de cumprir ou a responsabilidade pelo cumprimento, mas apenas o pagamento “tout court”.

            Ora é por assim ser que não se encontra fundamento nem justificação para face a uma tal situação – não existir ou estar comprovada a autorização para o pagamento por parte da credora hipotecária CEMG – de arredar ou excluir, sem mais, a obrigação/responsabilidade de cumprir por parte da Ré Seguradora “G (…)SEGUROS, S.A.”.

            Aliás, de outra forma não se pode entender, pois que não está dito ou sequer se afigura como pressuposto lógico ou racional, que esse este dito consentimento ou autorização para o pagamento por parte da credora hipotecária CEMG, tenha que ser expresso/manifestado em momento anterior à afirmação/reconhecimento da obrigação/responsabilidade de cumprimento por parte da Ré Seguradora “G (...) SEGUROS, S.A.” (face aos termos do contrato de seguro em causa)…

            Nem muito menos resulta que sem esse consentimento ou autorização para o pagamento por parte da credora hipotecária CEMG, está excluída ou arredada a obrigação/responsabilidade da Ré Seguradora “G (...) SEGUROS, S.A.” em indemnizar face ao “sinistro” ocorrido… 

Deste modo, quanto a nós, o aspecto do efectivo e real pagamento é um aspecto a “juzante” da questão, e com a qual a decisão judicial não tem à partida em que atentar, sem prejuízo de poder efectivamente deixar-se esclarecido nessa decisão que o pagamento por parte da Ré “G (…)SEGUROS, S.A.”, se encontra dependente do prévio consentimento ou autorização para esse pagamento por parte da credora hipotecária “C (…)” (CEMG).

Procede nestes termos esta questão recursiva suscitada em ambas as apelações, importando proferir decisão em conformidade, isto é, de condenação solidária de ambas as Seguradoras na quantia indemnizatória em causa, salvo se a tal vier a obstar a procedência da linha de defesa igualmente aduzida pela Chamada Seguradora na sua apelação – com base na aplicação da cláusula 19ª, nº 1 das Condições Gerais da Apólice do contrato de seguro por esta Chamada celebrado –, naturalmente no que à responsabilidade desta última diz respeito.  

É o que se verá de seguida.

                                                           *

4.2 – Questão de se por aplicação da válida cláusula 19ª, nº 1 das Condições Gerais da Apólice do contrato de seguro pela Chamada celebrado, face à alegada alteração de risco e alteração do interesse do segurado em que se traduziu a constituição de uma hipoteca sobre o imóvel objecto do seguro, que não foi comunicada, quer legal, quer contratualmente à própria, o contrato de seguro da mesma é ineficaz:

Clama efectivamente a Chamada Seguradora pela ineficácia do contrato de seguro celebrado entre a mesma e a A., com base na referenciada cláusula 19ª, nº 1 das “Condições Gerais” da Apólice atinente, com o objectivo de que, no acolhimento deste fundamento recursivo, seja decretada a sua absolvição do pedido.

Será assim?

Sob essa dita cláusula encontra-se estabelecido que “Salvo convenção em contrário, no caso de transmissão da propriedade do bem seguro ou do interesse do segurado no mesmo, a obrigação do segurador para com o novo proprietário ou interessado depende da sua notificação pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelos seus legais representantes, sem prejuízo do regime legal do agravamento do risco”.

Ora, temos desde logo que por não resultar apurado nos autos que o teor/conteúdo desta cláusula tenha sido objecto de adequada e cabal comunicação/informação à A.[3] , de tal decorre que não pode o dela resultante ser aposto à A., à luz do regime das cláusulas contratuais gerais – na linha e correspondente aplicação do já supra aduzido!

Acresce e decisivamente – quanto a nós – que nunca poderia ser afirmada/reconhecida a ineficácia do contrato de seguro em causa, à luz do que se encontra estatuído em tal cláusula.

Senão vejamos.

É que também em nosso entender, se manifestamente não ocorreu qualquer “transmissão da propriedade do bem seguro”, igualmente não ocorreu na circunstância qualquer “transmissão do interesse do segurado no mesmo”, à luz e para os efeitos do previsto em tal cláusula, como consequência da constituição da hipoteca a favor do mutuante F (…)(ora Chamada CEMG).

É certo que inquestionavelmente o mutuante F (…) (ora Chamada CEMG) passou a ter o dito interesse no bem seguro por força da constituição da hipoteca a seu favor, como garantia do mútuo concedido.

Nesse sentido aponta o entendimento jurisprudencial acerca da correspondente definição, a saber, que o interesse…deve ser específico, actual, lícito e de natureza económica, derivado de uma relação juridicamente relevante do segurado com o objecto do seguro que origine para ele a possibilidade de extrair da coisa segura utilidades ou vantagens de natureza económica, ou de sofrer dano também económico em consequência do exercício de actividades que com ou sobre esse objecto a sua relação jurídica que o abranja lhe permita exercer[4].

Mas já não nos parece de todo sustentável que se intente afirmar que ocorreu uma alteração do risco e/ou uma alteração do interesse no bem seguro, com o sentido de que se operou uma “transmissão do interesse do segurado no mesmo” – como previsto na invocada cláusula 19ª, nº 1 das “Condições Gerais” da Apólice.

Na verdade, “transmissão do interesse do segurado no mesmo” ocorreria caso tivesse havido uma locação do imóvel objecto do seguro ou qualquer cedência da posição contratual relativamente ao mesmo para terceira pessoa.

Não ocorrendo tal por força e em consequência da constituição da hipoteca a favor da entidade bancária mutuante, sem embargo de se admitir que houve uma adjunção/aditamento de um outro interessado ou a constituição de um novo interesse…, mas sem que a aqui A. deixasse de conservar e manter o seu interesse no bem seguro.  

Ora se assim é, tal corresponde a realidades e conceitos diferentes, não consubstanciando manifestamente a previsão em vista na citada cláusula 19ª, nº 1 das “Condições Gerais” da Apólice...

Improcede, assim, sem necessidade de maiores considerações, este argumento recursivo.

                                                           *

Conclui-se, assim, pela efectiva responsabilidade da Ré Seguradora “G (…) SEGUROS, S.A.” e Chamada Seguradora “COMPANHIA DE SEGUROS (…), S.A.” no pagamento da quantia indemnizatória para regularização do “sinistro” ocorrido, em termos solidários, como já foi sustentado supra aquando da decisão da primeira “questão” enunciada como tal no recurso.

Importa então proferir decisão de condenação em conformidade a final, sem embargo de complementarmente se vincar que a obrigação solidária de ambas as Seguradoras decorre da circunstância de se tratar de um mesmo risco, relativo ao mesmo interesse, seguro por essa duas Seguradoras, isto é, por se tratar de um caso de “Pluralidade de Seguros”, relativamente ao qual o ressarcimento foi reclamado de ambas, não havendo aqui qualquer precedência ou prioridade determinada pela anterioridade da celebração do contrato de seguro a que atender, donde ambas deverem responder perante a A. lesada, sem prejuízo de nas relações entre si, responderem nos termos “proporcionais” legalmente estatuídos (cf. art. 133º, nºs 3 e 4 da LCS).

                                                           *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – O contrato de seguro é essencialmente regulado pelas disposições particulares e gerais constantes da respectiva apólice, não proibidas por lei, e na sua falta ou insuficiência, pelas disposições aplicáveis da LCS (DL nº nº 72/2008, de 16 de Abril), ou na falta de previsão destas, pela aplicação dos regimes gerais previstos no Código Comercial e no Código Civil (cf. art. 4º da dita LCS).

II – Por estar em causa um contrato de adesão, o segurador que apresenta as cláusulas contratuais gerais tem, em relação a elas, o dever de comunicação e o dever de informação, nos termos do art. 5º e segs. do DL nº 446/85 de 25 de Outubro (Regime das Cláusulas Contratuais Gerais), sendo que em caso de não serem cumpridos esses deveres, têm-se por excluídas dos contratos singulares as cláusulas não comunicadas – mas  subsistindo, na medida do possível, o contrato.

III – Constando de uma cláusula das condições particulares da Apólice do contrato de seguro em causa, que a indemnização devida como regularização do sinistro – incêndio do imóvel – não seria paga à lesada/tomadora do seguro sem prévio consentimento ou autorização da credora hipotecária desse mesmo imóvel, relativamente a este dito consentimento ou autorização para o pagamento, o que está em causa não é a obrigação de cumprir ou a responsabilidade pelo cumprimento, mas apenas o pagamento “tout court”.  

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6 - DISPOSITIVO

Assim, face a tudo o que se deixa dito, acorda-se em julgar parcialmente procedentes ambas as apelações deduzidas, e, em consequência, alterando-se a sentença recorrida, condenar-se agora solidariamente a Ré “G (…) SEGUROS, S.A.” e a Chamada “COMPANHIA DE SEGUROS (…)S.A.”, no pagamento à Autora “M (…), LDª” da quantia de € 160.000,00 (cento e sessenta mil euros), acrescida de juros desde a citação até efectivo e integral pagamento, sem prejuízo de que o pagamento por parte da Ré “G (…) SEGUROS, S.A.” se encontra dependente do prévio consentimento ou autorização para esse pagamento por parte da credora hipotecária “C (…)” (CEMG).

Custas em ambas as instâncias por Autora, Ré e Chamada “Companhia de Seguros (…), S.A.”, na proporção dos respectivos decaimentos.

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                                                                                   Coimbra, 14 de Outubro de 2014

                                              

                                                 (Luís Filipe Cravo ( Relator)

                                           (António Carvalho Martins)

                                                    (Carlos Moreira)




[3] Como, aliás, doutamente sustentando pela Ré Seguradora nas suas contra-alegações, face à restrita factualidade apurada atinente a este particular.  
[4] Citámos o acórdão do S.T.J. de 22-03-2007, no proc nº 07A230, acessível em www.dgsi.pt/jstj.