Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
235/11.0TBMIR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: USUCAPIÃO
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
FARMÁCIA
Data do Acordão: 10/17/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - CANTANHEDE - JL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1261º, 1262º. E 1287º)
Sumário: I – Um estabelecimento comercial – enquanto unidade económica e jurídica que há muito vem sendo reconhecida – pode ser objecto de posse e, como tal, pode ser adquirido por usucapião.
II – Assim, estando provado que o Réu, durante mais de quarenta anos, deteve o poder de actuar e agir sobre o estabelecimento comercial (no caso, uma farmácia), praticando uma multiplicidade de actos que são próprios e inerentes ao direito de propriedade – era ele o titular do alvará de funcionamento da farmácia; era ele que explorava e geria a farmácia como se fosse sua, adquirindo e revendendo os produtos e fazendo seus os lucros obtidos; era ele que contratava e pagava aos funcionários do estabelecimento; era ele que pagava os respectivos impostos, taxas e licenças; era ele que mandava efectuar e pagava as obras necessárias, tendo, aliás, mudado o estabelecimento para outro local; era ele que se apresentava como titular da farmácia junto de diversas entidades que com ele se relacionavam; era ele que celebrava e pagava os contratos de seguro – e estando provado que actuava dessa forma com a convicção de exercer e explorar um direito sobre coisa sua e de ser o dono/proprietário da farmácia, impõe-se concluir que o mesmo adquiriu e exerceu a posse correspondente ao direito de propriedade e que, estando em causa uma posse pública e pacífica, adquiriu esse direito por usucapião.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A... , residente na Rua (...) , Mira (entretanto falecida e substituída pelos seus herdeiros B... , C... , D... , E... e F... ); G... , residente no Largo (...) , Mira; H... , residente na Rua (...) , Aveiro; I... , residente na Rua (...) , Mira e J... , residente na rua (...) , Praia Mira, vieram instaurar acção contra L... , residente na Rua (...) , Mira; M... , residente na Rua (...) , Cacia e N... , residente na Rua (...) , Mira (entretanto falecido e representado pelos seus herdeiros O... , P... e Q... ).

Alegam, em suma: que são herdeiros de R... e S... de cuja herança faz parte um estabelecimento de farmácia, denominado Farmácia X... , sita em w....; que essa farmácia era gerida por T... (filho dos autores da herança), sendo que, à data, os demais herdeiros tinham a convicção de que tal farmácia lhe havia sido legada pelos pais; que, por escritura de 1960, os filhos dos autores da herança ( T... , U... , V... e Z... ) outorgaram contrato de trespasse da farmácia a favor da Dr.ª M... , pelo preço de trinta mil escudos, sendo que tal trespasse não se efectivou e foi um negócio simulado, já que os trespassantes nunca receberam o preço e a trespassária nunca recebeu a posse efectiva da farmácia; que tal trespasse e consequente declaração foram «feitos» para antecipadamente iludir a legislação que se preparava para entrar em vigor e que impediria que quem não fosse licenciado em farmácia pudesse deter a propriedade de uma farmácia; que, em 1966, faleceu T... , o qual deixou a farmácia, por doação, e posteriormente, por testamento, ao sobrinho L... (filho de seu irmão Z... ); que tal doação e testamento não são válidos uma vez que a farmácia não pertencia inteiramente a T... , integrando a herança dos quatro filhos de S... .

Com estes fundamentos, formulam os seguintes pedidos:

1. Que se declare nulo, por simulado, o contrato de trespasse celebrado, em 22/03/1960, entre a Ré M... e T... , U... , V... e Z... ;

2. Que se declare nula, por ilegítima, a doação feita por T... , a favor de L... e, pela mesma razão, nulo o legado testamentário do mesmo T... , a favor do Réu L... ;

3. Que se reconheçam os herdeiros de R... e S... , como legítimos proprietários do estabelecimento comercial farmácia denominado “Farmácia X... ”, melhor descrito no artigo 7º do presente articulado;

4. Que os Réus L... e mulher sejam condenados a devolver à herança o estabelecimento comercial farmácia.

5. Que o Réu L... seja condenado a restituir à herança todos os frutos que a farmácia produziu desde 25 de Outubro de 1966 ou, mesmo que tal não se entenda, o que não se concede e apenas se alega por mera questão de raciocínio, condenar o Réu, em alternativa a restituir todos os frutos que a farmácia produziu e vier a produzir, desde a citação do Réu para a presente acção e até efectiva prestação de contas e entrega da farmácia à herança.

6. Que o Réu L... seja notificado para vir aos autos prestar contas relativamente a todos os frutos produzidos pela farmácia desde o início da sua posse.

A Ré, M... , veio apresentar contestação, invocando a ilegitimidade dos Autores por não serem herdeiros legitimários dos autores da sucessão e carecerem de legitimidade para arguir a alegada simulação. Nega também a existência de simulação do contrato de trespasse, alegando que pagou o preço e que passou a explorar a farmácia a partir da dada da celebração da escritura, exercendo as funções de Directora Técnica. Mais alega ter celebrado esse negócio com o intuito de vir a transmitir a farmácia ao Réu, L... , sendo que sempre possuiu o estabelecimento em nome deste Réu, sendo este quem atendia a clientela e quem fazia a respectiva gestão. Alega, portanto, que o Réu L... explora o estabelecimento comercial desde 1960, ininterruptamente, à vista de todos, de forma pública, pacífica, sem oposição de ninguém e continuadamente, ocupando-o e explorando-o por sua conta e risco até à presente data, sem oposição dos Autores ou de quem quer que seja, sempre convicto que o estabelecimento que possui é exclusivamente seu, não ofendendo ou lesando direitos de terceiros.

Conclui pedindo a procedência das excepções invocadas e a sua absolvição (da instância ou do pedido), mais pedindo que os Autores sejam condenados como litigantes de má-fé em multa e indemnização a seu favor no valor suficiente para o reembolso de todas as despesas judiciais e não judiciais efectuadas por causa deste processo e nos honorários do seu mandatário a serem fixados após a sentença e prévia audição das partes.

O Réu, N... , invocando a sua ilegitimidade por não ter qualquer intervenção na relação controvertida e, impugnando a matéria de facto alegada, diz: que a farmácia foi comprada, no ano de 1960, pelo Réu L... aos quatro herdeiros de S... , T... , V... , U... e Z... ; que o aludido Réu pagou o preço devido; que, na altura, as farmácias apenas podiam ser de farmacêuticos e por isso o referido L... pediu à Ré M... , farmacêutica que fosse ela a “dar o nome como proprietária” na escritura de trespasse, sendo certo, no entanto, que a partir dessa data e até aos dias de hoje, sempre foi o Ré L... quem passou a ser o proprietário da farmácia e que a explorou e geriu por sua conta.

Conclui pedindo a sua absolvição da instância ou, se assim não se entender, a sua absolvição do pedido.

O Réu, L... , contestou e deduziu reconvenção, alegando, em suma: que é falsa a existência do alegado testamento e doação de T... a favor do Réu; que o trespasse não foi simulado já que os ali trespassantes pretenderam efectivamente transmitir a propriedade da farmácia ao Réu L... ; que, face à legislação vigente na altura, solicitou à Ré M... que figurasse como compradora, não obstante ser ele o verdadeiro proprietário; que pagou o preço acordado e que, desde então, geriu sozinho e de forma ininterrupta a referida farmácia e que, com a entrada em vigor – em Março de 1965 – da Lei nº 2125 e com a aplicação do nº 3 da BASE XII da aludida lei a propriedade do estabelecimento de farmácia em causa foi adquirida pelo ora contestante.

Com estes fundamentos, conclui pedindo:

A) Que seja julgada procedente a excepção da aquisição da propriedade da farmácia pelo R. L... , efectuada nos termos do disposto no nº 3, da BASE XII, da Lei nº 2125 de 20 de Março de 1965, tornando assim válido o negócio dissimulado e absolvendo-se os RR. dos pedidos formulados pelos AA.,

Ou, caso assim se não entenda,

B) Que seja julgado procedente, por provado, o pedido reconvencional deduzido de aquisição da propriedade da farmácia pelo R. L... através do Instituto do Usucapião, com a consequente improcedência de todos os pedidos formulados pelos AA.

Os Autores replicaram, sustentando a improcedência das excepções invocadas. Alegando que o estabelecimento comercial não é susceptível de posse e, como tal, não pode ser adquirido por usucapião, sustentando que não estão verificados os pressupostos da usucapião e impugnando diversos factos alegados, concluem pela improcedência da reconvenção. Pedem ainda que a Ré M... seja condenada, como litigante de má-fé, em multa e indemnização a favor dos Autores correspondente ao valor de todas as custas judiciais e não judiciais, onde se devem incluir os honorários dos mandatários dos autores.

O Réu, L... , apresentou tréplica, sustentando que os Autores actuam com abuso de direito ao virem agora pôr em causa o direito de propriedade do Réu quando é certo que nem eles nem os seus antepassados o fizeram em momento anterior, mais sustentando que prescreveu o direito dos Autores de pedirem a declaração de nulidade do acto aquisitivo e de deduzirem oposição à aquisição da propriedade através da usucapião.

Por despacho de 09-01-2012, julgou-se procedente a excepção de ilegitimidade do Réu N... que, em consequência, foi absolvido da instância.

No mesmo despacho, foram os Autores convidados a suprir a preterição de litisconsórcio necessário activo e passivo mediante a dedução do incidente adequado a provocar a intervenção dos interessados em falta.

Na sequência desse facto, os Autores vieram requerer a intervenção principal de RR... e de N... , a primeira como associada dos Réus e o segundo como associado dos Autores.

Admitida a intervenção e citados os intervenientes, RR... veio apresentar contestação e deduzir reconvenção, assumindo posição semelhante à assumida pelo seu marido (o Réu, L... ).

Os Autores replicaram

Findos os articulados foi admitida a reconvenção, foi proferido despacho saneador e foi elaborada a matéria de facto assente e base instrutória.

Entretanto, tendo falecido a Autora, A... , foram habilitados como seus sucessores, B... , C... , D... , E... e (conforme rectificação posteriormente efectuada) F... , melhor identificados nos autos.

E tendo também falecido N... , foram habilitados como seus sucessores O... , P... e Q... , melhor identificados nos autos.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que, julgando a acção improcedente e julgando procedente a reconvenção, declarou a aquisição da propriedade da FARMÁCIA X... pelos réus/reconvintes L... e RR... , sua esposa, através do Instituto do Usucapião.

 

Inconformados com essa decisão, os Autores C... , F... , D... , E... e G... , vieram interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

A) Verifica-se, assim, uma situação de deficiente fundamentação da Decisão de Facto, enquadrável e prevista no artigo 662º., nº. 2, d), do CPC, pois a fundamentação deve ser adequada à necessidade que se imponha em cada caso concreto e, no caso em apreço, afigura-se-nos que a fórmula utilizada é insuficiente no sentido de se entender a razão do decidido, havendo razões (mais que) suficientes para determinar a baixa dos autos à 1ª instância para melhor fundamentação.

B) É que o novo Código de Processo Civil introduziu, no que respeita à fundamentação da decisão da matéria de facto, uma alteração em relação ao regime precedente e, embora constituindo questão que, hodiernamente, é de conhecimento oficioso, a recorrente requer desde já a baixa do processo à 1ª instância com vista à fundamentação da decisão da matéria de facto.

C) A redacção do n.º 2 do artigo 653.º do CPC de 1961, o qual passou a dispor que a decisão proferida quanto à matéria de facto “declarará quais os factos que o tribunal julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador” assim o impõe.

D) Além disso, passou a reger o n.º 5 do artigo 712.º do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pelo citado Diploma que “se a decisão proferida sobre algum facto essencial para julgamento da causa não estiver devidamente fundamentada, pode a Relação, a requerimento da parte, determinar que o tribunal de 1ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados ou repetindo a produção da prova, quando necessário; sendo impossível obter a fundamentação com os mesmos juízes ou repetir a produção da prova, o juiz da causa limitar-se-á a justificar a razão da impossibilidade.”.

E) Face à deficiente fundamentação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida, requer-se efectivamente a baixa do processo à 1.ª instância com o desiderato de obter a respectiva e necessária fundamentação da matéria de facto.

F) Com fundamento no disposto no artº. 640º. do actual Código de Processo Civil, e com base nos depoimentos da testemunha AA... , da testemunha BB... , da testemunha CC... , da testemunha DD... , da testemunha EE... , da testemunha FF... e da testemunha GG... , cujos depoimentos estão gravados através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, sobretudo nas partes transcritas, deve ser considerado não provado o factos constantes das alíneas I) e M).

G) Além disso, é comprovadamente falso o facto constante da alínea L), porque a legislação ao tempo - Decreto-Lei nº. 23.422, de 29 de Dezembro de 1933 – não permitia que pessoas estranhas a farmacêuticos pudessem ser proprietários de farmácias, pelo que não podiam os trespassantes pretender transferir a farmácia para um não farmacêutico, porque sabiam que tal acto, por contrário à lei, seria nulo. – Cfr. artº. 294º. do Cod. Civil.

H) Este facto está em contradição com o facto J), pois não pode pretender-se que a venda foi feita a um simulador que não interveio no contrato, pelo que as exigências de forma – escritura pública – não se mostram preenchidas e este facto é contrário ao texto de um contrato sujeito e escritura pública e portanto por um facto provado plenamente, não sendo admissível aquela “interpretação”, por violar o disposto no artº. 238º. do Cod. Civil, que proíbe que uma declaração possa valer com um sentido que não tem um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso, pelo que deve ter-se como não provado o facto constante da al. L)

I) Sobre o ponto da al. AA) resulta evidente dos documentos juntos com a contestação do R., mais concretamente o documento 11, em 14/5/2010, a electricidade ainda está nome de T... , pelo que deve este facto ser considerado como não provado

J) Quanto ao facto da alínea SS), na parte final, não podia o R. ter a convicção de que explorava uma coisa sua, pois que, independentemente de poder ou não um estabelecimento comercial ser adquirido por usucapião, o certo é que o R. L... sabia que não podia adquirir o referido estabelecimento de farmácia, por não ser farmacêutico, pelo que não se pode ter o animus de exercer um direito que se não pode exercer por falta de habilitação para o efeito, consciência que ale tinha desde a década de 60, e sabia que lesava os direitos dos herdeiros de S... ,

K) Deve ser retirada da alínea SS) a referência “sempre convicto de que exercia e explorava um direito sobre uma coisa sua, sem a noção de estar a lesar direitos de outrem.”

L) Os estabelecimentos comerciais, enquanto universalidades de direito, não são passíveis de posse (Vide neste sentido Durval Ferreira, em “Posse e usucapião”, pág. 89 e sgs. e Pires de Lima e Antunes Varela, em Código Civil Anotado, 1972, em anotação ao artº. 1251; bem como Abílio Neto, em Código Civil anotado, 11º edição, anotação ao artigo 1251º).

M) Apenas os objectos corpóreos seriam susceptíveis de posse e, como tal, ser adquiridos por usucapião, o mesmo não sucedendo com os elementos incorpóreos, pelo que, os elementos incorpóreos da farmácia " X... ", maxime, o respectivo alvará, nunca poderiam ser adquiridos por usucapião, neste caso pelo Réu L... .

N) Não sendo plausível a aquisição por usucapião dos elementos incorpóreos do estabelecimento comercial, a mesma não será igualmente de admitir-se quanto aos elementos corpóreos do mesmo, na medida em que tal implicaria inevitavelmente a sua completa desintegração.

O) Mesmo para aqueles que sustentam que a tutela possessória poderá ser, eventualmente, aplicável ao estabelecimento comercial, de acordo com o princípio da predominância (isto é, conforme o estabelecimento seja constituído essencialmente por bens corpóreos ou incorpóreos), o que não se concede e apenas se admite por mera questão de raciocínio, ainda assim, forçosamente se concluirá pela impossibilidade de tutela possessória relativamente a uma farmácia uma vez que o bem que mais a caracteriza (e que maior valor comercial tem) é o alvará, justamente um bem incorpóreo.

P)Um argumento importante a favor da tese de que o estabelecimento comercial não é susceptível de aquisição por usucapião, para além do facto de o mesmo conter bens incorpóreos, reside no facto haver uma regulamentação muito minuciosa sobre os poderes dos donos de estabelecimentos comerciais significa que a lei não reconheceu a possibilidade de posse e consequente usucapião desses estabelecimento e, por exemplo, o facto de o arrendatário poder lançar mão dos meios possessórios, não significa que ele seja havido como possuidor e que o arrendamento - mero contrato obrigacional – possa ser adquirido por usucapião.

Q) Deste modo, nem por construção jurisprudencial se pode entender que o estabelecimento comercial – em especial, uma farmácia – possa ser adquirido por usucapião.

R) Mas, mesmo que se viesse a admitir, por absurdo, a possibilidade de usucapir o estabelecimento comercial de farmácia, o que não se concede, sempre teria que se admitir que não se encontram reunidos os pressupostos do instituto do usucapião.

S) Os pressupostos imediatos do instituto do usucapião são, como se referiu supra, três: A posse; Mantida por certo lapso de tempo; À imagem do direito de propriedade ou de outros direitos reais.

T) Mas exige-se também que exista uma causa possidendi, que permita aferir do conhecimento da existência e da extensão da posse, nomeadamente o direito real a que se refere a posse, pois os actos provados podem ser também para um direito real de usufruto

U) Quanto à causa da posse reconhecida ao R. L... , não pode entender-se como tal a escritura de 22/3/1960, porquanto nesse título aparece como adquirente M... e não o R. L... .

V) Trata-se de uma escritura pública – documento autêntico -, pelo que as declarações dos intervenientes no que respeita aos elementos essenciais do contrato têm de dela constar – Cfr. artº. 221º., nº. 2 do Cod. Civil e, no caso dos presentes autos, a declaração escrita da referida M... , constante do documento 21 junto a fls. 107, não é válida, pois a declaração do adquirente é um dos elementos essenciais do contrato, que dele têm de constar obrigatoriamente, o que, no caso concreto é ainda mais relevante, por haver a proibição de aquisição de farmácias por quem não seja farmacêutico.

X) A sentença recorrida reporta o início da posse a 1960 – data da escritura -, quando nela se contém não o nome do R. L... , mas o nome de M... , pelo que não constitui essa escritura causa da eventual posse do R. L... , pois não figurando o nome desse R. L... na mesma escritura, não pode esse documento servir de causa à eventual posse do R.

Y) De outro modo, essa sua eventual posse não era pública, mas oculta, não podendo conduzir á usucapião.

Z) Por falta de causa, não pode falar-se, como o faz erradamente a sentença recorrida, de uma posse iniciada em 1960 e não havendo outra causa de posse invocada, a detenção de facto por parte do R. L... não pode juridicamente configurar uma posse.

AA) 7. Mas também o poder de facto não está acompanhado do correspondente animus possidendi, nem este se pode presumir, pois que, quando alguém possui alguma coisa, na convicção de ser proprietário dessa coisa, tem naturalmente de haver a possibilidade legal de ser proprietário dessa coisa.

BB) O R. L... sabia que, em 1960 não podia ser proprietário de qualquer farmácia, porquanto isso lhe estava vedado pelo Decreto-Lei nº. 23.422 de 29 de Dezembro de 1933, em vigor ao tempo, que restringia a detenção desse tipo de estabelecimentos a farmacêuticos e ele bem sabia que não o era e isso também lhe esteve vedado pela lei subsequente até 2013, ou seja, a Lei nº. 2125, de 20 de Março de 1965, que dispunha no mesmo sentido da lei anterior sobre a propriedade das farmácias.

CC) Não pode, como aliás, se referiu atrás, o R. L... agir com uma convicção de proprietário da Farmácia que fora do seu avô, porquanto não podia legalmente ser proprietário da mesma farmácia e faltando o correspondente animus possidendi, o mero poder de facto que foi provado não pode conduzir à aquisição por usucapião do estabelecimento de farmácia.

DD) Mostram-se violados pela decisão recorrida, por erro de interpretação e aplicação, o artigo 1º. do Decreto Lei nº. 23.422 de 29 de Dezembro de 1933, bem como os artigos 221º., nº. 2, 1251º., 1253º., 1254º. e 1256º., todos do Cod. Civil e a Base II, nº. 2 da Lei nº. 2125, de 20 de Março de 1965.

EE) Por isso tem, em procedência do presente recurso, de ser revogada a sentença recorrida e substituída por outra decisão que julgue procedente a acção e improcedente a reconvenção, como é de lei e de justiça.

Os Réus, L... e mulher, RR... , apresentaram contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

A. A Sentença recorrida não merece qualquer censura, seja em termos de matéria de facto considerada provada, seja em termos da aplicação que fez do Direito aos factos considerados como provados.

B. As transcrições dos depoimentos das testemunhas reproduzidas pelos recorrentes e com base nas quais pretendem defender que diversos factos deveriam ser considerados como não provados, encontram-se apenas parcialmente transcritas e/ou transcritas apenas em partes que retiram o sentido global do depoimento das testemunhas em questão.

C. Na reapreciação da prova gravada afigura-se essencial que o Tribunal ad quem percepcione o “todo” de cada depoimento, bem como o depoimento de outras testemunhas sobre os factos em análise, a fim de poder formar a sua convicção sobre a veracidade ou não do depoimento produzido.

D. Os depoimentos das testemunhas têm que ser compaginados com o teor dos documentos junto aos autos que in casu, são em elevadíssimo número, e abrangem um período temporal superior a cinquenta anos.

E. Relativamente ao facto indicado em “I) Em 15 de Fevereiro de 1960, V... , T... , U... e Z... , na qualidade de herdeiros de seus pais, acordaram com o réu L... a compra da farmácia por este último.” a convicção do Tribunal a quo de que tal facto se deverá considerar como provado, está corretamente fundada, nomeadamente no depoimento das testemunhas, II... , JJ... , LL... , MM... , NN... , OO... , PP... e QQ... .

F. Relativamente ao facto indicado em “L) Ao celebrarem o contrato referido em K), V... , T... , U... e Z... quiseram, de facto, transmitir a propriedade do estabelecimento de farmácia ao réu L... .” os recorrentes não indicam quais os depoimentos que fundamentariam uma resposta diferente àquela que que foi dada pelo Tribunal a quo, ou quaisquer outros meios de prova existentes nos autos que fundamentem a sua impugnação.

G. O facto em causa terá assim que continuar ser considerado provado nos precisos termos em que o fez o Tribunal a quo.

H. Relativamente ao facto indicado em “M) Os outorgantes no contrato referido em K), tinham conhecimento que M... intervinha na escritura de trespasse da farmácia referida em K), para que, quando fosse legalmente possível, formalizar a transmissão ao réu L... .” a convicção do Tribunal a quo de que tal facto se deverá considerar como provado, está corretamente fundada, nomeadamente no depoimento das testemunhas II... , JJ... , LL... , MM... , NN... , OO... , PP... e QQ... .

I. Para além do depoimento das testemunhas indicadas na conclusão anterior, da própria análise global dos depoimentos das testemunhas indicadas pelos recorrentes, tal convicção do Tribunal a quo também não resulta posta em causa.

J. Ainda relativamente ao facto indicado em “M” da matéria dada como provada pelo Tribunal a quo, a sua convicção teve ainda em linha de conta inúmeros documentos a que expressamente faz referência, nomeadamente, a escritura de doação junta a fls. 244 dos autos, o testamento de T... junto ao autos em 13/03/2016, todos os documentos que integram o processo administrativo do INFARMED para atribuição do alvará de funcionamento do estabelecimento de farmácia ao réu L... , no qual este é reconhecido como proprietário da mesma desde o ano de 1960,

K. Em especial os documentos constantes de fls. 107, 234 e 235 que constituem declarações efetuadas por outorgantes diretos na escritura de trespasse referida nos autos – a ré M... e um antecessor dos recorrentes – a reconhecerem expressamente que o réu L... adquiriu o estabelecimento de Farmácia a seus Tios e seu Pai.

L. O facto em causa terá assim que continuar ser considerado provado nos precisos termos em que o fez o Tribunal a quo.

M. Relativamente ao facto indicado em “AA) ... o mesmo se passando com os contratos de fornecimento de energia eléctrica.” a convicção do Tribunal a quo de que tal facto se deverá considerar como provado, está corretamente fundada, nomeadamente com base nos recibos referentes ao consumo da energia elétrica da farmácia - instalada na Rua (...) , , em w.... – e que constituem os documentos juntos com a contestação do recorrido L... , sob os números 166 a 175, estando todos eles emitidos em seu nome.

N. O documento nº 11 referido pelos recorrentes, não tem a ver com o local onde está instalado o estabelecimento de farmácia, mas sim com a antiga casa de habitação do T... , cuja rua passou a ter o seu nome - precisamente “Beco do T... ” -,

O. E que se situa na Praia de w...., pese embora tal documento esteja emitido em nome do recorrido L... e não em nome do T... .

P. Uma vez mais, o facto em causa terá que continuar ser considerado provado nos precisos termos em que o fez o Tribunal a quo o fez.

Q. Relativamente à parte final do facto indicado em “SS) Assim actuando à vista de toda a gente, de forma pacífica e continuada, sem a oposição de quem quer que fosse, sempre convicto de que exercia e explorava um direito sobre uma coisa sua, sem a noção de estar a lesar direitos de outrem.”, que os recorrentes pretendem ver como não provado com base no depoimento da testemunha depoimento de BB... , importa referir que em tal depoimento pura e simplesmente nada é referido que permita sustentar a posição dos recorrentes.

R. Desta forma, uma vez mais, o facto em causa terá que continuar ser considerado provado nos precisos termos em que o fez o Tribunal a quo o fez.

S. A Sentença proferida não padece de qualquer falta de fundamentação relativamente à matéria de facto que considerou provada.

T. A Sentença encontra-se dividida em diversas partes: a “Fundamentação”, na qual se enunciam e identificam os factos considerados como provados e não provados; a “Motivação” e o “Direito”.

U. Na parte da “Motivação” a Sentença enuncia quais os elementos probatórios tidos em linha de conta para cada um dos factos considerados como provados, seja por remissão para as respetivas alíneas onde tais factos se encontram descritos, seja para descrição do facto em questão, identifica e localiza os documentos e a prova testemunhal que teve em linha de conta e, por fim as posições assumidas pelas partes nos respectivos articulados.

V. Ainda nesta parte, a Sentença procede ao exame crítico dos meios de prova tidos em linha de conta para a decisão, explicitando, de forma detalhada, o processo de análise que norteou a sua atuação e que a levou a considerar os como provados os factos nela referidos, mencionando expressamente as provas que, no seu juízo, considerou relevantes para o efeito.

W. A Sentença recorrida procedeu assim ao exame crítico da prova produzida, nomeadamente daquela que considerou relevante para a decisão sobre a matéria de facto, tenha ela sido de natureza testemunhal, tenha ela sido de natureza documental.

X. A posição dos recorrentes de que a propriedade de um estabelecimento comercial não pode ser adquirido por usucapião, não tem o mínimo de fundamento legal e é contrariada pela melhor e mais recente Jurisprudência e Doutrina, conforme resulta de forma cristalina do Parecer que se junta e nos acórdãos nele mencionados, Parecer cujas conclusões se adoptam, devidamente assinaladas em itálico como forma identificativa do seu Autor.

Y. “A compreensão da natureza jurídica do estabelecimento comercial – que reside sobretudo na compreensão da relação entre o estabelecimento e os bens que o compõem – evoluiu de acordo com o quadro legal e económico em que foi sendo contextualizada.

Z. A realidade mostra, todavia, que o estabelecimento, como bem, não se reduz a um conjunto de bens, nem a uma mera organização de meios, nem mesmo a uma clientela, tendo a doutrina acabado por conjugar uma leitura articulada de todas estas perspectivas, em que o estabelecimento comercial passou a ser entendido numa perspectiva unitária, considerado em si como uma unidade por contraposição aos vários bens que o compõem.

AA. Para efeitos de compreensão e enquadramento do tratamento a dar aos negócios jurídicos que têm por objecto um estabelecimento, a unidade do estabelecimento surge como dado irrecusável, núcleo irredutível de consenso, que, no nosso ordenamento, é também ostensivo a partir da consideração normativa do legislador e de uma pragmática actividade interpretativa da jurisprudência.

BB. O ordenamento jurídico português reconheceu relativamente certo que o estabelecimento comercial, como unidade jurídica, e não apenas cada um dos seus elementos isoladamente, pode ser objecto de negócios jurídicos entre vivos, como o trespasse, ou seja a transmissão da propriedade – a venda (voluntária, executiva ou em sede de insolvência), a doação, a troca, a realização de entrada social, a dação em cumprimento -, a locação, a oneração através da constituição de uma garantia real (penhor mercantil) ou de um direito real de gozo (usufruto), ou pode ser transmitido mortis causa, quer integrando uma quota hereditária, quer através da instituição de um legado, vindo também na jurisprudência portuguesa os tribunais superiores há muito a tratar unitariamente o estabelecimento comercial.

CC. Sendo o estabelecimento comercial uma unidade, tal significa que sobre ele pode incidir um direito real (de propriedade ou outro) e também que sobre ele se podem exercer poderes de facto correspondentes ao exercício de um direito real, isto é posse, bem como que, enquanto objecto de direitos, pode ser transmitido e adquirido em bloco e na sua globalidade.

DD. A aceitação e o reconhecimento legislativo da unidade do estabelecimento importam uma solução unitária tanto para a sua aquisição derivada como para a aquisição originária, como é a usucapião.

EE. No nosso ordenamento jurídico não existem disposições legais incompatíveis com a consideração do estabelecimento comercial como objecto de posse que possa conduzir à aquisição da sua propriedade por usucapião ou prescrição aquisitiva.

FF. O regime jurídico das farmácias de oficina – e a questão da sua propriedade – encontra-se hoje regulado pelo Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de agosto, modelado pelo princípio da liberdade de acesso à propriedade da farmácia e pela concorrência no sector.

GG. À luz do regime anterior ao Decreto-Lei n.º 307/2007, do ato de transmissão de propriedade a não farmacêutico não resultava qualquer confisco, perda da propriedade ou expropriação do estabelecimento comercial pelo não farmacêutico; a consequência era a impossibilidade de manter o estabelecimento aberto ao público após o decurso de um certo período de tempo, e o consequente ónus – sob pena de caducidade do alvará – de obter as necessárias qualificações para o exercício da profissão farmacêutica ou de transmitir a farmácia a quem a tenha.

HH. A propriedade ou posse de uma farmácia por não farmacêutico não se extinguia nem era juridicamente irrelevante mesmo à luz do regime anterior a 2007, apenas podendo conduzir à caducidade do respectivo alvará; caso este não caducasse, porém, a propriedade e a posse da farmácia tinham plena relevância jurídico-civil.

II. O artigo 1251.º do Código Civil de 1966, ao definir a posse como “o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”, enquadra-se num sistema subjetivo de posse.

JJ. Numa sensibilidade dominial evoluída, o conceito de coisa como objeto de direitos reais vai necessariamente além das coisas unitárias e corpóreas (res unitas corporalis), incluindo também coisas compostas e coisas incorpóreas e pressupondo uma entendimento atualizado do que deve ser entendido pelo corpus ou elemento material da respetiva posse.

KK. A posse existe logo que a coisa entra na órbita de disponibilidade fáctica do sujeito, que sobre ela pode exercer, querendo, poderes empíricos, sendo o poder de facto a possibilidade de agir sobre uma coisa.

LL. A possibilidade de posse de estabelecimento comercial é hoje inegável, como vem sendo jurisprudência constante dos nossos tribunais superiores.

MM. Havendo simulação relativa, e sendo o negócio dissimulado um negócio real quoad effectum, o accipiens tem naturalmente animus possidendi, porque tem a vontade de exercer os poderes de facto como se fosse titular do direito de propriedade em termos do qual os exerce.

NN. Em qualquer caso, provada a existência do corpus ou elemento material da posse, presume-se o respetivo animus ou elemento intencional, como se prevê no artigo 1251.º, n.º 2, do Código Civil.

OO. Os factos que foram dados como provados comprovam ad abundatiam que L... exerceu poderes de facto sobre o estabelecimento comercial “Farmácia X... ”, com a convicção de ser seu proprietário, isto é, que exerceu a sua posse.

PP. A posse exercida sobre a “Farmácia X... ” foi uma posse formal – por oposição a posse causal, aquela que tem causa no direito (a posse é projeção ou expressão de um jus in re de que o possuidor é titular) –, em que o possuidor não era titular de nenhum direito real (ou porque o intentou adquirir por ato inválido), mas atuou como se fosse.

QQ. A posse de L... foi não titulada, na medida em que para o negócio dissimulado, sendo de natureza formal, não foi observada a forma exigida por lei.

RR. Nos termos do artigo 1260.º, n.º 1, a posse diz-se de boa fé quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem, e, ainda que a posse não titulada se presuma de má fé, nos termos do artigo 1260.º, n.º 2, esta é uma presunção iuris tantum, e portanto suscetível de prova em contrário, nos termos do artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil.

SS. No contexto em que o réu L... adquiriu a posse da farmácia (as partes intervenientes no negócio disponibilizaram-se para celebrar um negócio simulado de transmissão da propriedade a favor da ré M... exclusivamente porque, querendo operar a transmissão a favor do réu L... , não o poderiam fazer por imperativo legal), a interposição subjetiva operada serviu apenas para contornar uma disposição legal que proibia a transmissão da farmácia a não farmacêuticos, tendo o Demandado adquirido a posse da farmácia sabendo que não respeitava essa disposição, mas com a convicção de não estar a violar um qualquer direito de terceiro.

TT. O Tribunal considerou corretamente que foi ilidida a presunção de má fé resultante do caráter não titulado da posse, pelo que a posse em questão foi uma posse de boa fé.

UU. Tendo-se provado que L... exerceu a posse da farmácia “actuando à vista de toda a gente, de forma pacífica e continuada, sem a oposição de quem quer que fosse, sempre convicto de que exercia e explorava um direito sobre uma coisa sua, sem a noção de estar a lesar direitos de outrem”, é de concluir que exerceu a posse com a exteriorização correspondente à normal utilização da coisa, isto é, uma posse pública.

VV. A posse de L... foi sempre uma posse pacífica, adquirida e exercida sem violência (como se prevê no artigo 1261.º, n.º 1).

WW. O tratamento unitário de que o estabelecimento comercial é objecto pelo nosso legislador, tratando-o como objeto de propriedade e de posse, impõe a conclusão de que pode igualmente ser objeto de usucapião, não existem no nosso ordenamento jurídico disposições incompatíveis com a consideração do estabelecimento comercial como objeto de posse que possa conduzir à aquisição da sua propriedade por usucapião.

XX. A admissibilidade de posse e de usucapião do estabelecimento comercial já foi apreendida pelos nossos tribunais superiores em diversos arestos (nomeadamente nos acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 13 de março de 2008, do Tribunal da Relação de Coimbra de 16 de março de 2010, e do Tribunal da Relação de Guimarães de 5 de março de 2015) e é também aquela que se encontra noutros ordenamentos jurídicos.

YY. O nosso legislador estabeleceu prazos diferentes para a duração da posse necessária à usucapião de bens móveis e à de bens imóveis e alguma doutrina, considerando a importância do imóvel como elemento do estabelecimento comercial, entende serem de aplicar à usucapião deste os prazos previstos para os bens imóveis, sem que se trate, porém, de entendimento unânime, podendo argumentar-se em sentido contrário que o prazo a aplicar é o dos bens móveis, por não se verificarem as razões justificativas do prazo mais longo.

ZZ. No caso concreto, dos factos provados resulta que a aquisição da propriedade do estabelecimento comercial “Farmácia X... ” não leva em si a aquisição de nenhum direito de propriedade sobre imóvel, pelo que não procedem as razões que justificam o prazo mais longo da usucapião de imóveis.

AAA. Mais de cinquenta anos de duração de posse ininterrupta, pública e pacífica e de boa fé, permitem, sem qualquer dúvida, a aquisição por usucapião do estabelecimento comercial “Farmácia X... ”, qualquer que seja o prazo que se considere aplicar, uma vez que o prazo mais longo previsto para a usucapião de imóveis em caso de posse de boa fé é de quinze anos.

BBB. A necessidade de alvará para funcionamento da farmácia, que em qualquer caso não seria obstáculo à possibilidade da sua aquisição por usucapião caso tivesse realmente funcionado e tenha existido posse sobre esse estabelecimento, não é no caso concreto obstáculo à aquisição da “Farmácia X... ” por usucapião, pois resulta dos factos provados que o alvará de funcionamento de farmácia com o n.º (...) foi emitido, já em 25 de fevereiro de 1969, pela Direcção Geral de Saúde e em nome do (possuidor e posterior) usucapiente L... . “

CCC. Não resultam violadas pela Sentença proferida pelo Tribunal a quo nenhuma das normas referidas pelos recorrentes nas suas alegações, tendo o Tribunal a quo efetuado uma correta aplicação do Direito.

Termos em que deve a Sentença ser mantida nos precisos em que foi proferida, assim se fazendo justiça.

Entretanto o Recorrente D... veio apresentar requerimento no sentido de desistir do recurso.


/////

II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações dos Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se a decisão da matéria de facto está devidamente fundamentada, com vista a determinar se deve (ou não) ser ordenada a baixa dos autos à 1ª instância para fundamentação de alguns pontos de facto;

• Saber se existiu erro na apreciação da prova no que toca aos pontos de facto que são impugnados e se, por via desse erro, deve ser alterada a decisão que sobre eles foi proferida;

• Saber se um estabelecimento comercial (no caso, uma farmácia) é susceptível de posse e se pode ser adquirido por usucapião;

• Saber – caso se responda afirmativamente à questão anterior – se estão verificados os pressupostos legais de que depende a aquisição do direito por usucapião. 


/////

III.

Na 1ª instância, julgou-se provada a seguinte matéria de facto:

A) R... faleceu a 30 de Janeiro de 1954, no estado de casada com S... .

B) S... faleceu a 23 de Setembro de 1959, no estado de viúvo.

C) T... , U... , V... e Z... , já todos falecidos, encontravam-se registados como filhos de S... e R... .

D) T... não deixou filhos.

E) U... teve duas filhas:

» TT...., já falecida;

» A... , autora nos presentes autos.

F) V... teve dois filhos:

» G... , autora nos presentes autos;

» J... , autor nos presentes autos.

G) Z... teve dois filhos:

» L... , réu nestes autos, casado desde 27.11.1960 em regime de comunhão geral de bens com RR... ;

» N... , chamado nestes autos.

H) TT... , já falecida, e filha de U... , deixou os seguintes filhos:

» I... , autor nestes autos;

» H... , autora nestes autos.

I) Em 15 de Fevereiro de 1960, V... , T... , U... e Z... , na qualidade de herdeiros de seus pais, acordaram com o réu L... a compra da farmácia por este último.

J) Como não era farmacêutico e a legislação apenas permitia que a farmácia fosse detida por farmacêuticos, o réu L... solicitou à ré M... , farmacêutica, que figurasse como compradora na aquisição da referida farmácia, não obstante ser ele o verdadeiro proprietário, o que aquela aceitou.

K) Por escritura datada de 22.03.1960, T... , U... , V... e Z... , outorgaram acordo, que denominaram “contrato de trespasse de farmácia” a favor de M... , pelo preço de trinta mil escudos, como decorre de doc.20 junto com a petição inicial e aqui se tem por reproduzido.

L) Ao celebrarem o contrato referido em K), V... , T... , U... e Z... quiseram, de facto, transmitir a propriedade do estabelecimento de farmácia ao réu L... .

M) Os outorgantes no contrato referido em K), tinham conhecimento que M... intervinha na escritura de trespasse da farmácia referida em K), para que, quando fosse legalmente possível, formalizar a transmissão ao réu L... .

N) Em 10 de Fevereiro de 1966, M... subscreveu uma declaração contendo o seguinte teor: “ M... , farmacêutica, licenciada pela Universidade do Porto, inscrita na Direcção-Geral de Saúde sob o nº 0.939, declara, para os devidos efeitos, que nunca foi, de facto, proprietária da Farmácia X... , de w.... e do Posto de Medicamentos instalado na povoação de Praia de w...., dependência da referida farmácia, de que, sempre reconheceu como seu único proprietário o Senhor L... , casado, ajudante técnico de farmácia, residente em Mira, freguesia e concelho de Mira”.

O) O alvará de funcionamento de farmácia com o nº (...) foi emitido, em 25.02.1969 pela Direcção Geral de Saúde em nome de L... .

P) Desde a data de celebração da escritura pública referida em K), M... não passou a desenvolver, a explorar e gerir a farmácia como se fosse coisa sua, não comercializando ao público produtos e serviços disponíveis nesse estabelecimento.

Q) …dado que sempre foi o réu L... quem, desde a data de celebração da escritura aludida em K), manteve o estabelecimento aberto ao público, de manhã à noite.

R) …e quem atendeu juntamente com os funcionários diariamente a clientela do estabelecimento em causa.

S) … e quem fez a gestão e encomendas de stock de medicamentos e outros produtos, fornecedores e pagou o seu preço.

T) …e quem fez as contas ao final do dia, recolheu o dinheiro, fez depósitos, pagou os impostos e tratou dos assuntos administrativos.

U) …e quem fez a admissão e pagou os vencimentos dos colaboradores/trabalhadores do estabelecimento.

V) …e os débitos e créditos resultantes da exploração da farmácia eram também coordenados pelo réu L... , fazendo seus os resultados das vendas diárias da farmácia.

W) Em 01 de Janeiro de 1980, o estabelecimento de farmácia foi transferido para o r/c de um imóvel da titularidade de L... , sito na Rua Dr. (...) , em w...., local, onde se encontra hoje instalado.

X) O que foi decidido pelo réu L... .

Y) Tendo continuado a utilizar, como inquilino, as antigas instalações como armazém de medicamentos.

Z) O contrato de fornecimento de água canalizada para a farmácia foi efectuado em nome do réu L... e era este quem pagava a água consumida naquele estabelecimento.

AA) …o mesmo se passando com os contratos de fornecimento de energia eléctrica.

BB) … e com o telefone.

CC) Foi o réu L... quem procedeu ao pagamento de taxas, contribuições e outros impostos inerentes ao funcionamento do estabelecimento de farmácia.

DD) …que organizou os documentos a enviar para a contabilidade.

EE) …que mandou efectuar e pagou obras de conservação e melhoria no imóvel onde se situa o estabelecimento em causa.

FF) …que requereu e pagou todas as licenças junto da Câmara Municipal de w.... referentes a publicidade, ocupação da via pública e aferição das balanças da farmácia.

GG) Foi o réu L... quem, na qualidade de entidade patronal, procedeu à entrega das declarações e pagamento de quotizações e contribuições dos trabalhadores da farmácia junto do Fundo de Desemprego, da Caixa de Previdência, Abono de Família do Distrito de Coimbra e Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P..

HH) Foi este réu quem, na qualidade de proprietário, foi notificado pela Câmara Municipal de w...., em Agosto e Setembro de 1969, para que este procedesse ao encerramento do posto de medicamentos dependente daquela farmácia.

II) O estabelecimento “Farmácia X... ” está inscrito na ANF Associação Nacional de Farmácias desde 1960 e desde então o réu L... tem vindo a receber correspondência a si dirigida e afecta ao estabelecimento.

JJ) Foi o réu L... quem sempre atendeu os delegados de vendas dos fornecedores.

KK) Foi este réu quem mandou proceder à reparação dos diversos equipamentos utilizados na farmácia e procedeu aos respectivos pagamentos.

LL) Foi o réu L... quem celebrou contratos de locação financeira, aluguer e manutenção dos equipamentos e sistemas informáticos utilizados na farmácia.

MM) Foi este réu quem, na qualidade de dono do estabelecimento de farmácia, levantou e despachou as encomendas destinadas e oriundas daquele estabelecimento junto da transportadora KK..., Lda”.

NN) Foi este réu quem mandou efectuar diversa publicidade ao estabelecimento de farmácia e fez donativos a entidades?

OO) Foi este réu quem, em 03.02.1961, requereu à Direcção de Estradas do Distrito de Coimbra autorização para a realização de obras na fachada do imóvel da farmácia, que se situava ao Km 83,350 da Estrada Nacional 109.

PP) Os contratos de seguro inerentes ao funcionamento do estabelecimento de farmácia foram celebrados com o réu L... e por ele pagos os prémios.

QQ) O réu L... era tido pela Inspecção Geral de Trabalho como a entidade patronal dos trabalhadores da farmácia.

RR) O réu L... sempre tratou de todos os assuntos inerentes à farmácia junto da Direcção Geral de Saúde e, posteriormente, junto do INFARMED.

SS) Assim actuando à vista de toda a gente, de forma pacífica e continuada, sem a oposição de quem quer que fosse, sempre convicto de que exercia e explorava um direito sobre uma coisa sua, sem a noção de estar a lesar direitos de outrem.


**

E julgaram-se não provados os seguintes factos:

1) T... sempre coabitou com os seus progenitores - S... e R... - e sempre auxiliou directamente o seu pai na gestão daquele estabelecimento de farmácia.

2) …motivo pelo qual, após o falecimento dos seus progenitores, nenhum dos irmãos, também identificados em C), se opôs a que ele continuasse a viver na residência da família e que continuasse a gerir aquele estabelecimento de farmácia.

3) …aliás, os restantes irmãos sempre pensaram que o estabelecimento de farmácia havia sido legado por aqueles progenitores ao filho T... .

4) De facto, só no âmbito do processo de partilhas que foi proposto e correu termos junto do Tribunal Judicial de Mira, com o nº 109/04.1TBMIR e após consulta do testamento de S... e R... , efectuada em 02 de Outubro de 2007, é que os herdeiros autores constataram que o estabelecimento de farmácia integrava a herança dos quatro filhos de S... e R... .

5) A partir do ano de 1964, L... , começou a trabalhar com o tio, T... , no estabelecimento farmácia, como ajudante técnico.

6) No que concerne ao acordo aludido em I), M... não procedeu ao pagamento do preço do trespasse.

7) Desde a data da escritura referia em I) T... continuou a gerir o estabelecimento de farmácia como se de coisa sua se tratasse.

8) T... deixou o aludido estabelecimento de farmácia, ao réu L... , inicialmente por doação e depois por testamento.

9) …momento em que os restantes familiares ainda acreditavam nos termos expostos em 3) e, assim, que tal disposição de vontade, afecta ao estabelecimento comercial e casa de residência, seria válida.

10) E com essa convicção permaneceram até Outubro de 2007.

11) Os restantes herdeiros foram induzidos em erro, primeiro por T... e, posteriormente, pelo réu L... .

12) O réu L... bem sabia que a Farmácia não lhe pertencia em exclusivo e que se os restantes herdeiros viessem a conhecer a verdade testamentária viriam reclamar os seus direitos de propriedade.


/////

IV.

Os Apelantes começam por invocar a deficiente fundamentação da decisão da matéria de facto, requerendo, com base nessa circunstância e ao abrigo do disposto no artigo 662º, nº 2, alínea d), do CPC, que o processo baixe à 1ª instância com vista ao suprimento desse vício.

Dispõe, efectivamente, o artigo 662º, nº 2, d), do CPC que a Relação deve, mesmo oficiosamente, “Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”.

No que toca ao dever de fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto, dispõe o artigo 607º, nº 4 do mesmo diploma, que o juiz deve analisar criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.

É certo, portanto, que o cumprimento desse dever de fundamentação não se basta com a mera indicação dos meios de prova que serviram de base à decisão; mas, por outro lado, também temos como certo que o cumprimento desse dever não exige a descrição de tudo aquilo que foi declarado pelas testemunhas e não exige uma exposição e análise pormenorizada de cada um dos meios probatórios – designadamente documentos – sob pena de a exigência legal de fundamentação se transformar numa tarefa quase impossível para o julgador. O que se pretende é que o julgador concretize, na medida do possível, o processo lógico que levou à formação da sua convicção, especificando, não só os concretos meios de prova em que se baseou, mas também as razões que o levaram a considerar esses meios de prova como aptos ou adequados para formar a sua convicção relativamente à verificação (ou não verificação) dos factos, analisando criticamente as diversas provas produzidas, explicando as razões pelas quais lhe mereceram credibilidade as provas que foram fundamentais para a formação da sua convicção e concretizando, na medida do possível, as razões que o levaram a atribuir maior credibilidade a determinados meios de prova em detrimento de outros que com eles eram incompatíveis.
Segundo refere Teixeira de Sousa[1], “o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz passa de convencido a convicente”. 
Importa referir, por outro lado, que a deficiente fundamentação da decisão é realidade diferente da errada fundamentação. O que é essencial para que se considere cumprido o dever de fundamentação da decisão é que sejam perceptíveis os meios probatórios em que a mesma se baseou e as razões que determinaram o juiz a formar determinada convicção; é necessário, em suma, que se percebam as razões pelas quais o julgador formou a convicção com base na qual decidiu naquele sentido. Coisa diversa é a questão de saber se o percurso e raciocínio do julgador são correctos e se os meios probatórios em que se fundou tinham aptidão para fundar aquela convicção, questão que já não se prende com o cumprimento do dever de fundamentação e que apenas se poderá reconduzir a erro de julgamento que apenas poderá motivar a impugnação e subsequente alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Ora, abstraindo para já de qualquer apreciação sobre a correcção ou incorrecção da apreciação das provas e sobre a razoabilidade da convicção a que ela conduziu (questão que, como referimos, apenas releva em sede de impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto), pensamos que a decisão cumpre, no essencial, o dever de fundamentação imposto por lei, uma vez que nos dá a conhecer os elementos probatórios em que se fundou e as razões que, com base na análise desses elementos, conduziram à formação da convicção (seja ela correcta ou incorrecta) que esteve subjacente à decisão.
Os Apelantes começam por exemplificar a insuficiente fundamentação da decisão com a alegada “…descrição abstracta de documentos, sem apresentar o sentido da decisão que a determinou e o que, concretamente, visa provar…”, aludindo, a esse propósito, ao excerto da decisão onde se diz que “a prova dos factos descritos em A) a H), K), O) e P) decorre do teor dos documentos juntos aos autos, designadamente das certidões 21 a 61, 1087, da escritura notarial de trespasse fls. 99 a 106, e de cópia do alvará de fls. 63, e do acordo das partes manifestado nos respectivos articulados.”
Mas o que mais poderia ser dito? Os factos descritos em A) a H), K) e O) resultam directamente dos documentos que foram perfeitamente identificados (certidões 21 a 61, 1087, da escritura notarial de trespasse fls. 99 a 106, e de cópia do alvará de fls. 63), sendo totalmente inútil e irrelevante – na nossa perspectiva – que se reproduzissem os termos desses documentos. E ainda que o facto referido em P) não resulte directamente desses documentos são claramente perceptíveis as razões que determinaram a decisão sobre ele proferida, tendo em conta as razões que determinaram a decisão de julgar provado que esses actos eram praticados pelo Réu L... e tendo em conta que esse facto estava admitido por acordo das partes (uma vez que nenhuma das partes – designadamente os Autores/Apelantes – alegou que a referida M... tivesse passado a desenvolver, explorar e gerir a farmácia como se fosse coisa sua).
Relativamente ao uso público de concretos poderes de facto pelo Réu, L... – expressos nos pontos Q) a RR) da matéria de facto – ficou claro que a decisão se fundamentou nos diversos documentos que enunciou de forma exaustiva (seja pela numeração das folhas do processo onde se encontram, seja pela descrição sumária do seu conteúdo), tendo entendido que os mesmos demonstravam com evidência esses factos que, além do mais, também eram confirmados pelas testemunhas que ali foram identificadas. Mais se disse, aliás, que essa convicção foi reforçada pelo facto de os Autores reconhecerem, logo na petição inicial, pese embora só a partir de 1966, a gestão exclusiva da farmácia pelo réu L... , com se de coisa sua se tratasse.
E para fundamentar a decisão proferida sobre o ponto SS) diz-se que “quer a natureza quer a quantidade dos poderes de facto exercidos pelo réu L... , demonstram que actuou na convicção de ser o proprietário da farmácia, não permitindo de resto a prova produzida considerar ilidida, ou sequer beliscada, a presunção decorrente do art. 1252º, nº 2 do CC”.
Ainda a título de exemplo da deficiente fundamentação da decisão, aludem os Apelantes aos pontos J), L) e M) da matéria de facto, dizendo que a fundamentação da decisão não dá a conhecer quais os documentos ou depoimentos que sustentaram a prova desse facto.
Salvo o devido respeito, não é assim, uma vez que a fundamentação da decisão dá efectivamente a conhecer as razões (sejam elas correctas ou não) em que se baseou quando afirma que “Resulta pacífico da posição manifestada pelas partes nos articulados que a intervenção da ré M... na escritura de trespasse de 1960, foi determinada pela necessidade de contornar a exigência legal da propriedade das farmácias apenas poder ser titulada por farmacêuticos, o que era do conhecimento de todos os outorgantes cuja vontade nunca foi transferir/receber a propriedade do estabelecimento comercial” e quando afirma que “O acordo prévio à escritura de trespasse e a vontade real dos outorgantes do trespasse decorre, para além da prova documental e testemunhal já referida comprovativa da gestão da farmácia pelo réu L... , do teor dos documentos juntos pelos autores e que integram o processo administrativo do Infarmed para atribuição de Alvará em nome do Réu (cfr. 755 e ss, maxime, declarações de fls. 802 a 803 em que o réu L... é reconhecido como proprietário da farmácia desde Fevereiro de 1960), das declarações de fls. 234, 107 e 235 em que é o próprio antecessor dos autores e a ré M... , ambos outorgantes naquele trespasse, a reconhecer que foi o réu L... quem “adquiriu” a farmácia a seus tios e pai, herdeiros do seu falecido avô S... .
Pensamos, portanto, que a fundamentação da decisão dá a conhecer, em termos bastantes, os elementos probatórios em que se baseou e o processo ou raciocínio do julgador que conduziu à formação da sua convicção, não se justificando, por isso, que o processo baixe à 1ª instância para fundamentação de qualquer facto essencial ao julgamento da causa.

***

Os Apelantes vêm impugnar a decisão que julgou provados os factos constantes das alíneas I), M), L), AA) e SS), ou seja, a decisão que julgou provados os seguintes factos:
I) Em 15 de Fevereiro de 1960, V... , T... , U... e Z... , na qualidade de herdeiros de seus pais, acordaram com o réu L... a compra da farmácia por este último.
L) Ao celebrarem o contrato referido em K), V... , T... , U... e Z... quiseram, de facto, transmitir a propriedade do estabelecimento de farmácia ao réu L... .
M) Os outorgantes no contrato referido em K), tinham conhecimento que M... intervinha na escritura de trespasse da farmácia referida em K), para que, quando fosse legalmente possível, formalizar a transmissão ao réu L... .
AA) …o mesmo se passando com os contratos de fornecimento de energia eléctrica.
SS) Assim actuando à vista de toda a gente, de forma pacífica e continuada, sem a oposição de quem quer que fosse, sempre convicto de que exercia e explorava um direito sobre uma coisa sua, sem a noção de estar a lesar direitos de outrem.

Relativamente aos factos I) e M), os Apelantes invocam os depoimentos das testemunhas AA... , BB... , CC... , DD... , EE... , FF... e GG... . Mas, salvo o devido respeito, não se percebem as razões pelas quais os Apelantes entendem que estes depoimentos deveriam conduzir a decisão diversa da que foi proferida, uma vez que aquilo que retiram dos excertos desses depoimentos que transcrevem é apenas que em 1960 – e, eventualmente, até 1965/1967 – o Réu L... ainda não estava na Farmácia, sem que expliquem as razões pelas quais esse facto colide com os factos que foram julgados provados.
É verdade que não é possível retirar dos depoimentos das testemunhas a conclusão segura de que o Réu L... esteve na farmácia desde 1960, sendo que, por razões compreensíveis, as testemunhas não sabem precisar com exactidão esse momento. A testemunha AA... declara não se lembrar se em 1964 (data em que emigrou para França) o Réu já lá estava, sabendo apenas que em 1973 (quando regressou) tal já acontecia; a testemunha BB... declara que em 1961 (quando foi para a tropa) o Réu não estava na farmácia e que já era ele que lá se encontrava em 1963 (quando regressou da tropa); a testemunha CC... declara que o Réu foi para a farmácia pouco tempo depois de o avô morrer (talvez um ano) não sabendo precisar se em 1961 ele já lá estava; a testemunha DD... não se lembra de ver lá o Réu até 1967; a testemunha FF... declara que em 1962/1963 o Réu ainda não estava na farmácia, não se recordando se já lá se encontrava em 1967; a testemunha OO... declara ter sido contratado pelo Sr. T... para fazer cobranças entre 1963 ou 1965, não sabendo dizer se nessa altura o Réu já estava na farmácia; a testemunha GG... declara que o Réu tomou conta da farmácia em 1963/1964 embora diga que o Réu já lá estava desde momento anterior a trabalhar com o Sr. T... ; a testemunha II... declara que pelo menos em 1963 já era o Réu quem estava na farmácia uma vez que o pai da testemunha faleceu no Natal de 1963 e foi o Réu quem lhe prestou cuidados na fase final da sua vida; a testemunha JJ... declara que o Réu foi para a farmácia em 1961; a testemunha LL... declara ter trabalhado na farmácia de Janeiro de 1962 a Agosto de 1970 tendo sido o Réu quem o contratou; a testemunha SS... declara também ter trabalhado na farmácia tendo sido contratada pelo Réu em Setembro de 1962; as testemunhas FF... e V... declaram que o Réu foi para a farmácia pouco tempo depois de o avô morrer embora não saibam precisar quanto tempo e a testemunha QQ... declara que o Réu foi para a farmácia alguns meses depois de o avô morrer.
Em face desses depoimentos e tendo em conta designadamente os depoimentos das testemunhas LL... e SS... , temos como certo que em 1962 o Réu já se encontrava na farmácia uma vez que foi ele quem contratou essas testemunhas que aí passaram a trabalhar.
Mas ainda que não seja possível concluir que em 1960 o Réu já lá se encontrasse, essa circunstância não invalida que tivesse sido ele o verdadeiro comprador da farmácia no negócio celebrado em Fevereiro de 1960.
Importa notar que nenhuma das testemunhas declarou ter visto na farmácia a pessoa que figura nesse negócio como adquirente da farmácia ( M... ) e o que resulta desses depoimentos é que, no período que decorreu entre a morte do avô do Réu e a entrada do Réu para a farmácia, quem lá se encontrava era um empregado ou o Sr. T... (um dos vendedores da farmácia no negócio celebrado em 1960), o que nos induz a concluir que a farmácia passou directamente do referido T... e demais herdeiros (intervenientes no negócio como vendedores) para o Réu, sem que a farmácia alguma vez tivesse estado na posse de qualquer outra pessoa e, designadamente, na posse da referida M... que, aliás, sempre reconheceu não ser ela a proprietária da farmácia (conforme declarações datadas de 1966 e de 1968 junta a fls. 107 e 235). Os próprios Autores reconhecem que a referida M... nunca geriu e farmácia e nunca actuou como sua proprietária.
Ora, conjugando essas circunstâncias com os diversos actos que estão expressos na matéria de facto e que, ao longo dos anos, evidenciam que é o Réu quem actua como proprietário da aludida farmácia, tendo sido emitido em seu nome – logo em Fevereiro de 1969 – o respectivo alvará de funcionamento, tudo leva a crer que, não obstante a intervenção de M... , era o Réu e não aquela M... quem ia adquirir a farmácia.
Entendemos, portanto, em face do exposto, não se justificar qualquer alteração aos referidos pontos de facto.

Relativamente ao facto constante da alínea L), sustentam os Apelantes que o mesmo não pode considerar-se provado com base na seguinte argumentação:
- Tal facto é comprovadamente falso, uma vez que a legislação ao tempo não permitia que pessoas estranhas a farmacêuticos pudessem ser proprietários de farmácias e, por isso, os trespassantes não podiam pretender transferir a farmácia para um não farmacêutico, porque sabiam que tal acto, por contrário à lei, seria nulo;
- Esse facto está em contradição com o facto J), pois não pode pretender-se que a venda foi feita a um simulador que não interveio no contrato.
- Esse facto não pode ser considerado provado, por ser contrário ao texto de um contrato sujeito e escritura pública e portanto por um facto provado plenamente, não sendo admissível aquela “interpretação”, por violar o disposto no artº. 238º. do Cod. Civil, que proíbe que uma declaração possa valer com um sentido que não tem um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.
Salvo o devido respeito, não assiste razão aos Apelantes.
Relativamente ao primeiro argumento cabe dizer que a circunstância de não ser legalmente permitida a transferência da farmácia para o Réu não significa, naturalmente, que não fosse essa a real intenção dos outorgantes e terá sido para contornar a lei e a nulidade do real negócio que pretendiam efectuar que declararam, na escritura, transferir a farmácia para outra pessoa.
Não vislumbramos, por outro lado, onde esteja a contradição entre o facto que analisamos e o que consta da alínea J), quando é certo que tais factos se complementam entre si; na alínea L) diz-se que V... , T... , U... e Z... quiseram, de facto, transmitir a propriedade do estabelecimento de farmácia ao réu L... e na alínea J) diz-se que, em virtude de a lei não permitir esse negócio (porque o Réu não era farmacêutico), foi solicitado à Ré, M... , farmacêutica, que figurasse como compradora na aquisição da referida farmácia, não obstante ser ele o verdadeiro proprietário, o que aquela aceitou. Não há qualquer contradição.
Relativamente ao último argumento apontado pelos Apelantes cabe dizer o seguinte:
Ao contrário do que dizem os Apelantes, o facto aqui em questão não corresponde a facto contrário àquele que está plenamente provado pela escritura pública. O que está plenamente provado pela aludida escritura é o facto de os outorgantes terem ali declarado trespassar a M... a aludida farmácia (cfr. artigo 371º do CC), mas tal escritura não prova plenamente que essa declaração correspondesse à real vontade dos outorgantes e que, como tal, pretendessem efectivamente trespassar a farmácia à referida M... . Por outro lado, é incompreensível a invocação – pelos Apelantes – do artigo 238º do CC, uma vez que aquilo que está em causa não é a interpretação da declaração feita na escritura pública, mas sim o facto de essa declaração não corresponder á real vontade dos outorgantes. O que se poderia dizer – ainda que os Apelantes não o tenham dito – é que o aludido facto não admitia prova por testemunhas e presunções judiciais por corresponder ao “negócio dissimulado” que estaria sob o “negócio simulado” emergente da escritura pública celebrada e em virtude de esse negócio dissimulado ter sido invocado pelo Réu (simulador). No entanto, ainda que a admissão desse tipo de prova esteja vedada por força dos artigos 394º, nº 2, e 351º, do CC, a verdade é que tem sido admitido pela doutrina e jurisprudência que tal proibição deve ceder quando existe um princípio de prova escrita, admitindo-se em tal situação a prova por testemunhas e presunções judiciais para completar, complementar ou integrar a prova escrita (documental) que torna verosímil a simulação. Neste sentido se pronunciou Carlos Alberto da Mota Pinto[2] (citando Vaz Serra) e Menezes Cordeiro[3], bem como os Acórdãos do STJ de 07/02/2017, 02/03/2011, 04/05/2010, 05/06/2007 e 17/04/2007 (proferidos nos processos 3071/13.6TJVNF.G1.S1, 758/06.3TBCBR-B.P1.S1, 2964/05.9TBSTS.P1.S1, 07A1364 e 07A702, respectivamente)[4]. Ora, no caso sub judice, existia esse princípio de prova escrita consubstanciado nas declarações de alguns dos simuladores (cfr. declaração de fls. 805 emitida por M... e declaração de fls. 804 emitida por U... ) das quais resulta que o trespasse da farmácia efectuado em 15/02/1960 não tinha como real destinatário a aludida M... mas sim o Réu L... , importando notar que o referido U... era pai ou avô de alguns dos Autores que aqui se apresentam como seus sucessores. Ora, conjugando esses documentos (que já tornam verosímil a existência da simulação) com o facto – que resulta claramente dos depoimentos das testemunhas e dos inúmeros documentos juntos aos autos – de a referida M... nunca ter exercido qualquer poder de facto sobre a farmácia (onde nunca foi vista pelas testemunhas) e de ter sido o Réu quem, desde 1962 (pelo menos), geriu a farmácia e nela se encontrava, actuando como seu proprietário, temos como certo que era para ele (e não a para referida M... ) que se pretendia transferir a propriedade do estabelecimento de farmácia e que apenas não terá figurado na escritura em virtude dos obstáculos legais que, à data, se colocavam.
Entendemos, portanto, não haver razões para alterar a decisão proferida sobre o facto constante do ponto L).

Relativamente ao facto constante da alínea AA), dizem os Apelantes que não deve ser julgado provado porque resulta evidente dos documentos juntos com a contestação do R., mais concretamente o documento 11, que a electricidade ainda está nome de T... .
Ora, o documento 11 parece não respeitar ao estabelecimento de farmácia aqui em questão uma vez que a morada de consumo dele constante está situada na Praia de w.... e não coincide com a morada da farmácia. Por outro lado, o que resulta dos documentos nºs 166 a 175 juntos com a contestação do Réu L... (págs. 471 a 480) é que as facturas estão emitidas em nome do Réu e é ele que é referenciado nessas facturas como sendo o titular do contrato.
 Assim sendo, mantém-se a decisão proferida sobre o aludido facto.

Relativamente ao ponto SS), os Apelantes transcrevem um excerto do depoimento da testemunha BB... – onde declara, em resumo, que o Réu estava na farmácia e lá continua até hoje e que não sabe se é dono – mais referindo que o R. não podia ter a convicção de que explorava uma coisa sua, pois que sabia que não podia adquirir o referido estabelecimento de farmácia, por não ser farmacêutico.
A verdade é que o depoimento da aludida testemunha é totalmente inapto para o efeito de determinar a alteração da decisão proferida sobre o citado ponto de facto. Com efeito, o que diz a testemunha é que o Réu está na farmácia desde 1963 e embora declare não saber se ele é o dono (o que se compreende, já que a testemunha não tem a obrigação de conhecer esse facto), a verdade é que não aponta mais ninguém que estivesse a gerir e a tomar conta da farmácia. Por outro lado, a circunstância de a lei impedir a aquisição da farmácia por parte do Réu não obstava, naturalmente, a que ele estivesse convicto que ela era sua e que não lesava direitos de terceiro. Com efeito, se o Réu contratou a aquisição da farmácia com os respectivos anteproprietários e se lhes pagou o preço devido, seria natural que estivesse convicto de ser o seu dono e de não lesar direitos de ninguém, ainda que tal aquisição não pudesse ser formalizada – sendo nula – por a lei lhe vedar a possibilidade de deter esse direito.
 A verdade é que os actos que ao longo dos anos têm sido praticados pelo Réu – conforme consta dos pontos O) a RR) que não foram impugnados pelos Apelantes – evidenciam, de forma clara, que ele actuava na convicção de ser o proprietário do estabelecimento. Com efeito, era em nome dele que estava o alvará desde 1969, era ele que estava na farmácia a atender os clientes juntamente com os empregados, era ele que fazia a sua gestão procedendo a compras e respectivos pagamentos, era ele que contratava e pagava aos empregados, era ele que pagava os impostos e contribuições, era ele que pagava água, luz e telefone, era ele que recolhia os lucros da farmácia, era ele que mandava fazer as obras que entendia e, portanto, parece claro que actuava na convicção de ser o titular do direito, tanto mais que, ao longo de todos estes anos, nunca ninguém se arrogou a titularidade desse direito e nunca ninguém mais se apresentou, aos olhos do público, dos clientes e fornecedores, como sendo o titular desse direito. E, se conjugarmos esses actos com o facto – que também se julgou provado – de a transmissão do estabelecimento ter sido efectuada, na realidade, ao Réu – ainda que de forma inválida e ainda que na escritura tivesse sido referenciada outra pessoa como destinatária dessa transmissão – parece evidente que o Réu actuava na convicção de ser o titular do direito e de não lesar direitos de outrem. 
Assim sendo, nenhuma censura merece a decisão que julgou provado esse facto.   

Mantém-se, portanto, integralmente, a decisão proferida sobre a matéria de facto.
***

Resolvidas as questões referentes à matéria de facto, analisemos agora as demais questões suscitadas.
A sentença recorrida julgou procedente a reconvenção, declarando que o Réu L... e esposa haviam adquirido, por usucapião, a farmácia em causa nos autos.

Os Apelantes discordam dessa decisão por duas razões.
Sustentam, em primeiro lugar, que um estabelecimento comercial – no caso a farmácia – não é susceptível de posse e não pode ser adquirido por usucapião.
E sustentam, em segundo lugar, que, ainda que o estabelecimento pudesse ser adquirido por usucapião, não estão verificados os pressupostos legais de que depende essa aquisição; com efeito – dizem – a escritura de 22/03/1960 não pode corresponder à causa da posse e, não havendo outra causa de posse invocada, a detenção de facto por parte do Réu não pode juridicamente configurar uma posse; por outro lado, o poder de facto exercido pelo Réu não está acompanhado do correspondente animus possidendi, nem este se pode presumir por não existir, à data, a possibilidade legal de o Réu ser proprietário da farmácia.
 
Analisemos, portanto, cada uma dessas questões.

Como decorre do disposto no art. 1287º do Código Civil[5], a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade ou de outro direito real pressupõe a posse do direito durante um determinado lapso de tempo, que varia em função das características da posse (relevando, para este efeito, o facto de a posse ser ou não titulada e registada e o facto de a posse ser de boa-fé ou má-fé). A posse que é susceptível de conduzir à aquisição do direito por usucapião tem que ser uma posse pública e pacífica (já que, como decorre do disposto no art. 1297º, os prazos para a usucapião não correm enquanto a posse for violenta ou oculta) e tem que ser uma posse efectiva (que corresponde, segundo o disposto no art. 1251º, ao poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real) e não uma detenção ou posse precária.
Porque a aquisição de um direito por usucapião pressupõe, como se referiu, o exercício da posse correspondente a esse direito, a primeira questão que importa resolver consiste em saber se o estabelecimento comercial (no caso, uma farmácia) é susceptível de posse.
Os Apelantes entendem que não por estar em causa uma universalidade de direito que, além de elementos corpóreos, também contém elementos incorpóreos que, como tal, não são susceptíveis de posse e aquisição por usucapião.
Importa referir, em primeiro lugar, que a lei não veda, de modo expresso, a aquisição, por usucapião, de direitos sobre o estabelecimento comercial; o artigo 1293º enuncia, de modo expresso, os direitos que não podem ser adquiridos por esse meio mas não existe nenhuma norma legal que disponha nesse sentido relativamente ao estabelecimento comercial.
É certo, no entanto, que a posse do direito de propriedade e a correspondente aquisição por usucapião pressupõe que a coisa em questão possa ser objecto do direito de propriedade e, como determina o artigo 1302º, só as coisas corpóreas, móveis ou imóveis, podem ser objecto do direito de propriedade regulado no CC.
Sem qualquer preocupação de dar aqui uma noção exacta de estabelecimento comercial, será seguro afirmar que o estabelecimento não se reconduz a mera coisa corpórea; o estabelecimento comercial, sendo uma realidade complexa, corresponde a uma coisa composta, integrada por múltiplos elementos (uns corpóreos, outros incorpóreos) e que, em termos gerais, pode ser considerado como uma universalidade de direito.
Não obstante esse facto, é evidente que o estabelecimento comercial pode ser objecto de negócios jurídicos e de direito de propriedade, sendo usual e aceite pela lei a sua alienação definitiva – trespasse – que mais não é do que a transmissão do direito de propriedade, sendo que a própria lei trata o estabelecimento como sendo susceptível desse direito (cfr. designadamente, os artigos 1559.º, n.º 1, 1560.º, n.º 1, 1682.º-A, n.º 1, alínea b), 1889.º, n.º 1, alínea c), todos do Código Civil e o artigo 246.º, n.º 2, alínea c), do Código das Sociedades Comerciais).
E, podendo ser objecto de negócios jurídicos e de direito de propriedade, nenhuma razão encontramos para que não seja susceptível de posse e de aquisição por usucapião.
Com efeito, ainda que existam algumas opiniões discordantes, a verdade é que a doutrina e jurisprudência têm vindo a reconhecer que o estabelecimento é susceptível de posse.
Veja-se, por exemplo, Orlando de Carvalho[6], quando afirma que “…a sensibilidade dominial evoluiu e, hoje…o conceito de coisa estende-se às coisas incorpóreas e complexas (mormente às coisas compostas funcionais, em que se inclui o estabelecimento mercantil” e quando afirma que “O estabelecimento mercantil, independentemente da sua determinação precisa, é visto universalmente como objecto de posse, de tal sorte essa intuição do comércio se impôs ao nível jurídico”. Em sentido idêntico, Cassiano dos Santos[7], depois de caracterizar o estabelecimento comercial como um bem incorpóreo sui generis e dizendo que essa “…natureza incorpórea especial não decorre apenas de, na generalidade dos casos, o estabelecimento ter efectivamente um lastro corpóreo, mas resulta sobretudo de ele ser sempre radicado num conjunto de elementos que compõem a organização e que, mesmo quando não são eles próprios corpóreos, têm aptidão sensibilizadora do bem”, conclui dizendo que o estabelecimento comercial pode ser objecto de direito de propriedade, de posse e de usucapião. Nesse sentido se pronuncia também Paulo Mota Pinto no parecer junto com as contra-alegações.  
Na jurisprudência, podemos ver nesse sentido o Acórdão do STJ de 19-02-2013 (proc. nº 931/06.4TBFLG.G1.S1); os Acórdãos da Relação de Lisboa de 13/03/2008 (proc. nº 9186/2007-2), de 16-10-2012 (processo n.º 163/12.2TVLSB) e de 11/02/2016 (proc. nº 1286/10.8TVLSB.L1-2); o Acórdão da Relação do Porto de 18/09/2006 (proc. n.º 0654341) e os Acórdãos da Relação de Coimbra de 16/03/2010 (proc. nº 160/07.0TBGVA.C1) e de 03/12/2013 (proc. nº 990/09.8TBCBR.C1)[8].
E também nós perfilhamos esse entendimento.
Explicando as razões pelas quais entendem que as coisas incorpóreas não são susceptíveis de posse, dizem Pires de Lima e Antunes Varela[9]: “…todo o instituto da posse está estruturado no sentido da protecção daquelas situações em que as relações do titular com a coisa são exclusivas e afastam a possibilidade de existência de iguais situações por parte de outros indivíduos. Ora, isso só pode verificar-se em relação às coisas corpóreas…Os direitos de autor, bem como a propriedade industrial, porque incidem sobre coisas incorpóreas, podem ser exercidos sobre um número ilimitado de pessoas”.
Aceitando-se genericamente essa afirmação, dir-se-á, no entanto, que o estabelecimento comercial não se reconduz a mera e simples coisa incorpórea; o estabelecimento comercial corresponde a uma realidade bem mais complexa que, pelo menos por regra, incorpora coisas ou elementos corpóreos e coisas ou elementos incorpóreos e a unidade económica daí resultante é, pelo menos por regra, uma realidade com visibilidade externa que afasta a possibilidade de sobre ele serem estabelecidas relações conflituantes por parte de número ilimitado de pessoas. Como refere Orlando de Carvalho[10], o estabelecimento comercial é “…um bem imaterial encarnado, radicado num lastro material ou corpóreo, que o concretiza e, concretizando-o, o sensibiliza” e esse lastro material ou corpóreo – que o identifica fisicamente e que lhe dá visibilidade externa – permite que se estabeleça, entre ele e determinado indivíduo, uma relação de posse exclusiva traduzida no poder de facto que sobre ele é exercido com a visibilidade externa necessária para se impor e evidenciar aos olhos de terceiros.
Além do mais, importa dizer o seguinte:
A entender-se que o estabelecimento comercial não é susceptível de posse e que, como tal, não pode ser adquirido por usucapião, tal significaria que quem detém o respectivo de facto e quem procede à sua exploração e se comporta como titular apenas poderia invocar a posse e a aquisição por usucapião relativamente a cada um dos bens corpóreos que integram o estabelecimento. E o que aconteceria a todos os outros elementos de natureza incorpórea que integram o estabelecimento? Parece evidente que uma tal solução não se compatibiliza com a unidade jurídica do estabelecimento que há muito vem sendo reconhecida. Como refere Ferrer Correia[11], “…uma eficiente, adequada protecção do interesse do titular na recuperação do estabelecimento coma sua capacidade lucrativa e a sua clientela – exige o reconhecimento da falada reivindicação unitária: reivindicação da propriedade e da posse do todo, sem que haver que discriminar os seus vários elementos – aliás em parte essencialmente mutáveis – sem haver que restringir a acção aos simples objectos corpóreos”.    
Pensamos, portanto, em face do exposto, que nada obsta à existência de posse sobre o estabelecimento comercial e, sendo susceptível de posse, também poderá, naturalmente, ser adquirido por usucapião.
***

Resta, portanto, saber se o Réu exerceu a posse do direito de propriedade sobre o estabelecimento comercial e se essa posse foi exercida pelo período temporal que a lei exige para a aquisição do direito por usucapião.
Adoptando a concepção subjectiva da posse, o ordenamento jurídico português caracteriza-a pelo preenchimento de dois elementos estruturais: o corpus e o animus possidendi. Correspondendo o corpus ao exercício actual ou potencial de um poder de facto sobre a coisa, o animus possidendi caracteriza-se como a intenção de agir como titular do direito correspondente aos actos realizados. O acto de aquisição da posse que releva para a usucapião terá, assim, de conter os dois elementos definidores do conceito de posse: o corpus e o animus. Se só o primeiro se preenche, verifica-se uma situação de detenção, insusceptível de conduzir à usucapião. De facto, é a existência desse elemento subjectivo (animus) que distingue o possuidor do mero detentor ou possuidor precário, já que, apesar de ambos exercerem sobre a coisa o poder de facto que corresponde ao corpus da posse, o primeiro exerce esse poder com a convicção e a intenção de actuar como titular do direito real correspondente, enquanto que o segundo actua sem essa intenção e com a convicção de que o direito não lhe pertence e que apenas actua por tolerância ou permissão do titular do direito e, portanto, em nome deste (cfr. art. 1253º).

No caso sub judice, e perante a matéria de facto provada, é evidente que o Réu tem exercido o poder de facto que corresponde ao corpus da posse do direito de propriedade, uma vez que a natureza a extensão dos actos praticados pelo Réu – enunciados na matéria de facto que aqui nos dispensamos de reproduzir – não deixam margem para duvidar de que tem sido o Réu – exclusivamente e desde há muitos anos – a deter o poder de actuar e agir sobre o estabelecimento, praticando uma multiplicidade de actos que são próprios e inerentes ao direito de propriedade (era ele, desde 1969, o titular do alvará de funcionamento da farmácia; era ele que explorava e geria a farmácia como se fosse sua, adquirindo e revendendo os produtos e fazendo seus os lucros obtidos; era ele que contratava e pagava aos funcionários do estabelecimento; era ele que pagava os respectivos impostos, taxas e licenças; era ele que mandava efectuar e pagava as obras necessárias, tendo, aliás, mudado o estabelecimento para outro local; era ele que se apresentava como titular da farmácia junto de diversas entidades que com ele se relacionavam; era ele que celebrava e pagava os contratos de seguro; etc.). E, como também resulta provado, praticava todos esses actos com a convicção de exercer e explorar um direito sobre coisa sua e, portanto, com a convicção de ser o dono/proprietário da farmácia.
Dizem os Apelantes que a causa da posse do Réu não pode ser encontrada na escritura pública celebrada em 22/03/1960 uma vez que nesse título aparece com adquirente outra pessoa que não o Réu.
É verdade que assim é. Tal escritura corresponde, na verdade – e como resulta da matéria de facto provada –, a um acto simulado (na medida em que representa um negócio não pretendido pelas partes que ali manifestaram uma vontade que não correspondia à sua vontade real) e, porque o Réu não teve aí intervenção, é evidente que não é nessa escritura que poderemos encontrar a causa da posse do Réu. A posse do Réu tem origem, de facto, no negócio real e dissimulado que as partes pretendiam celebrar e que correspondia ao trespasse da farmácia ao Réu.
Terá sido, portanto, por via da tradição material ou simbólica da farmácia que, por via desse negócio (dissimulado), lhe foi efectuada pelos anteriores possuidores, que o Réu adquiriu a posse (cfr. artigo 1263º, nº1, alínea b) do CC). Mas, ainda que assim não fosse, o Réu sempre teria adquirido a posse – nos termos da alínea a) da citada disposição legal – pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito, uma vez que está demonstrado que o Réu vem praticando, desde a década de 60 e de forma reiterada, um conjunto e uma multiplicidade de actos que são próprios do direito de propriedade e que foram praticados de modo a poderem serem conhecidos pelos interessados (com publicidade, portanto) e que, usando as palavras de Manuel Rodrigues[12]…têm, segundo o consenso público, a energia suficiente para significar que, entre uma coisa (no caso a farmácia) e determinado indivíduo (no caso o Réu), se estabeleceu uma relação permanente, duradoura”. E fê-lo com a convicção de ser o titular do direito (propriedade da farmácia) e, portanto, com o animus correspondente ao direito de propriedade.    
E não se diga – como dizem os Apelantes – que o animus não poderia aqui existir em virtude de, à data, não existir a possibilidade legal de o Réu ser proprietário da farmácia. Na verdade, o Réu sabia que, em termos formais e legais, não poderia figurar como proprietário da farmácia (porque a lei não o permitia), mas isso não significa, naturalmente, que não se considerasse e não agisse como proprietário.
Por outro lado, parece não haver dúvidas relativamente ao facto de a posse do Réu ser pública e pacífica (facto que, aliás, não é questionado pelos Apelantes).
É uma posse pública porque sempre foi exercida, de forma continuada e ao longo dos anos, à vista do público em geral e de modo a poder ser conhecida pelos interessados (cfr. artigo 1262º).
E é uma posse pacífica porque foi adquirida sem qualquer violência; foi obtida sem qualquer coacção física ou moral e sem qualquer outro tipo de violência (cfr. artigo 1261º).
Está em causa, portanto, uma posse que, sendo pública e pacífica, é susceptível de facultar ao possuidor a aquisição do direito por usucapião (cfr. artigo 1287º).
Resta saber se essa posse foi exercida pelo período temporal que a lei exige para a usucapião e que, como referimos supra, varia em função das características da posse (relevando, para este efeito, o facto de a posse ser ou não titulada e registada e o facto de a posse ser de boa-fé ou má-fé).
Colocar-se-ia agora a questão de saber se o estabelecimento comercial deve ser considerado como coisa móvel ou imóvel, uma vez que, como é sabido, os prazos da usucapião para coisas imóveis são diferentes dos prazos para as coisas móveis.
Porém, no caso sub judice, essa questão não assume relevância, tal como não assume relevância a questão de saber se está em causa uma posse titulada ou não titulada e se está em causa uma posse de boa-fé ou de má-fé, uma vez que a posse do Réu dura há mais de quarenta anos e, portanto, ainda que sejam aplicáveis os prazos (superiores) previstos na lei para as coisas imóveis e ainda que estivesse em causa uma posse não titulada e de má-fé, sempre teria decorrido o prazo necessário para a aquisição do direito por usucapião.

Em face do exposto, nenhuma censura merece a sentença recorrida quando julgou procedente a reconvenção e declarou a aquisição da propriedade da farmácia pelo Réu e esposa por via da usucapião.
Improcede, portanto, o recurso e confirma-se a sentença recorrida.

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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – Um estabelecimento comercial – enquanto unidade económica e jurídica que há muito vem sendo reconhecida – pode ser objecto de posse e, como tal, pode ser adquirido por usucapião.

II – Assim, estando provado que o Réu, durante mais de quarenta anos, deteve o poder de actuar e agir sobre o estabelecimento comercial (no caso, uma farmácia), praticando uma multiplicidade de actos que são próprios e inerentes ao direito de propriedade – era ele o titular do alvará de funcionamento da farmácia; era ele que explorava e geria a farmácia como se fosse sua, adquirindo e revendendo os produtos e fazendo seus os lucros obtidos; era ele que contratava e pagava aos funcionários do estabelecimento; era ele que pagava os respectivos impostos, taxas e licenças; era ele que mandava efectuar e pagava as obras necessárias, tendo, aliás, mudado o estabelecimento para outro local; era ele que se apresentava como titular da farmácia junto de diversas entidades que com ele se relacionavam; era ele que celebrava e pagava os contratos de seguro – e estando provado que actuava dessa forma com a convicção de exercer e explorar um direito sobre coisa sua e de ser o dono/proprietário da farmácia, impõe-se concluir que o mesmo adquiriu e exerceu a posse correspondente ao direito de propriedade e que, estando em causa uma posse pública e pacífica, adquiriu esse direito por usucapião.


/////

V.

Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo dos Apelantes.
Notifique.

Des. Relatora: Maria Catarina Gonçalves

Des. Adjuntos: António Magalhães

                             Ferreira Lopes


[1] Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., pág. 348.
[2] Parecer publicado na Col. Jurisprudência, Ano X, tomo III, pag.11 e segs.
[3] Tratado de Direito Civil Português, I, tomo I, 3ª ed. (2009), pág. 851
[4] Todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[5] Diploma a que se reportam as demais disposições legais que venham a ser citadas sem menção de origem.
[6] Direito das Coisas, Coimbra Editora, 2012, pág. 272.
[7] Direito Comercial Português, Vol. I, págs. 295 a 297.
[8] Todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[9] Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., Revista e Actualizada, pág. 2.
[10] Ob. cit., nota 2, pág. 144.   
[11] Lições de Direito Comercial, Vol. I, Universidade de Coimbra, 1973, pág. 244.
[12] A Posse, Almedina, 1981, pág. 185