Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
65/18.9GBACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO LIMA
Descritores: RECURSO PENAL
ASSISTENTE
LEGITIMIDADE
PENA
Data do Acordão: 11/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA - J4)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 69.º, N.ºS 1 E 2, AL. C), E 401.º, N.ºS 1, AL. B), E 2, DO CPP
Sumário: I – A legitimidade processual do assistente não lhe permite solicitar em recurso, autonomamente, pena mais gravosa para o arguido se nessa pretensão estiver desacompanhado do Ministério Público.

II – Só assim não sucede se a proposta de alteração da pena comportar um reflexo sério para e vida e interesses próprios do assistente.

Decisão Texto Integral:

ACÓRDÃO


Acordam os juízes da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

1. No Juízo Central Criminal ... (J...), do Tribunal Judicial da Comarca ..., foi a 27/04/2022 proferido acórdão em cujos termos, sendo absolvidos outros três seus coarguidos, por seu lado os arguidos

a) AA, solteiro, natural da ..., nascido a .../.../1976, filho de BB e de CC, residente na Rua ..., 

b) DD, solteiro, natural de ..., ..., nascido a .../.../1954, filho de DD e de EE, residente na Rua ..., ..., ...,

e

c) “S..., Lda.”, com sede na Rua ..., ..., ..., e registada sob o n.º de pessoa colectiva ..., na Conservatória do Registo Comercial ...,

foram condenados:

i. Os dois primeiros, como autores de um crime de infracção de regras de construção, p. e p. pelos art. 277.º, n.º 1, als a) e b), e 285.º, do Código Penal (CP), com referência aos art. 44.º e 45.º do Regulamento de Segurança no Trabalho e Construção Civil (RSTCC), aprovado pelo DL 41821, de 11/08/1958, às Normas Técnicas EN 795:2012, EN 355:2002 e EN 354, e aos art. 15.º, n.º 2, als. c) e d), e 3, e 73.º-B, n.º 1, als. a), b), e) e o), da Lei 102/2009, de 10/09, nas penas, cada um, de três anos de prisão, todavia quanto a ambos suspensa na respectiva execução por igual período de três anos, com sujeição a regime de prova.

e

ii. A última, como responsável pelo mesmo crime e nos termos do art. 11.º, n.º 2, al. b), e n.º 4, do CP, na pena de quatrocentos dias de multa, à razão diária de 100,00 €.

2. A assistente/demandante FF, acompanhada pelos demandantes GG e HH,   deduzira contra os arguidos AA, DD, “S..., Lda.” e ainda a arguida II, pedido de indemnização civil, no qual é reclamada a condenação deles a pagarem aos demandantes determinadas quantias a título de danos não patrimoniais, designadamente pela perda do direito à vida da vítima e na qualidade de sua mulher e filhos, os valores de 50.000,00 € à assistente a de 25.000,00 € a cada um dos outros dois demandantes, e pelos danos próprios respectivos os mesmos montantes a cada um dos três (totalizando assim o pedido os 200.000,00 €). Tendo sido liminarmente admitido este pedido de indemnização cível no despacho de recebimento da acusação em 12/11/2021, com ulteriores contestações dos arguidos/demandados, no início da audiência de discussão e julgamento, em 30/03/2022, o Sr. juiz presidente do tribunal colectivo, após audição das partes, decidiu por despacho absolver os demandados da instância cível, assim não tendo o tribunal conhecido da substância daquele pedido, com fundamento na verificação de litispendência, relativamente a processo que enquanto autores os demandantes haviam antes instaurado contra os mesmos arguidos enquanto réus, no Juízo Central Cível ... (J...), processo que tomou o n.º 885/21...., e em que pediram a condenação daqueles réus na compensação dos mesmos danos (não patrimoniais e decorrentes da morte da vítima).

3. Inconformada, a assistente/demandante FF (e ela apenas), interpôs recurso interlocutório deste despacho de absolvição da instância dos demandados na matéria do pedido cível, pugnando porque seja determinado o conhecimento da substância desse pedido em conjunto com a causa criminal, embora sob condição de ser convidada a desistir da referida acção cível, e a mais disso e a final, na matéria criminal que veio a ser conhecida, declarando manutenção do interesse no interlocutório, interpôs recurso também contra o acórdão condenatório, aqui pugnando por que quanto aos arguidos AA e DD não seja suspensa a execução das penas de prisão aplicadas, antes se determinando a efectividade do respectivo cumprimento. Desses recursos extrai as seguintes conclusões:

3.1. Do recurso interlocutório

«I Como os autos evidenciam, o presente pedido cível foi admitido atempadamente.

II – Muito embora já houvesse o conhecimento – por banda do Tribunal Criminal ..., Juiz ... – de que a assistente e demandantes já haviam interposto, em momento anterior, pedido de indemnização no competente tribunal cível.

III – Ao que o douto e recorrido despacho alude (…).

IV – Ora, “a admissão liminar do pedido” (o que ocorreu nos presentes autos) “tem a consequência de o tribunal dever proferir decisão sobre o mérito do pedido” – in anotação 7 ao art.º 71.º do CPP.

V – Pelo que se não se pode – ou não deve – considerar a aplicação “tout court” e de modo automático da verificação da excepção da litispendência sempre que o tribunal se antolhe perante um caso de pedidos semelhantes em processos de natureza cível e penal.

VI – Decorrendo da lei penal adjectiva que por princípio será o tribunal competente para a dedução do pedido cível – e decorrendo da consulta dos autos com meridiana evidência que os recorrentes já haviam anteriormente (e à cautela, por força do prazo prescricional) deduzido pedido cível no tribunal cível ... comarca, deveria o douto despacho ter proferido decisão no sentido de convidar os recorrentes a desistir da acção cível interposta, prosseguindo o processo crime, na sua normalidade, e conhecendo-se a final, do pedido cível no seu devido tempo enxertado na acção penal.

VII – Notificando-se a assistente – como “conditio sine qua non” – de que deverá desistir da acção cível entretanto interposta no juízo central cível (J...) desta comarca, afim de obstar a eventual duplicidade de julgados.

VIII – Ao assim não ter decidido, o douto despacho recorrido violou, por erro de interpretação o disposto no art. 71.º do Código do Processo Penal (CPP).

Pelo que o douto despacho recorrido deverá ser revogado e substituído por outro que, por mais douto e acertado, aceite o prosseguimento dos autos com a dedução oportuna do pedido cível e conhecendo, a final desse mesmo pedido, embora notificando a assistente que tal deverá ser decidido tendo como “conditio sine qua non” a desistência do pedido cível no processo de natureza cível que corre seus termos no juízo central cível (J...) sob o número 885/21.....»

3.2. Do recurso do acórdão

«I A assistente mantém o interesse no recurso interlocutório retido – e já interposto e minutado anteriormente, como os autos dão conta –, o que faz no estrito cumprimento da exigência contida no art. 412.º, n.º 5, do CPP.

II – O presente recurso é restrito à sindicação da matéria de direito e nesta vertente especificadamente quanto à natureza da pena imposta, que não deveria ter sido suspensa na sua execução atenta a gravidade das consequências (morte do ofendido) provocada pela conduta desviante e anticívica dos arguidos JJ e DD, que não respeitaram minimamente o cumprimento das regras de segurança que a descrita obra exigia.

III – Os “efeitos criminógenos associados ao cumprimento da pena” invocados no douto acórdão para a não condenação dos arguidos singulares em pena de prisão efectiva deve ceder perante as exigências da comunidade e o efeito que determinadas penas suspensas têm nessa mesma comunidade quando aplicados a crimes muito graves, como aqueles de que resulta a morte de alguém.

IV – Surgindo por vezes o cumprimento de uma pena suspensa como se se tratasse de uma absolvição.

V –Last but not least”: A não confissão dos arguidos e o seu não arrependimento não são por tal razão compatíveis com a brandura de uma pena suspensa.

VI – Quem não confessa nem se arrepende com o mal aos outros praticado (de que ainda por cima resultou a morte de um ser humano) não está em condições de que o tribunal possa quanto a ele formular um juízo de prognose favorável.

VII – Porque a possibilidade de repetição do crime é muito alta (atendendo à profissão dos arguidos JJ e DD).

VIII – O doutro acórdão violou, assim, por erro meramente interpretativo, o disposto no art. 50.º do CP,

IX – O qual não deveria ter sido aplicado no caso “sub juditio” por ausência dos respectivos requisitos.»

4. Os arguidos “S..., Lda.”, DD e AA, responderam conjuntamente, na mesma peça, todos ao recurso interlocutório e os dois últimos ao recurso contra o acórdão final, pugnando pela manutenção do decidido em ambos os casos, e nessas respostas alinhando as seguintes razões:

4.1. Da resposta dos três arguidos ao recurso interlocutório

«I Os recorrentes reconhecem que intentaram uma acção cível contra os réus visando a reparação dos danos não compreendidos pela decisão proferida pelo Tribunal de Trabalho que, com o nº 885/21...., correu seus termos pelo juízo central cível (J...).

II – Uma tal acção com processo comum terminou por sentença de 12/10/2021, que absolveu os réus da instância com base em incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria, já que a competência nesta situação pertence ao tribunal de trabalho.

III – Verdadeiramente não se compreende muito bem a posição e o sentido das alegações dos recorrentes, na medida em que:

- Estando pendente a acção cível 885/21...., deduziram pedido cível nestes autos em 29/09/2021, verificando-se pois e até uma situação de litispendência;

- Os recorrentes perdem-se em considerações sobre se o seu pedido cível feito no processo crime, devia ou não prosseguir por força do art. 71º, do CPP, indo ao ponto de reclamar que o tribunal é que devia ter convidado os recorrentes a desistir da acção cível, mandando prosseguir o pedido cível no processo crime.

IV – É que, na verdade, não estamos propriamente num caso de litispendência, como argumentam os recorrentes, mas o juiz na acção cível 885/21...., decidiu absolver os réus da instância pura e simplesmente porque considerou o tribunal absolutamente incompetente em razão da matéria, por a questão ser de competência do tribunal de trabalho.

V – Não compete ao juiz num processo crime, verificando a pendência de uma ação cível anterior ao pedido cível deduzido, notificar o demandante para desistir da ação cível.

VI – E muito menos, quando há uma decisão transitada em julgado em que o tribunal reconhece a sua incompetência absoluta, por a questão ser da competência do tribunal de trabalho. [numeração nossa] »

4.2. Da resposta dos arguidos AA e DD ao recurso contra o acórdão

«I A recorrente restringe o seu recurso à matéria de direito, o que quer dizer que concorda com os factos dados como provados, não concordando com a suspensão das penas, defendendo a ideia de prisão efetiva.

II – Opondo-se à suspensão das penas, com um arrazoado sem sentido nem coerência, a recorrente vai ao ponto de mentir, afirmando que os arguidos não confessaram a falta que cometeram nem mostraram arrependimento.

III – Ora, na sua contestação, art. 20.º, o arguido DD confessa não ter agido de acordo com o plano de segurança e está arrependido, assumindo a responsabilidade.

IV – Da matéria provada, resulta evidente que os recorrentes assumiram a responsabilidade.

V – De acordo com o que fica dito, a suspensão da pena, de acordo com o art. 50.º, do CP, era única atitude que um juiz consciente e livre podia fazer, e o que fez.

VI – Não se compreende sequer a animosidade da recorrente nem os recursos têm o mínimo sentido, devendo ser julgados improcedentes. [selecção de excertos e numeração nossas]»

5. Por seu lado, o MP respondeu ao recurso contra o acórdão, pugnando desde logo pela sua rejeição mas, subsidiariamente, sustentando a correcção do decidido quanto á suspensão da execução das penas de prisão aplicadas aos arguidos AA e DD. Dessa resposta, formula as conclusões seguintes:

«I Nos autos, não tem aplicação a jurisprudência fixada pelo Ac. do STJ n.º 2/2020.

II – Não tem a assistente e recorrente legitimidade para interpor recurso, conforme decorre da jurisprudência fixada pelo Assento n.º 8/99: "o assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do MP, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir".

III – Pela recorrente não foi alegado qualquer interesse em concreto na escolha da pena, isto é, no impugnar da decisão do tribunal a quo em suspender a execução da pena de prisão em que os arguidos foram condenados, pelo que o recurso deverá ser rejeitado.

Sem prescindir,

IV – A suspensão da execução da pena de prisão é um poder-dever do tribunal.

V – Considerando os factos provados quanto aos arguidos – a inserção profissional, familiar e social, a ausência de antecedentes criminais, a admissão da responsabilidade no acidente – entendeu, e concordamos, o tribunal a quo suspender a execução da(s) pena(s) de prisão, mediante regime de prova.

VI – Sob pena de violação das exigências de prevenção especial, não pode outra solução ser de equacionar.

VII – A pena de prisão suspensa na sua execução aplicada pelo tribunal a quo, revela-se adequada e proporcional, devendo ser mantida na totalidade.»

6. Subidos os autos, o Sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer em que acompanha as razões da resposta ao recurso em primeira instância, igualmente pugnando pela sua improcedência e até rejeição, e, cumprido o art. 417.º, n.º 2, do CPP, ….., após o que, ao exame preliminar não se patenteando dúvidas relevantes, sem outras vicissitudes se colheram os vistos e foram os autos à conferência.

II – Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

1.1. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, e nenhuma desta natureza se postando, a matéria neste caso relevante, como daquelas conclusões se extrai, cinge-se ao seguinte:

a) Quanto ao recurso interlocutório, determinar se a decisão de absolver os demandados da instância cível se conforma com os pertinentes critérios legais, em concreto o art. 71.º, do CPP, nesse caso devendo ser sem mais mantida, ou se pelo contrário e como sustenta a recorrente os afronta, e nesta hipótese que consequências isso importa.

b) Independentemente dessa questão, e quanto ao recurso interposto contra o acórdão final, ponderar se a assistente tem ou não para isso legitimidade/interesse em agir, na negativa não o conhecendo e, na afirmativa, ponderando enfim o acerto ou não da substituição das penas de prisão aplicadas aos arguidos AA e DD.    

1.2. No mais, não tendo sido requerida nem se mostrando pertinente renovação de provas, não tendo sido requerida audiência e a decisão objecto do recurso interlocutório não sendo uma tal que conhecesse a final do objecto do processo (nos termos do art. 97.º, n.º 1, a), do CPP), quanto a ambos os recursos cabe julgamento em conferência (art. 419.º, n.º 3, als. b) e c), e 430.º, n.º 1, a contrario, do CPP).   

2. As decisões recorridas

2.1. O despacho de 07/04/2022

Incluindo o esclarecimento prévio, com convite aos interessados para se manifestarem, é o seguinte o teor daquela decisão (transcrição integral):

i. «Constata o tribunal que (circunstância que já resultava dos autos aquando da prolação do despacho de recebimento de acusação dos mesmos), foi deduzido a fls. 407 do 3.º vol. destes autos (sob a referência ...30, datado de 30/09/2021), pela aqui assistente FF e demais autores, pedido de indemnização civil, figurando neles como demandados os arguidos. Acompanha essa peça processual, para além do mais, certidão extraída dos autos n.º 885/21.... [fls. 519 e ss.], revertendo para contestação apresentada no âmbito dos referidos autos que, correm termos pelo Juízo Central Cível ..., nela surgindo como autor a aqui demandante também FF, contra os mesmos réus, havendo coincidência entre o objeto daquele processo com o que nestes autos cumpre apreciar.

Na perspetiva do tribunal, tal configura claramente uma situação de litispendência, como a define o art. 580.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil (CPC).

Essa circunstância e os atos processuais que se seguiram, poderia ter sido, pelo tribunal coletivo ou em despacho singular, tratada em momento prévio a esta audiência de discussão e julgamento, não o foi todavia, e não o foi por uma circunstância que se deixa nos autos:

Este Coletivo B, assim designado, por via da exclusividade total (despachos de mero expediente e realização de audiências de discussão e julgamento), atribuída ao Coletivo A, encontra-se a assegurar todo o serviço da Instância Central Central Criminal ..., com exceção do processo que determinou a atribuição de exclusividade pelo CSM, seja o processo designado de “Incêndios do ...”.

Se o tribunal tivesse na marcha dos autos determinado o exercício do contraditório, antever-se-ia como muito provável a conceção de prazo às partes para se pronunciarem em exercício desse principio do contraditório, que o juiz deve sempre observar ao longo do processo [art. 3º, n.º 3, do CPC], postergaria a data da realização da presente audiência de discussão e julgamento, sendo certo que, pelo imenso trabalho pendente, mesmo dentro de processos definidos por urgentes, como seja o caso de processos de violência doméstica e outros que o são por via de situações de privação de liberdade, o tribunal já está a dar prevalência aos segundos em detrimento do primeiro, à míngua de agenda que permita a sua calendarização. Traduzindo por miúdos, a não ter sido apreciada aqui, hoje em que o é, esta questão, estes autos teriam sido remetidos, no que à audiência de discussão e julgamento concerne, para data muito posterior, que se situaria muito para além das férias de Verão, não sendo previsível a sua realização antes, porque até lá nenhum dos elementos deste coletivo tem agenda disponível.

Isto dito, para que se explique e se entenda o porquê do agora e só agora decidido, dá-se a palavra ao ilustre mandatário da assistente e demandantes, em exercício do princípio do contraditório, para que, querendo, tome posição sobre o que o tribunal enunciou.»

ii. [e após tomada de posição daquele e dos ilustres mandatários dos demandados, a que se seguiu deliberação do colectivo, o Sr. juiz presidente proferiu então o despacho recorrido, nos termos que seguem]:

«Estes autos chamam à colação três tipos de intervenção judicial:

- A primeira, já tratada em sede de própria, leia-se ação especial emergente de acidente de trabalho, reverte para matéria prototípica do direito do trabalho, como seja a existência de um acidente qualificável como sendo de trabalho e a sua consequente reparação, seja em termos de arbitramento de indemnizações por períodos de incapacidade temporária ou parcial, incapacidades temporárias absolutas, incapacidades absolutas para o trabalho habitual, e outras figuras compreendidas no domínio da lei laboral. Também e lamentavelmente, nos casos de decesso da vítima e nos casos em que há afetação para a capacidade do trabalho, com a atribuição de coeficientes de desvalorizações e subsequentes indemnizações e, quando caso, atribuição de eventual capital de remissão.

- Essa declinação, na matéria que estes autos abordam, está transitada em julgado por sentença proferida no Tribunal do Trabalho, no âmbito dos autos 1170/18...., decisão essa sobre a qual incidiu o douto acórdão da Relação de Coimbra de fls. 442 e ss. dos autos, donde, é matéria decidida, formando sobre ela caso julgado, e sem dúvida, para além do caso julgado este tribunal materialmente incompetente para essa decisão conhecer, sendo certo, todavia, que nem sequer é esse o objeto do processo nessa declinação.

- A segunda declinação da factualidade que estes autos contêm, traduz-se no pedido de indemnização formulado e é sobre essa questão que incide o conhecimento. Aquilo que resulta do pedido de indemnização civil formulado nestes autos, e que aliás decorre, inclusive, da própria argumentária, leiam-se fls. 412, remetendo-se para os pontos 11.º, 12.º, 13.º e 15.º, máxime, em que são os próprios demandantes cíveis que enunciam nos autos que já intentaram no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Central Cível, J..., processo n.º 885/21...., ação visando a reparação dos danos não compreendidos pela decisão proferida pelo Tribunal do Trabalho; Que ocorreu a contestação dos réus, conforme doc. 3 que juntam, que obteve a resposta dos autores, conforme doc. 4 que juntam, e alegam, à data da dedução do pedido de indemnização civil, que aguardam o respetivo despacho saneador. Esta situação não pode deixar de ser subsumível, na óptica do tribunal, à figura da litispendência, constituindo esta uma exceção dilatória cuja verificação obsta a que o tribunal conheça o mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância, com arrimo nas disposições legais dos art. 276.º, n.º 2, e 577.º, al. i), ambos do CPC.

A excepção de litispendência visa [obviar à] repetição de uma causa, quando a anterior ainda esta em curso, tendo por fim, obviamente, assim como a excepção do caso julgado, evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior – cfr. art. 580.º, n.º 1 e 2, do CPC.

Também com a consagração do efeito da litispendência se visa obstar à inutilidade da repetição de decisão judicial em processos diferentes para a mesma ação e salvaguarda-se também o prestígio da administração da justiça para o risco grave de dano que poderia resultar de o tribunal contradizer ou reproduzir outra decisão judicial – cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, 1985, p.. 370.

De harmonia com o disposto no art. 581.º, n.º 1, do CPC, repete-se a causa quando se põe uma ação idêntica quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas no ponto de vista da sua qualidade jurídica – n.º 2; há identidade do pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico – n.º 3; há ainda identidade da causa de pedir, quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico – n.º 4.

Isto visto, resulta à sociedade e de forma cristalina nos autos que o conhecimento nesta sede por via do principio da adesão da questão atinente ao pedido cível, redundaria naquilo que claramente a litispendência pretende evitar, seja a eventual contradição e obtenção de resultados distintos, em sedes distintas, de decisões em si mesma contraditórias, o que obviamente se pretende obstar.

Nestes termos, o tribunal julga procedente a excepção dilatória de litispendência, absolvendo os réus da instância, não conhecendo o pedido de indemnização civil nos autos formulados pelas razões supra deduzidas. »

2.2. O acórdão de 27/04/2022

Naquilo que ao recurso em apreço pode importar, isto é, quanto à matéria de facto assente que tange aos arguidos AA e DD, e à opção pela suspensão da execução das penas de prisão que lhes foram impostas, é o seguinte o teor do acórdão recorrido:

« (…)

2 – Fundamentação

- Factos provados

(…)

1. A sociedade arguida “S..., Lda.” é uma sociedade por quotas, com sede na ... e cujo objecto social é a construção civil.

2. A sociedade arguida “S..., Lda.” tem como gerente o arguido AA, que já exercia tais funções na data dos factos que infra se descrevem.

(…)

5. O arguido DD, sócio da sociedade arguida “S..., Lda.”, na data dos factos que infra se descrevem, exercia funções de encarregado de obra.

(…)

8. O ofendido KK trabalhava por conta da sociedade arguida “S..., Lda.” desde o ano de 2016, com a categoria de “pedreiro de 2.ª”, desempenhando as funções inerentes a essa categoria profissional e tendo sido considerado apto para as realizar.

9. A sociedade arguida “S..., Lda.”, por contrato de subempreitada, foi contratada, em Fevereiro de 2018, para proceder à remoção da cobertura do pavilhão industrial, em telhas de fibrocimento, sito na Rua ..., em ....

10. O pavilhão em causa é constituído por duas naves paralelas (nave nascente e nave poente) e cada uma dessas naves tem a respectiva cobertura em forma de duas vertentes (telhado de “duas águas”).

11. A largura total do edifício é de 33,21 metros.

12. A cobertura da nave nascente é um telhado de duas vertentes (duas águas) com as seguintes dimensões:

- altura de 7,07 metros do solo até à cumeeira da cobertura;

- altura de 5,78 metros do solo até à fiada de telhas, cuja telha se partiu;

- comprimento de 31 metros;

- largura de 16,6 metros das duas águas;

- largura de cada vertente (água) era superior a 8 metros;

- cada telha tinha a dimensão de 1,53 metros de comprimento, por 1 metro de largura e cada vertente era composta por sete fiadas de telhas/chapas.

13. Porque a obra para a qual a sociedade arguida “S..., Lda.” consistia na remoção de uma cobertura de telhas de fibrocimento, por as mesmas poderem conter amianto, foi necessário apresentar pedido de autorização junto da Autoridade para as Condições do Trabalho.

14. Para instruir o pedido de autorização relacionado com o amianto, pela sociedade arguida “S..., Lda.”, em 28 de Janeiro de 2018, apresentou o plano de trabalhos.

15. Desse plano de trabalhos consta como “Director de Obra”, a arguida II e como “Técnico Superior de Segurança”, a arguida LL, engenheira e gerente da sociedade arguida “M..., Lda.”.

16. Foi ainda identificado como “Encarregado”, o arguido DD.

17. Do plano de trabalhos consta: «Os trabalhos serão realizados na cobertura do edifício, com cerca de 4,00 m de altura, na linha de cumeeira/poto mais alto até ao solo; Os trabalhadores estarão presos a uma linha de vida, montada para o efeito. A linha de vida será ancorada, num elemento estrutural do edifício a trabalhar, servindo a mesma para segurança dos trabalhadores».

18. Consta ainda do plano de trabalhos, na parte relacionada com a avaliação do risco «aplicado ao risco específico do amianto» a referência ao «perigo de execução de trabalhos em altura», com a indicação das seguintes medidas de diminuição e controlo: «utilização obrigatória de EPI’S; avaliação prévia do estado da cobertura; instalação da linda de vida; utilização permanente de arnês de sustentação com olhais de fixação frontal e posterior e 2 cabos de amarração com 2,00m; utilização de dispositivo anti-queda com enrolador progressivo».

(…)

21. No dia 20 de Março de 2018, para a realização dos trabalhos de remoção da cobertura do pavilhão identificado em 9., encontrava-se no referido local o ofendido KK, por conta da sociedade arguida “S..., Lda.”, para iniciar a remoção da cobertura.

22. No referido local e em obra encontrava-se ainda o arguido DD, na qualidade de encarregado, que assumiu a execução do plano de trabalhos, com a distribuição das tarefas pelos vários trabalhadores, orientando-os e determinando quais os trabalhos a realizar e o modo de execução dos mesmos, de acordo com o plano de trabalhos desenhado.

23. O ofendido KK encontrava-se no cimo da cobertura a remover, deslocando-se ao longo da mesma.

24. Juntamente com o ofendido KK, encontrava-se o arguido AA.

25. Os trabalhos de remoção da cobertura iniciaram-se pelo lado poente, onde estavam colocadas quatro tábuas de rojo.

26. As tábuas de rojo eram por onde os trabalhadores que se encontravam no telhado tinham de se deslocar para evitar andar directamente sobre as telhas de fibrocimento.

27. A remoção das telhas do lado poente implicava que estas eram transportadas por duas pessoas que se deslocavam com aquela pela cobertura, até ao lado nascente, depositando-a no garfo de uma empilhadora.

28. No lado nascente do telhado a remover, e por cima deste, estava esticado o garfo de uma empilhadora que servia como depósito das telhas removidas.

29. Assim, o ofendido KK tinha de atravessar toda a cobertura da nave subindo pela vertente do lado poente até à cumeeira e descendo pela vertente oposta do lado nascente, o que fez.

30. No dia 20 de Março de 2018 só existiam tábuas de rojo na vertente do lado poente da cobertura e em número de quatro.

31. O ofendido KK, quando se encontrava na vertente nascente tinha de caminhar directamente em cima das telhas de fibrocimento, o que fez.

32. Como equipamentos de protecção individual, o ofendido KK fazia uso de um arnês de marca “Cargopack”, com uma fita com 0,82m de cumprimento, com dois mosquetões em cada uma das extremidades e uma corda de amarração.

33. Tais equipamentos foram-lhe fornecidos pela sociedade arguida.

34. Um dos mosquetões estava colocado no arnês e o segundo mosquetão no extremo da fita com 0,82m.

35. O ofendido tinha ainda uma corda com 15,80 m que era amarrada à viga metálica da cobertura e à qual o mosquetão era preso.

36. Tal corda funcionava como “linha de vida”.

37. A referida corda estava encurtada, tendo apenas um cumprimento utilizável de quatro metros.

38. A corda utilizada pelo ofendido não tinha cumprimento suficiente para permitir a movimentação do ofendido pela cobertura.

39. Não permitia que o ofendido chegasse ao ponto de saída da cobertura.

40. Não permitia que o ofendido se deslocasse pela cobertura, desde o local onde as telhas estavam a ser retiradas e até ao local onde as mesmas eram carregadas para serem descidas.

41. A corda estava presa à viga metálica por baixo da cobertura e que não permitia o seu deslizamento ao longo de toda a extensão da cobertura, por existirem sucessivas hastes.

42. Assim, a corda tinha de ser mudada de quatro em quatro metros e novamente amarrada pelo ofendido.

43. Cerca das 11h45, do dia 20 de Março de 2018, o ofendido KK, que se encontrava a caminhar em cima das telhas de fibrocimento da vertente nascente, caiu do telhado para o interior do pavilhão.

44. A queda ocorreu, porque a telha sobre a qual o ofendido caminhou, partiu.

(…)

46. Em resultado, o ofendido KK caiu desamparado, numa altura de 5,78 metros.

47. Em consequência da queda o ofendido KK sofreu lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas e torácicas, que foram causa adequada da sua morte.

48. A queda do ofendido KK ocorreu porque:

- este caminhou directamente em cima das telhas de fibrocimento e esta partiu-se;

- na vertente nascente do telhado, não foram colocadas tábuas de rojo;

- não estava ligado a uma linha de vida;

- não existiam redes de suspensão.

49. O arguido DD, na qualidade de encarregado da obra, ordenou ao ofendido que usasse a corda e a amarrasse à viga.

50. O arguido DD sabia que a referida corda não era uma “linha de vida”.

51. O arguido DD sabia que do plano de trabalhos constava a referência que, por se tratar de trabalhos em altura, deveria ter colocado uma “linha de vida”.

52. Porém não a colocou ou mandou colocar, como devia ter feito.

53. O arguido DD não mandou colocar tábuas de rojo em toda a superfície da cobertura do pavilhão e em cima da qual o ofendido tinha, necessariamente, de caminhar.

54. O arguido DD sabia que a não utilização da linha de vida e a não colocação de tábuas de rojo sobre a cobertura, poderia levar à queda do ofendido, como aconteceu, mas ainda assim não tomou as medidas necessárias que podia e devia para o evitar.

57. Deveriam ter sido adoptadas medidas especiais de protecção para trabalhos em altura, como a colocação de redes de suspensão ou ainda duas linhas de vida, o que não aconteceu.

58. Todos os arguidos sabiam que a obra em causa visava a remoção, em altura, de telhas de fibrocimento.

59. Todos os arguidos sabiam, por força da sua actividade e profissão, que as telhas de fibrocimento são pouco robustas.

60. Mais sabiam os arguidos que a referida falta de robustez aumenta quando as mesmas estão expostas aos elementos meteorológicos, o que acontecia na situação em apreço.

61. Porém, nenhum dos arguidos S..., Lda.; JJ e DD desenvolveu e adoptou medidas especiais de protecção de trabalhos em altura.

62. Deveria ter sido dada ao ofendido formação específica para a realização de trabalhos em altura e em telhas de fibrocimento, o que não aconteceu.

(…)

64. Cabia aos arguidos S..., Lda.; JJ e DD ter assegurado que a obra era executada com as necessárias condições de segurança, o que não aconteceu.

65. Mais cabia aos arguidos, S..., Lda.; JJ e DD na qualidade de empreiteiro, encarregado dos trabalhos, e responsáveis pela execução da obra pela implementação e execução de medidas de segurança, avaliar os riscos associados à execução da obra e definir as medidas de prevenção adequadas a acautelar a segurança dos trabalhadores, garantindo a implementação desses mecanismos e instrumentos, bem como garantir que era efectuada uma avaliação de risco e formação aos trabalhadores, assegurando que estes tinham conhecimento dos procedimentos de segurança, fornecendo-lhes formação e a prestando-lhes informação sobre tais medidas e modo de actuação em caso de perigo grave e iminente, o que estes arguidos não fizeram.

66. Assim, na data e hora em que ocorreu o acidente não existia no local nem director de obra, nem coordenador de segurança em obra, nem vigilância ou controlo efectivo dos trabalhadores, facto que os arguidos S..., Lda.; JJ e DD conheciam e sabiam lhe ser exigido.

67. Os arguidos S..., Lda.; JJ e DD sabiam que ao agirem do modo descrito violavam as regras estabelecidas que visam assegurar a prevenção e a eliminação de risco e condições inseguras no trabalho da construção civil e manter os trabalhadores em condições de segurança, higiene e protecção de saúde.

68. Os arguidos S..., Lda.; JJ e DD deviam ter assegurado que se encontravam reunidas as condições de segurança para a execução dos trabalhos naquele local e hora, o que não fizeram.

69. Ao não o fazerem, os arguidos S..., Lda.; JJ e DD violaram a sua obrigação de assegurar a todos os trabalhadores, durante a execução da obra, as condições de segurança, higiene e saúde no trabalho e de adotar as prescrições mínimas previstas em regulamentação especifica.

70. Os arguidos S..., Lda.; JJ e DD deveriam ter garantido a observância das regras de segurança na execução dos trabalhos e procedendo nos processos de trabalho à identificação dos riscos previsíveis, combatendo-os na origem e anulando os seus efeitos, de forma a garantir um eficaz nível de protecção, nomeadamente quanto ao risco de queda.

71. O acidente ocorreu porquanto pelos arguidos S..., Lda.; JJ e DD não foram adoptadas as medidas de segurança referidas: fiscalização do local da obra, avaliação concreta do risco de queda em altura, avaliação da solidez da cobertura do telhado a remover, colocação de linhas de vida e redes de suspensão, formação adequada ao trabalhador e ofendido na utilização dos equipamentos de protecção.

72. Os arguidos S..., Lda.; JJ e DD ao omitirem a implementação desses mecanismos e instrumentos necessários a garantir a segurança dos seus trabalhadores aquando da intervenção no telhado agiram de modo voluntário e consciente, prevendo a possibilidade de ocorrer uma queda, conformando-se com a mesma.

73. Razão pela qual as condições em que os trabalhos eram executados pelo ofendido concorreram de modo único e exclusivo para a verificação do acidente, sendo que incumbia aos arguidos S..., Lda.; JJ e DD, directamente, fornecer e implementar na obra os meios necessários e legalmente exigíveis a fim de evitar o desabamento e/ou derrocada das paredes.

74. Caso tivessem sido adoptadas tais medidas, os riscos de acidente teriam sido eliminados na sua origem.

75. Pelo que o acidente e a morte do trabalhador e ofendido KK só ocorreu em face da conduta totalmente omissiva e consciente dos arguidos S..., Lda.; JJ e DD, ficando-se a dever à inexistência de equipamento de segurança de protecção destinado a prevenir a queda em altura, nomeadamente linhas de vida, tábuas de rojo e redes de suspensão.

76. Os arguidos S..., Lda.; JJ e DD agiram de modo voluntário, livre e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei admitindo a possibilidade de ocorrência de um acidente e conformaram-se com essa possibilidade.

(…)

78. AA nasceu na ..., sendo o mais novo de uma fratria de oito irmãos.

79. O pai (já falecido) trabalhou como metalúrgico e a mãe era doméstica.

80. O arguido desenvolveu a sua personalidade num ambiente familiar pouco contentor, desestruturado e deficitário no que diz respeito à resposta a necessidades básicas de todos os elementos.

81. O arguido tem a lembrança de o pai se ter reformado quando este teria 6/7 anos de idade devido a problemas de saúde o que veio a complicar a situação económica e já deficitária, de todo o agregado.

82. Duas das irmãs foram adotadas e os restantes irmãos (e ele próprio) passaram por graves dificuldades, inclusive fome.

83. Frequentou a escola até ao 6º ano de escolaridade, reprovou três vezes devido a desinteresse e desmotivação.

84. Aos 12 anos de idade AA no período das ferias escolares ia trabalhar de forma a ter algum dinheiro para as suas necessidades.

85. Desistiu dos estudos quando tinha 16 anos de idade, determinado a iniciar uma atividade profissional a tempo inteiro de forma a adquirir provento para a sua subsistência.

86. Foi trabalhar inicialmente para a área da construção civil onde se manteve até aos 18 anos de idade.

87. Posteriormente passou por outras duas empresas, também estas na área da construção civil, onde no total permaneceu cerca de 10 anos, findo os quais, junto com um amigo/socio, abriram uma empresa com atividade na mesma área (construção civil).

88. Aos 20 anos de idade e após alguns meses de namoro, iniciou uma relação de união de facto com a companheira com a qual viria a contrair matrimonio aos 23 anos de idade.

89. Deste casamento nasceu um filho que atualmente tem 23 anos de idade.

90. Em 2013 e devido a incompatibilidades relacionais, divorciou-se do cônjuge.

91. Passados cerca de dois anos do divorcio, iniciou novo relacionamento afetivo e nova união de facto, no entanto e passados alguns anos a companheira foi diagnosticada com esclerose múltipla degenerativa.

92. À data dos factos que deram origem ao presente processo, AA vivia na morada supra identificada com a companheira.

93. Trata-se de casa própria adquirida através de empréstimo bancário, o qual se encontra a liquidar e tem o valor de 280,00 € mensais, ao que acresce as despesas domésticas.

94. A habitação é referenciada como dispondo de boas condições de habitabilidade, localizada numa zona tranquila e sem registo de problemas sociais.

95. Atualmente o arguido reside nesta habitação com o filho, visto que devido ao agravamento do estado de saúde da companheira, esta teve que ser internada há cerca de um ano.

96. Anteriormente ao internamento, era o arguido que tratava da companheira porque devido à doença, esta encontrava-se completamente dependente deste inclusive para a realização da sua própria higiene.

97. Como o seu estado de saúde se foi deteriorando e agravando, e o arguido não tinha como prestar os cuidados necessários e imprescindíveis à sua companheira, pois tinha que trabalhar, foi então internada nos cuidados continuados da Santa Casa da Misericórdia ..., local onde se mantém.

98. AA está ativo laboralmente desde o início de novembro numa empresa de construção civil (L..., Lda.), possui contrato de trabalho sem termo, tem a categoria de “Pedreiro de 2ª” e aufere o Salário Mínimo Nacional (SMN) ao que acresce os respetivos subsídios.

99. O filho além de continuar a estudar também trabalha numa loja e desta forma contribui para as despesas da casa.

100. Em termos de saúde referiu que desde que se passaram os factos que deram origem ao presente processo, que faz medicação ansiolítica, receitada pela sua médica de família.

101. Nos tempos livres mantém-se por casa, essencialmente a descansar e a ver TV.

102. Em termos pessoais apresenta capacidades cognitivas para identificar e distinguir condutas normativas.

103. A atual situação jurídico-penal é vivida pelo arguido com grande preocupação e nervosismo, sentindo um enorme pesar pelo sucedido.

104. O arguido revela consciência crítica relativamente à gravidade, ao valor do bem jurídico e ao dano associado, perante factos de idêntica tipologia aos que deram origem ao presente processo.

105. Abordado quanto a uma possível condenação, mostra-se motivado para cumprir as obrigações

(…)

106. DD vive há trinta anos com MM, sua companheira, e a filha de ambos.

107. Residem em casa da filha, uma moradia de construção antiga, mas que dispõe das necessárias condições de habitabilidade.

108. Tem outra filha do seu primeiro relacionamento conjugal, II, que dispõe de vida própria constituída.

109. O contexto familiar foi descrito como funcional e tranquilo.

110. Os elementos da família têm conhecimento da situação processual em que o arguido está envolvido e manifestam-se cooperantes e disponíveis para o apoiar.

111. O arguido tem um trajeto profissional de cinquenta anos ligados ao setor da construção civil.

112. À data dos factos que o constituíram como arguido nos presentes autos, era sócio da sociedade arguida “S..., Lda.” onde exercia funções de encarregado de obra.

113. Atualmente está inactivo por consequência do processo de insolvência da empresa, acrescendo que correm ainda diligencias da insolvência da anterior empresa de construção que possuía, advinda da crise económica de 2011, tendo sido declarado insolvente em 2013.

114. A sua atual situação económica afigura-se muito fragilizada. DD fez alusão à perda do património pessoal que adquiriu ao longo da vinda, revendo-se atualmente na situação de dependência económica, por cessação da atividade.

115. A economia familiar é atualmente suportada pela sua filha, funcionária de serviços administrativos da empresa L..., Lda. - Construções, com sede na ..., e pela sua companheira funcionária de um estabelecimento comercial.

116. No presente não perspetiva integrar outra a atividade, aguarda o desenvolvimento de deferimento do processo de aposentação que já requereu.

117. DD possui o 6º ano de escolaridade e conta com um percurso laboral de 55 anos de trabalho sem interrupções, iniciado aos doze anos de idade, numa carpintaria, tendo transitado depois para o setor da construção civil.

118. Descende de uma família idónea, de baixa condição socioeconómica, o pai emigrou para Moçambique quando DD nasceu, na expetativa de melhorar as suas condições de vida.

119. Regressou a Portugal quando o arguido tinha seis anos de idade. Emigrou depois para França, juntamente com a esposa e as suas três irmãs, ficando o arguido no agregado dos avós, onde permaneceu até aos dezassete anos, altura em que emigrou para junto dos pais e irmãs.

120. DD valoriza e continua a preservar o seu grupo familiar, o modelo educativo em que cresceu, em contexto afetuoso e estruturado, direcionado à aquisição de regras e valores socialmente integradores, valores que terão tido um contributo muito importante na formação da sua personalidade e promissores da sua estabilidade familiar.

121. Ao nível social, segundo as fontes contactadas, beneficia de uma imagem favorável e mantém relações de sociabilidade e de cordialidade, de longa data, relacionadas com o exercício da atividade que desenvolveu ao longo do seu trajeto de vida.

122. Do ponto de vista comunitário, de entre os demais, salientam-se o seu papel ativo e participativo na comunidade, onde assumiu o cargo de Chefe do Agrupamento de ..., durante vários anos, foi membro do Conselho Económico ..., durante dez anos e foi ainda colaborador voluntário, do banco alimentar.

123. A sua constituição como arguido nos presentes autos, é do conhecimento público e familiar, não sendo, no entanto, conhecidos, nem percecionados, sinais de censura social, que possam ter impactos na sua imagem social.

124. Aos fins de semana, para além das atividades de cariz social em que continua a colaborar, valoriza momentos de convívio e confraternização com a família e amigos

125. Demonstra competências para identificar e reconhecer condutas de dever ser, jurídico e normativo perante situações semelhantes, consideradas em abstrato, às que lhe são imputadas.

Antecedentes criminais (…)

A. Arguido AA

O arguido não tem antecedentes criminais registados.

B. Arguido DD

O arguido não tem antecedentes criminais registados.

(…)

4 – Enquadramento jurídico-penal

(…)

3.3. Determinação do tipo e medida concreta das penas

Ao crime de infracção de regras de construção, p. e p. pelos art. (…) 277.º, n.º 1, als. a) e b), e 285.º do CP, com referência aos art. 44.º e 45.º do RSTCC, aprovado pelo DL º 41 821, de 11/08/1958, Normas Técnicas EN 795:2012, EN 355:2002 e EN 354, e aos art. 15.º, n.º 2, als. c) e d), e 3, e 73.º-B, n.º 1, als. a), b), e) e o), da Lei n.º 102/2009, de 10/09, imputado aos arguidos JJ e DD cabe apenas pena de prisão donde postergada fica a opção por outra pena.

(…)

Isto visto, no que concerne às penas a aplicar aos arguidos AA e DD, pondera-se a gravidade objectiva dos factos globalmente praticados, decorrendo esta do modo de execução dos mesmos e da moldura penal abstractamente cominada, de mediana gravidade, admitindo-se a aplicação de pena de prisão até dez anos e oito meses de prisão [ponderada a agravação do art. 285.º do CP].

Ambos os arguidos agiram dolosamente, com dolo eventual, mas com culpa muito intensa, possuindo ambos capacidade e meios para se determinarem de forma distinta.

São elevadas e são prementes as exigências de prevenção geral no sentido de reafirmar junto da comunidade jurídica a validade e eficácia das normas violadas, estando em causa a violação de normas que, prevenindo a segurança no trabalho, pela sua violação, deram causa à perda de uma vida humana, bem mais intensamente tutelado pela nossa ordem jurídica.

Nenhum dos arguidos possui antecedentes criminais registados, circunstância que não revela mais do que a normal conformação dos sujeitos ao direito, mas que ainda assim, permite afirmar não serem muito elevadas as exigências de prevenção especial de que os arguidos se mostram carecidos.

A posição dos arguidos cuja responsabilidade se apura, colaboraram com o serviço da justiça, não revertendo para confissão quase a levaram a cabo, facto que não poderá deixar de ser valorado.

Ambos os arguidos, com maior relevo para o arguido DD, assumiram aparente contrição e arrependimento pelos factos praticados, circunstância que importará assinalar.

No que concerne à medida concreta das penas de prisão a aplicar, e à luz das considerações supra expendidas, entende o Tribunal adequadas e proporcionais a pena de três anos de prisão, relativamente a cada um deles, sendo homogéneas as condutas e participação nos factos.

(…)

3.5. Da suspensão da execução da pena de prisão em que os arguidos AA e DD são condenados

Dispõe o art. 50.º, n.º 1, do CP: “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

No que concerne à suspensão da execução da pena de prisão, a que alude o art. 50.º do CP, ela assenta em dois pressupostos distintos: um primeiro, de natureza formal, é que a pena de prisão aplicada ao arguido o não seja em medida superior a cinco anos; o segundo, de natureza material, consiste na possibilidade de, tendo presentes as circunstâncias pessoais concretas do arguido, ainda assim concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição, o que equivale a formular um prognóstico positivo quanto à reintegração e ressocialização do arguido.

Neste ponto, a pena em que cada um dos arguidos é condenado, permite em abstracto a suspensão da sua execução.

Os arguidos mostram-se integralmente inseridos.

Assumiram as suas responsabilidades, embora não efectuando confissão.

Não possuem antecedentes criminais.

Ponderados os efeitos criminógenos associados ao cumprimento de pena de prisão entende o tribunal que, neste conspecto se mostra viável a suspensão da execução da pena de prisão, em que cada um dos arguidos é condenado, embora subordinada, a regime de prova que vise essencialmente a consciencialização do respeito pela observância de normas atinentes à segurança e higiene no trabalho, e os demova da prática de novas actuações como as que os autos revelam.

(…) »

3. Enfim apreciando

3.1. O recurso interlocutório

3.1.1. Um primeiro aspeto da questão que se nos afigura útil notar, ainda que não decisivo para a posição da demandante/recorrente, é o de o recurso contra a decisão que absolveu os demandados da instância na matéria cível ser interposto por ela somente, nisso a não tendo acompanhado os outros dois demandantes. Assim, quanto a estes, considerada a autonomia da matéria civil (art. 403.º, n.º 2, al. b), do CPP), em que a cada uma das partes civis apenas assiste legitimidade para recorrer da parte das decisões contra si proferidas (art. 401.º, n.º 1, al. c), do CPP), sem que lhes aproveite o recurso da outra (art. 401, al. C), 402.º, n.º 2, a contrario, do CPP), não tendo interposto por seu lado recurso, a decisão simplesmente transitou. Dito isto, e passando sem mais ao cerne do recurso, importa começar por observar que o princípio vigente em matéria de pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime, é o que estabelece o art. 71.º do CPP, sub nomen princípio de adesão: “(…) é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”. Esses casos são em termos gerais os mencionados no art. 72.º, n.º 1, als. a) a i), do mesmo CPP, e o único que na situação dos autos e segundo o que do processo se colhe pode relevar, é em concreto o da primeira parte da al. a): “o processo penal não [ter] conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da notícia do crime (…)” – na verdade constatando-se que a notícia do crime, com a participação, data de 21/03/2018, e a acusação foi deduzida somente a 21/07/2021.

3.1.2. E precisamente, a recorrente/demandante, dizendo de forma inócua tê-lo feito “à cautela” (temendo-se do prazo prescricional, por razões que não esclarece e que se não lobrigam, para mais à luz do disposto pelo art. 498.º, n.º 3, do Código Civil – CC), instaurara muito antes da dedução aqui do pedido de indemnização civil (a 29/09/2021), e então com os também aqui seus codemandantes, e no Juízo Central Criminal ... (J...), acção cível contra os arguidos também aqui demandados e ali réus, acção que tomou o n.º 885/21...., em que pede a condenação dos réus a pagarem-lhe (e aos seus ali coautores) determinadas quantias a título, entre outros, de compensação por danos patrimoniais próprios e perda da vida da vítima – que enfim é o que no pedido cível aqui deduzido igualmente reclamam. Quanto às questões jus laborais dos mesmos eventos decorrentes, porque o sinistro assumiu a natureza de acidente de trabalho, essas acabaram a ser dirimidas no Juízo de Trabalho, no âmbito do processo 1170/18...., aliás com decisão transitada em julgado aquando da dedução aqui do pedido cível, e independentemente delas, com que a questão colocada não briga, o que enfim estás em causa é saber se a matéria dos alegados danos não patrimoniais haveria de ser aqui conhecida, a despeito de, ao tempo da decisão sob recurso, estar pendente acção cível em separado, instaurada antes da dedução do pedido cível, e se especificamente a admissão liminar e tabelar deste, aquando do despacho de recebimento da acusação (a 12/11/2021), impunha decisão diversa, sob pena de violação do art. 71.º do CPP.

3.1.3. Adiantamos desde já que, salvo o devido respeito, se nos afigura não assistir razão à demandante. Desde logo, e como vimos, o desvio ao princípio da adesão, sendo contemplado pela lei (art. 71.º, e 72.º, n.º 1, al. a), do CPP) em via de faculdade atribuída ao lesado (que nos termos dela “pode” deduzir pedido em separado perante tribunal civil), foi a própria demandante (com os seus codemandantes) quem o consumou, com essa efectiva interposição da acção declarativa de condenação no Juízo Central Cível ..., e isso e como é óbvio era-lhe inteiramente lícito, não decorrendo daí violação alguma ao art. 71.º do CPP. Por outra banda, da circunstância de o tribunal recorrido, no dito despacho de 12/11/2021, ter admitido o pedido cível aqui deduzido, erradamente porque já podia conhecer a interposição daquela acção em separado (que no próprio pedido cível era mencionada como estando então em fase final dos articulados, a aguardar despacho saneador…), certamente não vincularia o tribunal criminal a que a despeito dela conhecesse um tal pedido e sobre ele a final decidisse, sendo caso de dizer que pretenderia com isso a recorrente a solução de um erro com a produção de outro maior...

3.1.4. Certo é que a acção em separado fora instaurada (legitimamente, enfatize-se) muito antes da dedução aqui do pedido cível, e se aquando do recebimento da acusação o tribunal indevidamente admitiu este último, nem por isso deveria prosseguir no erro e até ao fim consumar a duplicação de causas, porque de verdadeira duplicação de causas se trataria. Sendo conhecidas as responsabilidades civis decorrentes do facto criminoso no próprio processo criminal em que este se ajuíza, a hipótese das excepções da litispendência e/ou caso julgado simplesmente não se coloca, e isso, juntamente com a economia de esforços dos interessados e dos tribunais, é da teleologia do princípio da adesão que o art. 71.º do CPP consagra. Mas se por opção do lesado e nos casos em que a lei lho consente, como aqui sucedeu, tem lugar a instauração de acção cível em separado, então tem de dar-se por seguro que as causas não podem ser duplicadas, e aquelas excepções passam a ter de conhecer-se. Esse conhecimento, por outro lado ainda, e independentemente da norma do art. 582.º, n.º 1 e 2, do CPC, não pode mesmo deixar de ter lugar no processo criminal, onde por definição o pedido cível nem mesmo poderia ser deduzido se, como é o caso, já antes fora instaurada a acção cível em separado; e mesmo isso, no que nos importa tanto monta, porque de toda a maneira e segundo vimos já, a instauração da acção cível em separado fora muito anterior à dedução do pedido cível, pelo que as ditas regras do art. 582.º, do CPC, sempre imporiam o conhecimento da litispendência nestes autos.            

3.1.5. Pois bem, à luz dos critérios dos art. 580.º e 581.º do CPC verificada a litispendência (o que em si mesmo, na verificação dos respectivos pressupostos gerais, a recorrente nem mesmo questiona, limitando-se a sustentar a “não aplicação automática” daqueles normativos), ao tribunal recorrido não restava alternativa, nos termos dos art. 577.º, al. i), e 278.º, n.º 1, al. e), do CPC, e sob pena de efectivamente estar a repetir, no processo criminal, a causa já instaurada em separado no tribunal cível, senão a de absolver os demandados da instância civil. A isto nada altera, está bom de ver, o desfecho que aquela acção cível instaurada em separado possa entretanto vir a ter tido, debalde disso se lamentando a recorrente: se porventura aí, na acção cível em separado, o tribunal cível suscita conflito negativo de competência com o tribunal de trabalho, declinando a própria e a este a atribuindo, ou em que termos seja, é nessa causa que à recorrente e ali autora compete reagir (por via de recurso ou suscitando a resolução do conflito pelo tribunal superior) – seguramente não sendo esse alegado conflito entre aquelas duas jurisdições fundamento para o tribunal criminal indevidamente assumir o conhecimento e decisão da causa a despeito da instauração da acção em separado, e menos ainda lhe competindo em vista disso “convidar a demandante” a desistir da instância naquela acção em separado! Enfim, à luz de tudo quanto antecede fica claro, assim o cremos, que ao recurso interlocutório não pode deixar de negar-se provimento, nenhuma violação se lobrigando do art. 71.º do CPP.

3.2. Do recurso contra o acórdão final

3.2.1. Não vem questionada, minimamente, a matéria de facto estabelecida, nem a qualificação jurídico-penal dela feita, nem por último e quanto aos arguidos aqui recorridos (AA e DD), as penas de prisão que lhes foram aplicadas. Tudo isso é assente e a questão colocada prende-se, tão só, com a substituição delas por suspensão da execução respectiva, como a recorrente ela mesma deixa claramente vincado, de par com a alegação de ser indevida essa substituição, com a qual teria sido violado, pelo acórdão recorrido, o art. 50.º, [n.º 1], do CP. O problema que estes termos do recurso de imediato concitam, como na sua resposta o MP assertivamente notou, com extensa invocação de jurisprudência, é o da própria admissibilidade dele, questionando-se a legitimidade/interesse em agir da assistente, nessa específica matéria, desacompanhada do MP. Trata-se questão que há muito suscita debate, mas cuja solução se vai pacificando, segundo cremos, e é quando menos a nossa posição, no sentido daquela inamissibilidade.

3.2.2. Os referentes normativos são os art. 401.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do CPP, onde se dispõe que “têm legitimidade para recorrer (…) o arguido e o assistente, de decisões contra eles proferidas”, e que “não pode recorrer quem não tiver interesse em agir”, e o art. 69.º, n.º 1 e 2, al. c), do mesmo CPP, onde por seu lado se dispõe que “os assistentes têm a posição de colaboradores do MP, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções la lei”, e que lhe compete em especial “interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o MP o não tenha feito (…)”. Cremos que resultar daqui que na verdade a legitimidade processual do assistente não lhe permite exigir em recurso, autonomamente, pena mais gravosa para o arguido (nem esta pode decorrer de recurso daquele), se, como é o caso, nisso estiver desacompanhado da entidade com a legitimidade processual para representar o interesse comunitário na realização da justiça, que é o MP (que o não fez). Só assim não seria se tal pretensão assentasse no pressuposto de um reflexo sério que essa alteração pudesse ter para a vida e interesses próprios da assistente.

3.2.3. Esse é de resto, e como na resposta do MP ao recurso se sublinha, com invocação dos pertinentes arestos, o sentido do Assento do STJ n.º 8/99 (de 30/10/97, publicado em DR I-A a 10/08/99), em que se uniformizou jurisprudência nos seguintes termos: “O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do MP, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir”. Essa jurisprudência reafirmou-a mais tarde o mesmo STJ, no Ac. de 24/10/2002 (proferido no processo 02P3183 – relator Carmona da Mota), de cujo sumário consta que “num processo em que o arguido foi condenado, na primeira instância, pela autoria de um crime de homicídio voluntário, na pena de catorze anos de prisão, a redução dessa pena pela Relação, sem oposição do MP, para doze anos de prisão, não é uma decisão que afecte o assistente; logo, este – que, no processo, tem a posição de colaborador daquele (o MP) – só pode recorrer isoladamente se alegar e demonstrar um concreto e próprio interesse em agir”, e em conclusão se manifestando ali que “o recurso é de rejeitar, na medida em que o assistente/recorrente não dispõe de [concreta] legitimidade para recorrer (pois que a decisão recorrida não a ‘afeta’ nem foi ‘contra ela proferida’ – art. 69.º, 2.º, al. c), e 401.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do CPP) nem alegou – e, menos ainda, ‘demonstrou’ – “um concreto e próprio interesse em agir".

3.2.4. Continuando a acompanhar a argumentação expendida na resposta do MP ao recurso, repare-se em que por um lado aquela doutrina não a reverteu o STJ no Ac. de uniformização de jurisprudência n.º 5/11 (de 09/02/2011, publicado em DR I-A a 11/05/2011), em que, tratando embora de questão diversa, manteve o entendimento de que o interesse em agir do assistente no recurso depende da invocação de um concreto interesse próprio afectado pela decisão recorrida, acrescendo que sobre a matéria se pronunciara o Tribunal Constitucional, que, no seu acórdão n.º 205/2001, de 09/05/2001, julgou conformes à CR, designadamente ao princípio do Estado de Direito e ao direito de intervenção do ofendido no processo penal, as normas constantes dos art. 69.º, n.º 1 e 2, al. c), e 401.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do CPP, na interpretação fixada pelo já referido Assento n.º 8/99, que restringe a legitimidade do assistente para impugnar a decisão condenatória no que concerne à escolha e medida concreta da pena imposta ao arguido, condicionando-a à prova de específico interesse em agir.

3.2.5. Neste sentido se vem pronunciando a jurisprudência e a doutrina, em ternos que, não obstante alguns arestos que dissentem, é largamente maioritária, segundo vem retratado de modo extenso no Ac. do TRL de 16/5/2019 (proferido no processo n.º 1654/15.9PBFUN.L2-9 – relator Calheiros da Gama), para o qual por isso aqui remetemos, sem prejuízo de, a partir dele, acrescentarmos uma específica citação: «Como se afirma no CPP Comentado de António Henriques Gaspar e outros, Almedina, 2014, p. 1286, no tocante ao segmento da decisão respeitante à espécie e medida da pena, "parece impor-se a conclusão de que o assistente, porque portador de interesses alheios àquelas "ideias e exigências transcendentes" que o Estado visa com a aplicação das penas, carece de legitimidade para atacar a sentença na parte em que esta fixa a espécie e medida da pena por não o afectar e não ser contra ele proferida". Bem conhecemos as posições em sentido contrário, que não acolhemos, e a que, também com elas não concordando, é, contudo, feita referência pelo Mmº Juiz a quo no seu despacho (…), com que estamos em inteira consonância, e onde se exarou a dado-passo: “Não se olvida que, na doutrina, existem posições divergentes, designadamente Cláudia Santos (in “Assistente, recurso e espécie e medida da pena”, RPCC, 2008, p. 159-160), onde exara que "o assistente tem um interesse próprio e concreto na resposta punitiva que é paralelo ao interesse comunitário na realização da justiça.". Defende esta autora que, se há um interesse da colectividade na resposta concreta ao crime, há também um interesse concreto do assistente numa resposta punitiva que considere adequada. Não é este o entendimento deste tribunal. É ao MP que compete defender a adequação das penas concretas às finalidades politico-criminais positivadas, nos ternos do seu estatuto impositivo da defesa da legalidade democrática. Não compete ao assistente exercer a vindicta privata, exigindo mais gravosa pena onde o representante do Estado nos tribunais não vir essa necessidade. A necessidade de pena diferente ou mais gravosa como fundamento de recurso do assistente terá de assentar no pressuposto de um reflexo sério dessa alteração para a vida e interesses do assistente. Essa demonstração não está feita nem, sequer, ensaiada, no recurso apresentado. Logo, falta o pressuposto do interesse em agir, por parte do assistente, na interposição deste seu recurso (…)”».

3.2.6. Assumindo esta doutrina, aliás decididamente, o que enfim temos é que a assistente se insurge contra a substituição das penas de prisão impostas aos arguidos por suspensão da execução respectiva, e em vista disso mobiliza apenas o seu entendimento sobre os fins das penas e os critérios gerais da sua escolha, segundo o qual não teriam sido cabalmente satisfeitos aqueles fins com a suspensão, tendo em conta os dados de facto relativos às personalidades daqueles e às suas condutas, designadamente no que documentam enquanto suposta falta de interiorização do desvalor das correspondentes condutas. Porém, e já nem falando de a recorrente ser nisso frontalmente inexacta (digamos assim…), porque pelo contrário e como nas respostas ao recurso se sublinha o que dos factos provados resulta quanto à apreciação que fazem das próprias actuações, a despeito de não ter havido confissão, é precisamente o contrário (!) [assim claramente quanto ao arguido AA, cfr. os factos provados enumerados sob 103 a 105, e ao menos em certa medida quanto ao arguido DD, cfr. os enumerados sob 125 – e tudo já mal falando, quanto a ambos, da regular inserção familiar e ausência de antecedentes], o que mais e decisivamente releva é que nada alega sequer no sentido de um qualquer especifico interesse próprio afectado com a concreta escolha que foi feita da pena a final aplicada aos arguidos – nem isso em rigor se perceberia face á natureza e circunstâncias do crime, transparecendo do recurso, isso sim, e de jeito claro, a pretensão de satisfazer um intuito extremadamente punitivo que, embora compreensível, a ter cabimento só o MP poderia representar.

3.2.7. Concluindo, por falta de legitimidade do assistente, à luz dos art. 69.º, n.º 1 e 2, al. c), e 401.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do CPP, para recorrer na matéria em que o fez, em termos que aliás e a ser apenas esse o recurso, porventura devessem ter levado à sua rejeição (nos termos dos art. 414.º, n.º 1, ou 417.º, n.º 6, al. b), e 420.º, n.º 1, al. b), do CPP (o que em exame preliminar apenas se afastou precisamente porque sempre haveria o recurso interlocutório para conhecer em conferência e, sobretudo, porque em todo o caso e apesar da dominância do entendimento aqui subscrito, sempre teria de à partida reconhecer-se margem para eventual dissídio), não será aqui conhecido esse recurso da assistente contra o acórdão final e nos termos em que o delimitou.

III – Decisão

Em face do exposto, decide-se:

a) Negar provimento ao recurso interlocutório da demandante FF, mantendo-se o despacho recorrido de 30/03/2022, que em virtude litispendência absolveu os demandados da instância cível; e,

b) Não conhecer do recurso pela mesma FF e enquanto assistente interposto contra o acórdão final de 27/04/2022, em virtude de nas circunstâncias concretas do caso lhe falecer legitimidade para interpô-lo, nessa conformidade o rejeitando e assim se mantendo igualmente aquele recorrido acórdão.

Custas pela assistente/demandante, sendo na parte criminal com taxa de justiça em três UCs (art. 515.º, n.º 1, al. b), do CPP, 8.º, n.º 9, e Tabela Anexa III do RCP).

Notifique.


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Coimbra, 09 de Novembro de 2022

Assinado eletronicamente

Pedro Lima (relator)

Jorge Jacob (1.º adjunto)

Eduardo Martins (2.º adjunto)