Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1014/10.8TBVIS-A.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: LIVRANÇA
LIVRANÇA EM BRANCO
PREENCHIMENTO
Data do Acordão: 04/29/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU – 1º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 10º E 77º DA LULL.
Sumário: I – Como se tem vindo a entender, de forma consensual, na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça – por todos, o Acórdão de 29.11.2012, disponível no site www.dgsi.pt -, enquanto o título permanecer no domínio das relações imediatas o preenchimento de uma livrança, pelo tomador, de valor superior ao resultante do contrato de preenchimento, não torna a livrança totalmente nula, aplicando-se-lhe as regras da redução dos negócios jurídicos contempladas no Código Civil.

II - Também a possibilidade de emissão de uma livrança em branco está prevista pelos art.ºs 10º e 77º da Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças – LULL -, sendo que a livrança em branco, deve ser preenchida de harmonia com os termos convencionados pelas partes ou com as cláusulas do negócio determinante da sua emissão.

III - Resolvido o contrato de financiamento, é a esta luz – duma relação contratual extinta – que o preenchimento quantitativo da livrança entregue em branco (com uma função de garantia) tem que ser feito; principalmente, se não houver estipulações especialmente previstas para a liquidação contratual em caso de resolução contratual.

IV - O que não significa, ao não se ter optado pela indemnização pelo incumprimento (quando se optou pela resolução), que não se possa cumular (e incluir no preenchimento quantitativo da livrança entregue em branco) a quantia mutuada que ainda não foi restituída (por força da função recuperatória/restitutória da resolução) com a remuneração correspondente à quantia mutuada não restituída, a título de indemnização pelo interesse positivo.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1.Relatório

Por apenso aos autos de execução para pagamento de quantia certa de € 24.774,34, fundada numa livrança, contra si instaurados por “S…, SA”, vieram os executados M… e esposa O…, melhor identificados nos autos, deduzir a presente oposição à execução e à penhora.

Alegaram, em síntese, que a livrança oferecida em execução foi entregue à exequente quando da celebração de um contrato de financiamento para aquisição de veículo automóvel, de acordo com o qual os executados se obrigaram a pagar à exequente 84 prestações mensais no valor unitário de € 282,76. Aquele título foi emitido pelos executados apenas com a sua assinatura, sendo acordado que seria preenchido com o valor em falta em caso de incumprimento.

Todavia, a livrança foi preenchida por valor superior à totalidade das prestações previstas no contrato, além de que não foi descontada a quantia de € 2.827,60, correspondente às primeiras dez prestações que os executados pagaram.

Segue-se ainda que o veículo automóvel que os executados adquiriram nunca lhes foi entregue pela vendedora “L…, L. da”.

Esta empresa foi representada no negócio pelo seu vendedor N…, que recebeu dos executados a totalidade do preço, mas não o entregou à “L…, L. da”, a qual por isso reteve a viatura nas suas instalações, nunca tendo permitido aos executados entrarem na sua posse.

A aqui exequente intentou contra os oponentes uma ação declarativa em que pediu que fosse decretada a resolução do contrato de financiamento por falta de pagamento de prestações e estes fossem condenados a restituir a viatura e documentos, já que o veículo foi registado com reserva de propriedade a favor da exequente. Os ora oponentes não contestaram a ação e, em consequência, foram condenados no pedido por sentença transitada em julgado.

Os executados entregaram à exequente o documento único automóvel da viatura, mas não podem entregar (e não entregaram) a viatura por a não terem (e nunca terem tido) na sua posse. Assim, além de o valor inscrito na livrança superar a dívida dos executados, a exequente resolveu o contrato de financiamento, pelo que não pode pretender a entrega da viatura e o pagamento da quantia alegadamente em dívida à data do incumprimento sob pena de flagrante abuso de direito.

Caso consiga, através da execução, o pagamento do valor do contrato de financiamento, a que se junta a condenação dos oponentes na entrega da viatura, a exequente estará a receber duas vezes a mesma coisa, incorrendo em enriquecimento em causa.

Por outro lado, foi penhorado na execução um prédio urbano de valor superior ao crédito exequendo, que por isso é manifestamente excessiva.

Concluem a oposição pedindo que o tribunal declare que nada devem à exequente, com a consequente extinção da execução, bem como ordene o levantamento da penhora do imóvel.

Recebida a oposição e notificada a exequente da mesma, veio contestá-la nos termos constantes de fls. 33 e ss., confirmando que a livrança oferecida em execução foi entregue à exequente aquando da celebração de um contrato de financiamento para aquisição de veículo automóvel, de acordo com o qual os executados se obrigaram a pagar à exequente 84 prestações mensais no valor unitário de € 282,76. Tal título foi emitido pelos executados apenas com a sua assinatura, sendo acordado que seria preenchido com o valor em falta em caso de incumprimento.

 Contudo, os executados só pagaram as nove primeiras prestações e parte da décima e, apesar de interpelados pela exequente, não pagaram mais prestações, entrando em incumprimento, razão pela qual preencheu a livrança oferecida em execução, nela apondo o valor das prestações não liquidadas, os juros de mora, o prémio do contrato de seguro da viatura, os portes de envio, o imposto de selo sobre os juros, o custo do selo da livrança e outras despesas.

 Mais alega que nada tem a ver com a não entrega da viatura, já que foram os oponentes que escolheram livremente o vendedor e o veículo automóvel. Ou seja, independentemente do incumprimento da entrega do veículo aos executados, estes assumiram o pagamento do crédito concedido, que devem cumprir.

Rejeitam ainda que aja em abuso de direito, pois se o veículo for entregue à exequente, o valor da venda será abatido ao valor da livrança. Quanto à oposição à penhora, a exequente realça que não estão penhorados outros bens para além do imóvel, nem os executados ofereceram outros bens em substituição.

Conclui pela improcedência da oposição à execução e bem assim da oposição à penhora.

Não foram apresentados outros articulados.

A instância foi suspensa por despacho de fls. 106 com fundamento em motivo justificado (art. 279.º, n.º 1, parte final, do Código de Processo Civil – CPC – de 1961).

A exequente recorreu de tal despacho, tendo sido mantida a decisão impugnada por douto acórdão da Relação de Coimbra.

Foi proferida, pela Sr.ª Juíza do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Viseu, a seguinte decisão:

” Atento o exposto, julgo totalmente procedente a oposição e, em consequência:

- declaro extinta a execução apensa, movida por “S…, SA” a M… e esposa O…;

- ordeno o levantamento da penhora do imóvel, efetuada na execução.”.

2. Do objecto do recurso

A exequente, S…, S.A., não se conformando tal decisão dela interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

A 1.ª instância fixou a seguinte matéria de facto:

Resulta dos autos que apelante e apelados celebraram, em 07/11/2007, o contrato nº …, nos termos do qual a Recorrente mutuava aos Recorridos a quantia de € 15.593,56, quantia essa destinada a financiar a aquisição, pelos Recorridos, de um veículo automóvel de marca Opel, modelo Corsa C Diesel e matrícula ...

Devendo aquela quantia ser reembolsada em 84 (oitenta e quatro) prestações mensais e sucessivas de € 282,76, no valor total de € 23.985,40 a que correspondia uma taxa de juro nominal anual 12,2240%, com uma T.A.E.G. de 14,12%.

Para garantia do bom cumprimento das obrigações, os Recorridos entregaram à Recorrente um livrança em branco assinada pelos mesmos.

No entanto, os apelados não procederam ao pagamento das prestações conforme acordado, tendo liquidado 9 prestações e parte da 10ª prestação.

Em virtude do incumprimento contratual por parte dos apelados, a Recorrente intentou acção declarativa com o nº …, peticionando que fosse declarada a resolução do contrato em apreço (e já efetivada extrajudicialmente), bem como que fossem condenados os ora Recorridos a reconhecer que o veículo era propriedade da Recorrente, em virtude de cláusula de reserva de propriedade estabelecida no contrato celebrado, restituindo em consequência o veículo e os documentos.

A referida acção foi julgada procedente, sem oposição dos recorridos.

No entanto, o veículo não foi restituído à aqui recorrente, porquanto a empresa “L… S.A.” deduziu embargos de terceiros contra a Recorrente e os Recorridos, alegando que o veículo lhe pertencia, pretensão que veio a ser julgada procedente com trânsito em julgado.

Mais, a apelante, conforme acordo com os apelados, procedeu ao preenchimento da livrança de caução entregue pelos Recorridos, tendo posteriormente, intentado acção executiva utilizando a referida livrança como título executivo.

É este preenchimento que nos traz a estes autos.

Escreve a 1.ª instância.

“Certo que no caso dos autos a livrança foi entregue “em branco”, ou seja, apenas com a assinatura dos subscritores/executados.

Todavia, quanto ao preenchimento da livrança, consta das condições gerais do contrato de financiamento a cláusula 10.ª (facto 3.5 e fls. 47 destes autos) que permite o seu preenchimento.

Poder-se-ia, porventura, dizer alguma coisa sobre uma eventual violação do pacto de preenchimento do título, relacionada com uma das condições nele previstas – haveria, à data do preenchimento da livrança, incumprimento definitivo do contrato de financiamento ou simples mora? -, mas os executados nada excecionaram a este título, pelo que está vedado ao tribunal conhecer de tal questão.

Os oponentes centram a sua defesa no facto de terem sido condenados a reconhecer que a exequente é proprietária do veículo por aqueles adquirido com recurso ao crédito desta e a devolver-lhe a viatura (ver factos 3.14 a 3.22), o que não pode ser cumulado com a obrigação cartular, equivalente ao pagamento das prestações previstas no contrato.

Recordemos que os executados compraram um veículo automóvel a N…, o que fizeram com recurso a financiamento da exequente, tendo ainda efetuado uma reserva da propriedade do veículo a favor da financeira e assinado uma livrança em branco (aquela que agora foi dada em execução).

Como estamos no domínio das relações imediatas (exequente e executados são tomador e subscritores da livrança, respetivamente, e simultaneamente são partes na relação contratual causal, o contrato de financiamento), os executados podem opor à exequente qualquer exceção baseada na relação subjacente, ou seja, o contrato de financiamento – art. 17.º da LULL, aplicável às livranças por força do preceituado no art. 77.º de mesmo diploma.

A convenção de preenchimento da livrança consta da cláusula 10.ª das condições gerais do contrato de financiamento, nos seguintes termos (ver facto 3.5 e fls. 47):

10.ª CONVENÇÃO DE PREENCHIMENTO

O Cliente e, se aplicável, o(s) Avalista(s) autoriza(m) a S… a preencher, caso exista, qualquer livrança ou outro documento ou garantia por si subscrito/avalizado e não integralmente preenchido, designadamente no que se refere à data de vencimento, ao local de pagamento e aos valores, até ao limite das responsabilidades assumidas pelo(s) Cliente(s)/Avalista(s) perante a S… por força do presente contrato, e em dívida na data do vencimento, acrescido de todos e quaisquer encargos com a selagem dos títulos. A S… apenas poderá preencher o título de crédito referido na presente cláusula desde que se verifique o incumprimento definitivo por parte do cliente.

Pergunta-se: o exequente poderia acionar a livrança, nela apondo o valor equivalente a todas as prestações previstas no contrato de financiamento e ainda resolver o contrato, obtendo a condenação dos executados a entregar-lhe o veículo automóvel sobre o qual tinham reserva de propriedade?

Os executados foram condenados a reconhecer a resolução do contrato de financiamento e a entregar o veículo automóvel à exequente (factos 3.14 a 3.22).

Ora, nos termos gerais do direito civil, nos contratos bilaterais, como é o contrato de financiamento sob apreciação, o credor (exequente), independentemente do direito à indemnização, pode resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a restituição dela por inteiro (art. 801.º, n.º 2 do CC).

Segundo a lição dos Professores Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. II, 3.ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora – 1986, pág. 59 e 60 «Prevê-se especialmente no n.º 2 o caso da obrigação ter por fonte um contrato bilateral.

Mantém-se o direito à indemnização por parte do credor. Mas em que termos? Se o credor não realizou a sua contraprestação e pretende realizá-la, pode fazê-lo, correspondendo, neste caso, a indemnização ao prejuízo total pela falta de cumprimento do devedor (interesse contratual positivo ou dano de incumprimento). O mesmo se passa, quando o credor, tendo cumprido a sua parte, pretenda manter o cumprimento, ou quando não possa obter a restituição da contraprestação. Isto resulta claramente do facto de a lei apresentar a resolução do contrato como uma simples faculdade de que o credor se pode aproveitar ou não.

E resolvendo-se o contrato? Se o credor ainda não realizou a sua contraprestação, já não tem que a realizar, Se a realizou, pode exigir, diz o n.º 2, a sua restituição por inteiro, e não apenas na medida do enriquecimento do devedor, como se preceitua no artigo 795.º para o caso de impossibilidade não culposa.

Num caso ou noutro, o credor pode ter tido prejuízos. Em relação a eles há direito à respetiva indemnização. (…) A indemnização a que o credor tem direito, quando opte pela resolução do contrato, refere-se obviamente ao dano de confiança, ou seja, ao interesse contratual negativo, nomeadamente ao lucro que o credor teria tido, se não fora a celebração do contrato».

Revertendo ao caso em análise, a exequente resolveu o contrato e obteve a condenação dos executados a reconhecer a propriedade do veículo automóvel, que aqueles adquiriram, e bem assim a entregar-lhe tal viatura.

Neste caso, a exequente tem direito à restituição da prestação que efetuou (emprestou aos executados € 15.593,56 – ver fls. 46) e à indemnização do chamado dano de confiança ou interesse contratual negativo”.

Mais à frente, escreve:

“Todavia, a exequente preencheu a livrança com o valor de todas as prestações resultantes do programa contratual, o que corresponde ao cumprimento do contrato (aliás, corresponde a mais do que isso, porque desta forma a exequente consegue a restituição prematura de todo o capital, exigindo ainda os juros remuneratórios, como se a restituição do capital não devesse ser antecipada – aqui, a pretensão da exequente sempre teria de se debater com o disposto no art. 781.º do Código Civil e a interpretação que o STJ fez desse preceito legal no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2009, de 25 de Março de 2009, publicado no DR, I Série, de 5 de Maio de 20091.

Contudo, a exequente resolveu o contrato e não pode, por isso, exigir o cumprimento do programa contratual (ou até um “plus” em relação a tal programa, pois pretende receber antecipadamente o capital e os juros remuneratórios).

Mais do que isso: já lhe foi reconhecido o direito de propriedade sobre o veículo automóvel, que os executados estão obrigados a entregar-lhe.

É certo que os executados não têm o veículo na sua posse e este pertence a um terceiro (“L…, SA”), pelo que ocorre aqui uma impossibilidade jurídica de cumprir o dever de prestar (facto 3.32; o reconhecimento do direito de propriedade da “L…, SA” sobre o veículo foi proferido em embargos de terceiro, em que a exequente e os executados foram partes e, por isso, estão vinculados pela força do caso julgado – art. 358.º do CPC de 1961).

Todavia, se não cumprir tal dever de prestar, incorre em responsabilidade civil contratual e na correspondente obrigação de indemnização. Em linha direta com isto, o art. 931.º do CPC de 1961 (art. 867.º, n.º 1 e 2 do CPC 2013) permite a conversão da execução para entrega de coisa certa (que não foi encontrada ou que não é possível entregar por sobre ela incidir um direito de terceiro oponível ao exequente e incompatível com a entrega – ver neste sentido 11 “No contrato de mútuo oneroso liquidável em prestações, o vencimento imediato destas ao abrigo de cláusula de redação conforme ao art. 781.º do Código Civil não implica a obrigação de pagamento dos juros remuneratórios nelas incorporados”. José Lebre de Freitas, in “A ação executiva”, Coimbra Editora – 1993, pág. 314) em execução para pagamento de quantia certa, importando liquidar aquele dever de indemnizar.

Em suma, a resolução do contrato e exigência de cumprimento do contrato são realidades que se repelem mutuamente, nos termos gerais do direito civil.

E será que as partes convencionaram um regime diverso deste, no âmbito da sua liberdade contratual (art. 405.º, n.º 1 do CC)?

A resposta é negativa. A convenção de preenchimento da livrança está prevista para o caso de incumprimento definitivo do contrato, nada se dizendo quanto à resolução. Na verdade, o contrato, seja nas suas condições particulares, seja nas suas condições gerais, nada prevê para o caso de resolução, pelo que é mister aplicar o regime geral. Aliás, ao prever que a exequente pode preencher a livrança pelo valor que estiver em dívida à data do incumprimento definitivo, aquela convenção de preenchimento não quadra com o regime da resolução.

No âmbito do regime geral da resolução já constatamos que a exequente não tem direito ao pagamento das prestações previstas no programa contratual.

Embora os executados enquadrem esta questão no âmbito do abuso do direito (arts. 37.º 41.º e 42.º da oposição à execução), é sabido que o tribunal não está limitado pelas alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 664.º do CPC 1961).

A exequente escolheu o seu caminho: resolveu o contrato de financiamento e agora importa extrair as consequências jurídicas disso, que são as acima descritas.

Nos termos do disposto no art. 801.º, n.º 2 do CC, os executados estão obrigados a restituir o que foi prestado pela exequente, ou seja, a quantia de € 15.935,56 (ver fls. 46).

Mas esta é uma obrigação diversa daquela que foi prevista para o preenchimento da livrança.

Mesmo que assim não fosse, em cumprimento de parte do contrato, os executados pagaram à exequente a quantia de € 2.755,85 (facto 3.7), mas desconhecemos que fração desse valor corresponde a amortização de capital.

 Finalmente, os executados ainda estão condenados por sentença a entregar o veículo automóvel e, não sendo isso possível, poderão ter de pagar o seu equivalente em dinheiro, acrescido de juros de mora.

Neste conspecto, sempre se revelaria impossível ao tribunal efetuar, nesta oposição à execução, o acertamento do dever de restituição que onera os executados.

Fica assim prejudicado o conhecimento das restantes questões (abuso de direito e enriquecimento sem causa).

A procedência da oposição extingue a execução – art. 817.º, n.º 4 do CPC de 1961.

Extinta a execução, impõe-se decretar o levantamento da penhora, com o que também fica prejudicado o conhecimento do incidente de oposição à penhora”.

Ou seja, entende a 1.ª instância que a Exequente/apelante não tem o direito à restituição da quantia emprestada e aposta na livrança dada à execução porquanto e em suma:

i) O preenchimento da livrança tal como resulta dos autos consubstancia a exigência do cumprimento contratual e a recorrente optou pela resolução contratual dela devendo extrair-se as suas consequências;

ii) A convenção de preenchimento da livrança denominada de caução e que consubstancia o título executivo “(…) não quadra com o regime da resolução”;

iii) “(…) sempre se revelaria impossível ao tribunal efetuar, nesta oposição à execução, o acertamento do dever de restituição que onera os executados.”

Será assim?

Desde logo, três notas iniciais.

Como se tem vindo a entender, de forma consensual, na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça – por todos, o Acórdão de 29.11.2012, disponível no site www.dgsi.pt -, enquanto o título permanecer no domínio das relações imediatas, o preenchimento de uma livrança, pelo tomador, de valor superior ao resultante do contrato de preenchimento, não torna a livrança totalmente nula, aplicando-se-lhe as regras da redução dos negócios jurídicos contempladas no Código Civil.

Ou seja, tendo o beneficiário respeitado qualitativamente o acordo de preenchimento, a inscrição, numa livrança subscrita em branco, de um montante superior ao devido à data do preenchimento não a inutiliza como título executivo - A excepção de preenchimento abusivo não interfere na totalidade da dívida exequenda, confinando-se aos limites do preenchimento abusivo -.

Mais, como se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Abril de 2007 – retirado do site www.dgsi.pt -, “...a relação de trilateralidade consagrada neste preceito quanto aos efeitos do incumprimento contratual do vendedor confere ao consumidor a faculdade de accionar o financiador, ou de, quando demandado, alegar a excepção de incumprimento, fazendo-o repercutir no contrato de financiamento; mas para isso a lei exige a verificação em concreto de duas condições, que são a existência de um acordo prévio entre o credor e o vendedor – acordo dito de exclusividade – em virtude do qual este se obriga a direccionar os seus clientes para aquele com vista à concessão do crédito necessário à aquisição dos bens que ele, vendedor, fornece (1ª) e a obtenção do crédito no âmbito desse acordo prévio de exclusividade (2ª).

Se não se verificarem estes dois requisitos, o credor não responde pelo incumprimento do vendedor: entendeu o legislador que só em situações com estes contornos a conexão entre os dois contratos é suficientemente apertada para que se possa justificar, mediante a extensão da responsabilidade do vendedor ao financiador, terceiro em relação ao contrato de compra e venda em nome da efectiva protecção do consumidor, uma tão clara derrogação do princípio da relatividade dos contratos (no sentido exposto, cfr. o acórdão deste STJ de 5.12.06 (Pº 06A2879)”. Neste mesmo sentido, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 20 de Outubro de 2009 (www.dgsi.pt, proc. nº 1202/07.4TBBVCD.S1) ou de 20 de Março de 2012 (www.dgsi.pt, proc. nº 1557/05.5TBPTL.L1.S1).

Também, como todos sabemos, a possibilidade de emissão de uma livrança em branco está prevista pelos art.ºs 10.º e 77.º da Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças – LULL -, sendo que a livrança em branco, deve ser preenchida de harmonia com os termos convencionados pelas partes ou com as cláusulas do negócio determinante da sua emissão.

Como se pode ler no Acórdão do STJ de 13 de Abril de 2011, retirado do site www.dgsi.pt -, “... o pacto de preenchimento é um contrato firmado entre os sujeitos da relação cambiária e extracartular que define em que termos deve ocorrer a completude do título cambiário, no que respeita aos elementos que habilitam a formar um título executivo, ou que estabelece em que termos se torna exigível a obrigação cambiária, daí que esse preenchimento tenha atinência não só com o acordo de preenchimento (no fundo o contrato que, como todos, deve ser pontualmente cumprido, art. 406º, nº1, do Código Civil); esse regular preenchimento em obediência ao pacto, é o “quid” que confere força executiva ao título, mormente, quanto aos requisitos de certeza, liquidez e exigibilidade”.

Mais, cabe-lhe então o ónus da prova em relação aos factos constitutivos de tal excepção, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 342º do Código Civil – neste preciso sentido, por exemplo, os Acórdãos do STJ de 24.5.2005 , 14.12.2006, 23.09.2010 e de 20.05.2010, disponíveis emwww.dgsi.pt -.

Como excepção que é, compete a quem invoca o preenchimento abusivo o ónus de alegar e provar os respectivos pressupostos, ou seja, a existência e o conteúdo do pacto de preenchimento e a violação ou desrespeito pelos termos e condições aí definidos.

Indispensável é que tenham sido alegados no processo factos suficientes para o efeito - invocar e provar o preenchimento abusivo significa alegar e provar que o beneficiário se afastou de tal autorização, por exemplo, quanto à data do vencimento, ou ao montante em dívida nessa altura -.

Seguindo.

O contrato celebrado entre a autora, uma empresa que prossegue a actividade de financiamento da aquisição de bens ou serviços a crédito (uma sociedade financeira para aquisições a crédito – S…) e os réus, por via do qual a primeira concedeu aos segundos um financiamento para aquisição de um veículo automóvel, sendo fornecedor uma outra entidade, obrigando-se os réus a pagar o financiamento em 84 prestações mensais no valor de 282,76€, é um contrato de crédito ao consumo, que constitui uma das espécies dos contratos especiais de crédito.

A cessação deste tipo de contrato pode ocorrer por acordo das partes, por caducidade, por denúncia ou por resolução.

Como, esclarecidamente, ensina o Acórdão desta Relação de 29.10.2013 – pesquisável em www.dgsi.pt -,“...uma coisa é a declaração admonitória que leva à conversão da mora em incumprimento definitivo (nos termos do art. 808.º/1/2.ª parte do C. Civil) e outra, diversa, a declaração resolutiva; porém, nada há que impeça que tais declarações sejam feitas em simultâneo, dizendo-se, numa única missiva/comunicação, que, caso não ocorra o cumprimento no prazo suplementar concedido, se resolve o contrato (antecipando-se a opção e renunciando-se à “faculdade alternativa” conferida pelo art. 801.º/2 do C. Civil).

Resolvido o contrato de financiamento, é a esta luz – duma relação contratual extinta – que o preenchimento quantitativo da livrança entregue em branco (com uma função de garantia) tem que ser feito; principalmente, se não houver estipulações especialmente previstas para a liquidação contratual em caso de resolução contratual.

O que não significa, ao não se ter optado pela indemnização pelo incumprimento (quando se optou pela resolução), que não se possa cumular (e incluir no preenchimento quantitativo da livrança entregue em branco) a quantia mutuada que ainda não foi restituída (por força da função recuperatória/restitutória da resolução) com a remuneração correspondente à quantia mutuada não restituída, a título de indemnização pelo interesse positivo”(...) o que também significa que o argumento do oponente/recorrente – retirado da posterior propositura duma acção (em relação à data de preenchimento da livrança), em que a exequente pediu a declaração judicial de resolução do contrato de crédito nº … – é despido de qualquer valor e relevo jurídicos.

 Embora o princípio geral do art. 436.º/1 do C. Civil institua o regime regra da declaração extrajudicial à outra parte, nada impede que o direito potestativo de resolução seja exercido judicialmente (...) O que significa que não só a prestação do oponente/recorrente ficou definitivamente incumprida (não podendo a exequente/recorrida exigir o cumprimento), como, inclusivamente, a relação contratual ficou extinta (...) é pois a esta luz – duma relação contratual extinta – que o preenchimento da livrança – que o cálculo da dívida – tem que ser feito”.

Por isso, teremos de dar razão à apelante quando escreve:

“Esta conclusão do MM Juiz de Direito a quo, qual seja a de que ao preencher a livrança a exequente aqui recorrente optou pelo cumprimento do contrato, carece de factos que a suportem e não se extrai da douta sentença qualquer fundamentação que a sustente.

Na verdade, a Recorrente, em face do incumprimento do contrato optou pela resolução, tendo a sua atuação posteriormente à resolução sido sempre conforme à sua opção.

Vejamos:

Com a resolução do contrato assiste à exequente aqui recorrente o direito à restituição do que prestou (no caso uma vez que emprestou € 15.593,56, tem direito a reaver essa quantia), acrescida de uma indemnização pelo dano contratual negativo, conforme admite o próprio MM Juiz de Direito a quo na douta sentença recorrida.

É pois indiscutível o direito da exequente ao reembolso da quantia emprestada (deduzindo o valor entregue €2.755,85) acrescido dos juros moratórios.

O ponto da discórdia está pois na quantia exigida pela recorrente a título de juros.

Mas quanto a este ponto, que se irá desenvolver mais adiante, não é fundamento bastante para a extinção do direito de crédito da exequente mas apenas dá lugar à redução da quantia exequenda em conformidade com o entendimento do MM Juiz de Direito a quo.

Por outras palavras o MM Juiz de Direito a quo extrapola, erradamente, que atendendo ao valor inscrito na livrança, a exequente pretendeu optar pelo cumprimento. É errado.

Apenas existe divergência no entendimento dos valores devidos ao mutuante credor por força da resolução contratual.

Para a recorrente poderá ser exigível os juros remuneratórios, para o Tribunal a quo não.

Mas repete-se, tal divergência apenas conduz à redução da quantia exequenda, jamais a extinção da execução com absolvição dos oponentes da totalidade do pedido executivo.

E nem se deixe o Tribunal impressionar pela terminologia utilizada pela exequente porventura (por cautela de patrocínio e sem conceder) não tenha sido a mais feliz, pois que se refere a prestações vencidas ao invés de capital e juros em dívida.

É que, ao fim e ao resto, está sempre em causa o valor (...) que, mediante simples operação aritmética, seria sempre alcançável pelo Tribunal.

Por um lado porque o valor pago €2.755,85 foi imputado a juros e capital durante a vigência do contrato e não está incluído na livrança, como se constata dos pontos 3.7 e 3.27 dos factos assentes. Isto é, foi paga tal quantia por conta das 9 primeiras prestações e parte da 10ª e a exequente apenas reclama os valores devidos a partir da 10ªprestação (em parte) (...) Valor de capital mutuado: €15.593,56

Nº de prestações 84

Ora, €15.593,56: 84 = €185,63(valor de capital em cada prestação) €185.63 X 68 = €12.626,24 +

B)

10ª prestação € 71,75; 11ª prestação € 185.63;12ª prestação € 185.63;13ª prestação € 185.63;14ª prestação € 185.63;15ª prestação € 185.63;16ª prestação € 185.63 = €13.811,77 (€1.185,53+ €12.626,24).

Ou seja, o valor de € 13.811,77 sempre será devido, porquanto corresponde ao valor de capital em singelo, a que deve acrescer os juros moratórios desde a data de resolução à taxa supletiva legal.

Mas mais.

Ainda que o MM Juiz de Direito a quo considerasse não ser possível liquidar a obrigação, sempre poderia e deveria relegar para execução se sentença o apuramento do valor em dívida, na medida em que a iliquidez da obrigação não pode e não deve conduzir à negação do direito.

Nesta medida se contraria igualmente a conclusão (iii) vertida na douta sentença de que “(…) sempre se revelaria impossível ao tribunal efetuar, nesta oposição à execução, o acertamento do dever de restituição que onera os executados.”

Apenas haverá que levar em consideração Acórdão Uniformizador n.º 7/2009 - Acórdãos Uniformizadores, na CJ, pág. 98 -, segundo o qual nos contratos de mútuo oneroso liquidável em prestações, o vencimento imediato destas ao abrigo de cláusula de redacção conforme ao art. 781.º do C. Civil, não implica a obrigação de pagamento dos juros remuneratórios neles incorporados”; isto é, que decidiu (alicerçado nos artigos 10.º e 11.º do DL 446/85, e nos art. 236.º e ss e 781.º e 561.º do CC) que o “vencimento imediato” diz tão só respeito à parte de capital mutuado contida nas prestações e não também à parte que cada prestação incorpora de juros remuneratórios.

Apenas mais esta nota.

Embora a entrega do veículo no âmbito daquele contrato pode ser qualificada como “datio pro solvendo” nos termos referidos no artigo 840.º nº 1 do Código Civil, todavia, para que possa ter relevância no âmbito da oposição à execução, o opoente tem de alegar o acervo factual correspondente, nomeadamente, que o veículo entregue já foi vendido pela exequente e o respectivo valor dessa venda, pois que só assim o tribunal poderá, em função desse valor, reduzir a quantia exequenda – neste sentido, por ex., o Acórdão da Relação do Porto de 4.11.2013, retirado do site www.dgsi.pt -.

Ora, o que os autos nos mostram é que o veículo financiado não foi entregue à ora apelante, pelo que, não poderá tal valor ser deduzido a quantia entregue aos apelados.

Dizem ainda os oponentes – quanto à penhora do prédio urbano sito em (...), Dornelas, inscrito na matriz predial da freguesia de (...) sob o artigo 732º e descrito na Conservatória do Registo Predial com o número 546 – que o valor do imóvel é necessariamente superior ao valor em causa nos presentes Autos, sendo, por isso, manifestamente excessiva.

Esta matéria sofreu resposta negativa no Tribunal da 1.ª instância.

O ónus pertencia aos oponentes/executados, pelo que, terá de improceder a oposição à penhora.

Assim, deverá a instância executiva prosseguir pelo montante de € 13.811,77 (corresponde ao valor de capital em singelo), a que acrescem os juros moratórios desde a data de resolução à taxa supletiva legal.

São estas as conclusões:

i. Como se tem vindo a entender, de forma consensual, na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça – por todos, o Acórdão de 29.11.2012, disponível no site www.dgsi.pt -, enquanto o título permanecer no domínio das relações imediatas, o preenchimento de uma livrança, pelo tomador, de valor superior ao resultante do contrato de preenchimento, não torna a livrança totalmente nula, aplicando-se-lhe as regras da redução dos negócios jurídicos contempladas no Código Civil.

ii. Também, como todos sabemos, a possibilidade de emissão de uma livrança em branco está prevista pelos art.ºs 10.º e 77.º da Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças – LULL -, sendo que a livrança em branco, deve ser preenchida de harmonia com os termos convencionados pelas partes ou com as cláusulas do negócio determinante da sua emissão.

iii. Resolvido o contrato de financiamento, é a esta luz – duma relação contratual extinta – que o preenchimento quantitativo da livrança entregue em branco (com uma função de garantia) tem que ser feito; principalmente, se não houver estipulações especialmente previstas para a liquidação contratual em caso de resolução contratual.

iv. O que não significa, ao não se ter optado pela indemnização pelo incumprimento (quando se optou pela resolução), que não se possa cumular (e incluir no preenchimento quantitativo da livrança entregue em branco) a quantia mutuada que ainda não foi restituída (por força da função recuperatória/restitutória da resolução) com a remuneração correspondente à quantia mutuada não restituída, a título de indemnização pelo interesse positivo”.

3.Decisão

Assim, na procedência parcial da instância recursiva, revogamos a decisão proferida pelo 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Viseu, devendo a instância executiva prosseguir pelo montante de € 13.811,77 (treze mil oitocentos e onze euros e setenta e sete cêntimos), a que acrescem os juros moratórios devidos desde a data de resolução à taxa supletiva legal.

Custas na proporção do decaimento.

Coimbra, 29 de Abril de 2014.

(José Avelino Gonçalves - Relator -)

(Regina Rosa)

(Jaime Ferreira)