Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2046/10.1TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: INSOLVÊNCIA
SUSTENTO MINIMAMENTE DIGNO
CÁLCULO
Data do Acordão: 02/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3.º JUÍZO CÍVEL DO TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ART.ºS 1.º E 59.º, N.º 1, AL. A) DA CRP E ART.239º Nº3 AL. B-I) DO CIRE
Sumário: I. A dedução ao rendimento disponível a ceder pelo insolvente, do necessário ao sustento (minimamente) condigno do próprio e do seu agregado familiar, alicerça-se no princípio da dignidade humana, expressamente referido no art.º 1.º da DDH e acolhido na nossa Constituição (vide art.ºs 1.º e 59.º, n.º 1, al. a).

II. Entre o interesse legítimo, mas conflituante, do credor na satisfação do seu crédito, e o direito do devedor a manter um rendimento que lhe permita viver com ressalva da dignidade mínima que, como pessoa, lhe é reconhecida, a lei consagra o recuo do primeiro, sem prejuízo de acolher igualmente o princípio de que ao sacrifício financeiro dos credores terá de corresponder o sacrifício do insolvente, através da compressão das suas despesas, o que resulta do apelo aos critérios da necessidade e razoabilidade na avaliação das despesas e encargos a considerar.

III. A densificação do enunciado legal -“o razoavelmente necessário ao sustento minimamente digno do devedor e seu agregado”- apela assim, e por um lado, a um critério objectivo fornecido pela lei quando estabelece um limite máximo -não pode, salvo excepção especialmente fundamentada, exceder o equivalente a três SMN- e à análise casuística por outro, impondo-se ao Tribunal que atenda às circunstâncias concretas e peculiares de cada devedor e respectivo agregado.

Decisão Texto Integral: A... e mulher, B... , agora a residir na ..., em Viseu (cf. fls. 222), vieram apresentar-se à insolvência, requerendo desde logo a exoneração do passivo restante ao abrigo do disposto nos art.ºs 235.º e seguintes do CIRE, para o que declararam preencher os requisitos legalmente exigidos.

Logo em sede do requerimento inicial alegaram, para além do mais que ora não importa considerar, que estimavam despender mensalmente a quantia de € 900,00 com o pagamento dos encargos fixos com água, luz, gás e transportes e satisfação das despesas básicas com alimentação e saúde (vide art.º 17.), devendo ser considerado o acréscimo relativo à renda da casa que terão de arrendar para aí passarem a residir com a filha menor do casal.

Prosseguiram os autos seus regulares termos e, admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, na decisão a propósito proferida mais se determinou a cessão “do rendimento disponível dos devedores (nos termos constantes do art.º 229.º, n.º 3 do CIRE) pelo período de cinco anos subsequente ao encerramento do processo”.

Considerando ter sido omitida a determinação da medida do rendimento a excluir nos termos e para os efeitos do disposto na al. b-i) do n.º 3 do art.º 239.º do CIRE, e no suprimento da omissão, veio a Sr.ª Juíza “a quo” a exarar, em momento posterior, despacho com o seguinte teor:

“Verificando-se que a decisão que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante não fixou o montante necessário para assegurar a sobrevivência dos insolventes, cumpre agora suprir tal omissão.

Assim, no que se refere às exclusões previstas no art.º 239.º, n.º 3 do CIRE, dir-se-á que não são conhecidos encargos relevantes aos insolventes (para além das dívidas), pelo que se afigura que um salário mínimo nacional e meio serão suficientes para acautelar a sobrevivência de ambos em condições mínimas de dignidade, não se lhes atribuindo quantia superior a essa sob pena de subverter as finalidades visadas com esse incidente, na perspectiva dos credores insatisfeitos.

Para efeitos do disposto no art. 239º, nº 3, al. b)-i), fixo em montante equivalente a um salário mínimo nacional e meio (1,5) o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno de ambos os insolventes.

Notifique.

Inconformados com o decidido, interpuseram os insolventes tempestivo recurso e, tendo apresentado as suas alegações, delas extraíram numerosas conclusões (reproduzindo o teor das alegações, em clara preterição do ónus imposto pelo n.º 1 do art.º 685.º-A do CPC), das quais se destacam, por relevantes, as seguintes razões de discordância com a decisão recorrida:

1. Decorre do despacho inicial de admissão de exoneração do passivo restante proferido nos presentes autos em 27 de Janeiro de 2011, e já transitado, que os insolventes, ora recorrentes, devem ceder ao presente processo todos os valores que recebam e que excedam o montante equivalente a 3 vezes o salário mínimo nacional, pelo que a decisão ora proferida viola o caso julgado assim formado (conclusões 1.ª a 6.ª);

2. A decisão recorrida afirma não serem conhecidos encargos relevantes aos insolventes, desconsiderando todas as despesas por estes invocadas no requerimento inicial e não impugnadas, quer pelos credores, quer pelo Senhor Administrador da Insolvência, pelo que teriam de se ter como assentes. Atentas as aludidas despesas, não impugnadas, o valor fixado pela Mm.ª juíza não assegura o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno dos insolventes e respectivo agregado familiar, conforme determina o artigo 239.º, n.º 3, b)- i), do CIRE, que terá de ter em linha de conta as especificidades de cada caso (conclusões 7.ª a 21.ª e 30.ª a 32.ª);

3. Não foram considerados na decisão recorrida todos os factos relevantes, verificando-se o vício da insuficiência da matéria de facto (conclusões 22.ª a 29.ª).

Com tais fundamentos pugna pela revogação da decisão proferida e sua substituição por outra que considere que a decisão inicial de exoneração do passivo restante já transitou em julgado, pelo que o rendimento a reter pelos recorrentes deverá ser o fixado no despacho inicial, de valor equivalente a três vezes o salário mínimo nacional.

Caso assim não se entenda, deverá a decisão recorrida ser alterada, devendo ser determinado que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título aos recorrentes, com exclusão do valor dos rendimentos directamente auferidos até ao montante equivalente às suas despesas mensais.

No caso, ainda, de assim não ser entendido, deverá ser determinado que cada um dos insolventes tem direito a auferir, durante o período de cessão, valor equivalente a um salário mínimo nacional, por ser este o valor que o legislador entendeu como o mínimo indispensável a assegurar o sustento digno de qualquer cidadão.
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Assente que pelas conclusões se delimita o objecto do recurso (art.ºs 684.º n.º 3 e n.º 1 do art.º 685.º-A do CPC), constituem questões a decidir:
i. determinar se ocorreu violação do caso julgado formado pelo trânsito da decisão que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo;
ii. decidir se as despesas invocadas pelos recorrentes no seu requerimento inicial deveriam ter sido consideradas assentes, devendo por isso o necessário ao seu sustento e do agregado, em condições mínimas de dignidade, ser fixado em valor não inferior às despesas elencadas, no montante de € 1 250,00 mensais ou, no limite, em montante equivalente a dois SMN;
iii. decidir se se verifica insuficiência da matéria de facto para a decisão, a impor o uso, por este Tribunal da Relação, dos poderes conferidos pelo art.º 712.º, n.º 4 do CPC.
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II. Fundamentação

Importando à decisão das questões enunciadas quanto se deixou consignado em I. do presente acórdão cabe, antes de mais, determinar se a decisão que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante se pronunciou sobre a parte do rendimento a excluir da cessão nos termos da al. b-i) do n.º 3 do art.º 239.º do CIRE[1], estando o assim decidido coberto pela autoridade do caso julgado.

Nos termos do disposto no citado art.º 239.º:

“1. Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido o despacho inicial, na assembleia de apreciação do relatório, ou nos 10 dias subsequentes;

2. O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte.

3. Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:

a) Dos créditos a que se refere o art.º 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;

b) Do que razoavelmente for necessário para:

i. O sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;

ii. O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;

iii. Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor”.

No despacho que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante limitou-se a Mm.ª juíza “a quo” a determinar: “Consequentemente [com a referida admissão liminar] durante os cinco anos seguintes ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão), o rendimento disponível dos devedores (determinado nos termos constantes do art.º 239.º, n.º 3 do CIRE), considera-se cedido ao fiduciário.

Advirta-se expressamente os devedores das obrigações a que ficam adstritos, constantes dos artigos 239.º, n.º 4 e 240.º, n.º 1 do CIRE”.

Face ao assim determinado, pretendem os recorrentes que ficou definida a medida da dedução, a efectuar aos rendimentos por ambos auferidos ao abrigo da al. b-i) do n.º 3 do citado art.º 239.º, e que terá de se entender ter sido fixada em 3 vezes o SMN. Daqui decorreria que, não tendo sido interposto recurso desta decisão, o despacho recorrido seria violador do caso julgado, que cobria com a sua força e autoridade a questão agora suscitada.

Na fase de apreciação dita liminar do pedido de exoneração, e não sendo este despacho desfavorável ao devedor, impõe a lei que o juiz determine que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo o rendimento disponível que o devedor venha a auferir considera-se cedido ao fiduciário, que o distribui nos termos prescritos no art.º 241.º. Este rendimento disponível, como resulta do disposto no n.º 3, corresponde aos proventos auferidos pelo devedor, seja a que título for, com as exclusões previstas nas diversas als. do n.º 3, importando ao caso a consagrada na supra transcrita al. b-i).

Independentemente da controvertida questão de saber qual a natureza jurídica desta “cessão”[2] e de que aqui não se curará, parece todavia claro que a lei fixa apenas um limite máximo para a exclusão, que não poderá exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional. Se assim é, a determinação do que seja “razoavelmente necessário para garantir o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar” depende de ponderação judicial, atendendo às particularidades de cada caso, não sendo de aceitar o entendimento de que a lei consagra um critério objectivo e de aplicação automática de modo que, nada sendo dito em contrário, funciona como medida da exclusão o limite dos 3 salários mínimos, como parecem defender os recorrentes. A assim ser entendido, não só ficavam postergados os critérios da razoabilidade e necessidade que a lei inequivocamente consagra, como resultariam preteridas naturais diferenciações impostas pelo princípio da igualdade, uma vez que beneficiariam de idêntica exclusão devedores com encargos e necessidades muito diferentes.

Nos termos do art.º 671.º do CPC, transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos art.ºs 497.º e seguintes, valor também atribuído aos despachos que recaiam sobre o mérito da causa.

Relembrando a lição sempre viva e actual do Prof. Alberto dos Reis[3], a excepção (hoje dilatória) do caso julgado pressupõe a repetição duma causa e visa evitar que o Tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.

Deflui do disposto no art.º 673.º do CPC que os limites do caso julgado são definidos pelos elementos identificadores da relação ou situação jurídica substancial definida pela sentença: os sujeitos, o objecto e a fonte ou título constitutivo, devendo ainda atender-se aos termos dessa definição estatuída na sentença[4]. Ela tem autoridade - valendo como lei - para qualquer processo futuro, mas só em exacta correspondência com o seu conteúdo.

Revertendo ao caso em análise, e analisado o despacho liminar proferido, logo se conclui que nele se limitou a Mm.ª juiz a decretar que o rendimento disponível, a determinar nos termos do n.º 3 do art.º 239.º, seria cedido ao fiduciário pelo prazo de cessão legalmente consagrado, omitindo qualquer menção quanto à exclusão (ou exclusões) a considerar e respectiva medida (note-se que a referência é feita em bloco para o n.º 3 art.º 239.º, sem sequer se individualizar qualquer uma das suas alíneas). Deste modo, não podendo, em nosso entender, retirar-se da omissão o sentido preconizado pelos recorrentes, dado que o critério consagrado na lei impõe, conforme se deixou já expresso, a ponderação de factos atinentes à situação daquele devedor em concreto, em ordem a fixar-se judicialmente qual ou quais as exclusões de que beneficia o insolvente e “quantum” do rendimento que é subtraído à cessão, daqui resulta não ter sido a questão objecto do despacho recorrido versada naquela outra decisão.

Deflui do exposto que os limites da imodificabilidade derivada do caso julgado não encontram aqui os fundamentos apontados como justificativos do instituto, a saber, a certeza, segurança e respeito pelas decisões judiciais. Mesmo numa concepção ampla de caso julgado, que estende a sua eficácia às questões preliminares que constituem o antecedente lógico indispensável à parte dispositiva do julgado, a verdade é que nada se argumentou no invocado despacho porque, na verdade, e quanto a este particular aspecto, nada foi decidido. Daí que inexistisse obstáculo à prolação de decisão subsequente na qual se determinasse qual a exclusão a considerar e se fixasse a sua medida, para efeitos de dedução ao rendimento a ceder pelos devedores aqui recorrentes, com o que improcedem as seis primeiras conclusões do recurso.
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Pretendem ainda os recorrentes que deveriam ter sido consideradas na decisão recorrida as despesas e encargos por si alegados no requerimento inicial, por não contraditados, quer pelo Sr. administrador, quer por qualquer um dos credores, seguramente por os terem reconhecido, a uns e outros, como razoáveis.

Em causa está, como referido, o alegado no art.º 17.º do requerimento inicial, a que os recorrentes aditaram, nas suas alegações, o aumento do custo de vida, decorrente do aumento da taxa do Iva incidente sobre diversos produtos essenciais, e ainda o facto, ali não mencionado, do insolvente marido sofrer de lúpus, doença auto imune (v. conclusão ix).

Com o requerimento inicial os requerentes juntaram, para além de cópias dos seus assentos de nascimento e casamento, ainda a cópia do assento de nascimento da filha menor do casal, nascida em 4/1/2007 (v. fls. 55), liquidações do IRS relativas aos anos de 2007 e 2008 (fls. 62 e 63), recibos dos salários auferidos no mês de Abril de 2010 por cada um (fls. 17 e 18), comprovativos de despesas com medicamentos efectuadas no mesmo mês de Abril, ascendendo a € 68,10 e, finalmente, comprovativo da despesa com o infantário, no valor de € 20,25 (fls. 34).

A dedução ao rendimento disponível a ceder pelo insolvente, do necessário ao sustento (minimamente) condigno do próprio e do seu agregado familiar, alicerça-se no princípio da dignidade humana, expressamente referido no art.º 1.º da DDH e acolhido na nossa Constituição (vide art.ºs 1.º e 59.º, n.º 1, al. a). Entre o interesse legítimo, mas conflituante, do credor na satisfação do seu crédito, e o direito do devedor a manter um rendimento que lhe permita viver com ressalva da dignidade mínima que, como pessoa, lhe é reconhecida, a lei consagra o recuo do primeiro. Todavia, o critério legal dá claro acolhimento ao princípio de que ao sacrifício financeiro dos credores terá de corresponder o sacrifício do insolvente, através da compressão das suas despesas, o que resulta do apelo aos critérios da necessidade e razoabilidade na avaliação das despesas e encargos a considerar, bem como do reduto da “dignidade mínima do sustento” a salvaguardar.

A densificação do enunciado legal -“o razoavelmente necessário ao sustento minimamente digno do devedor e seu agregado”- apela assim, e por um lado, a um critério objectivo fornecido pela lei quando estabelece um limite máximo -não pode, salvo excepção especialmente fundamentada, exceder o equivalente a três SMN- e à análise casuística por outro, impondo-se ao Tribunal que atenda às circunstâncias concretas e peculiares de cada devedor e respectivo agregado[5]. Por assim ser, é indispensável que o requerente, sobre quem recai o respectivo ónus, invoque os factos que importam à decisão e faça nos autos a respectiva prova, isto sem prejuízo dos poderes inquisitórios que entendemos assistirem ao juiz ainda neste domínio, atento o disposto nos art.ºs 264.º do CPC, aplicável “ex vi” do art.º 17.º do CIRE (posto que subtraída esta matéria à previsão do art.º 11.º deste último diploma).

Como decorre do que se deixou dito, os requerentes alegaram que suportavam diversas despesas e encargos sem que, todavia, tivessem feito prova dos mesmos, com as excepções que se deixaram indicadas e sem que funcione aqui, como pretendem, o cominatório. Também preveniram a necessidade de virem a suportar, num futuro próximo, uma renda de casa, sendo certo que informaram nos autos ter fixado residência numa outra morada (vide fls. 222) sem que, todavia, tivesse sido junto qualquer recibo comprovativo deste eventual novo encargo. Desconhece-se, outrossim, se o diagnóstico da doença auto imune de que o requerente alegadamente padece é posterior ao requerimento inicial e qual o dispêndio que implica, tal como não se encontra suficientemente caracterizado o carácter periódico das despesas com a aquisição de medicamentos.

Resulta do que se deixou referido que a apreciação conscienciosa das circunstâncias atinentes à vida dos insolventes e seu agregado depende da determinação de factualidade que não foi apurada e cuja comprovação é viável, não só com a colaboração daqueles, mas ainda pelo recurso, se necessário for, à realização de diligências oficiosas por banda do tribunal, no uso dos seus poderes-deveres de averiguação oficiosa dos factos, sendo certo que não basta à decisão a proferir a consideração, aliás não fundamentada, de lhes não serem conhecidos “encargos relevantes”.

Deste modo, não podendo dar-se por assentes os factos invocados pelos recorrentes, verifica-se, contudo, tal como arguiram, a insuficiência da base de facto para uma fixação conscienciosa do montante da dedução a efectuar aos rendimentos auferidos, nos termos e para os efeitos do disposto na al. b-i) do n.º 3 do art.º 239.º do CIRE. Nestes termos, ao abrigo do disposto no artigo 712.º, nº 4, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 17.º do CIRE, deve determinar-se a ampliação da matéria de facto no sentido de serem apuradas, em concreto e com rigor, quais as despesas e encargos suportados pelos requerentes que deverão ser atendidos e considerados para efeitos de determinar o que for razoavelmente necessário a assegurar o seu sustento minimamente digno.

Prejudicado fica assim, em consequência, o conhecimento da sobrante questão colocada pelos recorrentes no presente recurso.
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III. Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes da 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em anular a decisão recorrida, determinando-se a ampliação da matéria de facto nos termos e para os fins supra expostos.

Sem custas.

                                                       *

Sumário (n.º 7 do art.º 713.º do CPC)

I. A dedução ao rendimento disponível a ceder pelo insolvente, do necessário ao sustento (minimamente) condigno do próprio e do seu agregado familiar, alicerça-se no princípio da dignidade humana, expressamente referido no art.º 1.º da DDH e acolhido na nossa Constituição (vide art.ºs 1.º e 59.º, n.º 1, al. a).

II. Entre o interesse legítimo, mas conflituante, do credor na satisfação do seu crédito, e o direito do devedor a manter um rendimento que lhe permita viver com ressalva da dignidade mínima que, como pessoa, lhe é reconhecida, a lei consagra o recuo do primeiro, sem prejuízo de acolher igualmente o princípio de que ao sacrifício financeiro dos credores terá de corresponder o sacrifício do insolvente, através da compressão das suas despesas, o que resulta do apelo aos critérios da necessidade e razoabilidade na avaliação das despesas e encargos a considerar.

III. A densificação do enunciado legal -“o razoavelmente necessário ao sustento minimamente digno do devedor e seu agregado”- apela assim, e por um lado, a um critério objectivo fornecido pela lei quando estabelece um limite máximo -não pode, salvo excepção especialmente fundamentada, exceder o equivalente a três SMN- e à análise casuística por outro, impondo-se ao Tribunal que atenda às circunstâncias concretas e peculiares de cada devedor e respectivo agregado.

                                                      *

Maria Domingas Simões (Relatora)

Nunes Ribeiro

Hélder Almeida


[1] Diploma ao qual pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[2] V., por todos, Assunção Cristas, “Exoneração do devedor pelo passivo restante”, in  “Themis”, “Novo Direito da insolvência”, ed. especial, págs. 174 e seguintes.
[3] In CPC anotado, vol. III, págs. 91 e seguintes.
[4] Aresto da Rel. de Coimbra de 5 de Julho de 2011, processo n.º 393/09.4 TBSEI.C1, disponível em www.dgsi.pt, com abundantes referências doutrinárias.
[5] Neste preciso sentido, Luís M. Martins, “Recuperação de pessoas singulares”, pág. 63, e na jurisprudência acórdãos da Relação de Lisboa de 7/12/2011, processo n.º 1592/10.1 TBSSB.B.L1-2, de 18/9/2012, processo n.º 2384/11.6 TBMTJ.C.L1-7 e de 25/10/2012, processo n.º TBOER-E.L1-2, todos disponíveis em www.dgsi.pt.