Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
868/14.3T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
DÍVIDA
VALOR
DEPRECIAÇÃO DO VALOR FACIAL DA MOEDA
Data do Acordão: 04/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – VISEU - SECÇÃO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 562º E 566º DO C. CIVIL; 358º, Nº 2, 359º E 609º, Nº 2 DO NCPC.
Sumário: I – A indemnização é considerada uma dívida de valor, uma vez que o seu objecto não é constituído por uma importância monetária, intervindo o dinheiro apenas como substitutivo do valor económico de um bem, da reconstituição de uma determinada situação ou como compensação de prejuízo sofrido, o que sucede quando, nos termos do artigo 566º, n.º 1, do C. Civil, a reconstituição natural não é possível.
II - As dívidas de valor não estão sujeitas ao princípio nominalista, devendo por isso a fixação da indemnização tomar em consideração uma eventual depreciação monetária entretanto ocorrida entre a data em que ocorreu o prejuízo e a data em que é fixada a indemnização monetária destinada a ressarci-lo, pois só dessa forma se atribuirá ao lesado uma soma em dinheiro susceptível de reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.

III - A partir do momento em que é feita a conversão da dívida de valor em dívida de dinheiro, a respectiva obrigação já passa a estar sujeita ao princípio nominalista, podendo apenas o devedor reclamar o pagamento de juros pela mora que possa ocorrer na sua satisfação.

IV - No incidente de liquidação de sentença a liquidação do valor da indemnização só vai ocorrer com o resultado do incidente, pelo que na fixação desse valor tem que se tomar em consideração o disposto no art.º 566º, n.º 2, do C. Civil, devendo arbitrar-se uma quantia equivalente à diferença entre a situação patrimonial actual do lesado e a que ele teria actualmente caso não tivesse ocorrido o dano a ressarcir, o que obriga necessariamente à actualização monetária das quantias cujo montante teve em consideração o valor da moeda à data do dano.

V - Para que seja efectuada essa operação na determinação do montante indemnizatório não é necessário que o requerente do incidente de liquidação já tenha deduzido o respectivo pedido na acção em que se determinou a liquidação da indemnização em incidente posterior.

VI - Não se tendo ainda procedido à liquidação da indemnização, esta dívida ainda não se converteu em dívida pecuniária, correndo por conta do devedor as oscilações do valor da moeda, pelo que cumpre a quem procede à operação de liquidação dar cumprimento ao disposto no art.º 566º, n.º 2, do C. Civil.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

Os Requerentes deduziram o presente incidente de liquidação de sentença, alegando, em síntese:

- Por sentença proferida em 11/12/1991, transitada em julgado em 24/09/1992, no âmbito do processo sumário nº …, que julgou procedente a acção, foram condenados C… e mulher F…, que entretanto faleceram e deixaram como sucessoras as ora Requeridas, a pagar aos Requerentes uma indemnização pelos danos causados, cuja quantificação se relegou para execução de sentença.

- Sofreram danos patrimoniais referentes à campanha avícola em curso, que computam em 150.000$00 e, ainda, quatro campanhas, nos valores de 250.000$00 cada.

- Sofreram danos não patrimoniais, que computam em 500.000$00 em relação ao Requerente A… e em 1.500.000$00 em relação ao Requerente B...

Peticionaram, ainda, a actualização dos referidos montantes, devendo as indemnizações ser liquidadas em € 10.286,70, a título de danos patrimoniais, € 4.467,03 e € 13.401,09 a título de danos não patrimoniais, tudo acrescido dos juros vincendos até integral pagamento e a quantia de € 2.500 a título de honorários devidos aos seus mandatários.

As Requeridas contestaram, impugnando quer os danos patrimoniais, quer os danos não patrimoniais invocados, excluindo a sua responsabilidade pelo ressarcimento dos mesmos, alegando que não podiam os Autores ter a legitima expectativa de prosseguir a actividade do aviário, sabendo do processo de expropriação, que lhes foi prontamente informado.

Concluíram pela improcedência do incidente.

Veio a ser proferida decisão que julgou o incidente nos seguintes termos:

 Em face do exposto, liquida o tribunal a indemnização devida pelos danos patrimoniais apurados em sede de sentença na quantia total de € 900,39 (€ 889,27 + € 11,12).

Os Requerentes inconformados interpuseram recurso, formulando as seguintes conclusões:

...

Concluem:

Nestes termos, e nos mais de direito aplicável, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogar-se a sentença recorrida, substituindo-se por outra que condene as recorridas no pagamento de todos os danos patrimoniais peticionados, com a respectiva actualização e juros à taxa legal sobre tal montante até integral pagamento.

 Não foi apresentada resposta.

1. Do objecto do recurso

Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos Recorrentes cumpre apreciar as seguintes questões:

a) A sentença recorrida é nula por omissão de pronúncia?

b) O montante liquidado deve ser actualizado à data da decisão de acordo com os índices de inflação?

c) As Requeridos devem ser condenadas a pagar juros de mora sobre o valor da indemnização?

2. Nulidade da sentença

Os Recorrentes imputam à sentença o vício da nulidade, alegando que a mesma não conheceu de questões que devia ter conhecido. Para tanto e concretizando tal nulidade, alegam que a sentença recorrida não se pronunciou quanto à existência dos danos decorrentes da perda de venda do galinhaço e dos lucros que deixaram de auferir por não terem podido prosseguir com a exploração do aviário, danos esses que, na sua perspectiva, estão incluídos na decisão em liquidação.

Dispõe o art.º 615º, n.º 1, d), do Novo C. P. Civil:

É nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

O art.º 608º, n.º 2, do Novo C. P. C. determina que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excep­tuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Mas não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

A nulidade prevista na alínea d) do nº 1 do artigo 615º do Novo C. P. C. – quando o Juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento – verifica-se não só quando o Juiz deixe de tomar posição sobre todas as causas de pedir invocadas na petição, sobre todos os pedidos formulados e mesmo sobre as excepções suscitadas ou de conhecimento oficioso, mas também quando ele se ocupe de questões que não lhe foram colocadas pelas partes, salvo se a lei lhe impuser o conhecimento oficioso.

Não têm razão os Recorrentes, uma vez que a sentença apreciou expressamente a questão apontada na sua fundamentação, dizendo:

Desta forma é forçoso, desde logo, concluir que vêm os Requerente em sede de incidente de liquidação invocar outros danos patrimoniais, tal como a perda de rendimento adveniente da venda do galinhaço, e danos não patrimoniais, que não resultaram demonstrados em sede de sentença, sendo que só aqueles acima referidos cumpre em sede de liquidação quantificar.

Assim, tendo sido decidido que aqueles danos não estavam incluídos na decisão a liquidar, pelo que não seriam considerados, houve uma pronúncia sobre tal questão, pelo que não se verifica a causa de nulidade apontada.

3. Os factos 

Foram considerados provados os seguintes factos:

Na sentença proferida nos autos:

A. Os Requerentes e C… e mulher F… celebraram um contrato verbal, que tinha a duração de uma campanha avícola, renovável por iguais períodos, que tem uma duração entre 60 a 80 dias.

B. (…) como contrapartida os Requerentes pagariam a C… e mulher F… a quantia de 40.000$00 (€ 199,52) por cada campanha.

C. C… e mulher F…, no dia 17/12/1987, procederam ao corte da energia eléctrica que abastecia o aviário e que derivava de um edifício onde aqueles tinham instalado um alambique, procedendo, no mesmo dia ao corte de abastecimento de água do mesmo aviário, a qual é proveniente de uma mina que se situa no mesmo prédio rústico danificando o depósito que se encontra junto a desta.

D. (…) Tal impediu os Requerentes de ter aves no edifício e de armazenar as rações e material avícola.

E. Em 17/12/1987 os Requerentes tinham no aviário cerca de 100 aves da última campanha avícola, sendo que 31 morreram e as restantes foram vendidas ao desbarato.

F. Por força do facto referido em C., os Requerentes suspenderam uma encomenda de 8.000 pintos para 28/12/1987.

G. Os Requerentes ainda não pagaram a contrapartida da última campanha.

No incidente de liquidação

H. No dia 06/09/2001, no Cartório Notarial de Castro Daire, foi outorgada escritura de “Habilitação” em que foram habilitadas como únicas e universais herdeiras de C…, falecido em 16/06/2001, o cônjuge F…, e as filhas ...

I. No dia 06/01/2005, no Cartório Notarial de Castro Daire, foi outorgada escritura de “Habilitação” em que foram habilitadas como únicas e universais herdeiras de F…, falecida em 09/12/2004, as filhas ...

J. Os Requerentes receberam pela campanha que decorreu entre 15/04/1986 e 29/05/1986 a quantia de 235.691$00 (€1.175,62).

K. Os Requerentes receberam pela campanha que decorreu entre 02/02/1987 e 24/03/1987 a quantia de 175.877$00 (€877,27).

L. Os Requerentes receberam pela campanha que decorreu entre 12/06/1987 e 23/07/1987 a quantia de 210.487$00 (€1.049,90).

M. Os Requerentes receberam pela campanha que decorreu entre 17/08/1987 e 01/10/1987 a quantia de 251.076$50 (€ 1.252,36).

N – O segmento decisório da sentença que condenou os então Réus a indemnizar os Autores tem o seguinte teor:

Por todo o exposto, declaro plenamente procedente a presente acção e em consequência condeno os Réus C… e mulher F… a reconhecerem que os Autores são arrendatários do prédio, do qual eles são proprietários (identificado no art.º 1º da p. i.) nas condições definidas nos autos (que o arrendado se destinou à instalação nele por parte dos AA. de um aviário, o qual efectivamente por estes foi lá instalado, que o preço da renda contratada foi o de 40.000$00 por cada campanha avícola, o qual seria pago dias após esta ter findado e que os AA. sempre pagaram aos RR. o preço ajustado, com excepção da última campanha e derivado aos danos por estes causados àqueles) e a pagarem aos AA. uma indemnização pelos danos causados, cuja quantificação se relega para execução de sentença. – aditado nos termos do art.º 662º, n.º 1, do Novo C. P. Civil.

4. O direito aplicável

4.1. Do objecto da liquidação

Com o presente incidente os Requerentes visaram a liquidação da indemnização, cujo direito lhes foi reconhecido pela sentença que foi proferida em 11.12.1991, transitada em julgado, proferida na acção sumária nº ...

Nessa sentença, conforme consta do respectivo segmento decisório, foi decidido:

Por todo o exposto, declaro plenamente procedente a presente acção e em consequência condeno os Réus C… e mulher F… a reconhecerem que os Autores são arrendatários do prédio, do qual eles são proprietários (identificado no art.º 1º da p. i.) nas condições definidas nos autos (que o arrendado se destinou à instalação nele por parte dos AA. de um aviário, o qual efectivamente por estes foi lá instalado, que o preço da renda contratada foi o de 40.000$00 por cada campanha avícola, o qual seria pago dias após esta ter findado e que os AA. sempre pagaram aos RR. o preço ajustado, com excepção da última campanha e derivado aos danos por estes causados àqueles) e a pagarem aos AA. uma indemnização pelos danos causados, cuja quantificação se relega para execução de sentença.

A este respeito consta ainda da decisão então proferida:

Os danos invocados pelos Autores e que resultaram provados nos autos são a perda, quase total de 100 frangos que aqueles mantinham no imóvel, aquando da actuação ilícita dos Réus – tendo morrido 31 e os restantes sido vendidos ao desbarato e a suspensão de uma encomenda de 8.000 pintos prevista para o dia 28.11.87, em virtude da falta de condições no imóvel (falta de luz e água e de 4 janelas) para os receber e criar.

Estes danos que os Réus têm que indemnizar não podem ser quantificáveis, por falta de elementos para o efeito, devendo o seu montante ser determinado em execução de sentença, conforme pedido pelos Autores, aliás.

Na acção declarativa que condenou os então Réus resultou provada a existência dos seguintes danos:

C. C… e mulher F…, no dia 17/12/1987, procederam ao corte da energia eléctrica que abastecia o aviário e que derivava de um edifício onde aqueles tinham instalado um alambique, procedendo, no mesmo dia ao corte de abastecimento de água do mesmo aviário, a qual é proveniente de uma mina que se situa no mesmo prédio rústico danificando o depósito que se encontra junto a desta.

D. (…) Tal impediu os Requerentes de ter aves no edifício e de armazenar as rações e material avícola.

E. Em 17/12/1987 os Requerentes tinham no aviário, cerca de 100 aves da última campanha avícola, sendo que 31 morreram e as restantes foram vendidas ao desbarato.

F. Por força do facto referido em C., os Requerentes suspenderam uma encomenda de 8.000 pintos para 28/12/1987.

G. Os Requerentes ainda não pagaram a contrapartida da última campanha.

No incidente de liquidação com interesse provou-se:

K. Os Requerentes receberam pela campanha que decorreu entre 02/02/1987 e 24/03/1987 a quantia de 175.877$00 (€877,27).

L. Os Requerentes receberam pela campanha que decorreu entre 12/06/1987 e 23/07/1987 a quantia de 210.487$00 (€1.049,90).

M. Os Requerentes receberam pela campanha que decorreu entre 17/08/1987 e 01/10/1987 a quantia de 251.076$50 (€ 1.252,36).

A sentença da qual foi interposto o presente recurso condenou as Requeridas a indemnizar os Requerentes pelos danos causados com a sua actuação concretizada no corte de energia do aviário em 17.12.1987, nos montantes de € 889,27, relativa ao prejuízo resultante da suspensão de uma encomenda de 8.000 pintos prevista para o dia 28.11.87, e de € 11,12, relativa ao prejuízo da perda de 100 frangos.

Os Recorrentes defendem que a liquidação da indemnização deverá também abranger os lucros cessantes relativos a mais quatro campanhas que deixaram de poder levar a cabo por causa da conduta dos antecessores das Requeridas, uma vez que a tomada de posse administrativa do prédio só ocorreu em 26.10.1998.

Invocando o teor da sentença em liquidação acima transcrita, sustentou-se na decisão recorrida:

Desta forma é forçoso, desde logo, concluir que, vêm os Requerente em sede de incidente de liquidação invocar outros danos patrimoniais, tal como a perda de rendimento adveniente da venda do galinhaço, e danos não patrimoniais, que não resultaram demonstrados em sede de sentença, sendo que só aqueles acima referidos cumpre em sede de liquidação quantificar.

Os Recorrentes insurgem-se quanto à decisão por não ter considerado o montante dos lucros cessantes correspondentes às quatro campanhas que deixaram de efectuar, num total de € 3.557,08, bem como o montante de € 1.250,00, a título de venda do galinhaço.

O incidente de liquidação destina-se somente à concretização do objecto da condenação da decisão a liquidar, com respeito do caso julgado pela mesma formado, exigindo-se que na acção declarativa tenha sido provada a existência dos danos, os quais por não ter sido determinado o seu concreto valor, será o mesmo apurado no incidente de liquidação, destinando-se este apenas à sua quantificação e não ao apuramento de outros danos. A quantia a liquidar respeita apenas aos danos apurados na sentença que remeteu a liquidação do seu valor para uma fase posterior.

Conforme tem vindo a ser entendido, a determinação dos limites do caso julgado passa pela interpretação do conteúdo da sentença, nomea­damente, quanto aos seus fundamentos que se apresentem como antecedentes lógicos necessários à parte dispositiva do julgado.

Como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto e de direito), o respectivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos funda­mentos. Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha com esse valor, por si mesma e independente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão.[1]

É certo que o segmento decisório da decisão a liquidar menciona somente a condenação dos Réus ‘a pagarem aos AA. uma indemnização pelos danos causados, cuja quantificação se relega para execução de sentença’.

Da leitura deste segmento tem que se entender que só aqueles danos que foram apurados na acção é que serão aqueles que poderão ser quantificados no incidente. Aliás, duma leitura integral da decisão resulta inequívoco que foi isso o que se pretendeu ao fazer-se constar da sentença o seguinte:

“Os danos invocados pelos Autores e que resultaram provados nos autos são a perda, quase total de 100 frangos que aqueles mantinham no imóvel, aquando da actuação ilícita dos Réus – tendo morrido 31 e os restantes sido vendidos ao desbarato e a suspensão de uma encomenda de 8.000 pintos prevista para o dia 28.11.87, em virtude da falta de condições no imóvel (falta de luz e água e de 4 janelas) para os receber e criar.

Estes danos que os Réus têm que indemnizar não podem ser quantificáveis, por falta de elementos para o efeito, devendo o seu montante ser determinado em execução de sentença, conforme pedido pelos Autores, aliás.

Assim, não pode o incidente de liquidação ser um meio processual para os Requerentes liquidarem outros danos que eventualmente poderão ter decorrido da conduta dos antecessores das Requeridas, mas que não foram objecto da decisão que determinou a liquidação.

Deste modo, mostra-se correcta a opção de limitar a liquidação aos danos que se reportavam à suspensão de uma encomenda de 8.000 pintos prevista para o dia 28.11.87 e à perda de 100 frangos.

4.2. Da actualização da indemnização

No requerimento inicial deste incidente os Requerentes liquidaram a indemnização, actualizando-a segundos os índices do INE.

Na sentença recorrida, a este respeito, decidiu-se que não tendo os mesmos efectuado tal pedido na acção declarativa e não tendo essa pretensão sido contemplada na decisão condenatória, a actualização pretendida já não pode ser efectuada no incidente de liquidação.

Defendem os Recorrentes, com vista à procedência desta questão, que a obrigação das Requeridas constitui uma dívida de valor que não está sujeita ao princípio nominalista, servindo o dinheiro apenas como meio de determinação do seu quantitativo.

A obrigação de indemnizar um dano tem como finalidade primeira a reconstituição da situação que existiria se não tivesse ocorrido o evento gerador dessa obrigação (artigo 562º do C. Civil).

A indemnização é efectivamente considerada uma dívida de valor [2], uma vez que o seu objecto não é constituído por uma importância monetária, podendo o dinheiro intervir apenas como substitutivo do valor económico de um bem, da reconstituição de uma determinada situação ou como compensação de prejuízo sofrido, o que sucede quando, nos termos do artigo 566º, n.º 1, do C. Civil, a reconstituição natural não é possível.

Nestes casos, o dinheiro funciona como um mero instrumento de liquidação. Não constitui o fim em si da obrigação, desempenhando apenas a função instrumental de permitir a reparação do dano, a qual apenas é efectiva se a quantia indemnizatória fixada for suficiente, tanto quanto possível, para restabelecer a situação anterior à ocorrência do evento danoso.

As dívidas de valor não estão sujeitas ao princípio nominalista, devendo por isso a fixação da indemnização tomar em consideração uma eventual depreciação monetária entretanto ocorrida entre a data em que ocorreu o prejuízo e a data em que é fixada a indemnização monetária destinada a ressarci-lo, pois só dessa forma se atribuirá ao lesado uma soma em dinheiro susceptível de reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação [3].

Daí que o art.º 566º, n.º 2, do C. Civil, disponha que a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos.

Porém, a partir do momento em que é feita a conversão da dívida de valor em dívida de dinheiro, a respectiva obrigação já passa a estar sujeita ao princípio nominalista, podendo apenas o devedor reclamar o pagamento de juros pela mora que possa ocorrer na sua satisfação [4].

Ora, no caso sub iudice a liquidação do valor da indemnização só vai ocorrer com o resultado do presente incidente, pelo que na fixação desse valor tem que se tomar em consideração o disposto no art.º 566º, n.º 2, do C. Civil, devendo arbitrar-se uma quantia equivalente à diferença entre a situação patrimonial do lesado actual e a que ele teria actualmente caso não tivesse ocorrido o dano a ressarcir, o que obriga necessariamente à actualização monetária das quantias cujo montante teve em consideração o valor da moeda à data do dano.

E para que seja efectuada essa operação na determinação do montante indemnizatório não é necessário que o Requerente do incidente de liquidação já tenha deduzido o respectivo pedido na acção em que se determinou a liquidação da indemnização em incidente posterior.

Não se tendo ainda procedido à liquidação da indemnização, esta dívida ainda não se converteu em dívida pecuniária, correndo por conta do devedor as oscilações do valor da moeda, pelo que cumpre a quem procede à operação de liquidação dar cumprimento ao disposto no art.º 566º, n.º 2, do C. Civil.

Na presente situação verifica-se que o montante indemnizatório foi fixado com recurso a um juízo de equidade, o qual teve apoio referencial nos valores que os Requerentes na altura auferiam pelas campanhas em 1986 e 1987, pelo que tendo em consideração a evolução do índice de preços ao consumidor que se verificou a partir de 1987, deve o montante indemnizatório fixado em € 909,39, ser actualizado para € 2.807,59. [5]

4.3. Dos juros de mora

Os Recorrentes pedem ainda que as Requeridos sejam condenadas a pagar juros mora vincendos.

A obrigação de pagamento de juros de mora constitui uma obrigação distinta da obrigação indemnizatória, a qual para ser objecto de condenação judicial exige que tenha sido formulada a respectiva pretensão, estando sujeita ao princípio do pedido.

Os Requerentes na acção onde foi proferida a sentença que agora se encontra em liquidação não pediram a condenação dos Requeridos a pagar quaisquer juros.

O presente incidente de liquidação tem apenas por objecto a liquidação do montante indemnizatório devido pelos anos apurados naquela acção, pelo que a dedução de um pedido de pagamento de juros de mora neste incidente traduz-se da dedução de um novo pedido que não se encontra abrangido pelo objecto da liquidação.

Assim sendo, revela-se correcta a decisão de absolver as Requeridas do pedido de pagamento de juros.

4.5. Conclusão

Pelo exposto deve ser julgado parcialmente procedente o recurso, alterando-se o montante da quantia liquidada nos termos acima indicados.

Decisão

Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso e, em consequência, altera-se a sentença recorrida, fixando a quantia indemnizatória liquidada em € 2.807,59.

Custas do recurso, na proporção de 2/3 pelos Recorrentes e 1/3 pelas Recorridas.

Coimbra, 28 de Abril de 2015.

Relatora: Sílvia Pires

Adjuntos: Henrique Antunes

                   Isabel Silva

[1] Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., pág. 578, Lex.

[2] Manuel de Andrade, em Teoria geral das obrigações, vol. I, pág. 243-244, ed. 1958, Almedina, Antunes Varela, em Das obrigações em geral, vol. I, pág. 887, 9.ª ed., Almedina, Almeida Costa, em Direito das obrigações, pág. 736, 12.ª ed., Almedina, Baptista Machado, em Nominalismo e Indexação, em Obra Dispersa, vol. I, pág. 433, ed. 1991, Scientia Iuridica, Ribeiro de Faria, em Direito das obrigações, vol. II, pág. 227, ed. 1990, Almedina, e Pinto Monteiro, em Inflação e direito civil, pág. 22 e seg., separata dos Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia, 1984,.

[3] Manuel de Andrade, ob. e loc. cit., Vaz Serra, em Obrigações Pecuniárias, B.M.J. n.º 52, pág. 172 e seg,, Antunes Varela, ob. cit., pág. 888, Ribeiro de Faria, ob. e loc. cit., e Pinto Monteiro, ob. cit., pág. 23.

[4] Antunes Varela, ob. cit., pág. 888, Baptista Machado, ob. e loc. cit., Ribeiro de Faria, ob. cit., pág. 227-228, e Pinto Monteiro, ob. cit., pág. 24.

[5] Este cálculo foi efectuado, utilizando a aplicação constante do site do Instituto Nacional de Estatística.