Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
84/11.6TBFAG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: PROPRIEDADE
MURO COMUM
CAUSA DE PEDIR
Data do Acordão: 02/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FORNOS DE ALGODRES
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 1371, 1373, 1374 CC, 498, 661 CPC
Sumário: 1. A causa de pedir é o facto concreto donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer - esse direito não pode ter existência sem um acto ou facto jurídico que seja legalmente idóneo para o condicionar ou produzir.

2. Muro comum não é um minus em relação a muro próprio, mas, sim, um aliud, pelo que, para que seja judicialmente reconhecido (com os inerentes efeitos na esfera jurídica dos consortes), deverá existir a correspondente pretensão alicerçada em adequado suporte fáctico.

3. Não tendo as partes formulado pedido de reconhecimento da existência de um muro comum, e ignorando-se a espessura do muro em litígio, é ilegal a sentença que mande retirar “os materiais colocados na metade do muro” e determine a sua reposição “como se encontrava antes do alteamento” (cf. art.ºs 1373º e 1374º, do Código Civil).

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: 

I. Em 13.10.2011, AI (…) e AL (…), instauraram, no Tribunal Judicial de Fornos de Algodres, a presente acção declarativa sumária contra JR (…) e EF (…), pedindo a condenação dos Réus:
a) A reconhecerem que os AA. são donos e legítimos possuidores do prédio indicado no art.º 1º da petição inicial (p. i.);
b) E que desse prédio faz parte integrante o muro que vem mencionado nos art.ºs 7º e 8º do mesmo articulado;
c) A retirarem todos os materiais que colocaram em cima da parte do referido muro indicada nos art.ºs 7º e 8º da p. i.;
d) E a reporem o muro como se encontrava antes do referido alteamento;
e) E a pagarem-lhes uma indemnização não inferior a € 1 500 pelos prejuízos tidos.
Alegaram:
- Que são donos e legítimos possuidores do prédio urbano constituído por uma casa de habitação sito na Rua T (...) , no lugar e freguesia de M (...) , que confronta (…) do Sul com os Réus e do Poente com o caminho, inscrito na matriz sob o artigo n.º 5 (...) .
- Esse prédio veio ao seu domínio e posse por terem construído nele próprio a casa de habitação, no decorrer ano de 1989 e por terem adquirido por compra o terreno em que a mesma foi edificada.
- Demais, os AA., por si e pelos anteriores donos daquele terreno e seus antecessores andam na posse deste e depois da referida casa de habitação há mais de 20 e de 30 anos, cultivando-o de início, e habitando-o após a construção da referida casa de habitação, sem prejuízo de quem quer que seja, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e interrupção e na convicção de estarem a exercer um direito próprio.
- Contígua pelo lado do dito prédio dos AA. possuem os Réus uma outra casa de habitação, que parte também (…) do Poente com o Rua, inscrito na matriz sob o artigo 6 (...) da referida freguesia de M (...) .
- Do lado sul da dita casa dos AA. e entre esta e o prédio dos Réus e com início na Rua pública, existe uma carreira devidamente cimentada e ladrilhada com a largura de cerca de 3 metros e de comprimento superior a 20 metros, que os AA. utilizam para acesso exclusivo ao seu prédio, de carro e de pé, que faz parte integrante do dito prédio dos AA., ladeada do correspectivo lado sul por um muro de construção definitiva com cerca de 4,5 metros de altura.
- Muro que os AA. construíram em 1989 por sua conta e que ficou a fazer parte integrante daquele seu prédio.
- Há cerca de um ano e aproveitando a ausência dos AA. nos Estados Unidos da América, os Réus procederam ao alteamento dos últimos 8 metros do lado nascente do referido muro e adicionaram-lhe blocos de cimento, 3 pilares verticais e um pilar horizontal, numa altura de cerca de 4 metros, que cobriram com um telhado e o fizeram integrar no seu referido prédio.
- Imediatamente a seguir ao pilar horizontal mencionado e na parte superior do muro dos AA. abriram 6 buracos.
- Tudo sem autorização dos AA., e em prejuízo destes, sendo que esse alteamento em muito prejudica a solidez do muro dos AA..
Os Réus contestaram a acção alegando, nomeadamente, que o muro em causa foi construído pelos seus antecessores e melhorado por aqueles quando fizeram a sua casa de habitação no ano de 1994; como o referido muro se situava na linha divisória entre os dois lotes, no ano de 2001, quando os AA. iniciaram a construção da sua moradia, os Réus acederam a um pedido dos AA. para alinharem o muro na parte traseira das moradias, no referido quintal, tendo ficado acordado que todo o muro passaria a ser comum; nesse mesmo ano, os Réus construíram uma churrasqueira no seu terreno e subiram cerca de 3 metros, até ao nível da varanda do 1º piso, o muro existente numa extensão de cerca de 6 metros, no qual apoiaram um telheiro ao longo de toda a extensão do muro levantado, com o prévio consentimento dos AA.; em Junho de 2011 os Réus procederam ao alteamento do muro de divisória onde foi aplicado o telheiro da churrasqueira passando a ter cerca de 6 metros de altura, tendo o A. autorizado a construção, com a salvaguarda do muro a edificar passar a ser comum. Concluíram pela improcedência da acção, reconhecendo-se apenas que os AA. são donos do referido prédio urbano com uma área de 280 m2.
            Por despacho de fls. 69, ao abrigo do disposto no art.º 508º, n.ºs 1, alínea b) e 3, do Código de Processo Civil (CPC) de 1961[1], considerando-se que a p. i. padecia de imprecisões na exposição e concretização da matéria de facto alegada (incidindo essencialmente sobre o ónus de alegação da matéria de facto integradora da causa de pedir) – nomeadamente, no tocante à descrição predial do imóvel aludido no art.º 1º, por que foi construído o muro, razão da conclusão de que o muro ficou a fazer parte integrante do seu prédio e em que terreno foi construído – o tribunal recorrido convidou os AA. a aperfeiçoar aquele articulado, suprindo as aludidas insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto.
Em resposta, os AA. apresentaram o “aditamento” de fls. 72, no qual aduziram, designadamente:
- O imóvel dos AA. está descrito na Conservatória do Registo Predial de Fornos de Algodres sob o n.º 8 (...) /19980519, da freguesia de M (...) .
- O muro em causa foi construído com a intenção de delimitar o prédio dos AA., em terreno pertencente aos AA. e construído à sua custa.
- O prédio dos AA., após a construção, passou a integrar a casa propriamente dita e os muros envolventes.
Foi proferido despacho saneador (tabelar) e seleccionada a factualidade relevante, não reclamada.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, o Tribunal julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, declarou os AA. donos e legítimos possuidores do prédio urbano, composto por casa de habitação, descrito na Conservatória do Registo Predial de Fornos de Algodres, com o n.º 8 (...) /19980519, e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 5 (...) .º, proveniente da matriz 3 (...) .º (“A”), condenou os Réus a retirarem todos os materiais que colocaram na metade do muro que separa o seu prédio, do prédio pertencente aos AA. e referido em A), assim repondo o mesmo como se encontrava antes do alteamento na referida quota-parte, ou seja com uma altura de 2 metros  (“B”) e absolveu os Réus do restante pedido (“C”).
Inconformados e pugnando pela total improcedência da acção, os Réus interpuseram a presente apelação, formulando as seguintes conclusões:
(…)
            Os AA. não responderam à alegação de recurso.
            Os autos voltaram à 1ª instância para conhecimento das invocadas “nulidades da sentença”, tendo a Mm.ª Juíza a quo concluído pela sua inexistência (fls. 356 e 361).
Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir: a) analisar a decisão final proferida em 1ª instância no confronto com o pedido, a causa de pedir e o direito aplicável; b) se fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.
*
II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:
1) Pela Ap. 5 de 1998/05/19, foi inscrita a aquisição, pelos AA., por arrematação em hasta pública, do prédio urbano, descrito na Conservatória do Registo Predial (CRP) de Fornos de Algodres, com o n.º 8 (...) /19980519, e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 3 (...) , com área total de 280 m2 e a seguinte composição: “ Lote de terreno para construção urbana”. (A)
2) No prédio referido em II. 1. 1) os AA. construíram uma casa de habitação que foi inscrita na matriz em 2006 e deu origem ao art.º 5 (...) , constando ainda da certidão de teor que se situa na Rua T (...) , em M (...) , confronta a norte com MJ (...) , a sul com FJ (...) , nascente com baldio e poente com caminho, tendo o terreno uma área total de 280 m2. (B)
3) Pela Ap. 5 de 1992/11/04, foi inscrito a favor dos Réus, por compra, o prédio urbano descrito na CRP de Fornos de Algodres sob o n.º 192/19910509 e inscrito na matriz com o art.º 6 (...) , sito em M (...) , Bairro S (...) , com a seguinte composição e confrontações: Edifício de r/c e 1º andar – norte, IA (...) ; sul, NA (...) ; nascente, terrenos da Junta; poente, rua pública. (C)
4) Do lado sul da casa dos AA. referida em II. 1. 1) e 2) e entre esta e o prédio dos Réus, com início na Rua pública, existe uma carreira cimentada e ladrilhada com uma largura de 3 metros e comprimento superior a 20 metros, que os AA. utilizam para acesso exclusivo ao seu prédio, de carro e a pé. (D)
5) Entre o prédio referido em II. 1. 1) e 2) e o descrito em II. 1. 3) existe um muro. (E)
6) O referido muro ladeia a carreira descrita em II. 1. 4) do lado sul. (2º)
7) Os Réus procederam ao levantamento do muro. (F)
8) No qual apoiaram um telheiro ao longo de toda a extensão do muro levantado. (G)
9) O primeiro levantamento do muro realizado pelos Réus ocorreu em 2001, tendo sido subido cerca de 3 metros, até ao nível da varanda do primeiro piso, numa extensão de 6 metros, no qual apoiaram o telheiro referido em II. 1. 8). (20º)
10) O levantamento do muro efectuado pelos Réus, referido em II. 1. 7) situou-se nos últimos 8, 4 metros (resposta ao art.º 7º).
11) Em Junho de 2011, os Réus levantaram o muro onde tinha sido aplicado o telheiro, passando a ter 6 metros de altura. (22º)
12) Tendo sido levantado pelos Réus em 4 metros. (8º)
13) Além do referido em II. 1. 8)[2], os Réus colocaram blocos de cimento, 3 pilares verticais e um horizontal. (9º)
14) A seguir ao pilar horizontal e na parte superior do muro os Réus abriram 6 buracos. (10º)
15) Tudo sem autorização dos AA.. (11º)
16) AA. e Réus eram amigos. (H)
17) Pelo referido comportamento dos Réus os AA. deixaram de dormir algumas noites. (12º)
18) Sente-se o A. Artur incomodado. (resposta ao art.º 13º)
19) Os AA. iniciaram a construção da moradia em 2001. (17º)[3]
2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.
O Tribunal recorrido afirmou que “a questão decidenda atém-se em conhecer o exacto conteúdo do direito de propriedade dos autores, concretamente, em saber se o muro em causa se aí integrado (…)” e, depois, que “os autores pretendem não só ver reconhecido o seu direito de propriedade sobre o imóvel descrito em 1) e 2), como também ver definido o seu conteúdo material no sentido em que pretendem o reconhecimento de que o muro que separa a sua propriedade e a referida em 3) é de sua pertença com a consequente restituição do muro no estado em que se encontrava” (fls. 265 e 267).
Podemos assim concluir que o Tribunal recorrido delimitou correctamente o âmbito das questões a decidir.
Porém, salvo o devido respeito por entendimento contrário, considerando, por um lado, que os Réus apenas se opuseram ao reconhecimento do direito de propriedade (exclusiva) dos AA. sobre o muro em questão e estes não lograram provar factualidade conducente ao pretendido reconhecimento dessa propriedade exclusiva, e, por outro lado, que além da limitação advinda do pedido deduzido na acção e suas vicissitudes, importava porventura equacionar a situação dos Réus à luz do direito substantivo aplicável, antolha-se evidente que a solução encontrada pelo tribunal recorrido não poderá ser sufragada.
3. Concretizando.
Na petição inicial o A. propõe a acção, deduzindo certa pretensão de tutela jurisdicional, com a menção do direito a tutelar e dos fundamentos respectivos.
O pedido é a pretensão do A. - o meio de tutela jurisdicional pretendido -, o direito para que ele solicita ou requer a tutela judicial, o efeito jurídico pretendido.
A causa de pedir é o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido, é o acto ou facto jurídico (simples ou complexo, mas sempre concreto) donde emerge o direito que o A. invoca e pretende fazer valer, sendo que esse direito não pode ter existência sem um acto ou facto jurídico que seja legalmente idóneo para o condicionar ou produzir.[4]
A causa de pedir é assim o facto concreto donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer/pedido - esse direito não pode ter existência sem um acto ou facto jurídico que seja legalmente idóneo para o condicionar ou produzir.
Nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real em causa (art.º 498º, n.º 4).
4. A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir (art.º 661º, n.º 1).
O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no artigo 264º[5] (art.º 664º).
5. Preceitua o n.º 1 do art.º 1371º do Código Civil (CC), sob a epígrafe “presunção de compropriedade” que a parede ou muro divisório entre dois edifícios presume-se comum em toda a sua altura, sendo os edifícios iguais, e até à altura do inferior, se o não forem.
E nos termos do art.º 1373º, do CC (com a epígrafe “construção sobre o muro comum”), qualquer dos consortes tem, no entanto, a faculdade de edificar sobre a parede ou muro comum e de introduzir nele traves ou barrotes, contanto que não ultrapasse o meio da parede ou do muro (n.º 1), sendo que, tendo a parede ou muro espessura inferior a cinco decímetros, não tem lugar a restrição do número anterior (n.º 2).
Por último, dispõe o art.º 1374º, do mesmo código (sob a epígrafe “alçamento do muro comum”) que a qualquer dos consortes é permitido altear a parede ou muro comum, contanto que o faça à sua custa, ficando a seu cargo todas as despesas de conservação da parte alteada (n.º 1); se a parede ou muro não estiver em estado de aguentar o alçamento, o consorte que pretender levantá-lo tem de reconstruí-lo por inteiro à sua custa e, se quiser aumentar-lhe a espessura, é o espaço para isso necessário tomado do seu lado (n.º 2); o consorte que não tiver contribuído para o alçamento pode adquirir comunhão na parte aumentada, pagando metade do valor dessa parte e, no caso de aumento de espessura, também metade do valor do solo correspondente a esse aumento (n.º 3).
6. A presunção de comunhão a que se refere o art.º 1371º, do CC, assentará em regra, no pressuposto de que o muro foi construído a expensas dos dois proprietários (ou seus antecessores), atento o interesse comum que ele serve, admitindo-se ainda como fundamento, quando assim não seja, a ideia de que um dos proprietários tenha adquirido a meação no muro, dada a possibilidade de comunhão coactiva (art.º 1370º, do CC).
Constitui derrogação ao regime geral da compropriedade o disposto nos art.ºs 1373º e 1374º, do CC, onde se permite que qualquer dos consortes, por sua livre iniciativa (sem necessidade de obter o consentimento dos restantes), pratique sobre o muro comum determinados actos de inovação.
A faculdade de edificar sobre a parede ou muro comum e de introduzir nele traves ou barrotes, desde que não ultrapasse o meio da largura do muro, a que se refere o n.º 1 do art.º 1373º, do CC, é conferida a qualquer dos consortes, sem necessidade de consentimento do outro, constituindo assim uma excepção à regra do art.º 1372º, do CC.
Deste modo, ao consorte, é licito ocupar meia parte da largura do muro, seja para edificar qualquer construção ou para introduzir nele traves ou barrotes.
Porém, também aqui existe uma inflexão àquele princípio, prevista no n.º 2 do cit. art.º 1373º, se a espessura da parede ou muro for inferior a cinco decímetros, situação em que não se verifica a restrição do n.º anterior.
O limite do meio da parede, tradicional no nosso direito, visava permitir ao proprietário confinante madeirar ou travejar nos mesmos sítios; no entanto, sobretudo, a partir das primeiras décadas do século passado, devido aos progressos alcançados na resistência dos materiais de construção, as paredes mestras diminuíram consideravelmente de espessura e tornou-se vulgar ser insuficiente a ocupação de apenas metade da parede – daí o estatuído no mencionado n.º 2 do art.º 1373º, na linha da alteração que havia sido introduzida ao art.º 2330º do Código de Seabra pela denominada Reforma de 1930 (Decreto n.º 19 126)[6], sendo que o nome “parede singela” que passou então a constar do referido normativo resulta tradicionalmente de a parede ser constituída por uma só fila de tijolos ou de pedras, o que passou a ser o caso normal.
Por conseguinte, tendo a parede espessura inferior a 50 cm não existe a restrição do n.º 1 do art.º 1373º, do CC, podendo os consortes aproveitá-la em toda a largura/espessura.
Quanto ao art.º 1374º, do CC, e na sequência do direito pretérito (art.º 2331º do CC de 1867), trata-se de um direito potestativo [e de uma faculdade discricionária, no sentido de que a lei não limita o seu exercício à prossecução de objectivos determinados: pode ser usada para satisfação de qualquer interesse legítimo dos consortes] atribuído, fora das regras próprias da compropriedade, a quem pretende levantar o muro, sem prejuízo, obviamente, da eventual existência de uma servidão altius non tollendi na esfera jurídica de outro consorte ou de simples convenção (obrigacional) em contrário.[7]
7. Como vimos, os Réus não suscitaram qualquer obstáculo ao reconhecimento do direito de propriedade dos AA. sobre o mencionado prédio urbano, atenta a documentação junta aos autos (maxime, certidões do registo predial e da inscrição matricial), sendo apenas controvertido o conteúdo desse direito  - se abrangia o aludido muro divisório, se o muro divisório é parte integrante daquele.
Arrogando-se os AA. únicos e exclusivos titulares do direito de propriedade sobre o muro divisório e visando a consequente condenação dos Réus a reconhecê-lo, demolindo toda a construção edificada sobre o dito muro, verifica-se, no entanto, que aqueles não lograram provar os factos alegados sobre tal pretensa propriedade – designadamente, que o muro foi construído para delimitar o seu indicado prédio, em terreno que lhes pertencia e construído à sua custa (cf., sobretudo, a resposta negativa aos art.ºs 3º e 4º da base instrutória[8]) – , razão pela qual o Tribunal recorrido concluiu, por um lado, pelo não afastamento da presunção de comunhão prevista no art.º 1371º, do CC [não se provando que o muro que divide as propriedades de AA. e Réus pertença em exclusividade a qualquer deles] e, por outro lado, pela improcedência da pretensão dos AA. decorrente daquela alegação [“a pretensão dos AA. de ver reconhecida a sua propriedade exclusiva sobre o muro divisório em causa (…)].
            8. Os AA. não deduziram pedido subsidiário de reconhecimento do muro como comum e os Réus, admitindo a compropriedade, também não formularam pedido reconvencional acautelando ou visando afirmar (formalmente) eventuais direitos derivados da sua descrita actuação.
9. Nesta conformidade e porque muro comum não é um minus em relação a muro próprio, mas, sim, um aliud e, como tal, devendo a correspondente pretensão de reconhecimento encontrar adequado suporte fáctico[9], decorre do exposto que os AA. arredaram a possibilidade de formular um tal pedido de reconhecimento [caso se admita a sua formulação por via subsidiária/art.º 469º, n.º 1][10] e que também não equacionaram os efeitos decorrentes desse possível e eventual enquadramento à luz do direito aplicável, o que, de resto, sempre implicaria a concretização da realidade factual (quanto ao mencionado muro divisório).
Na ausência de pedido e faltando concretizar factos relativos à identificação do aludido muro, em particular, a respectiva espessura, mostra-se evidente, a par da falta de pedido, a inexistência de suporte fáctico para decidir se a construção sobre o muro levada a cabo pelos Réus se inclui, ou não, no conteúdo dos poderes e direitos que a lei lhes confere, o que, por si só, implicava a impossibilidade de o Tribunal recorrido emitir um qualquer juízo sobre a situação jurídica das partes, nos moldes em que o fez.
Ademais, a referida actuação do Tribunal a quo, carecendo de adequado sustentáculo adjectivo, desrespeitará igualmente, ao que tudo indica, o direito substantivo referido em II. 5. e 6., supra  - veja-se, por exemplo, os elementos registados aquando da inspecção ao local realizada no decurso da audiência de discussão e julgamento, sob os pontos 1, 7 e 9/fls. 238 e seguinte, bem como as fotos reproduzidas a fls. 233 e seguinte, que apontam para que o dito muro possa ter uma espessura inferior a 50 centímetros.  
10. Não podemos, pois, acolher a conclusão extraída pelo tribunal recorrido de que o decidido (em 1ª instância) “mostra-se dentro do âmbito do pedido 3 e 4 formulado pelos AA. na medida em que tendo os mesmos pedido a remoção da totalidade dos materiais colocados, a presente decisão acaba por reduzir o âmbito de tal obrigação”.
Improcedendo a pretensão deduzida em juízo de reconhecimento da propriedade exclusiva sobre o dito muro [porquanto os AA. não lograram demonstrar que o muro por eles havia sido construído, conservado e usado como integrando o prédio urbano de que são proprietários], também não é possível declarar a existência de uma situação de compropriedade e, menos ainda, os efeitos assinalados na decisão sob censura.
11. Resta dizer que se considera desnecessária/inútil (prejudicada) a pronúncia desta Relação sobre a impugnação da decisão de facto (“conclusões 10ª e seguintes”/ponto I, supra)[11] e sobre a demais argumentação trazida à apelação (art.ºs 137º e 660, n.º 2).
E soçobrando a pretensão dos AA. quanto à pretensão feita valer relativamente ao muro divisório (razão de ser deste processo), queda inconsequente (“incompreensível e inexequível”) a declaração dos AA. como “donos e legítimos possuidores do prédio urbano (…) descrito na Conservatória do Registo Predial de Fornos de Algodres, com o n.º 8 (...) /19980519, e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 5 (...) .º”, “declaração” ou “reconhecimento” que, além do mais, sempre teve o “assentimento” dos Réus [cf. art.º 4º, n.º 2, alínea b)].[12]
Procedem, desta forma, ou com o referido alcance, as “conclusões” da alegação de recurso enunciadas em I, supra (cf., designadamente, as “conclusões 5ª a 7ª, 47ª, 54ª a 56ª, 60ª, 61ª, 63ª, 64ª, 66ª e 67ª”).
*
III. Pelo exposto, dá-se provimento ao recurso e, em consequência, na total improcedência da acção, revoga-se a decisão recorrida.
            Custas pelos AA./apelados.
*
18.02.2014

Fonte Ramos ( Relator )
Inês Moura
Fernando Monteiro

[1] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[2] Rectificou-se, face ao teor da alínea G) e do art.º 9º da base instrutória, bem como da resposta à matéria de facto (cf. fls. 85, 87, 258 e 267).
[3] Facto omitido no acervo considerado na sentença recorrida mas que foi dado como provado (cf. fls. 87, 258 e 265 a 267).
[4] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 110 e seguinte, e Antunes Varela, e Outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, págs. 232 e seguintes.
[5] Preceitua o referido art.º (com a epígrafe “princípio dispositivo”), na redacção conferida pelo DL n.º 180/96, de 25.9:
      1 - Às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções.
2 - O juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto nos artigos 514.º e 665.º e da consideração, mesmo oficiosa, dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa.

       3 - Serão ainda considerados na decisão os factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa, desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório.
[6] Redacção primitiva do art.º 2330º do CC de 1867: “Qualquer dos consortes pode, todavia, edificar sobre o muro comum, e introduzir nele as traves e barrotes que quiser, contanto que não ultrapasse o meio da parede.”
   Redacção conferida pela dita Reforma de 1930:
   “Qualquer dos consortes pode, todavia, edificar sobre o muro comum e introduzir nele as traves e barrotes que quiser, contanto que não ultrapasse o meio da parede.
   Parágrafo único - Sendo a parede singela, isto é, inferior a 50 centímetros, ambos os proprietários podem aproveitá-la em toda a sua espessura, respondendo por qualquer prejuízo causado ao outro proprietário.”
[7] Vide, nomeadamente, Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, Vol. III, 2ª edição, Coimbra Editora, 1987, págs. 246, 251 e 253 e Henriques Mesquita, Direito Reais, Sumários das Lições ao Curso de 1966/1967, Coimbra, 1967, págs. 163 e seguintes.
[8] Com a seguinte redacção:
- E foi construído em 1989 pelos AA. para delimitar o seu prédio? (3º)
- Em terreno dos AA.? (4º)
[9] Cf. o acórdão do STJ de 10.7.2008-processo 08A1939, publicado no “site” da dgsi
[10] Negando a possibilidade da formulação de pedido subsidiário, pelo menos, em determinado enquadramento fáctico e jurídico, cf. o citado acórdão do STJ de 10.7.2008-processo 08A1939 [assim sumariado: “Fundado o pedido principal (de declaração de propriedade exclusiva de um muro divisório) no instituto da usucapião, não pode deixar de se considerar inepta a petição no que tange ao pedido subsidiário (de declaração de compropriedade do dito muro) com base na mesma factualidade”]; pronunciando-se sobre uma situação em que também se formulou, e admitiu, pedido subsidiário de reconhecimento da compropriedade em relação a determinado muro, cf. o acórdão da RC de 07.5.2013-processo 1259/08.0TBGRD.C1, publicado no “site” da dgsi.
[11] Vide, a propósito, A. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 2ª edição, pág. 298.
[12] Cf., ainda, o cit. STJ de 10.7.2008-processo 08A1939.